outubro 10, 2013

impressionismo poligonal

La Nuit de l'Ours (2011) foi apresentada já há três anos em Annecy, no Anima Mundi e na Monstra, mas como só agora a vi, aqui a trago para quem ainda não conhece. O filme foi criado num workshop de animação na Bélgica por três alunos - Pascal Giraud, Alexis Fradier e Julien Regnard.



Existem vários elementos a destacar neste filme, mas o que mais me tocou foi, sem dúvida, os cenários criados por Pascal Giraud em Photoshop. São absolutamente soberbos na forma como trabalham uma espécie de impressionismo no digital, no sentido em que constroem o esbatimento ou desfocagem do real a partir da manutenção de um aspecto poligonal das formas. Ao ponto de por vezes ficar a dúvida se o filme tem, ou não, alguma base 3d. Depois sobre a camada da forma escorre toda uma luz e um brilho que quase nos ofusca, e cria um deslumbre perante a atmosfera que se gera ali. Por outro lado este brilhantismo perde no lado dos personagens, que são claramente criados por um outro elemento do trio, e seguem uma outra estética, muito mais recortada e delineada.

A animação em si é bastante fluída, contribuindo com um ritmo pausado para a melancolia própria que o filme procura imprimir. A animação foi trabalhada no TVPaint, com algum suporte de After Effects, e ainda algum Cinema 4d para agilização das câmaras.

No campo narrativo, o filme apresenta um história forte, uma espécie de parábola sobre o confronto entre espécies, denotando os efeitos das diferenças e semelhanças, e os seus territórios.

La Nuit de l'Ours (2011) de Pascal Giraud, Alexis Fradier e Julien Regnard

outubro 09, 2013

como ser criativo

O último episódio da OffBook fala-nos sobre a criatividade, um tema que diga-se começa a apresentar alguma saturação. Ainda assim, e para quem trabalha na área, é importante estar atento ao que se vai dizendo, pois encontram-se se sempre pequenos apontamentos relevantes. Neste episódio procura-se definir a criatividade, e perceber o que torna um sujeito criativo.


Nas definições lançadas podemos encontrar atualidade nas afirmações realizadas que procuram desfazer alguns mitos como: a funcionalidade dos lados direito e esquerdo do cérebro; o artista excêntrico; ou ainda o das ideias surgirem de um ponto desconhecido no interior do nosso cérebro. A criatividade é complexa, mas não cai do céu, como nos diz Kirby Ferguson,
"Creativity is a very messy affair, this notion that its coming from nowhere, I think is false." Kirby Ferguson
Essencialmente ser criativo, implica um trabalho continuado de absorção do mundo que nos rodeia, em paralelo com uma constante motivação para fazer, transformar e modificar esse mesmo mundo.

outubro 08, 2013

Catherine (2011), pecados do storytelling interactivo

Tinha demasiadas expectativas em relação a Catherine (2011). Li vários textos que apontavam este videojogo como capaz de elevar o nível do estado da arte do storytelling interativo. As razões apresentadas para a inovação, tinham que ver com o facto da obra trabalhar questões do nosso foro íntimo, e através destas conseguir atingir níveis emocionais pouco usuais no storytelling interactivo. No entanto, e apesar de apresentar alguns pontos interessantes, a experiência acabou por se fechar numa desilusão.


Começando pelo melhor do jogo, a sua estética. Aqui o jogo é um autêntico sopro de frescura no panorama atual. Catherine aparece em várias listas como um dos jogos mais esquisitos de sempre, mas não concordo. O que Catherine faz, é tão simples como colar-se completamente ao manga e anime, elaborando todo o seu universo temático, tanto visual como em termos de história, a partir desses outros dois universos bastante conhecidos. Ou seja, o mundo de Catherine não é estranho por ser novo, pode dizer-se que é estranho por no ocidente estarmos pouco habituados à estética japonesa, nada mais.

Depois no campo narrativo, Catherine segue alguns dos cânones tradicionais da anime. História semi-adulta, com personagens nos 30 anos ainda a enfrentar a vida com muita ingenuidade, típico de quem está ainda a acordar para a vida. A relação amorosa apresentada, e o modo como é trabalhada encaixaria na perfeição no meio da maioria das séries anime do género. Depois o universo dos sonhos, ou pesadelos, apresenta a componente mais estranha mas que vai totalmente de encontro também ao chamado universo anime, que busca sempre a introdução de um qualquer elemento estranho que induza ao desconforto da familiaridade dos personagens, apesar disso, continuando sempre sob um tom bastante humorístico.

