abril 04, 2013

"Civil War", extenso e desaproveitado

Finalmente acabei de ler um dos arcos narrativos da Marvel mais badalados da última década, Civil War, e um dos maiores, espalhado por mais de 100 livros e 3000 páginas. Já não lia comics com esta continuidade desde os anos 1990, e se o fiz agora novamente, deve-se essencialmente ao iPad e ao acesso online. Se existe conteúdo para o qual o iPad parece ter sido desenhado propositadamente, é o dos comics. O brilho e o tamanho do ecrã, e a usabilidade deste, tornaram-no num perfeito leitor de comics. A PSP tinha um ecrã demasiado pequeno, o Kindle era monocromático, o iPad abriu uma nova janela para o meu passado!

Civil War (2006-2007), atravessa mais de 100 livros, num total de mais de 3000 páginas

Civil War tornou-se um arco de peso capaz de saltar as fronteiras dos comics, dado que o assunto de fundo tratado tem uma relação directa com o momento da história em que vivemos. É inevitável comparar o fundamento de todo o conflito, o Superhuman Registration Act (registo governamental de todos os que detém super-poderes) com toda a paranóia e nova legislação que atenta contra a liberdade individual nos EUA, o Patriot Act, criada na sequência dos ataques do 11 de Setembro 2001. Se logo após o 11/9 a comunidade aceitou que o governo usasse de todos os poderes para garantir a segurança, com o passar dos anos começou a questionar-se sobre o que é que o governo andava a fazer com tanto poder conferido. Com Guatanamo a manter pessoas indefenidamente prisioneiras sem acusação, com a invasão do Iraque sem fundamento, com milhares de deportações dos EUA por meras razões raciais/religiosas. A ideia de proteção a qualquer custo começou a deixar de ter o sentido que aparentemente parecia ter. Deste modo a Marvel aproveitou todo este sentimento generalizado na comunidade para lançar o arco da Civil War em 2006 que se estendeu até 2007.


Civil War centra-se num conflito extremamente simples, o choque entre dois grupos de heróis, um por e outro contra o registo de todos perante o governo. Os problemas começam com as implicações da descoberta de identidades que isso tem sobre a vida de cada um, o que vai servir de mote para discutir muito mais sobre a informação e controlo da informação em sociedade e pelos governos. Do lado por, o grupo é liderado pelo Homem de Ferro, do lado contra, é liderado pelo Capitão América. Neste evento acaba por ser envolvido praticamente todo o universo de heróis Marvel, mesmo alguns que tinham entretanto desaparecido, regressam ao mundo dos vivos para dar o corpo e surpreender. Assim como vários heróis acabam por perder a vida ao longo desta saga, servindo assim a dramatização de tudo o que vai acontecendo. Em termos de nós principais, estes estão centrados sobre um grupo mais reduzido de personagens, num primeiro plano temos Homem de Ferro, Capitão América, Homem-Aranha e Reed Richards (Senhor Fantástico). Num segundo plano temos ainda Pantera Negra, Thunderbolts, os Novos Vingadores, Namor e os Atlantes e Wolverine.


Julgo que o primeiro plano funciona muito bem, mas o segundo é um mero aproveitamento narrativo para expandir o tema e o tornar maior do que aquilo que seria necessário, e assim também garantir mais história e mais vendas. Nesse sentido Civil War acaba por perder face a outros eventos do passado que conheço bem - Secret Wars - nomeadamente por se perder entre tantas ramificações. Um dos maiores problemas apontados pelos fãs foi exactamente a desarticulação do arco geral. Muitos dos livros que iam surgindo pareciam falhar na coerência com os eventos centrais, tanto em termos cronológicos como em termos de causalidade. Eu senti isso também mas era algo quase inevitável tendo em conta a dimensão, distribuição e a duração do arco. É preciso ter em conta que estão aqui em jogo várias equipas de escritores e desenhistas que normalmente trabalham nos seus projectos, seguindo as suas linhas temporais.

Aliás esse foi talvez o pior sentimento produzido pela série, as diferenças estéticas tanto na arte visual como na escrita. As abordagens são tão diferentes, e o modo como cada um toca certas cordas emocionais é muito distinta. Desse modo acaba por ser muito natural que estejamos a ler um dos livros, e adoremos pelos diálogos, e logo a seguir noutro apenas nos detanhamos sobre a arte gráfica.

