A apresentar mensagens correspondentes à consulta Ken Robinson ordenadas por relevância. Ordenar por data Mostrar todas as mensagens
A apresentar mensagens correspondentes à consulta Ken Robinson ordenadas por relevância. Ordenar por data Mostrar todas as mensagens

junho 24, 2011

Drive (2010) de Daniel Pink


Daniel Pink é uma espécie de estrela americana da literatura não ficcional que trabalha temas como as alterações introduzidas pelas tecnologias da informação nos comportamentos sociais, nomeadamente as novas abordagens e as novas motivações. É um autor que anda na mesma órbita de Malcolm Gladwell, Chris Anderson, ou Stephen Dubner.

O primeiro trabalho que li dele foi A Whole New Mind (2006), um livro muito interessante sobre as alterações introduzidas pela globalização nas necessidades dos novos empregos na Europa e EUA. Uma discussão muito atual que discute como necessidade básica da nossa sociedade atual a inovação e a criatividade. Entretanto Daniel Pink lançou em 2010 Drive: The Surprising Truth About What Motivates Us um livro completamente focado sobre o modo como funcionamos em termos de estímulos, sobre a motivação no trabalho e alguns dos seus mitos.

Em Drive, Daniel Pink vai tocar alguns aspetos que já discuti a propósito de The Element (2009) de Ken Robinson, nomeadamente a questão de que quando as pessoas são levadas a trabalhar em algo que é fruto da sua própria escolha, elas produzem muito mais, do que quando lhes chega como um pedido externo. Neste sentido Pink vai discutir o que motiva as pessoas no mundo atual, nomeadamente a diferença entre o pagamento de serviços e a cumplicidade ou reconhecimento. Vou aproveitar para deixar aqui alguns dos exemplos trabalhados por Pink e que encerram em si o foco do livro.

Num dos estudos apresentados, sobre a motivação de crianças para desenhar, criaram-se três grupos,

1 - A quem se prometeu um certificado para que desenhassem.
2 - A quem não se prometeu, mas se deu um certificado por terem desenhado.
3 - Um grupo a quem não se prometeu nada, nem se deu nada.

O primeiro grupo, assim que se retirou a variável do certificado deixou de achar piada a desenhar, e aos poucos acabou por deixar de desenhar. Por outro lado os outros dois grupos, continuaram a desenhar. O que aconteceu foi que se transformou aquela atividade auto-motivada, numa atividade de trabalho. O pior impacto disto, foi que se destruiu a autonomia das crianças do primeiro grupo, porque passaram a ficar dependentes de alguém lhes dizer o que fazer e quando fazer. A motivação intrínseca, ou auto-motivada, foi exteriorizada, ou substituída por um estimulo externo. 
“Try to encourage a kid to learn math by paying her for each workbook page she completes—and she’ll almost certainly become more diligent in the short term and lose interest in math in the long term.”
Assim Pink diz-nos que no curto termo, podemos levar as pessoas a alterar os seus comportamentos. Mas no longo termo isto conduzirá à destruição da autonomia das pessoas, ou seja à destruição da motivação auto-motivada. O grande problema é que para produzirmos grandes obras, para trabalharmos sobre o nosso elemento, descobrimos aquilo que nos move, temos de possuir esta funcionalidade intacta, se esta for corrompida, podemos estar a comprometer o futuro destas crianças.


Segundo Pink as recompensas extrínsecas funcionam para o ser humano como objetivos a atingir, e estes são do pior que pode existir para um trabalho ético. Os objetivos atravessam-se na frente, e levam a que os atletas se dopem, que os alunos façam cábulas, que os economistas façam trafulha nas contas, que uma empresa em função de um deadline descure critérios de qualidade. Os objetivos são geradores de atalhos para atingir os fins. As coisas deixam de ser intrinsecamente motivadas, e passam a estar motivadas por algo externo, sendo então esse algo externo (objetivo) que é preciso atingir a todo o custo.

Deste modo Pink apresenta-nos as recompensas como viciantes em termos de psicologia humana. Dar um caramelo a um filho para levar o lixo, fará com este da próxima vez exija o mesmo caramelo para voltar a levar o lixo. A pessoa passa a assumir aquela tarefa como desprovida de valor, e que precisa de ser recompensada para ser realizada. Com o passar do tempo, e à semelhança de qualquer adição, será preciso pagar cada vez mais, dar mais recompensa para que a pessoa faça a mesma coisa.