O pior vem mesmo quando chegamos ao chamado storytelling interactivo e à capacidade para entrosar história e jogo. Ao início sentimos que os pesadelos, ao serem apresentados sob a forma de um puzzle complexo (com a mesma mecânica de Boxxle (1989) mas em 3d) que temos de resolver para escapar ao pesadelo, fazem sentido. Cada vez que vamos dormir, entramos naquele mundo estranho cheio de decisões a tomar, e em que temos de escapar à pressão dos desafios e do tempo. Mas ao fim de algumas vezes, começamos a sentir o universo do sonho, ou de jogo, totalmente separado do universo de acordado, ou de história. Se conceptualmente a ideia é forte, no videojogo faltou engenho para dar vida à progressão do entrosamento. A meio do jogo já percebemos que tudo passa pelo jogo, e se queremos saber mais da história, temos de continuar a resolver puzzles, e que a única coisa que nos aguarda são mais puzzles, e cada vez mais complexos.

Acordado - História

A sonhar - Jogo

Esta falta que notamos na consequencialidade entre jogo e história, acaba por trespassar para o domínio do próprio storytelling interactivo. Catherine limita-se a fazer perguntas ao jogador, é verdade que sobre assuntos extremamente íntimos, mas não chega usar um tema impressivo. Precisamos de sentir que as questões, e as nossas respostas, estão também elas intimamente ligadas ao destino do jogo. Que tudo não passa de um mero questionário, com check-boxes, para que o algoritmo do jogo vá decidindo o caminho a seguir, vá escolhendo os trechos de animação a tocar de cada vez que respondemos a uma pergunta. E é isso que começamos a sentir, à medida que nos aproximamos do fim do jogo. Cheguei a sentir, que estava ligado naquelas linhas telefónicas de apoio à saúde, em que a pessoa que está do outro lado nos vai lendo um questionário, e nós vamos respondendo, e no final o computador emite um diagnóstico. Impessoalidade, foi o que acabei a sentir no final da experiência.

A uma determinada altura no videojogo começo a questionar-me sobre as respostas que vou dando. Será que devo responder aquilo que verdadeiramente sinto; será que devo responder aquilo que acredito que o jogo espera de mim; ou será que devo responder aquilo que quero que o jogo faça por mim? Como já falei aqui a propósito de The Last of Us, estamos já no reino do brincar, e não do jogar. Dou por mim a improvisar, a testar o sistema, a brincar com as ideias dos autores do jogo. E se inicialmente me dá algum gozo, ele esvai-se quando percebo que o algoritmo que regula as minhas respostas é demasiado retorcido, para eu conseguir fazer sentido dele, e por isso todas as minhas tentativas de jogar verdadeiramente com ele, saem goradas. Por isso desisto, e avanço respondendo ao que me é pedido, apenas com vontade de ver o final do jogo, de perceber o que me espera.

Mas aquilo que me espera, já não é aquilo por que eu anseio. Porque sei que aquilo que me aguarda no final do "meu" jogo, é apenas um dos múltiplos finais possíveis. Tudo o que investi no jogo, está longe de ter um sentido, de me oferecer uma visão do mundo, porque pretende apenas e só ir de encontro à minha visão pessoal do mundo. Ou seja, não me surpreende, não me emociona, porque não existe diferença suficiente entre o que eu sou, e aquilo que se me apresenta, não existe mundo novo a desbravar. E mesmo que o faça, sei que noutro final não o fará, se eu voltar a jogar e der respostas diferentes. O jogo cai então em pedaços, e transforma-se num brinquedo. Um brinquedo em que apenas interessa a interação constante, o processo de experimentar, e não o fim, o que ele tem para nos dizer, porque nada tem, não há verdadeiramente um objectivo, não há uma ideia que o autor tenha para nos comunicar.

Catherine apresenta 8 finais distintos (IGN)

Talvez este seja o maior pecado do storytelling interactivo, acreditar que por meio de bulas de questões pode gerar experiências personalizadas que dirão muito mais a cada um de nós. Quando na verdade aquilo que interessa ao receptor, não é a personalização, mas antes a crença num mundo ficcional, a empatia com os personagens desse mundo, e a ligação directa ao sentir do criador desse mundo...