Por outro lado passados mais de 6 anos sobre o lançamento de Civil War o seu mote continua imensamente atual. Aliás é muito relevante que a Marvel tenha ousado entrar numa discussão tão política e tão atual. A série começa por nos confrontar com discussões, por vezes profundas sobre o que está em causa. Nomeadamente as discussões sobre a luta pela Lei e a luta pelos Princípios é o melhor. A justificação para a tomada de posição a favor de Reed Richards é também muito boa. Mas depois o guião acaba por se perder na segunda parte, a luta mantém-se porque tem de se manter, e o conflito acaba porque tem de haver um fechamento. Esta série tinha potencial para se tornar em algo verdadeiramente inesquecível, algo capaz de elevar as qualidades humanas, mas acaba por falhar tudo isso. Claramente o seu escritor, Mark Millar, não consegue dar respostas, limita demasiado o alcance daquilo que está em causa, talvez com receio da falta de bagagem do seu público alvo. Falhou, porque tendo sido capaz de lançar-se numa jornada destas deveria ter sido capaz de a assumir até ao final.


Para quem quiser ler, não aconselho a leitura de todos os cento e tal livros, aconselho apenas os 7 livros principais, que podem ser encontrados num único tomo (TPB) Civil War. Se quiserem mais leiam também The Road to Civil War que dá detalhes sobre muitas das questões discutidas ao longo dos 7 livros. Para os fãs de cada personagem existem vários TPB que reúnem as histórias de cada herói relacionadas com o evento.

abril 03, 2013

a cultura dos indie

The Subculture of Indie Video Game Makers (2012) é um pequeno documento sobre a cultura indie dos videojogos, oferecendo entrevistas com vários actores da cena indie internacional presentes no Indie Cade 2012 - International Festival of Independent Games. O filme foi produzido pelo Thrash Lab, um estúdio habituado a trabalhar com culturas underground.


No filme podemos ouvir John Romero, criador de Doom, falar do género nos indie, podemos ver jogos serem pensados para as mais diversas palataformas além do mero monitor, como por exemplo jogos para os siftables, ou ainda ouvir Jennifer Schneidereit falar do belíssimo Tengami. Podemos sentir uma vibração criativa que contamina o espírito de todos estes criativos, um desejo por criar algo que nunca ninguém antes experienciou ou sonhou experienciar.

Isto é no fundo a base da cultura indie, o espírito criativo é aquilo que diferencia um jogo indie de um jogo feito para o mercado. O que está em questão aqui, não é seguir um padrão, ou género, de como se fazem as coisas, é antes arriscar e fazer algo que nunca ninguém fez antes.

abril 02, 2013

"Shadow of the Colossus", a perfeição do balanceamento de emoções

Tive uma noite inesquecível no Domingo, acabei pela primeira vez Shadow of the Colossus (2005). Tenho o jogo desde que saiu na PS2 em 2006 na Europa, mas nunca tinha chegado ao final. Tinha passado vários colossos na PS2, mas a falta de tempo nessa altura (fecho do doutoramento) não me deixou com cabeça para chegar ao final. Lembro-me bem da premissa, do mundo e dos personagens. Lembrava-me bem daquela entrada majestosa com a amada em braços e do altar. Mas confesso que os colossus não eram nada fáceis, e o facto de serem 16 assustou-me. Ao contrário de Ico (2001) aqui sabíamos exactamente quantos níveis faltavam para o final e isso de certo modo desmotivou-me, cada vez que acabava um, só pensava em todos os que ainda faltavam. Depois várias coisas aconteceram, pouco depois de comprar a PS3 fiquei sem a PS2, a falta de retrocompatibilidade colocou a possibilidade de chegar ao fim de Shadow ainda mais longe. Quando vi que ia sair a versão HD para a PS3 pensei de imediato que tinha de adquirir para poder pôr um ponto final no jogo. Todas as minhas recordações daquele universo eram de excelência, mas confesso que nada me tinha preparado para o que vivi no domingo às três da manhã.


O "meu" jogo continua a ser Ico mas descobri que Shadow of the Colossus está carregado da mesma fantasia, ao ponto de estarmos perante uma prequela. Lembro-de de quando saiu se ter falado vagamente nisso mas é algo que só se percebe claramente quando se chega ao final do jogo. Nesse sentido Ico e Shadow tornaram-se, na minha cabeça, em dois jogos inseparáveis. São gameplays muito distintos, mas o tema, o universo, os personagens e a arte provêm claramente da mesma mente brilhante, do criador Fumito Ueda.