Estas são algumas das essências discutidas no livro, fundamentadas com vários estudos. Para abrir o apetite fica uma palestra que Daniel Pink fez na RSA, dessa palestra foi criado um pequeno vídeo de ilustração das principais ideias. Este vídeo tornou-se entretanto no vídeo mais visto da coleção de vídeos ilustrados da RSA, com quase 6 milhões de visualizações.

maio 07, 2012

o Prazer de ler

Acabo de descobrir uma obra de grande valor, Como um Romance (1992) de Daniel Pennac (edição ASA). Foi-me recomendada pelo João Cardoso, um aluno meu de mestrado, não pelo conteúdo, mas pela forma. O livro desenvolve-se em pequenos capítulos de 2 a 3 páginas, criando no leitor um amplo sentimento de progressão, que facilita per se o acto de leitura.


Mas o que descobri no seu conteúdo deixou-me ainda mais encantado. Neste livro de 1992 Pennac já diz muito daquilo que hoje discutimos em redor das palestras de Ken Robinson. Neste ensaio defende o valor da leitura, não pela sua necessidade mas antes pelo seu prazer. Critica fortemente as práticas pedagógicas que fazem da leitura uma tortura e com isso retiram o prazer de ler às crianças.

Autor desconhecido

Pelo meio apercebi-me de algo que comentei aqui sobre o livro The Shallows: What the Internet Is Doing to Our Brains (2010), é que esta coisa de os alunos e as pessoas não gostarem de ler não tem nada que ver com a Internet. Este ensaio é de 1992, tem 20 anos, e aponta exactamente os mesmos dramas no incentivo à leitura nos liceus franceses. Por isso hoje quando nos dizem que as crianças têm muitas outras atracções, é verdade, mas não é por causa disso que não lêem. Cabe-nos a nós descobrir a forma de os ajudar, e não apenas resignar-nos. Este livro de Pennac é um excelente ponto de partida para encontrar formas de o fazer.


Pennac relembra os pais de que mais importante do que compreender as histórias que lhes leram, é que as crianças tenham prazer com esses momentos. Não posso concordar mais, assim como tenho de concordar com a sua ideia de exame final de liceu em Português, que deveria passar não por exigir a análise de um texto, mas antes por contar sobre os livros que leu.

Ao longo do livro Pennac demonstra com vários exemplos como a análise vem pouco a pouco, à medida que se vai lendo mais e mais, e que não se aprende apenas porque é ensinada de modo obrigatório. Pennac faz do objecto um prazer, e não uma tortura, dessacralizando a leitura e elevando o amor à leitura. Trabalha a arte da leitura como algo que nos deve tocar profundamente o coração, em vez de nos colocar a debitar respostas. E para isso fecha o livro com os fantásticos 10 direitos do leitor:
1. O Direito de Não Ler
2. O Direito de Saltar Páginas
3. O Direito de Não Acabar Um Livro
4. O Direito de Reler
5. O Direito de Ler Não Importa o Quê
6. O Direito de Amar os «Heróis» dos Romances
7. O Direito de Ler Não Importa Onde
8. O Direito de Saltar de Livro em Livro
9. O Direito de Ler em Voz Alta
10. O Direito de Não Falar do Que se Leu
Com um discurso bem disposto e convincente, quase que me consegue fazer sentir culpado. Culpado por ter deixado de ler romances. Uma decisão consciente que tomei há alguns anos. Porque não é possível dedicarmo-nos a todos os prazeres, deixei o lado do romance para o cinema. Mas por vezes, nomeadamente nas paragens mais longas do verão, ainda volto aos seus prazeres por breves passagens.


janeiro 03, 2011

Criatividade e Storytelling

Imagem de Christine

Para começar bem o ano aqui ficam três palestras sobre o assunto que mais vai ocupar o meu ano de 2011, a Criatividade e o Storytelling. Depois de muito termos ouvido Ken Robinson falar sobre a criatividade e a educação, vale a pena escutar dois designers consagrados - John Maeda e Stefan Sagmeister - e um verdadeiro storyteller - Jay O'Callahan. Os três estiveram na conferência 99% de 2010 organizada pela Behance Network, uma rede dedicada a quem trabalho nas áreas criativas. O lema da conferência é nem mais,

