novembro 24, 2012

análise de videojogos

Michael Abbot do blog Brainy Gamer levantou recentemente uma discussão muito interessante à volta do modo como jornalisticamente se analisam, discutem e descrevem os videojogos, nomeadamente os mais recentes exemplos experimentais como Journey, Unfinished Swan e Papo & Yo. Realizou uma análise das palavras utilizadas nas várias críticas, e chegou à conclusão que o vocabulário utilizado é muito homogéneo e que descreve de forma muito genérica este género de jogos.

Nuvem de palavras utilizadas nas críticas ao jogo Journey

Nesse sentido resolvi analisar este assunto a partir de duas abordagens distintas: o quadro de análise e o medium de análise. Esta análise foi publicada na Eurogamer com o título, Crítica de Videojogos. Texto, Media e Experimentalismo.

novembro 19, 2012

Randobot, novo jogo e entrevista

Randobot (2012) é o ultimo jogo de Vasco Freitas, um dos mais interessantes game designers nacionais, que nos trouxe Farmer Jane (2008), G-Switch (2010) e Freeway Fury 2 (2011). Desta vez o Vasco criou um jogo que me parece ser mais interessante para análise do que propriamente para jogar. Um jogo que não sendo cerebral acaba funcionando como uma metanálise dos fundamentos de jogo e do gameplay de plataformas.


Conceptualmente a história do jogo é em si muito interessante porque serve de metáfora à própria grande indústria de videojogos. O engenheiro é pressionado pelo produtor a enviar para fabrico um robô que ainda não está terminado nem completamente operacional. O engenheiro estabelece como meta a possibilidade de poder ir fazendo updates ao sistema antes que o robô seja completamente colocado no mercado. Tal como os jogos nos chegam e por vezes não respondem como deveriam, tendo nós de ir aplicando patch atrás de patch. Quando assumimos o controlo do robô percebemos claramente que este tem falhas, e são essas as falhas que acabam por servir de essência ao gameplay do jogo. O movimento à esquerda ou à direita tem apenas 80% de hipóteses de bom funcionamento, o de salto apenas 55%, e os restantes tiro, andar agachado estão inactivos. As falhas surgem de modo random, daí o titulo do jogo Randobot. Precisamos de atingir os objectivos em cada nível para ir reparando o nosso robô por forma a que este funcione de modo menos aleatório.


O interesse do jogo surge exatamente aí, quando mesmo tendo 80% da funcionalidade dos movimentos esq/dir percebemos o quão fragilizada fica a nossa capacidade de agir sobre o gameplay. Sabemos o que temos de fazer, mas não sabemos se o nosso robô vai reagir no exato momento em que vamos precisar dele, e isso coloca uma tensão ainda maior sobre nós. Isso frustra as nossas expectativas quanto ao domínio da lógica do jogo, é como se o gameplay do jogo se tivesse especializado em tirar-nos o tapete. O random é algo problemático para quem joga videojogos, porque nos habituamos a estudar padrões, analisamos e voltamos a analisar, até conseguir detectar o padrão. Uma vez feito este trabalho passamos a dominar o jogo, e o prazer apodera-se de nós. Mas aqui isso não acontece, não conseguimos dominar o padrão, porque ele não existe, é totalmente aleatório, o que gera grandes doses de frustração. Nesse sentido pedi ao Vasco que nos respondesse a algumas questões,


- Qual é a história por detrás do jogo, como surgiu a ideia do engenheiro e do robô?
:: Estava a jogar um jogo em que as teclas por vezes não funcionavam, devido a um bug. E então pensei se teria piada um jogo em que o mau funcionamento das teclas fizesse mesmo parte do jogo. À primeira vista parecia uma ideia louca (o que me agrada!), destinada a "falhar", mas pensei que se fosse bem executada poderia funcionar...

Imaginei que a aleatoriedade pudesse ser um tipo de gameplay interessante para explorar, devido ao jogador ter de medir o risco das suas decisões e ter sempre em atenção que algo pode deixar de funcionar como esperado de um momento para o outro. Achei simplesmente piada à ideia do jogador nunca saber se um salto vai funcionar, e ter que se precaver para o caso de não funcionar. O tipo de estratégia e processo mental envolvido seria bem diferente do habitual.


Inicialmente o jogo era para ser mais simples, só mesmo para experimentar, mas depois, como costume, tive vontade de ir acrescentando mais coisas. A ideia do engenheiro e robô veio mais tarde, servindo para justificar o facto das teclas por vezes não funcionarem, e como história, o que acabou por também ser uma parte importante do jogo.