Declaração de interesses: Joguei uma cópia do videojogo adquirida pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com os autores ou editores do jogo.

outubro 07, 2013

a essência técnica

Finalmente Keloid foi lançado. Tinha aqui falado do teaser em 2011, esta semana a espanhola Big Lazy Robot publicou finalmente a curta terminada. Criada como modo de fugir às pressões comerciais, apresenta-se como o melhor cartão de visita que uma empresa de VFX pode apresentar.


Este é um daqueles trabalhos que fruímos pela sua essência técnica. Confesso que o teaser me tinha deixado com maiores expectativas e que três minutos eram manifestamente insuficientes para dar lastro a todas as ideias que pululavam no ecrã. Talvez por isso tenha revisto o filme duas vezes de seguida, para poder saborear mais deste trabalho assombroso.

Ao longo dos curtos três minutos sentimos o experimentalismo visual tocar o seu zénite. Foram dois anos de trabalho que a BLR condensou em técnica e arte. O visual e o movimento apresentam um ritmo por vezes cliché, mas é desse cliché que vemos sobressair a inovação. Keloid não depende da história, a narrativa é aqui mero adereço, porque a experimentação está apenas interessada em induzir um estado emocional no espectador, a alegria de presenciar uma obra visual tão perfeita quanto tecnicamente é hoje possível.

Keloid (2013) da Big Lazy Robot

outubro 04, 2013

Filmes de Setembro 2013

O cinema no mês de Setembro foi curto, mas valeu a pena. Dois belíssimos trabalhos de autores de quem não se espera nunca algo menor, Kiarostami e Malick. Um outro trabalho que me surpreendeu veio de  Bollywood. Udaan pertence a um restrito grupo de filmes da indústria indiana, que falam uma linguagem capaz de gerar empatia nos espectadores do ocidente. Na verdade se fosse um filme americano, o seu interesse seria muito mais reduzido. O que é relevante aqui é a forma como o filme nos permite entrar pela cultura da classe média da Índia adentro e ficar a conhecer modelos familiares e de educação muito distintos. Mais do que isso, que por mais que a cultura nos separe, as nossas emoções humanas continuarão a aproximar-se sempre muito. De resto duas desilusões, esperava muito mais de Le Capital de Costa-Gravas, um autor de que gosto particularmente. Le Capital é um filme interessante mas fica-se por isso mesmo. A desilusão mais gritante foi no entanto com Planes da Pixar. Uma manobra de marketing, sem conteúdo, sem força, sem ideias. Um trabalho 3d fraco a servir de fundo a uma história carregada de clichés piores que pastilha elástica mascada.

xxxx Like Someone in Love 2013 Abbas Kiarostami France

xxxx Udaan 2010 Vikramaditya Motwane India

xxxx Days Of Heaven 1978 Terrence Malick USA


xxx Le Capital 2013 Costa-Gravas France

xxx World War Z 2013 Marc Forster USA

xxx Confessions 2010 Tetsuya Nakashima Japan

xxx A Boy and His Dog 1975 L.Q. Jones USA


x Planes 2013 Klay Hall USA

outubro 03, 2013

os sonhos de Bergman

A Criterion Collection acaba de publicar no YouTube um ensaio audiovisual de Michael Koresky sobre a obra de Ingmar Bergman, intitulado "Bergman's Dreams" (2013). Como o próprio título indica, o documentário centra a sua análise sobre o modo como Bergman trabalhava a ideia de sonho nos seus filmes.


Na verdade, Bergman dizia que nenhuma outra arte conseguia capturar o sonho como o cinema. A sua capacidade para capturar sempre apenas uma fração da realidade, uma contínua ilusão sem qualquer ponta de realidade, levava-o a comparar o cinema com o sonho, e dizer que ambas as realidades eram impossíveis de suscitar confiança.

"we can't trust reality on film, anymore than we can trust in dreams"

outubro 02, 2013

biografia de Ayn Rand em banda desenhada

Nos últimos anos o nome Ayn Rand surgiu de novo com muita força, muito motivado pelo desastre financeiro de 2007. Nesse sentido trago aqui um magnífico trabalho, "Ayn Rand" (2013) de Darryl Cunningham, uma biografia em banda desenhada online, que utiliza como base as obras "Ayn Rand And The World She Made" de Anne C. Heller e "Goddess of the Market: Ayn Rand And The American Right" de Jennifer Burn.