"It's time to stop dreaming and start doing"


John Maeda: Looking for Superman



Stefan Sagmeister: Don't Take Creativity For Granted


Jay O'Callahan: The Power of Storytelling

fevereiro 18, 2012

O fim da Universidade, ou a simples arrogância tecnológica

Vou deixar aqui algumas ideias sobre o assunto da aprendizagem à distância, de que se fala desde há muito. O e-learning é algo recente, mas o ensino à distância existe desde muito antes disso, fazendo uso de canais como o correio ou a televisão. Impressiona ver como as pessoas passam por cima das experiências do passado e seguem debitando ideias sem parar para pensar realmente naquilo que estão a dizer. Sobre a ideia de ter um professor a leccionar para milhões no planeta inteiro, só posso dizer que é das coisas mais insanas que alguma vez ouvi. Muitas destas ideias, seguem apenas o buzz do momento, e limitam-se a meras conjunturas pensadas sobre o joelho, ou utopias baseadas em ficção-científica.

À L'École, representação da visão da escola para o ano 2000, vista a partir de 1910

Muito se tem falado das aulas do MIT e Yale que já se podem encontrar gratuitamente online, mas foi agora com a recente decisão do MIT de começar a oferecer certificação online gratuita que os discursos se inflamaram. Para alguns, isto é o sinal do fim das Universidades estatais americanas, e de milhares de universidades espalhadas pelo globo. Alguns referem como exemplo para o futuro da escola, as famosas aulas vídeo da Khan Academy, outros referem que os alunos aprendem directamente a partir da Wikipedia e do Facebook. Nomes conceituados das TIC como Bill Gates, afinam pelo mesmo diapasão, afirmando que as Universidades são uma espécie em vias de extinção. Outros escrevem sobre um futuro em que a cultura disponível no mundo online e uma abordagem DIY (Do-it-Yourself) criará as condições para que as Universidades se tornem obsoletas. Tudo isto ideias, que de algum modo parecem assentar no velho mito do self-made man.


Mas mais interessante, é que todos estes discursos são proferidos, não pela sociedade em geral, mas tudo por pessoas oriundas dos sistemas de ensino mais elitistas do planeta. O defensor da auto-formação via Wikipedia/Facebook doutorou-se em Yale, a autora do texto apocalíptico sobre a Universidade pós-elearning tem um MBA da Universidade de Chicago, o fundador da Khan Academy, possui 3 licenciaturas do MIT e um MBA, assim como o atual presidente da Khan Academy possui 4 licenciaturas do MIT. Bill Gates esteve na Universidade de Harvard alguns anos, apesar de não ter terminado a licenciatura, não por não querer, mas por se ter envolvido na criação da Microsoft. A autora do movimento DIY-U é formada em Yale. E isto deve-nos fazer questionar sobre o que seria cada uma destas pessoas, sem estes sistemas de ensino por detrás, teriam chegado todos até aqui?

Salman Khan

As pessoas esquecem que a escola sempre existiu, o que nasceu no século XVIII não foi a escola, mas o modelo de escola moderno que hoje temos. A escola existe desde que iniciámos a caminhada neste planeta enquanto espécie gregária, enquanto espécie social, que depende do grupo para sobreviver. No grupo, os mais velhos sempre tiveram o papel obrigatório e fundamental de ensinar os mais novos, para que estes pudessem evitar perigos conhecidos, através do conhecimento empírico legado pelas gerações anteriores. Com o passar de milénios fomos criando formas de registo externas, sendo as primeiras formas, as próprias ferramentas de pedra e madeira esculpidas há um par de milhões de anos. Mas tivemos de esperar que o nosso sistema de linguagem evoluísse para que ideias mais complexas se criassem, e isso criasse em nós a necessidade de dar corpo material a essas mesmas ideias.

A escola representada em pinturas do antigo Egipto

Assim a linguagem apareceu apenas há cerca de 50 mil anos, e os primeiros registos externos vieram em forma de pintura há 40 mil anos espalhados por algumas cavernas do centro-sul da Europa. A linguagem e a pintura levariam à criação dos primeiros sistemas de partilha de informação codificada, criando assim os primeiros sistemas de escrita há uns meros 4 mil anos atrás. Tudo o que criámos depois disto, são mesclas conceptuais permitidas pela evolução tecnológica e artística. Registos como a fotografia e o vídeo que descendem directamente da pintura, ou os videojogos que descendem directamente da escultura.