- Qual o objectivo por detrás de um gameplay aleatório?
:: Neste caso não houve um objectivo em particular, apenas segui o impulso de experimentar a ideia. Falando de "gameplays aleatórios" em geral, eles existem em quase todos os jogos, e podem servir vários propósitos (tornar o jogo mais interessante, variado, imprevisível, pseudo-realista, etc). Jogos de cartas ou de dados, por exemplo, são um bom exemplo em que a aleatoriedade é parte fundamental do jogo.

- O que pretendias testar? Atingiste a ideia que tinhas?
:: Não pretendi testar nada em particular, apenas concretizar a ideia e ver os resultados. Achei que valia a pena fazer o jogo, já que não existia nada semelhante. Penso que atingi a ideia que tinha, sim, no sentido em que concretizei a minha visão inicial.

- Como te parece que as pessoas estão a responder a essa aleatoridade no gameplay? O que lhes podes dizer em relação à sua frustração?
:: Achei as reacções das pessoas muito interessantes. Alguns dizem ter adorado o jogo do princípio ao fim, enquanto que outros acharam demasiado frustrante. Alguns acharam a ideia interessante, inovadora, e bem executada, enquanto que outros acharam que isto nunca se devia fazer. Sinto que as opiniões dividiram-se muito nos extremos, e é sempre interessante quando isso acontece.

A frustração que sentem é muito dependente do jogador, e para dizer a verdade nem estava à espera que essa fosse uma reacção tão comum, já que as pessoas a quem mostrei o jogo antes de lançar nem acharam muito frustrante. Não tenho muito a dizer a quem tenha achado frustrante, a não ser que podem sempre voltar a tentar noutro dia, e que acho que vale a pena jogar até ao fim, nem que seja para ver como a história acaba :)

Jogar Randobot.

novembro 18, 2012

Face de Spielberg, uma marca autoral

A propósito dos supercuts encontrei um vídeo-ensaio excepcional, criado por Kevin B. Lee, sobre aquilo que este considera ser uma marca autoral em Steven Spielberg, o "grande plano da cara de olhos bem abertos". Lee baseou este supercut/ensaio num trabalho apenas fotográfico de Matt Patches, The Spielberg Face: A Legacy.


O close-up facial é uma realidade que se tem acentuado imensamente nos últimos anos no cinema, nomeadamente no cinema de Hollywood em busca da estimulação de emoções fortes nos seus espectadores. Daí que o uso da cara seja uma obrigatoriedade, já que é através dela que grande parte da emocionalidade é transferida para o espectador. Desde as questões de mímica e de contágio emocional à simulação do sentir do outro, até à sincronia da linguagem verbal, todos os indicadores sobre o funcionamento do ser humano social indicam que nos agarramos desesperadamente aos sinais expressivos do outro para compreender o mundo que nos rodeia.


A face acaba por ser de todos os elementos do corpo, o mais rico em sinais expressivos, porque o mais provido de variedade muscular e consequentemente de potencial gramatical para a germinação conceptual de emoção. Para quem quiser aprofundar o estudo da face aconselho o Paul Ekman, estudioso da face nos últimos 40 anos. Ou um acesso mais simples, o brilhante documentário da BBC, The Human Face (2001), apresentado por John Cleese.




Neste pequeno trecho de Kevin B. Lee, somos levados por um passeio através de um supercut à volta das expressões faciais realizadas nos filmes de Spielberg ao longo dos últimos 40 anos e com dezenas de diferentes actores. Lee discute e fundamenta muito bem o fenómeno da Face de Spielberg, como marca de autor, mostrando plano atrás de plano de faces de personagens com os olhos bem abertos, em grande plano e com movimento de aproximação sobre dolly. Todas estas imagens, se convertem numa face única, a Face de Spielberg, que quer transmitir a ideia de que algo monumental, maravilhoso e épico está a acontecer em frente ao nosso personagem, e logo em frente a nós. Diria que a Face de Spielberg, é a face do verdadeiro Sonhador.

If there is one recurring image that defines the cinema of Steven Spielberg, it is The Spielberg Face. Eyes open, staring in wordless wonder in a moment where time stands still. But above all, a child-like surrender in the act of watching, both theirs and ours. It’s as if their total submission to what they are seeing mirrors our own.

The face tells us that a monumental event is happening; in doing so, it also tells us how we should feel. If Spielberg deserves to be called a master of audience manipulation, then this is his signature stroke. You can’t think of the most iconic moments in Spielberg’s cinema without The Spielberg Face.
Esta análise em vídeo, e como já tinha dito no texto anterior sobre os supercuts, demonstra muito claramente a enorme vantagem de analisar um filme com recurso à sua própria linguagem. Mesmo quando analisamos o texto de Matt Patches, que é muito próximo daquilo que aqui discutimos, como o conteúdo é apresentado apenas por meio de imagem estática, não podemos ganhar uma noção completa da marca autoral de Spielberg. Perde-se o movimento, o que neste caso é essencial dada a aplicação do movimento da dolly que contém em si mesmo uma enorme intensificação da expressividade do objecto.