A crise, que começou em 2007 nas praças financeiras americanas, foi apontada como o colapso esperado das teorias das economias de mercado, da total desregulação e liberalização do comércio. As leis e o estado, por não poderem antecipar todos os impactos das suas ações, deveriam ser retiradas da equação. O "laissez-faire" ou neo-liberalismo defendia que uma sociedade submetida à auto-regulação do mercado, seria capaz de garantir o melhor para todos, porque regulada em função dos "processos homeostáticos" da procura e oferta. Alan Greenspan, diretor da Reserva Federal Americana durante 20 anos, foi um dos maiores mentores desta desregulação que se iniciou nos anos 1980 com Reagan, e um fervoroso seguidor da "filosofia" de Ayn Ran.

Resumo do livro "The Fountainhead" de Ayn Rand [página 16 de "Ayn Rand" (2013) de Darryl Cunningham].

Deste modo podemos dizer que por detrás desta crise que ainda vivemos, existe um legado de Ayn Rand e por isso mesmo se torna extremamente relevante perceber melhor quem foi esta pessoa, o que pensava, como, e porquê. E este trabalho de banda desenhada faz um excelente trabalho respondendo a estas questões.

Antes desta crise o nome de Ayn Rand sempre me soou a culto, a seita. Depois de ler este opus de banda desenhada, fiquei com a certeza de que não se tratou de mais nada do que isso. Uma pessoa que passou por uma infância complexa, com momentos de grande stress, através da sua enorme capacidade de racionalização lógica do mundo, desenvolveu toda uma visão daquilo que o mundo deveria ser, como forma de resposta aos seus maiores medos e privações de infância. A sua argumentação lógica acima da norma, foi capaz de convencer muitos de que tudo aquilo fazia sentido.

A chamada filosofia de Rand, o "objectivismo", apresenta ideias muito fortes, e por isso atrai muitas pessoas, mas a sua argumentação está carregada de buracos, contradições, e problemas irresolúveis. Para alguém com capacidade para desenvolver ideias e argumentos tão lúcidos, acaba por ser decepcionante o facto de Rand não ter conseguido detectar ela própria esses problemas, o que inevitavelmente nos leva a questionar sobre a sua sanidade mental. Confronte-se o objectivismo com aquilo que nos diz Frans de Waal em "The Age of Empathy" [análise resumo] ou o que nos diz Paul Tough em "How Children Succeed: Grit, Curiosity, and the Hidden Power of Character" [análise resumo].

Podem ler as 63 páginas de  "Ayn Rand" (2013), na ACT.I.VATE.

outubro 01, 2013

cognição e biologia na base do sucesso

"How Children Succeed: Grit, Curiosity, and the Hidden Power of Character" (2012) de Paul Tough, procura respostas para o sucesso e insucesso das crianças nas sociedades modernas. Vem de encontro a muitos estudos que se têm feito nos últimos anos no campo cognitivo e biológico, apresentando algumas novidades a partir desse cruzamento de saberes. É um livro de divulgação jornalística que procura iluminar um pouco mais sobre a área, sem tentar dar respostas cabais, ou receitas, assumindo que modelos padrão para lidar com a individualidade das crianças, é coisa que não existe. O livro apresenta uma teorização interessante à volta da oposição entre as competências cognitivas, avaliadas pelos testes de QI, e os traços de personalidade como a curiosidade, a escrupulosidade, a auto-disciplina, ou a resiliência.


Assim o fundamento que suporta todo o livro, e é o seu contributo mais interessante, passa pela apresentação da provável razão pela qual as crianças falham na escola, acabando por fracassar nas suas vidas, incapazes de  concretizar os seus sonhos, contaminando as gerações que os rodeiam. Durante décadas acreditámos, e os estudos demonstravam isso mesmo, que as crianças provenientes de lares mais pobres tinham menor sucesso escolar. As razões prendiam-se com a falta de estimulação cognitiva em casa, tanto pela pobreza expressiva dos pais, como pela falta de acesso a cultura e abertura à diferença.