Pinturas nas cavernas de Lascaux, datadas de 40 mil anos

Todas estas formas de registo, aliviaram os nossos constrangimentos de memória, libertando a nossa mente para se dedicar mais e mais à inovação. Mas os mais velhos nunca deixaram de ser importantes, na transmissão do conhecimento, porque aquilo que verdadeiramente se transmite de geração em geração não se pode definir num punhado de dados discretos, mas reflecte-se antes num conjunto de experiências que se ramificam e inter-conectam com lugares, pessoas, e momentos no tempo.

Ruínas da Universidade de Nalanda, criada em 400 A.C.

E as Universidades não foram criadas no século XVIII, a primeira Universidade, com 10 mil alunos de que temos registos, data de 400 A.C. na India, a Universidade de Nalanda. A ocidente na Europa, teríamos de esperar até ao início do segundo milénio D.C. para ver nascer a Universidade de Bolonha. Mas o que aconteceu então no século XVIII? Foi criado o modelo industrial de escola. Um modelo estruturado no tempo e com métodos de avaliação e classificação, que requerem muito da componente de memorização, assim como raciocínio humano, mas que acima de tudo ignora o estilo individual de aprendizagem e busca um padrão que sirva a massificação do ensino. E é esta a ideia de escola que criticamos. No entanto depois de tanta discussão em redor deste problema, que parece ter sido compreendido por uma grande parte da sociedade, através do magnífico trabalho de pessoas como Ken Robinson ou Howard Gardner, tudo parece ter sido esquecido.

Universidade de Bolonha, criada em 1088

De repente parece já não ter importância, ter massas de pessoas a aprender de forma igual, e a aprender o mesmo, mas queremos mais do que isso, queremos um sistema universal, que chegue aos milhões de pessoas. Queremos que um único professor debite a sua perspectiva subjectiva, e formate todo o planeta como um só. Dizem-nos que as Universidades vão desaparecer, e vão apenas restar as grandes Universidades, as que possuem uma Marca, capaz de imprimir diplomas importantes!!! Mas?! Alguém se questionou porque é que o canudo do MIT é importante, não será o facto de esta ser altamente exclusiva, que faz dela uma marca de "qualidade"? A regra básica da persuasão social, diz-nos que a raridade dos elementos, torna-os apetecíveis, o seu contrário torna-os desprezíveis. Mas mais do que as regras de marketing, fará sentido recorrer a uma visão única do conhecimento para a resolução de problemas singulares, com particularidades próprias das zonas geográficas aonde se encontram, com as particularidades sociais e culturais das comunidades em questão, e acima de tudo com as especificidades psicológicas, emocionais e motivacionais de cada indivíduo?!

Voltando ao discurso dos senhores da elite universitária, que agora adivinham o fim do sistema. Estes só demonstram que quem usa massivamente as tecnologias para criar e inovar, não são os autodidatas que não foram à universidade, mas são aqueles que frequentaram as universidades. Ou seja para poder usar as tecnologias, construir, criar algo, não é preciso aprender a usar as tecnologias, que cada vez tornamos mais fáceis no seu uso. É preciso antes aprender a pensar, aprender a aprender, aprender a ser autónomo, proactivo, empreendedor, e é preciso construir uma forte bagagem cultural. Tudo isto não se aprende com um simples acesso à web, depende antes de uma interação forte com professores e alunos. O e-learning ajudará, mas de forma alguma conseguirá substituir-se ao ensino presencial, porque o que está em causa é a forte interação humana.

A Telescola portuguesa

Apesar de ser um grande defensor das tecnologias interactivas, dos videojogos na educação, não tenho qualquer dúvida sobre of facto de estes não poderem servir o fim do ensino de modo exclusivo. A Telescola não o fez, e não será agora por termos mais informação e a possibilidade de desenvolver tecnologias interactivas, que isso vai acontecer. A razão principal para eu ver isto deste modo, é só uma, o processo de socialização humano. Mais do que os conteúdos na especificidade, a escola é um dos principais pilares no processo de construção do Eu, desde a Infantil à Universidade. Deste processo que se constrói lentamente ao longo de anos, fazem parte duas questões essenciais ao humano, a mímica e a empatia, que por sua vez se tornam responsáveis pelo desenvolvimento de competências para a construção de novos comportamentos, novas visões, e claro novos horizontes. Voltando à primeira imagem deste texto, aprender não é meramente absorver o que está escrito num livro.