Keyframe: The Spielberg Face (2012) de Kevin B. Lee

Supercuts

Os supercuts (montagem acelerada de pequenos trechos audiovisuais que procura isolar elementos visuais ou sonoros de forma encadeada) massificaram-se com a distribuição facilitada pela internet, mas foi um processo que se iniciou com o processo de digitalização do cinema, que veio criar novos meios de acesso aos artefactos fílmicos. A facilidade com que hoje podemos aceder a dezenas de filmes, e rapidamente podemos cortar, colar, comparar, integrar, reinterpretar mudou radicalmente o modo como podemos atuar sobre a imagem em movimento. Além disto o conhecimento colectivo gerado pela rede facilita o processo de busca, identificação, e recordação. Assim como facilita os processos colaborativos de discussão e partilha dos trechos a trabalhar.


Tendo em conta a enorme quantidade de supercuts que foram aparecendo nos últimos anos, podemos dividir os mesmos em dois grandes tipos,  os informativos / educativos e os de forma / entretenimento. Sobre os segundos pode-se encontrar muita coisa no sítio supercuts.org, tal como The End, Apocalipse, Twin Towers. Sobre os primeiros discutirei agora em maior detalhe.

Supercut do IMDB Top 250

Alguns criadores têm surgido e têm captado a nossa atenção, não apenas pela minúcia e qualidade técnica do seu trabalho, mas também pelo lado conceptual do mesmo. De um lado temos supercuts informativos como aqueles que é hábito aparecerem no final de cada ano, que resumem em 5 ou 6 minutos um ano inteiro de cinema ou o recente exemplo do IMDB Top 250. No campo mais educativo temos trabalhos de muito maior alcance, como são os supercuts criados por Kogonada, que trabalham sobre um determinado aspecto estético cinematográfico, e o colocam em evidência, levando-nos a ver para além da mera crítica textual, realizando um trabalho verdadeiramente pedagógico. Kogonada é um ex-estudante de doutoramento, na área de estudos fílmicos mais em concreto sobre Yasujiro Ozu, mas que decidiu abandonar para se dedicar a fazer os seus próprios filmes. Numa entrevista dada ao Creators Project, Kogonada refere que aquilo que busca nos seus trechos, são as marcas autorais de cada criador,
Well, I’ve been a cinéphile for some time, and I still believe in the auteur. So I’ve noted tendencies in certain filmmakers for a while. The truth is, there are not a lot of filmmakers, certainly in the US, that have a particular aesthetic. I own a lot of the works from directors that, I think, have a distinct voice and style. For me, it’s been a matter of contemplating which particular technique from these directors would cut nicely together (with many of these auteurs, it’s not just one technique you could highlight, but a number of them). I’m less interested in documenting every example of a particular technique in the work of a director, then I am putting together something that is both attuning and visually interesting.
O que é relevante no trabalho de Kogonada é a forma como este consegue desenvolver um olhar clínico para extrair as semelhanças estéticas dentro das obras de cada autor, e dá-las a ver com tanta clareza. O trabalho sobre a perspectiva, One-point Perspective, em Kubrick é absolutamente magistral. Apesar daquilo que Kogonada nos traz não ser propriamente surpreendente, já que ainda recentemente aqui tínhamos falado sobre movimentos e espaços impossíveis na obra de Kubrick. Este supercut consegue ainda assim trazer nova luz sobre a obra de Kubrick, plasmando na nossa frente a realidade desconstruída do seu trabalho obsessivamente estilístico. Exatamente o mesmo podemos ver no trecho sobre design de som nas obras de Aronofky.

Kubrick // One-Point Perspective (2012) de Kogonada

O que estes vídeo-ensaios fazem é chamar a atenção para motivos e detalhes que só quem estuda os autores se apercebe. Alguns podem até nem passar completamente desapercebidos, mas a vantagem de um supercut é poder ver o elemento dissecado em vários obras do mesmo autor, e assim poder conceptualizar mais detalhadamente o alcance estilístico de um determinado efeito num autor. Isto permite-nos perceber melhor as obsessões e manias dos criadores, para assim conseguirmos compreender as suas motivações criativas.