Em Ico temos de encontrar o caminho que nos conduz ao exterior de um gigantesco castelo, temos algumas lutas mas muito poucas, é um jogo orientado aos puzzles espaciais, tem apenas um boss no final de todo o jogo. A emocionalidade é trabalhada na base da relação com Yorda, a companheira. Já em Shadow, Ueda foi à procura de outro tipo de emoções. Lembro-de de ler uma entrevista em que Ueda dizia que o impressionava toda a emoção que os jogadores desenvolviam dentro de si, sempre que chegava o momento de enfrentar um boss, a partir daí decidiu criar um jogo que fosse feito apenas de bosses. Um jogo em que passamos todo o tempo a lutar contra bosses, e a sentir essa mesma emocionalidade. Sabendo disto, sempre preferi Ico, nunca fui jogador de grandes lutas e confesso até que me decepcionou um pouco quando li a entrevista, pois se não gostava muito das emoções fortes dos bosses dos jogos, quando percebi que Shadow ia ser feito só disso, assustei-me. Agora, passados os 16 bosses, terminado o jogo, só posso dizer que Ueda tinha razão, os bosses que ele desenhou são capazes de despoletar autênticas explosões de emoção em nós. O medo de falhar, e ter de voltar a fazer tudo de novo, apodera-se de nós, constrói toda uma tensão que se liberta apenas após o espetar pela última vez da nossa espada nos sinais vitais do monstro. No final de cada luta, dá-se a libertação de toda a tensão acumulada, e uma enorme sensação de alívio apodera-se de nós. Foi para isto que Ueda desenhou os 16 bosses, para transportar o jogador através de uma gigantesca montanha russa de emoções. Gigantescas doses de tensão são contra-balançadas pela tranquilidade e beleza da imensidão do espaço por onde deambulamos no intervalo de cada luta. Em termos de design emocional, é simplesmente perfeito. O balanceamento é completo, e é isso que permite gerar uma experiência emocional como nenhum filme ou livro pode imaginar conseguir.





Não me interessa a discussão sobre os jogos como arte, mas Shadow é muito mais arte do que muito cinema e muita literatura. Passamos 12 horas de volta de um artefacto que constrói uma experiência que ficará marcada nas nossas mentes para sempre. Passado todo o sofrimento da luta contra os 16 gigantes, passadas todas as emoções estéticas sentidas pela magnificência do ambiente, chegamos ao fim e somos compensados com um final grandioso de 20 minutos que nos deixa estarrecidos. Compreendemos que aquele final é não só o que nos fez mover ao longo de todo o jogo, mas sabemos claramente que ver aquelas imagens está apenas ao alcance de quem tiver realizado todo aquele caminho, como nós realizámos. É uma sensação apenas comparável com o terminar de um livro de 500 páginas, quando chegamos ao final sentimos a compensação do investimento e esforço em devorar todas aquelas páginas, atingimos algo que apenas quem dedicar tanto esforço como nós, pode conseguir. O filme qualquer um pode ver, e chegar ao fim, no parque de diversões qualquer um pode pagar e entrar na montanha russa. Mas aqui, aqui não é possível sentar e esperar, ou pagar para ver, aqui é preciso atuar, é preciso uma dose de investimento e esforço pessoal que ninguém pode fazer por nós. Somos postos à prova, passada a prova, atingimos um novo estádio na nossa vida. Existe um antes e um depois de chegar ao final de Shadow of the Colossus.

A narrativa de Shadow funciona de um modo bastante literário, no sentido em que ela acaba por se estender tremendamente, apesar do enredo aparentemente simples. Tal como na literatura, o videojogo investe aqui bastante na descrição dos seus ambientes e dos seus personagens. Shadow demonstra que o videojogo enquanto arte narrativa está entre o cinema e a literatura, porque dá a ver como o cinema faz, mas descreve detalhadamente como só a literatura sabe fazer. Literalmente precisaríamos de 500 páginas para transmitir todo o detalhe sobre o universo e personagens de Shadow. A progressão narrativa é feita através da experiência do espaço, do encontro com cada colosso que vai desenvolvendo em nós um cada vez maior conhecimento sobre aqueles personagens e confiança no modo como lidar com eles. Nós crescemos como jogadores e atores do jogo, embora o nosso personagem, Wander, não evolua exteriormente com cada conflito com os colossos. A única vez que vemos os efeitos da luta sobre o corpo do nosso personagem é após a luta com o último colosso, as roupas rasgadas e o corpo ensanguentado, sentimos o efeito, como que projecta o nosso sofrimento depois de termos derrotado também todos aqueles gigantes. Por outro lado Shadow desenha uma progressão em crescendo do personagem no sua resistência e energia que acontece através da colecta de frutos e lagartos encontrados no espaço ao longo do jogo.