outubro 14, 2012

"O Talento é Sobrestimado"

Talent is Overrated. What really separates world-class performers from everybody else é um livro de Geoff Colvin que me obrigou a imensa reflexão. Essencialmente porque numa primeira parte me obrigou a analisar concepções contrárias às que defendo sobre a aprendizagem e a criatividade, e numa segunda parte volta a aproximar-se das minhas ideias de origem. O livro de Colvin foi baseado num artigo inicialmente escrito para a revista Fortune, da qual é editor chefe.


Assim o que Colvin começa por dizer neste livro é que o talento é uma espécie de desculpa que nós encontrámos para deixar de desenvolver determinadas competências. E que qualquer um de nós pode desenvolver as competências que quiser, desde que lhe dedique um esforço considerável (as tais 10 mil horas de Andrew Ericsson). Baseia todo este discurso na análise da performance do ser humano. Um simples demonstrador da performance da técnica face ao talento inato sobressai quando olhamos para a constante quebra de recordes mundiais desportivos. Ainda este ano o NYTimes realizou um excelente trabalho de infografia em que demonstrava a diferença entre o recorde dos 100 metros natação, de 2008 para 1896 com uma distância de quase 50%.

Um corrida (imaginária) com todos os medalhados de sempre (NYT)

Colvin continua com os exemplos de Mozart e Tiger Woods, demonstrando que ambos não eram nenhum talento especial em crianças, mas que a grande diferença entre eles e os demais esteve no facto de terem ambos em casa professores da profissão. Pais que não só os fizeram treinar, como os orientaram na melhor forma de o fazer desde muito pequenos, no fundo foram os seus primeiros professores. Nenhum deles terá inovado muito antes dos 20 anos, mas chegados a essa idade a quantidade de horas acumuladas de trabalho prático de qualidade desenvolvido por ambos terá feito com que estes se distinguissem dos demais.


Para suportar ainda mais esta ideia vai buscar nada menos que Laszlo Polgar, um defensor extremista da genialidade fabricada. Polgar teve três filhas com o simples intuito de as tornar campeãs mundiais de xadrez, tendo começado a treinar todas elas desde bebés, e dedicando-se ele e a mulher apenas e só à educação delas. As três irmãs são hoje heroínas da Hungria, conseguiram chegar as três a grandmasters, conseguiram abrir a prática às mulheres, ultrapassaram muitos homens, foram modelos, e conseguiram grandes feitos. Mas no FIDE Top 100 a filha mais nova, Judit Polgar, foi a que chegou mais alto e nunca passou do 8º lugar, em 2005. E aqui começam as minhas dúvidas sobre todo este discurso.

As três irmãs Polgar

Ainda assim uma das conclusões que Colvin retira de tudo isto parece-me a reter, e que tem que ver com o conceito de Prática Deliberada ou intencional já definida antes por Andrew Ericsson. Para compreender este tipo de prática Colvin define-a em 5 passos,
  1. A prática intencional deve ter como objectivo melhorar a qualidade do trabalho.
  2. Múltiplas repetições. Primeiro definir o que é preciso melhorar, e depois ver se as acções levam a melhorar, e depois trabalhar intensivamente para melhorar.
  3. É preciso ter feedback dos resultados do trabalho. Se não é impossível saber como continuar a melhorar.
  4. O trabalho deliberado requer esforço mental. A intensa busca por melhorar só se consegue com focagem em profundidade.
  5. A prática deliberada não cabe em descrições românticas. É dura porque não é o momento em que treinamos aquilo em que já somos bons, mas antes aquilo em que ainda não somos.
Para suportar tudo isto dá ainda um exemplo, para mim muito mais interessante do que o de Lazlo Polgar, e que já explicarei porquê. O exemplo é de Benjamim Franklin (1706-1788) um dos fundadores dos EUA, apelidado de homem da renascença dadas as suas reconhecidas polivalências: escritor, político, cientista, inventor, activista, satirista, diplomata, entre outras coisas. O exemplo que Colvin nos traz é sobre o modo como Franklin aprendeu a escrever. Um dia o seu pai disse-lhe que os seus textos eram superiores aos dos seus colegas em conteúdo mas falhavam na forma e por isso acabavam por não conseguir fazer passar as suas ideias. Franklin resolveu então começar a trabalhar a sua escrita. Transcrevo agora parte directa da autobiografia de Benjamim Franklin,