Sounds of Aronofsky (2012) de Kogonada

Finalmente julgo que estes supercuts colocam a nu algumas questões que me incomodam desde sempre na academia no seio dos Estudo Fílmicos, e que passa por analisar o meio cinematográfico através do mero texto. Como podemos ver aqui, estes dois artefactos de Kogonada assumem um valor que supera intensamente qualquer texto que tenha até hoje procurado dissecar estas propriedades em ambos os criadores - Kubrick e Aronofsky - porque usa exatamente a mesma linguagem da obra analisada. Nesse sentido o seu discurso está muito mais próximo da “realidade” do artefacto analisado, cometendo muito menos “erros” de tradução na análise do audiovisual para o mero textual.

jogo musical com neve

O criador da banda sonora de Fez (2011) resolveu criar o seu próprio jogo, January (2012). Rich Vreeland licenciou-se em Music Synthesis pelo Berklee College of Music in Boston, depois disso trabalhou no GAMBIT Game Lab (Singapore MIT) e nos Demiurge Studios, entretanto em regime de freelancer criou além da música para Fez, a de Drawn to Life: The Next Chapter (2009) entre outras.


January é um jogo musical, de uma enorme simplicidade, mas ao mesmo tempo uma enorme beleza. A simplicidade está no gameplay visual, que por sua vez é acompanhado por um sistema musical generativo, que vai gratificando as nossas acções no jogo. Temos de apanhar flocos de neve com a língua, e à medida que o vamos fazendo algumas notas são tocadas, por forma a fazerem sentido musical entre elas e assim gerarem uma experiência musical. No final do jogo somos mesmo convidados a gravar e publicar o midi da música que criámos enquanto jogávamos.


Sobre o jogo em si, Rich Vreeland diz-nos que,
I wanted to capture the feeling of what it was like to be young and alone in the snow, which was always a fond memory of mine. I intentionally made the music somewhat ambiguous, by using a hexatonic scale. The game tracks the previous two notes that have played, and generates new musical decisions based on that. The player controls the rhythm of the music (by choosing when to lick snow), and can introduce chords and octaves by licking certain kinds of snowflakes.
Jogar

novembro 16, 2012

a ideologia vista pela inocência

Consegui finalmente ver The Boy in the Striped Pyjamas (2008), e ficar estarrecido pela história. Raramente aqui trago filmes pela história apenas, mas este é demasiado bom nesse campo para não o fazer. Tenho de começar por confessar que os filmes sobre Nazis e 2ª Grande Guerra já me dizem muito pouco, já tudo foi tão explorado... Porque é diferente The Boy in the Striped Pyjamas?


Essencialmente porque nos traz a guerra vista da perspectiva de uma criança totalmente inocente. Já tínhamos visto isso no belíssimo Life is Beautiful (1997), a diferença é que aqui a perspectiva não é dada por alguém dentro de um campo, mas antes por um miúdo de 8 anos filho de um importante comandante de um campo de concentração, e que está a tentar compreender o que se está a passar à sua volta. Por sua vez este tenta digerir a lógica do regime imposto pela ideologia vigente, enquanto a confronta com a amizade que estabeleceu com outra criança da mesma idade e que encontrou numa clareira de um campo de concentração.


Existem várias nuances de excelência na história, uma das mais importantes é exatamente fazer-nos perceber como foi possível um regime ideológico daquela natureza implantar-se. Como reagiram as pessoas, como foram treinadas as crianças. Ver que as pessoas se questionaram, mas que foram incapazes de fazer frente ao regime. Perceber que um regime destes pode voltar a acontecer, não haja qualquer dúvida que pode, porque aquilo que temos aqui, é um contorcionismo dos ideais humanos que de tanto se impor, converte as pessoas, e as leva a cometer atrocidades que estas seriam totalmente incapazes de realizar se tivessem verdadeira liberdade para pensar por si próprias. O que esta história mostra a nu, é que um sistema de valores distorcido pode tudo corroer, e não precisamos de Nazis, o sistema atual de crescimento e lucro contínuo que destruiu milhões de vidas com a crise de 2008 continua aí a dar cartas, agora pelas mãos da chamada austeridade. A ideologia implanta-se e quem é comandado, segue friamente, acreditando piamente que está a fazer o melhor pela sua nação...


Enquanto objecto cinematográfico o filme é satisfatório, mas fica muito aquém de tudo o que poderia ter sido. Temos um história fabulosa, que sai um pouco mal tratada em quase todas as dimensões fílmicas, exceptuando o casting dos rapazes (Bruno é Asa Butterfield que fez de Hugo Cabret em Hugo (2011) de Scorsese) e o seu tratamento narrativo. A relação entre Bruno e Shmuel é um verdadeiro pequeno tesouro, porque por momentos somos levados por caminhos de aventura, tal como nos livros que Bruno gosta tanto de ler. E ao longo do filme a sua relação fortalece-se e quando no final decidem levar a sua amizade mais longe, a aventura eleva-se e o drama acontece com uma força trágica muito forte.