O design de interacção realizado em Shadow é absolutamente impressionante, mesmo para quem joga em 2013. Ao reler agora a crítica da Edge de 2005 fico espantado com a forma como atacam a complexidade do que foi aqui criado, rotulando-o de problema. Aliás a vantagem de ter terminado Shadow apenas em 2013 é que me permite analisar em perspectiva o que foi feito nos últimos anos, e compreender o quão importante é o trabalho de design aqui desenvolvido. Shadow evidenciava já o inicio da irrelevância da tecnologia no design de videojogos. Foi feito para a PS2, mas vai muito além do que foi feito entretanto para a PS3. Pegando em dois dos meus jogos preferidos na PS3, Uncharted 2 (2009) e Journey (2012), posso dizer que Shadow junta esses dois, e vai para além dos mesmos.
"the platforming control scheme that simply isn't always capable of attaching a moving person to a moving monolith; the camera that fails to match up to the prodigious challenge of keeping both wanderer and colossus in sight at the same time" [Edge, 2005]
Estes dois pontos destacados na crítica da Edge, podem até conter alguma razão, mas só o pode afirmar quem não tiver consciência do que está em causa. Falamos aqui de desenhar sequências de interactividade entre dois elementos tridimensionais em movimento, o que é apenas das situações mais complexas que temos de enfrentar em termos de design e programação. Aliás numa entrevista dada depois em 2006, o produtor Kenji Kaido dá detalhes sobre três modelos do design da interactividade entre Wander, os colossos e o cavalo.
  1. "Organic Collision Deformation" - O modo como o jogo detecta que Wander está a tocar no colosso, independentemente do seu tamanho, posição ou movimento. Ou seja, se o personagem está agarrado à perna ele terá de mover-se junto com esta. Se a perna se mover na horizontal, o personagem terá de poder correr sobre esta. 
  2. "Player Dynamics and Reactions" - Este modelo geria o modo como física do personagem deveria reagir sempre que está em movimento em cima do colosso também em movimento.
  3. "Motion blending and Posture control" - Este último tem a ver com o modo como as animações de movimento eram trabalhadas do ponto de vista da sincronia, e acção-reacção, de modo a tornar mais credível, toda a relação entre dois objectos em movimento em simultâneo.
No campo da câmara, já em Ico se tinha percebido que esta equipa não estava disposta a limitar a sua criação ao espaço como cenário, mas queria trabalhá-lo também na forma como era apresentado ao espectador, ou seja definir o ponto de vista. Nesse sentido tanto Ico como Shadow são dos jogos esteticamente mais conseguidos em termos de enquadramento. Claro que desenvolver modelos de controlo da câmara que garantam essa componente estética e ao mesmo tempo garantam sempre um posicionamento correcto face à acção que o jogador tem de executar, é extremamente complexo. Sim, por vezes torna-se complicado gerir a nossa acção, do ponto de vista sugerido pelo jogo, mas as vezes em que tive problemas, foram largamente suplantadas por todos os momentos em que se produziam à minha frente enquadramentos sublimes.

Ou seja, em termos de experienciação estética, Shadow vai muito além de Journey, por várias vezes senti que Journey se limitava a uma pequena porção de tudo aquilo que se me apresentava aqui. Os riachos, as montanhas verdes, as árvores e os esquilos; o sol brilhante e por vezes ofuscante, capaz de queimar pradarias inteiras e de fazer sentir o calor tórrido do deserto; a chuva e as nuvens que pairam sobre nós por entre vales e montanhas que nos atiram para estados melancólicos; Argo o nosso companheiro e as pontes que temos de saltar com ele. Em certa medida Journey quase só tem a componente calma de Shadow, e nesse sentido não pode de forma alguma competir em termos de experiência emocional gerada. Porque para além de toda a fantasia dos universos de ambos os jogos, Shadow apresenta uma componente que o distingue de qualquer jogo que alguém tenha jogado até agora, um fortíssimo contraste de tamanho, entre os colossos e o nosso personagem. Este contraste não é meramente visual, é por si só gerador de enorme ativação emocional no jogador. E a forma como a câmara se vai posicionando insinua mais ainda este contraste, intimidando o jogador. Os colossos são absolutamente titânicos, e isso causa um deslumbramento estético impressionante.

Finalmente a arquitectura. O espaço arquitectónico em Ico já funcionava como personagem, o castelo gigantesco, de espaços infindáveis e fantasiosos, em Shadow reparte-se entre um ambiente aberto que mistura natureza e edifícios antigos que demonstram destruição e abandono. À medida que o jogo vai evoluindo vamos acedendo a áreas em que a arquitectura se vai assemelhando cada vez mais ao castelo de Ico, desde os tijolos ao desenho das áreas, das plataformas, dos acessos, portas e janelas. Houve alguns momentos que pareceu mesmo que tinha voltado ao castelo em que Ico estava preso, e na verdade a resposta a essa semelhança apareceria respondida no final, quando somos levados a compreender que Shadow é afinal uma prequela de Ico.