Imitating the Style of the Spectator, (1789), Benjamim Franklin
About this time I met with an odd volume of the Spectator. I had never before seen any of them. I bought it, read it over and over, and was much delighted with it. I thought the writing excellent, and wished, if possible, to imitate it. With that view, I took some of the papers, and making short hints of the sentiment in each sentence, laid them by for a few days, and then, without looking at the book, tried to complete the papers again, by expressing each hinted sentiment at length and as fully as it had been expressed before, in any suitable words that should come to hand. I then compared my Spectator with the original, discovered some of my faults and corrected them. But I found I wanted a stock of words, or a readiness in recollecting and using them, which I thought I should have acquired before that time if I had gone on making verses; since the continual occasion for words of the same import, but of different length, to suit the measure, or of different sound for the rhyme, would have laid me under a constant necessity of searching for variety, and also have tended to fix that variety in my mind, and make me master of it. Therefore I took some of the tales and turned them into verse; and, after a time, when I had pretty well forgotten the prose, turned them back again. I also sometimes jumbled my collections of hints into confusion, and after some weeks endeavored to reduce them into the best order, before I began to form the full sentences and compleat the paper. This was to teach me method in the arrangement of thoughts. By comparing my work afterwards with the original, I discovered many faults and amended them; but I sometimes had the pleasure of fancying that, in certain particulars of small import, I had been lucky enough to improve the method or the language, and this encouraged me to think I might possibly in time come to be a tolerable English writer, of which I was extremely ambitious.
O que podemos ver neste texto, é exatamente aquilo que Andrew Ericsson disse, e Colvin aqui repete, como Prática Deliberada. Trabalhar repetidamente em busca da melhoria, constante, sem parar nunca. Ora isto levanta um problema claro, e que ficou já bem evidenciado no exemplo das filhas de Lazlo Polgar. Estas chegaram aos 20 anos e desistiram de competir no xadrez de alto-nível. A explicação é dada por elas. Queriam ter filhos, queriam conhecer mundo, queriam mais do mundo em que viviam, e o xadrez não as preenchia. Porque aliás num outro exemplo que Colvin dá a respeito de grandes músicos, através de inquéritos realizados, aquilo que custava mais a estes músicos, era a parte em que treinavam sozinhos além dos períodos de treino normal na orquestra. Mas eram exatamente estes músicos aqueles que se destacavam dos demais, porque treinavam muito além dos outros. Aliás aqui não posso deixar de citar um exemplo popular português, Cristiano Ronaldo.

A incansável busca pela perfeição é dolorosa e este é para mim o elemento central de tudo. É o ponto que deita por terra esta conceptualização totalmente errada do ser humano nascido tal uma tábua rasa à espera de ser moldada através de práticas radicais behavioristas. É possível criar grandes profissionais, Polgar demonstrou-o, mas não é possível criar génios. Não é possível fazer mentes brilhantes com as nossas mãos apenas. E porquê? Bem a resposta é muito simples, e a resposta está num livro de Ken Robinson, The Element que nos fala de descobrirmos o elemento no qual nos sentimos bem, no qual sentimos que podemos contribuir para a sociedade, no qual os outros que nos rodeiam também acreditam que podemos retribuir. Colvin dá exemplos de grandes mentes que vieram de pequenas cidades, e diz que isso pode ter sido um bom estímulo, porque num meio pequeno é mais fácil destacarmo-nos, sermos elogiados pelo que fazemos bem, o tal feedback não é apenas no sentido de explicar o que devemos melhorar, mas é também para nos levar a continuar, a enfrentar o doloroso esforço da prática deliberada.

Os seres humanos não são tábuas rasas

Ora o que falamos aqui vem de encontro ao que ainda esta semana defendi na conferência COIED e que é o factor de sermos todos diferentes, termos todos talentos únicos. Como poderíamos ser todos diferentes e únicos por fora, e por dentro sermos totalmente iguais e moldáveis como nos é dito aqui?! Agora não podemos sobrestimar os talentos, e aqui em total acordo com Colvin. Precisamos verdadeiramente é de encontrar em nós o mais cedo possível aquilo que nos move, que nos faz correr incansavelmente. E é por isso que considero o exemplo de Benjamim Franklin totalmente diferente de Lazlo Polgar, porque o que Franklin fez partiu totalmente da sua motivação intrínseca (Drive). A força de querer fazer, impeliu-o para o seu elemento e deu-lhe força para continuar a tentar, a desenvolver a escrita e a verbalização de ideias.