Isto tudo é ajudado pela matriz narrativa, que nos conduz à empatização com Bruno, que nos consegue levar a ver e a sentir o mundo a partir dos seus inocentes olhos, mas a uma determinada altura, somos levados para o lado dos pais, e começamos a empatizar com estes, a compreender que estas pessoas são bem mais complexas piscologicamente do que inicialmente nos quiseram fazer parecer. Este jogo de empatização ora com o Bruno ora com os seus pais, carrega-nos ao longo do filme, e constrói o caminho para a tragédia se poder desfilar com toda a sua força e significância.

Um filme pedagógico, trágico, e que dificilmente se esquece.

um esboço da interacção humana

About Elly (2009) deveria ser um filme obrigatório em qualquer disciplina de narrativa cinematográfica, mas não só, também nas cadeiras de teoria de design de videojogos, no ponto sobre a narrativa. O filme foi realizado por Asghar Farhadi o realizador iraniano de A Separation (2011) ganhador do Oscar para melhor filme estrangeiro deste ano, e do Urso de Ouro em Berlim. Ainda não vi A Separation, mas a julgar por About Elly, promete. [Atualização: análise de A Separation entretanto visto]


About Elly é todo ele emoção, mas emoção criada pela matriz narrativa, não pela história, pelo que diz. Não depende dos núcleos nem catalisadores para forçar o sentimento no espectador, o espectador é antes enredado num conjunto de laços e redes sociais, que geram um puzzle humano poderoso capaz de nos deixar à deriva em busca de razões explicativas sobre aquilo que somos enquanto pessoas, enquanto parte de uma família, de um grupo, de uma comunidade.



Tenho visto algumas comparações com algum cinema Europeu, mas em termos comparativos, poderia dizer que About Elly, seria como pedir a Michael Haneke para fazer a sua versão de L’Avventura (1960) de Antonioni. O nó principal assemelha-se a L’Avventura e o modo como é contextualizado em parte também (o lugar isolado), mas a força dos dilemas humanos apresentados é trabalhado num sentido muito mais profundo em termos plásticos. Antonioni é minimal, gosta de sugerir, mas Farhadi é muito mais directo forçando o questionamento, mas não só sobre as relações humanas, é como se ele entrasse adentro delas, e as mostrasse de dentro para fora, algo que Haneke tão bem sabe fazer.


About Elly é um poderoso drama psicológico, um verdadeiro esboço das relações humanas. Mesmo que os costumes do Irão, nomeadamente no campo da relação homem-mulher, nos possam parecer algo distantes, tudo o resto é-nos tão familiar, tão próximo, tão sensível que nos impede de sentir indiferença. O intrincado jogo de interações humanas, parece quase um laboratório de análise social, à espera de ser desmontado e sentido pelo espectador.

novembro 15, 2012

Sublime "Swimmer" [filme completo]

Swimmer (2012) de Lynne Ramsay faz parte de um conjunto de quatro curtas comissionadas pela BBC Films, Films 4 e Jogos Olímpicos para serem exibidos durante as actividades culturais dos jogo 2012 em Londres. Os restantes três filmes foram: A Running Jump by Mike Leigh; What If de Max Giwa e Dania Pasquini; e Odyssey de Asif Kapadia.


Vi apenas Swimmer, mas a julgar pelo que li e pelo trailer das quatro curtas, será o mais elaborado na forma, e por isso claramente o que mais me interessa aqui. Aliás, só o facto de ser um trabalho da Lynne Ramsay torna o filme de imediato obrigatório. Foi quem nos trouxe Ratcatcher (1999), Morvern Callar (2002) ou o mais recente We Need to Talk About Kevin (2011).


Como é típico no trabalho de Ramsay estamos perante uma obra minimalista, aqui mais ainda do que nas suas longas. O filme constrói-se a partir de um nadador que atravessa diferentes zonas geográficas a nado, enquanto a câmara o segue, vamos ouvindo ao fundo algumas vozes que dão pequenas pistas sobre o que está a ser a apresentado. Mas a grande magia de todo o filme assenta no brilhantismo da fotografia que é absolutamente arrebatadora, sendo que o design de som não lhe fica propriamente atrás. A curta é toda ela forma, arte e estética pouco diz linearmente, procura antes de mais fazer-nos sentir, colocar-nos num estado emocional preciso, tocar-nos e deixar-nos a reflectir sobre aquele mundo que acabámos de visitar.