Claramente que Shadow tem outros atributos importantes, o final é tão poderoso, não apenas porque acabámos de atravessar 16 colossos, mas porque traz para cena, tudo aquilo que vivemos em Ico também. De repente, ao longo de 20 minutos, atravessamos experiências de jogo que estavam marcadas somaticamente em nós há muito tempo, e aqueles trechos cinemáticos funcionam como quem puxa cordelinhos de emoções, que nos agitam por dentro, e nos deixam ali, à mercê dos criadores. Inesquecível.


PS.1: Deixo imagens do storyboard e de algumas mecânicas retiradas do livro Shadow of the Colossus Official Artbook.




PS.2: Uma última nota, Shadow of the Colossus foi um dos poucos jogos a ser utilizado no cinema de forma brilhante como metáfora emocional. Podem ver a minha discussão sobre este assunto na análise ao filme Reign over Me (2007).

Declaração de interesses: Joguei uma cópia deste videojogo adquirida pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com os autores e editores.

abril 01, 2013

"Premier Automne" (2013), o romantismo do impossível

Premier Automne (2013) é mais um filme de animação 3d que deixa para trás o apelo 3d convencional de que venho aqui falando, mas socorrendo-se de todo o potencial do digital para criar um universo visual carregado de detalhe, texturas e partículas. O resultado final é um misto entre o digital e o artesanal, capaz de criar um universo único e belo. O filme foi dirigido pelo casal Carlos de Carvalho e Aude Danset de Carvalho, ambos ilustradores e formados na Supinfocom, e ambos colaboradores no estúdio francês independente Je Regarde.





Premier Automne é uma curta com ritmo melancólico, tratando o sujeito da impossibilidade de conciliação. A comunicação da narrativa funciona perfeitamente, e retribui a nossa atenção. Os dilemas do impossível sempre foram uma condição base do romantismo, e o tratamento é feito com muita elegância e savoir-faire. Mas é no campo estético que o filme se ultrapassa. Existe uma atenção ao detalhe, um trabalho nas camadas de elementos visuais que se misturam, inclusive todo o ambiente em redor da ação em movimento, como a neve e as goticulas, que impressiona, e é pouco comum.
Sinopse: "Abel vive no Inverno e Apolline no Verão. Isolados nas suas "naturezas", nunca se conheceram. Nem é suposto encontrarem-se. Assim, quando Abel cruza a fronteira e descobre Apolline, a curiosidade toma conta de si. O encontro torna-se rapidamente mais complicado do que eles poderiam imaginar. Ambos terão de aprender o compromisso para se protegerem um ao o outro..."
A selecção de cor é bastane sóbria, a condizer com as texturas carregadas de irregularidade e relevo. Por seu lado os shaders são muito difusos, ajudando a criar superfícies ricas e densas, mais uma vez a servir a criação visual num sentido mais artesanal e menos digital. A iluminação acaba por funcionar muito bem por conta dos shaders.


Premier Automne (2013) de Carlos de Carvalho e Aude Danset

Acredito que algumas componentes de partículas que se veem no filme, nomeadamente aquelas que voam constantemente à volta dos personagens tenham sido feitas em 2d no After Effects. Ainda assim muitas outras que cheguei a pensar que eram também 2d, foram feitas em 3d como podem ver no Making Of.

Entretanto descobri que toda esta estética que podemos ver em Premier Automne vem de trás. Um trabalho dos mesmos autores de 2007 revelava já muito do que podemos ver aqui. É um trabalho curtinho, mas que vale a pena sorver todos os segundos. Deixo-o aqui também porque vale a pena ver depois de Premier Automne.

L'Histoire de Rouge (2008) de Carlos de Carvalho

março 29, 2013

Off Book: "Can Hackers Be Heroes?"

Excelente documento da série OffBook que nos fala de algo que sabíamos, mas que os media se encarregaram de distorcer ao longo dos anos 1980 e 1990 ao ponto de termos deixado de acreditar no significado do conceito "Hack". Por outro lado nos anos 2000 com a evolução do DIY no campo da electrónica o conceito ressurgiu para re-significar aquilo que sempre tinha significado. Hoje podemos encontrar a palavra "hack" associada a todo o tipo de remix ou reconstrução de estruturas, como é por exemplo o caso dos Ikea Hackers.