Slides da minha comunicação na COIED

Nada devia ser mais importante na Escola do que ajudar os alunos a encontrarem-se, a descobrirem aquilo que mais gostam de fazer e em que são verdadeiramente dotados. É claro que o caminho de lhes dar a conhecer o mundo é necessário, mas depois é preciso ir além disso, é preciso trabalhar individualmente com cada criança, e ajuda-la a encontrar-se. Não é possível ajudar crianças a serem geniais em turmas de 20 ou 30 alunos. Serão apenas medianos se não tiverem alguém ou pais que se dediquem de amor e alma à educação destes. Porque o talento, até pode estar lá, mas se não for ajudado a estruturar-se nunca florirá em força. E para isso temos de ser capazes de lhes proporcionar um ambiente próprio para tal. E aqui Colvin vai buscar os estudos de Mihaly Csikszentmihalyi da Universidade de Chicago, um dos mais importantes investigadores no campo da criatividade para nos dizer, a partir da sua investigação,
“why it's easier for some adolescents than others to sustain concentrated, effortful study, the core of deliberate practice and high achievement. The research focused on the students’ family environments, evaluating them on two dimensions, stimulation and support. A stimulating environment was one with lots of opportunities to learn and high academic expectations. A supportive environment was one with well-defined rules and jobs, without much arguing over who had to do what, and in which family members could rely on one another. The researchers classified family environments as stimulating or not and supportive or not, creating four possible combinations. Adolescents living in three of those combinations reported the typical low-interest, low-energy experience of studying. But in the fourth combination, the environment that was both stimulating and supportive, students were much more engaged, attentive and alert in their studying.” (p.174)
Ou seja, o talento tem de estar lá, mas precisa de ser explorado. É preciso ajudar a pessoa a conseguir chegar a ele. Assim como temos de ajudar uma criança a aprender a comer com o garfo, a aprender a andar de bicicleta, e isso requer tempo e atenção, também temos de a ajudar a aprender a encontrar-se. Para isso não basta estimular a curiosidade, é preciso garantir apoio, muito apoio. Só o feedback constante, mas verdadeiro, pode levar a que uma mente jovem se consiga encontrar.

junho 11, 2014

"O Código do Talento"

Depois de ler “Outliers: The Story of Success” (2008) de Malcolm Gladwell e “Talent Is Overrated: What Really Separates World-Class Performers from Everybody Else” (2008) de Geoffrey Colvin, acabei por chegar a “The Talent Code: Genius Isn’t Born. It’s Grown. Here’s How.” (2009) de Daniel Coyle. Os três livros formam um trio que questiona as origens do talento, criatividade e modelos de aprendizagem. Se tinha gostado de Gladwell e tinha adorado Colvin, Coyle é ainda mais interessante e incisivo. Não que traga algo de muito novo, mas a ligação que estabelece entre os processos neurofisológicos e os estudos empíricos é profundamente enriquecedora para quem quer que se interesse pelo tema. Desde os jogadores de futebol brasileiros, às tenistas russas, passando pelos violinistas, skateboarders e produtores de música pop, vários são os exemplos que nos abrem um mundo novo sobre o fundamento do talento, os processos de aprendizagem e de coaching.


Algumas das críticas ao livro de Coyle dizem respeito ao seu fascínio com as mais recentes descobertas em torno da mielina, uma substância que se encontra no cérebro e sobre a qual ainda decorrem estudos. Mas neste momento suspeita-se que a sua função assente no isolamento das ligações neuronais, de modo a garantir que os impulsos eléctricos possam circular de forma mais eficiente. Ou seja, uma função parecida com aquela que o plástico executa em redor dos cabos eléctricos. Sendo essa a sua função, o modo como esta se desenvolve nos nossos cérebros parece ocorrer a partir de prática focada e repetida. À medida que vamos repetindo exercícios, a prática em nós vai-se sedimentando por meio de mielina junto aos nossos neurónios. Quanto mais grossa for ficando a camada de mielina em redor da ligação neuronal responsável pela competência que estamos a treinar, melhor isolada fica, permitindo que possamos agir de cada vez com maior eficácia.