Podemos dizer que a fotografia de Natasha Braier é de um enorme extremismo, porque leva o chiaroescuro a um patamar técnico que eu julgo nunca ter visto antes. Não estamos apenas perante o contraste entre o escuro e o claro, mas entre o verdadeiramente preto e um branco imensamente brilhante. Impressiona, os nossos olhos colam-se nos brilhos das gotas de água translúcidas que voam em redor da pele do corpo do nadador, e por momentos parecemos incapazes de dali retirar o olhar. Se gostaram, percam-se pelo sítio da directora de fotografia.


O filme passou em várias salas em Inglaterra e depois na BBC, contudo ainda não está disponível para adquirir em lugar algum. Consegui apenas ver uma cópia gravada da BBC. A Natasha Braier, a directora de fotografia, colocou entretanto um excerto de 5 minutos do filme no Vimeo, mas foi obrigada a reduzir o excerto para 2 minutos (o filme tem uma duração total de 16 minutos). Diz-nos que o filme deverá sair no início do próximo ano em DVD e diz ainda, para quem tiver ficado encantado como eu com a fotografia, que a revista American Cinematographer trará um artigo dedicado ao filme já em dezembro.

Swimmer (2012) de Lynne Ramsay 


ACTUALIZAÇÃO 13.12.2012
Saiu o artigo na American Cinematographer escrito pela Jean Oppenheimer que conversou com Natasha Braier e nos dá mais detalhes sobre as câmaras utilizadas, filme, e locais. Deixo um excerto do artigo, que podem encontrar na edição de Dezembro da revista.





ACTUALIZAÇÃO 19.11.2018

O filme completo pode ser visto online, aqui abaixo.

novembro 14, 2012

A Invenção de Morel

A Invenção de Morel (1940) é um livro com mais de 70 anos, mas que é hoje, num mundo cada vez mais hiper-realista (seguindo Baudrillard), mais atual e relevante que nunca. A sua premissa nasceu muito provavelmente do contexto vivido face à forte sedução que o cinema causava nas pessoas na primeira metade do século passado. Hoje esta sedução reduziu-se, existem muitas outras atracções, criámos ambientes de realidade virtual, desenhámos videojogos 3d com interactividade e feedback constante, o cinema tornou-se em apenas uma das muitas janelas que temos à disposição para olhar para lá da suposta realidade.


Adolfo Bioy Casares foi um escritor argentino que conheceu o sucesso com esta novela de fantástico. Nesta edição podemos ler um prólogo de alguém que não nos surpreende tendo em conta a temática do livro, Jorge Luis Borges, por sinal também Argentino. Pelo que percebi entretanto Bioy e Borges ainda escreveram vários contos e guiões para filmes juntos. Borges não é comedido no seu prólogo e fecha o texto afirmando simplesmente, 
Discuti com o seu autor os pormenores do enredo e reli-o; não me parece uma imprecisão ou uma hipérbole classificá-lo como perfeito.” 
Concordo, mas é complicado explicar porquê. O livro é pequeno, cerca de 100 páginas, mas não é por isso que é difícil falar dele, é que o conceito central da sua história é a chave de todo o conto. Tentar discutir o livro, sem falar do núcleo da narrativa não faz o menor sentido. Podemos contudo discutir que o seio da história trabalha sob o desígnio da realidade e do valor da imagem enquanto representação. Além disso o narrador fala através de um diário, como se estivesse a falar diretamente connosco, interrogando-se por vezes no mesmo sentido em que nos interroga a nós leitores. Um exemplo fantástico desta construção narrativa, pode ser visto neste trecho,
“Contarei fielmente os factos que presenciei entre a tarde de ontem e a manhã de hoje, factos inverosímeis, que a realidade não terá podido produzir sem trabalho... Agora a verdadeira situação parece não ser a descrita nas páginas anteriores; a situação que vivo não é a que julgo viver.”
L'Année dernière à Marienbad (1961) 

Noto ainda que a conceptualização intertextual que levou Thomas Beltzer a dizer que Alain Resnais se teria baseado em Invenção de Morel para criar L'Année dernière à Marienbad (1961) me parece imensamente acertada. Aliás essa ligação entre as duas obras levou-me assim de repente a compreender Marienbad sob toda uma nova luz, permitindo que o filme tivesse ganho dentro das minhas memórias novas camadas de leitura, mais intensas e relevantes. 