De qualquer modo continua a passar a ideia que distingue o hack de software do hack de hardware. O hack de software continua a ser visto como algo invisível, complexo e incompreensível por isso é dado a uma visão mais esotérica, conotada com coisas menos positivas. Por outro lado o hack de hardware por ser visível e mais acessível em termos conceptuais, é aceite como algo positivo, porque se pode ver o processo e o fruto da criação. A pessoa é reconhecida por ter criado algo, algo tangível. O hacker de hardware é respeitado, é um fazedor, um criador. Já o hacker de software continua a ser rotulado como um salteador, alguém que não se mostra nem se identifica, que invade e se aproveita daquilo que é dos outros. Diga-se que toda a paranoia gerada em redor dos Anonymous nada tem contribuído para dissipar este rotulo.

março 28, 2013

Unfinished Swan, conceito e superprodução

Leigh Alexander esteve à conversa com Ian Dallas o criador de The Unfinished Swan (2012) esta semana na GDC e obteve algumas informações interessantes sobre a germinação da ideia e o desenvolvimento do jogo. O que mais chamou a minha atenção foi a discussão sobre o balanceamento entre especialização e cruzamento de saberes, que é um desafio permanente por parte de qualquer criativo digital. Por outro lado torna-se inevitável refletir sobre as questões da originalidade e singularidade dos conceitos de jogo tendo em conta o cenário atual de superprodução.

"Knowing how the tools work... allows you to pivot and solve the problems that come up. That's where you get into the really interesting territory... You spend a lot of time just tuning, and figuring out how to make things just slightly better, and being really fluent in the tools gives you a better insight into how they work... the more you know, the better"
Dallas começa por referir a necessidade de saber mais sobre as ferramentas com que se trabalha, desde o Maya ao Microsoft Visual Studio. Por outro lado refere também que o facto de ter realizado a sua formação na USC, onde se mistura muito de perto o Cinema e os Media Interactivos, lhe abriu a possibilidade para compreender melhor outro terrenos adjacentes ao mundo dos jogos.

Sobre o conceito em si, Dallas refere que "At the time, I was interested in how people move around space". O conceito surgiu como um simples jogo de estudante. Foi depois mostrado em vídeo, e seria esse vídeo que a Sony acabaria por ver e reconhecer, garantindo um contrato de publicação. Foi com esse contrato que se tornou possível então passar de uma mera ideia conceptual, a um jogo distribuído internacionalmente para a PS3.

Muito do desenvolvimento de um jogo é mesmo isto, garantir uma ideia, um conceito. Ter algo que os outros querem experienciar. Que os outros querem tocar, sentir e mexer. Sem isso, teremos apenas mais um jogo, jogado na lotaria dos milhares de novos jogos que saem todos os meses na internet e nas App Stores. A quantidade de jogos produzidos independentemente atingiu um tal ponto, que neste momento muitos dos sites que fazem crítica aos pequenos jogos, só o fazem mediante pagamento. Por um lado temos o problema do excesso de produção, por outro lado temos também todas estas revistas online que vivem dias maus no que toca a receitas de publicidade, e veem nisto uma hipótese de negócio. Sobre esta estratégia diga-se que é perigosa, porque corre o risco de desacreditar todo o jornalismo na área, e desse modo afundar o pouco que resta deste. Por outro lado a quantidade excessiva de produção de pequenos jogos pode levar-nos a um crash, algo anunciado há muito por vários especialistas.

Não acredito muito nesta ideia de crash, apesar de já o termos vivido em 1983. Mas hoje as condições são completamente diferentes e o público está também muito mais diversificado. Por outro lado as ferramentas para criar jogos estão hoje ao alcance de qualquer um, já não temos uma indústria que se baseia no conhecimento tecnológico para existir. A grande lição de The Unfinished Swan é o reconhecimento de que chegou o momento em que deixamos de criar jogos pela sua inovação tecnológica, e passamos a criar jogos pela sua inovação conceptual. Os videojogos deixam assim o primado da engenharia, para se dedicar ao primado da arte.

Declaração de interesses: Joguei uma cópia deste videojogo adquirida pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com os autores e editores.

março 27, 2013

What if you had a vision of the future?

Chegou ao fim o concurso da BBC, "What if you had a vision of the future?", com dois vencedores, um de imagem dinâmica, e outro de imagem estática. O prémio da imagem dinâmica foi para a Bulgária, para Marina Koleva, e o da imagem estática veio para Portugal para Leonel David Mendes. Apesar de ser um concurso internacional, ambos os prémios ficaram na Europa. De entre 800 submissões, vale acima de tudo pelo enorme reconhecimento internacional, já que o prémio se fica por um computador até 2500 libras.

Richard Dawkins was here de Leonel David Mendes, imagem vencedora do concurso da BBC, "What if you had a vision of the future?"