O grande problema desta análise é que ela estava baseada numa única causa do sucesso, aquilo que Tough, chama de "Hipótese Cognitiva". Esta hipótese assenta a causa do sucesso exclusivamente em competências cognitivas do tipo verbal, matemáticas, análise de padrões, no fundo aquilo que avaliamos nos chamados Testes de Inteligência. Aquilo que Tough aqui apresenta são vários estudos realizados nos últimos anos nos campos da psicologia, economia, educação e neurociência que vieram acrescentar um novo ingrediente a esta análise, o "carácter", e que é constituído por qualidades, ditas não-cognitivas, como a preseverança, consciência, otimismo, curiosidade e auto-controlo. Para suportar esta ideia, Tough apresenta dois estudos que por si só são suficientes para demonstrar toda a racionalidade por detrás desta teorização.

1 – A hipótese cognitiva: QI
O Programa GED, é um programa americano que permite aos alunos que desistiram no secundário, ter acesso a um diploma do secundário, mediante a realização de um exame que avalia se estes possuem as mesmas competências cognitivas dos alunos que frequentaram o secundário. O fundamento deste exame é a hipótese cognitiva, que acredita que um aluno que possua as mesmas competências cognitivas de um aluno do secundário, não deve perder tempo a fazer a escola, pode realizar o teste e obter o mesmo reconhecimento do estado que o outro aluno.

O que confere com os estudos realizados à posteriori, em termos de QI, que demonstraram que os alunos que fizeram o GED não se diferenciavam dos alunos que tinham feito toda a escola. O problema surge quando analisamos o desenvolvimento e progresso destas pessoas para além deste patamar. Nos estudos realizados por James Heckman, este encontrou que
“just 3 percent of GED recipients were enrolled in a four-year university or had completed some kind of post-secondary degree, compared to 46 percent of high-school graduate (..) that when you consider all kinds of important future outcomes—annual income, unemployment rate, divorce rate, use of illegal drugs—GED recipients look exactly like high-school dropouts, despite the fact that they have earned this supposedly valuable extra credential, and despite the fact that they are, on average, considerably more intelligent than high-school dropouts” (p.13)
Ou seja, o que podemos ver a partir daqui, é que os alunos que realizaram o ensino secundário, ao terem persistido na escola, obtiveram algo mais do que as competências cognitivas, que os levou a suceder no seu futuro. Heckman conclui que
“what was missing from the equation... were the psychological traits that had allowed the high-school graduates to make it through school. Those traits - an inclination to persist at a boring and often unrewarding task; the ability to delay gratification; the tendency to follow through on a plan - also turned out to be valuable in college, in the workplace, and in life generally” (p.13)
Visto apenas através deste estudo, estamos no reino da pura especulação, o número de variáveis não controláveis é demasiado grande. Contudo os estudos sobre esta hipótese, não se resumem a isto. São muitos os estudos conhecidos sobre a relação entre as competências de auto-controlo e de sucesso na vida, nomeadamente o experimento do Marshmellow de Walter Mischel, mas não só. Tough apresenta ainda vários estudos referentes ao carácter que suportam estas evidências. Mas antes de entrar nesses, quero apresentar o segundo ponto que foi para mim imensamente revelador desta hipótese, mas também daquilo que está em jogo na educação das crianças desde tenra idade.

2 – Hipótese Biológica: Stress
Um estudo realizado em 2009 por Gary Evans e Michelle Schamberg da Cornell University procurava estudar as diferenças entre as crianças provenientes de estratos diferenciados, tendo como metodologia testes das funções-executivas (as funções cognitivas responsáveis pelo planeamento e execução de atividades). Usaram como corpo de estudo, 195 jovens com 17 anos, que já seguiam desde que tinham nascido. Metade viviam em ambientes abaixo da linha de pobreza, e a outra metade em típicas casas de classe-média. O teste consistia no simples jogo “Simon Says” (na foto abaixo).