Sawyer lendo A Invenção de Morel em Lost, s04.e04

Uma outra obra recente em que Morel aparece é exatamente a série Lost. Sawyer aparece no quarto episódio da quarta temporada a ler uma edição americana do livro. E aqui é ainda mais forte a colagem do que em Marienbad. Aqui temos uma ilha, e acontecimentos e visitantes estranhos, tal como na ilha de Morel. Lost pode também ser visto de uma forma completamente nova depois de ler este pequeno livro.

novembro 13, 2012

Vídeo, Alemanha e Educação

Trabalhando há décadas em audiovisual não posso deixar de falar sobre o vídeo, Ich Bin Ein Berliner (2012), que acendeu os corações de muitos, contra e a favor, em Portugal, na Alemanha e noutros países. Deste modo resolvi fazer uma análise em três dimensões distintas: Forma, Conteúdo, e Racionalidade.

Ich Bin Ein Berliner (2012)

FORMA
O problema não está na forma, que tem coisas más, mas também tem coisas boas.

Bom: a ideia de um plano corrido e em sequência dá força à ideia central que se quer passar, constrói o argumento e solidifica-o, porque nunca o deixa sair de plano. Além de que constrói um sentido base muito importante na mensagem do vídeo, a ideia de grupo, comunidade, colectivo e união.

Mau: A incapacidade de comunicar com as imagens, ou seja de as tornar expressivas. O vídeo vive do texto, não do que mostra, é pobre na capacidade para induzir pensamento através da sua componente visual e sonora. E quando assim é, devemos usar outras formas de comunicação que não o vídeo, é isto que ensinamos todos os dias nas aulas de linguagem audiovisual. Aquilo que aqui temos é um texto escrito por Marcelo Rebelo de Sousa , que foi adaptado à pressa e sem recursos para vídeo, resultando inevitavelmente num artefacto bem instruído textualmente mas totalmente deficiente na sua componente audiovisual. (Actualização: parece que o texto não terá sido escrito por MRS, este terá apenas sugerido a ideia)

CONTEÚDO
Se fosse apenas isto, diríamos, assim seja, o objectivo é político, e até pode passar uma certa ideia de autenticidade por via da ingenuidade da forma.  Mas o próprio guião apresenta problemas, e nesse sentido temos também coisas boas, e coisas más.

Bom: Dizer que nós fizemos muitas coisas nos últimos 50 anos é bom. Dizer que sempre defendemos a União e nunca reclamámos quando os outros procuraram melhorar o seu estado à custa dessa união, é também muito bom.

Mau: Dizer apenas parte da realidade, é manipulação. E este vídeo é altamente manipulativo. Fala em Plano Marschal mas não fala nos vários planos comunitários em que recebemos financiamento, muito dele vindo da Alemanha, ao longo dos últimos quase 30 anos!

Para quem ainda não viu, vejam antes de ler o que se segue.

RACIONALIDADE
Aqui é que para mim surgem os verdadeiros problemas do filme, ao suportar a sua essência argumentativa na base da culpabilização dos alemães, por estes nos terem vendido, aquilo que fomos nós próprios incapazes de produzir: carros, redes elétricas, submarinos, e muita outra coisa que aqui não aparece. E é aqui que mexe comigo o filme, porque passados mais de 40 anos depois de Salazar continuamos a não perceber a essência do problema português. Continuamos a desprezar a razão pela qual temos uma produtividade tão baixa. As razões são múltiplas, mas deixemo-nos de lirismos, quando é que vamos perceber que temos um problema de Educação nacional?


Apesar de tudo, parece que o Ministro Crato resolveu finalmente acordar. Durante anos em Portugal só se ouviu falar do modelo Finlandês, e finalmente alguém começou a procurar noutras paragens. Acho no entanto irónico que o modelo que agora se procura, seja exatamente o da Alemanha. Mais irónico porque o venho defendendo há décadas, talvez por ter nascido num sistema similar, embora não tenha feito a minha formação depois no sistema e tenha vindo para Portugal. Assim, repesco parte de algo que disse no ano passado, também em Novembro.
“O problema é que para Portugal criar uma marca de eletrónica ou de carros, não chega ter 14% de licenciados, de todo. Mas em cima disso e talvez mais grave, precisávamos de muitas mais pessoas com qualificações ao nível do 12º ano, não chega ter mais outros 14%. De preferência técnicos qualificados em Metalomecânica, em Mecânica, em Eletrónica, em Informática, em Gestão, em Secretariado. De que me adianta ter milhares de miúdos com 18 anos que sabem muito de Português ou Matemática, mas não sabem fazer nada de concreto! Mas pior é mesmo que a grande massa, 72%, não vai além do ensino básico do 9º ano. Com essa escolaridade não servem a nenhuma empresa que precise de competir internacionalmente.”
Este parágrafo resume o essencial daquilo que temos no vídeo. Que se reflete na própria qualidade do vídeo. Somos um país pobre, não em recursos e nem sequer em engenho ou criatividade. Somos um país pobre em Educação técnica e de alto-nível. Por isso precisamos desesperadamente de trabalhar isto. Mas não é apenas injectando dinheiro nas escolas, é preciso mudar mentalidades. Continuamos a ter em Portugal muito quem acredite que a escola não serve para nada. E enquanto assim for, veremos o nosso PIB pelas ruas da amargura. E não me venham falar de EAD ou de MOOCs, que até podem ser modelos interessantes para sociedades com avançada literacia, que está longe de ser o nosso caso (vejam o gráfico na Imagem 1).