Os premiados foram escolhidos com base nos seguintes critérios: "a) Creativity: b) Visual impact; c) Original concept and theme; d) Emotional power; e) Strength of the vision conveyed through visual medium". Assim sendo, se devesse existir um premiado final entre os dois trabalhos, não tenho qualquer dúvida em afirmar que o trabalho do Leonel ganharia. Pela originalidade, visão, metáfora e alcance da imagem que construiu. É aparentemente algo bastante simples e minimal, mas é no minimal que enquanto receptores podemos construir mais significado daquilo que vemos. O nome dado à imagem, "Richard Dawkins was here", ajuda a focar a dispersão de ideias potenciais que a imagem desenvolve, mas não minora o potencial de leitura da mesma. Um dos elementos do júri, Steve Harding-Hill, disse o seguinte sobre a imagem,
"The reason why I picked this drawing is that I thought it is a stunning, simple, thought-provoking image. The idea of our children being led and blinded by technology. It is a very bleak view of the future and the role of technology in it. I thought it was cold, horrific, powerful, but also it was like satire it is almost like it has already come true." 
Concordo, a única coisa que me incomoda neste discurso, e que está em total consonância com o discurso vigente na escolha da melhor animação, que é o pessimismo quanto ao futuro. Apesar de perceber que podemos ver isso na imagem do Leonel, considero que a imagem pode ser muito mais do que isso. Aliás, este é o motivo que mais me afasta da animação de Marina Koleva. Que me parece totalmente subjugada a ideia de um futuro negro, distópico, mas pior que isso é o facto de ser uma ideia muito pouco original. Quantas vezes não vimos já esta ideia explorada pela ficção científica, já perdi a conta ao número de mundos distópicos inabitáveis, desolados, e destruídos pela industrialização selvagem. É verdade que ela juntou um argumento novo, a questão do brincar ao ar livre, versus brincar com os media, e os seus efeitos sobre as nossas crianças. Eu até gosto da animação, que é capaz de nos tocar, mas tenho muitas dúvidas na sua escolha. Aliás, as animações ali apresentadas, são todas de inferior qualidade às ilustrações. Poderia ser a necessidade de obedecer aos 50 segundos, ainda assim tenho visto imensa criatividade em concursos, até de 5 segundos.

A vision of the future from Bulgaria de Marina Koleva, animação vencedora do concurso da BBC, "What if you had a vision of the future?"

A imagem do Leonel tem tantas leituras possíveis, mas sinto que duas se sobrepõem e se cruzam mesmo, por um lado o evolucionismo, por outro lado o mundo mediado. No caso do evolucionismo, e daí a relação com Dawkins, fá-lo de um modo límpido, sem "nuvens negras", deixando a cada um a tendência da interpretação. Aliás essa é uma das razões pela qual a imagem se torna tão poderosa, porque é capaz de nos mostrar, ou de nos fazer questionar, sobre o bom e o mau de algo que sentimos aproximar-se a cada dia que passa. Por outro lado o mundo mediado surge como um efeito evolucionário da espécie, no sentido em que nascemos como bebés de carne e osso, mas crescemos e nos transformamos num conjunto de bits e bytes, transportados por cabos. Estamos a transformar-nos em representações digitais.

"Uma Baleia no Quarto", e o processo de ilustração

Ontem foi dia de leitura do livro Uma Baleia no Quarto (2012) de João Miguel Tavares e Ricardo Cabral, e posso dizer que a reação do público alvo cá de casa, 4 e 7 anos, foi muitíssimo boa. A narrativa e a ilustração conseguiram desencadear genuína supresa e curiosidade, e ainda muita empatia para com a personagem principal. É um livro conservador, no sentido em que se encaixa nas linhas narrativas mais facilmente reconhecidas, e a própria ilustração, nomeadamente no campo do desenho dos personagens, serve-nos com um realismo muito tradicional, no campo infantil.



Apesar do conservadorismo, posso dizer que me surpreendeu pela positiva (por ser um livro de uma personalidade pública, pensei que se trataria de mais um daqueles favores das editoras). A história é muito bem introduzida, e desenvolve-se de uma forma que mantém as crianças interessadas do início ao fim. Sente-se toda a progressão, e o crescendo, até que surge aquele animal enorme no meio do quarto, e então tudo pára. É uma história com conteúdo, capaz de despertar ideias e imaginários nas crianças.