A primeira descoberta, foi que os miúdos que tinham passado mais tempo abaixo do limiar da pobreza, apresentavam menor desempenho no jogo. Ou seja, uma criança que tivesse vivido 10 anos abaixo do limiar, desempenhava pior do que um que tivesse vivido apenas 5 anos. Até aqui nada de novo. A novidade do estudo aconteceu quando eles levaram em conta a medição de variáveis biológicas – pressão sanguínea, índice de massa corporal, e níveis de hormonas ligadas ao stress, tais como o cortisol – que tinham realizado aos 9 anos de idade, e novamente aos 13 anos, para determinar os níveis de stress, ou em termos científicos, a "carga alostática" (“allostatic load”) das crianças. Interessava analisar os níveis de stress fortes, causados por situações como,
“physical and sexual abuse, physical and emotional neglect, and various measures of household dysfunction, such as having divorced or separated parents or family members who were incarcerated or mentally ill or addicted” (p.29)
Assim conseguiram correlacionar as três variáveis: os resultados dos testes do jogo; com o historial de pobreza; e com a carga alostática. Mas foi ao aprofundar a análise estatística, que se deu o choque: a variável de pobreza era irrelevante. Não era o fator do tempo vivido na pobreza que condicionava a capacidade cognitiva no jogo, mas antes era o stress vivido. Ou seja, até aqui podíamos pensar que a criança de classe média alta, apresentava melhores resultados na memorização de padrões, por ter genes provenientes de pais bem sucedidos, por estar numa escola melhor, por ter acesso a mais jogos, livros e informação. Mas o que descobrimos foi que uma criança que viva no seio de uma família pobre, mas tenha estabilidade emocional, proporcionada por uma família carinhosa e protetora, que não tenha de atravessar situações de grande stress na sua vida, pode apresentar o mesmo desempenho da criança dita rica.

O stress afecta o crescimento do nosso cérebro. Em confronto com uma situação stressante, o nosso cérebro manda libertar hormonas no sangue, que produzem emoções de ansiedade e medo. Quando estas ações acontecem muitas vezes, e nomeadamente com grande intensidade, sem qualquer atenuação por parte dos seres próximos, família, o corpo vai ganhando habituação a viver sob stress, ou seja passa a reagir de forma muito mais carregada, por não poder antecipar apaziguamento. Os sujeitos passam a conseguir controlar com menor eficácia os seus níveis de stress, e os seus impulsos descontrolam-se muito mais facilmente. Deste modo quando são confrontados com novas situações, como a realização de provas, testes, exames ou responder a um pedido ou ordem de um colega ou professor, tendem a reagir de forma mais impulsiva, já que a ansiedade sobe, e o medo toma conta das suas ações. Esta impulsividade nem sempre é exteriorizada, certos indivíduos tornam-se agressivos, outros simplesmente bloqueiam interiormente.

Assim, a carga alostática, torna-se na variável mais importante a controlar, para garantir o acesso ao estágio inicial, isto é a permanência e realização da escola por parte da criança. Num estudo no Cook County Juvenile Temporary Detention Center, encontraram-se as seguintes variáveis,
 “84 percent of the detainees had experienced two or more serious childhood traumas and that the majority had experienced six or more. Three-quarters of them had witnessed someone being killed or seriously injured. More than 40 percent of the girls had been sexually abused as children. More than half of the boys said that at least once, they had been in situations so perilous that they thought they or people close to them were about to die or be badly wounded” (p.49). 
3 – Treinando o Carácter
O resto do livro é passado a discutir formas, métodos e modelos para treinar o carácter. Tough acaba socorrendo-se da Psicologia Positiva, dos trabalhos de Martin Seligman. No livro Character Strengths and Virtues: A Handbook and Classification (2004) Christopher Peterson e Martin Seligman apresentam uma primeira abordagem para identificar e classificar os traços psicológicos positivos dos seres humanos. Aí são descritos os caracteres essenciais, categorizados em 6 grandes virtudes. Desse modo criaram uma tabela e testes que permitem apontar o carácter, e permitem definir objectivos a atingir, que como diz Tough, não são imbuídos de moral nem ética, mas antes de efeitos práticos de realização na vida. As seis virtudes aqui apresentadas, são fruto de vastos estudos através do tempo e de forma inter-cultural.


Tough investe bastante tempo a trabalhar dois exemplos de escolas americanas, uma delas a academia KIPP, reconhecida pela sua capacidade para pegar nos alunos e conduzi-los até a Universidade. A discussão em redor dos elementos essenciais que definem o caráter é grande, e sem consensos, no entanto todos reconhecem a sua enorme importância. Deixo aqui uma tabela de diagnostico de carácter aplicada na KIPP.