E porque é que o Ensino alemão é bom? Escrevi sobre isso ainda há poucos meses, em Agosto, num post no Facebook em conversa com o Prof. Dias Figueiredo e a Prof. Teresa Pombo,
“Eu sou grande defensor das escolas técnico-profissionalizantes. E a ligação com a indústria no secundário é a grande força da indústria alemã, e que já começou nos anos 1950.”
A verdade é que quando comparamos um produto alemão com o de outros países, percebemos muito rapidamente que a qualidade de construção tem pouca concorrência. Diria que alguma produção americana, e a japonesa consegue igualar. Falo aqui de mecânica e electrónica essencialmente, mas isso reflecte-se em muita outra produção. O que acontece, é que os técnicos destas fábricas, andaram na escola, mas não isolados do mundo real. Nas escolas profissionais alemãs, os técnicos das fábricas, vão às escolas dar aulas. E os alunos passam temporadas nas fábricas a aprender. Ou seja o aluno é totalmente envolvido no processo de real aprendizagem desde cedo, e de um modo totalmente orientado e suportado. Algo que conhecemos desde a Idade Média, na figura de mestre e aprendiz, mas fomos abandonando à medida que o ensino se foi massificando, dada a impossibilidade de manter uma relação baixa no rácio professor/aluno.

O que é que acontece neste modelo alemão? Acontece algo que difere muito de uma aprendizagem baseada numa simples sala com quatro paredes, porque vai para além das fronteiras dessas paredes. É um formato que recorre, à Situated Cognition e Embodied Cognition do lado da Psicologia. Ou à User Experience do lado do Design. Ou ainda aos Contextos como defende Prof. Dias Figueiredo no campo da Educação. O formato alemão é aquele que melhor garante, o embodiement, a experiência e o contexto para a aprendizagem. Não se fica pela simulação de contextos com gráficos numa lousa, nem em vídeos ou textos ditados, mas antes se sente, se vive, e se experiencia.

Mas não tenhamos ilusões, não existem modelos definitivos, e 100% perfeitos. A própria Alemanha fez há pouquíssimo tempo uma enorme revolução neste tipo de escolas, nomeadamente nas mais Profissionais (Hauptschule), com pouca componente teórica. Espero que Portugal analise bem essas alterações, e as perceba. Pelo menos numa coisa já fiquei satisfeito ao ouvir o Ministro ontem, é que por cá não faremos disto caminhos de menorização das possibilidade educativas de cada um. Um aluno que faz qualquer caminho de ensino, deve mais tarde poder fazer os exames e seguir a Universidade se assim o desejar. Algo que na Alemanha e França não está previsto. Não gosto, e nem me parece que seja motivador para quem segue outros percursos, sentir que está em percursos secundários, menos relevantes que os seus colegas. E já agora também não gosto da demagogia dos nosso sindicatos, para quem tudo aquilo que um Ministro faça, é mau.

Dito tudo isto, acho que falhámos com os nossos propósitos de procurar apenas e só criar alunos para a Universidade. Com isto fomos incapazes de criar técnicos em número suficiente para alimentar um processo de industrialização de qualidade. Não fomos capazes de criar empresas que pudessem produzir aquilo que os Alemães produziram e nos venderam em todos este anos, e continuam a vender. Temos uma falha enorme nos milhões de pessoas que ficaram pelo caminho no 9º ano. Mas temos uma falha ainda maior nas pessoas que investiram para fazer o 12º ano, tendo perdido literalmente anos de vida, que geraram pouquíssimo retorno, tanto para elas como para o país. Assim que dizer que a culpa da nossa crise é dos alemães que nos venderam aquilo que nós fomos incapazes de aprender a fazer, faz-me apenas pensar no mais elementar que aprendi na Escola Primária, por sinal portuguesa,

“Não deem dinheiro. Deem uma cana de pesca, e ensinem a pescar”