Por outro lado a ilustração brilha em todo o esplendor. Ricardo Cabral não se limitou a desenhar as cenas, antes de o fazer modelou cada uma destas fisicamente, para as poder iluminar e assim conseguir um trabalho mais realista em termos de luz (ver abaixo Making of). Diga-se que se sente esse esforço na forma como ele usa os brilhos e o posicionamento da luz em cada cena. E apesar de ter gostado bastante da ilustração, não fiquei fã da coloração. Nomeadamente a tonalidade contrastante e muito constante em todo livro, entre o azul escuro e o vermelho. Não gostei, e acabou por me afastar inicialmente da compra. A primeira vez que vi a capa senti uma reação estranha, e só agora percebi que provinha desta mistura que não funcionou para mim. Apesar deste detalhe, tenho a dizer que é uma ilustração enormemente cuidada e detalhada, sente-se um nivel de profundidade nas imagens, pouco usual na ilustração 2d. Nesse sentido é responsável por grande parte do impacto que o livro causa junto das crianças mais pequenas. Por isso mesmo disse que o livro era do escritor e do ilustrador, pois este livro com outro ilustrador criaria todo um outro universo de storytelling.

Making of

março 26, 2013

o poder do óleo na animação

Nightingales in December (2012) é a mais recente animação de Theodore Ushev, que já passou pelo Cinanima e pela Monstra do ano passado. Nightingales in December baseia a sua estética numa espécie de "expressionismo alemão" animado, suportado pela força expressiva da pintura a óleo. Theodore Ushev é ilustrador, designer gráfico, artista multimédia e cineasta, nasceu na Bulgária, e está radicado no Canada desde 1999, onde trabalha desde então para o NFB e onde criou alguns dos seus trabalhos de cinema de animação mais premiados.




Esta técnica de criar a animação a partir do movimento de pinturas rápidas, sobrescurecidas e que por vezes se assemelha a algum rotoscoping, é algo que já vem de trás, do seu filme anterior Lipsett Diaries (2010), um filme que ganhou também imensos prémios, e que pode ser visto no site da NFB, mediante pagamento. Sobre esta técnica Ushev diz-nos em entrevista,
"a razão pela qual fiz o meu filme com pintura, foi porque envolvendo cada frame num expressionismo estrito, seria a melhor forma de expressar as suas emoções." [fonte]
E é exactamente isso que podemos sentir neste Nightingales in December (2012), uma força emocional tremenda emanada das imagens que se sucedem, que se movem e entrecortam ao ritmo da música de Spencer Krug e seguem no desvelamento da sinopse escrita pelo autor,
"This metaphorical surrealist tale is an allusion. Nightingales in December is a trip into the memories, and the fields of the current realities. What if the Nightingales were working, instead of singing and going south? Is the innocence the only savior of birds songs? There are no Nightingales in December... What is left, is only the history of our beginning, and our end."
Nightingales in December (2012) de Theodore Ushev

3d sob uma camada artesanal

O 3d definitivamente está a dar um novo salto estético em termos visuais. Já me tinha dado conta disto no filme Fat (2013), mas agora Folksongs & Ballads, da Supinfocom, que já é de 2011 mas só agora chegou à rede, faz-me acreditar ainda mais nesta convicção. Aliás faz mesmo parecer a técnica de Paperman quase desnecessária. Sabemos que isto é 3d, mas toda a ilustração, texturização e renderização faz esquecer esse facto através da beleza que emana.


Existe neste filme quase que uma obssessão na fuga à simetria, tão típica do filme 3d, originária da produção matemática pelo software. Podemos ver como quase todos os objectos se apresentam carregados de distorção na forma, conferindo-lhe uma marca de autenticidade do artesanal. As próprias texturas, as mais relevantes, são pintadas à mão e depois aplicadas sobre os modelos. Todo o filme respira a artesanto, a tradicionalidade, o que entra em total sintonia com o tema do próprio filme. E é algo que torna impossível não nos impressionar, no sentido de compreendermos do que é capaz o 3d.

É um filme de estudante, criado por Mathieu Vernerie, Pauline Defachelles e Rémy Paul, e nesse sentido aceita-se que algumas, muito poucas, das imagens tenham escapado em parte a este processo de tornar mais artesanal. Existem alguns objectos descuidados aqui e ali, mas isso não invalida nem menoriza em nada a excelência do trabalho desta equipa de estudantes.



A qualidade da curta não se limita aos aspectos técnicos visuais, o filme é em si uma pequena pérola pela forma como obedece a um ritmo lento em consonância com o tema, criando toda uma atmosfera que nos ajuda a transportar para o universo representado em cena. O design dos personagens não é o melhor do filme, ainda assim o personagem principal é uma delícia, convincente e capaz de nos fazer sentir que vive ali, naquele mundo desolado.

Folksongs & Ballads (2011) Mathieu Vernerie, Pauline Defachelles, Rémy Paul