Nesta tabela da KIPP fica bem evidenciado que a solução para formar miúdos para seguirem um caminho bem sucedido, está longe de se determinar pela mera lecionação de disciplinas de matemática, línguas ou outras. A formação do ser humano, ao nível do carácter, é extremamente relevante para que este consiga potenciar o melhor de si. É claro que muito disto devia vir de casa. E eu continuo a acreditar que a função da escola, é educar a mente, enquanto a da família é educar o carácter. Mas sei também, que uma grande parte das famílias não está preparada para dar esta bagagem aos seus filhos. Não chega ter estudado, ter dinheiro, ter acesso, é preciso mais do que isso, é preciso compreender o mundo em que se vive, e acima de tudo, educar todos os dias para a vivência com o outro. Cada vez acredito mais, que tudo se resume à interação social, que é aí que reside o cerne que alavanca todo o nosso desempenho nas restantes áreas.

setembro 30, 2013

Year Walk (2013)

Simogo é um estúdio de jogos sueco, e um dos mais relevantes da plataforma iOS. Depois de Kosmo Spin (2010), Bumpy Road (2011) e Beat Sneak Bandit (2012) chega-nos agora Year Walk (2013). Para quem vem seguindo o seu trabalho, percebe-se de imediato que Year Walk não segue o mesmo lado colorido e divertido dos jogos anteriores, antes pelo contrário, a Simogo criou uma experiência completamente nova, com uma atmosfera pesada, para o ambiente iPad.



Year Walk tem dois atributos que fazem dele um dos melhores jogos de sempre, feitos para o iOS, o design de interação e o design de experiência. No campo da interação Year Walk apresenta-nos um sistema de navegação espacial extremamente rico, porque inventa a partir do potencial proporcionado pela interface de toque do iPad. A manipulação da navegação decorre do arrasto dos nossos dedos, mas a navegação decorre através de movimentos em paralaxe de várias camadas do cenário. Ou seja, utilizando uma técnica de movimento gráfico, a Simogo consegue criar uma ilusão bastante apurada de profundidade de campo, sem ter de se socorrer de criar ambientes em 3D.

Por outro lado é exatamente através do uso da ilustração em 2D que a Simogo consegue criar toda uma experiência estética particular. O ambiente pesado é gerado através da ilustração de cenários pouco saturados e escuros assentes em mitologia gótica, criando a ideia de que nos passeamos através de telas pintadas. A experiência é ainda tonificada pela interacção com navegação, que apesar de bastante intuitiva, nos mantém o tempo todo perdidos no espaço, gerando ansiedade, a emocionalidade pretendida pelo jogo. O design de som é também essencial no desenho da experiência (ex. os nossos passos sobre a neve) pois contribui para intensificar a credibilidade da navegação no espaço, e desenhar a emocionalidade pretendida.

A evolução no mundo do jogo segue um modo narrativo que vai densificando a história dando-nos mais conhecimento sobre os mitos e aumentando o nosso interesse sobre os mesmos. Ao mesmo tempo cada desvelamento na progressão narrativa vai aumentando o seu nível de complexidade, o que por vezes joga contra a nossa vontade de continuar a procurar responder aos puzzles. No campo dos puzzles, Year Walk relembra as dificuldades de Myst. Temos aqui um jogo de aventura gráfica, e não de ação-aventura moderno do tipo que nos habituou a ter ajudas cada vez que empancamos. Somos obrigados a ir buscar papel e lápis, tirar notas, construir ligações, apontar dados, símbolos, números, criar combinações para assim dar respostas aos enigmas que o jogo nos vai colocando.

Resoluções em papel dos enigmas (imagem de Ben Chudac)

Mas se quisermos obter o máximo do jogo, nomeadamente no campo narrativo, torna-se inevitável descarregar o Year Walk Companion, uma pequena aplicação que a Simogo criou com o intuito de nos dar mais informação sobre as mitologias por detrás de Year Walk. Inicialmente o Companion parece não nos dizer muito, mas à medida que vamos avançando no jogo, vamos começando a fazer sentido deste, e a informação que ele nos fornece torna-se essencial para uma experiência mais completa do jogo. Depois de jogarem leiam o making of na Edge.



Declaração de interesses: Joguei uma cópia deste videojogo adquirida pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com os autores e editores.