Apesar da relevância que Coyle atribui à mielina, o mais relevante do seu livro não depende propriamente dessa descoberta, que acaba por funcionar mais como curiosidade, porque aquilo que Coyle nos demonstra advém do seu trabalho etnográfico sobre o talento, realizado um pouco por todo o mundo, em centros de treino de algumas das maiores estrelas do planeta. Coyle chama a esses centros, “hotbeds”, locais dotados de um design e condições específicas, capazes de contribuir para um aperfeiçoamento e aceleramento do processo de formação de talento.

Das hotbeds mencionadas ao longo do livro a primeira foi a que mais me impressionou, por tudo o aquilo em que eu acreditava ter sido posto em causa, mas também por exemplificar na perfeição a base de design conceptual de uma hotbed. Falo dos locais de treino das estrelas mundiais do futebol brasileiro, de Pele ou Zico a Romário ou Robinho. Todos eles começaram a jogar futebol num campo de cimento com metade do tamanho de um campo relvado, com uma bola metade do tamanho e com o dobro do peso de uma de futebol normal, e com equipas de apenas 5 jogadores de cada lado, no fundo aquilo que hoje conhecemos como Futebol de Salão ou Futsal. À primeira vista, nada de especial, mas a realidade é que estes campos mais pequenos, proporcionaram condições para treinos mais intensivos. O espaço reduzido obriga a maiores velocidades de arranque e paragem, a bola pequena e pesada obriga a um maior domínio da mesma, as balizas mais próximas permitem chegar mais vezes perto e treinar mais vezes as situações de golo. Por minuto os jogadores tocam mais 6 vezes na bola do que no futebol de campo, os passes certeiros e o trabalho colaborativo é fundamental. Ou seja, a ideia de que os jogadores brasileiros são treinados na praia é um mito que fica bem nos postais de turismo. Claro que não basta o futebol de salão, ele tem um impacto concreto no domínio da prática intensiva, mas falta o resto, aquilo que Coyle considera ser o código do talento, e de que darei conta a seguir.

"Nenhum tempo mais nenhum espaço é igual a melhores habilidades. O futsal é o nosso laboratório nacional de improvisação." Emilio Miranda, professor da Universidade de São Paulo, a propósito do treino em salão

Coyle identifica várias hotbeds espalhadas pelo planeta, falando das piscinas abandonadas em LA que se transformaram em centros de treino de skaters, do centro de treino russo em que se formou Kournikova e da consequência num número de tenistas russas no WTA, assim como do número de Coreanas no LPGA Tour (Golf), ou ainda do modelo de escola americana KIPP, tocando ligeiramente no fenómeno da Nova Vaga de Cinema Romeno proveniente da Bucharest National University of Drama and Film, ou das estrelas Pop da Disney, etc. E assim a partir destas hotbeds, e de vários outros estudos, Coyle vai dividir o talento, e o livro, em três grandes partes, que considera serem o Código do Talento: “Prática Profunda” -  ”Ignição” - “Mestres de Instrução”. Coyle considera que cada um destes vectores é relevante à sua maneira, mas é da convergência dos três que emerge  a competência. Segundo ele, a sua simples convergência pode em poucos minutos contribuir para construir no sujeito competências que sem os três vectores simultâneos, pode arrastar-se por anos.

Diagrama do Código do Talento, os três elementos base - "Prática Profunda", "Ignição" e "Mestres de Instrução". Pode ver-se como a Deep Practice é destacada como se se tratasse de mielina em formação, camada a camada, em função da quantidade de prática.

VECTOR 1: Prática Profunda (Prática)

Coyle segue aqui trabalhos anteriores de estudos académicos, dando conta do percurso e estudos realizados por Anders Ericsson, uma das maiores autoridades no campo do talento, reconhecido pela teoria das 10 mil horas, e pelo conceito “Deliberate Practice” que Coyle aqui converte em “Deep Practice”. Ericsson define a prática como algo que precisa de ser realizada de modo voluntário para criar competência, já Coyle seguindo as lógicas da produção de mielina, aposta numa ideia de prática em profundidade, de modo a poder gerar mielina. Deste modo Coyle apresenta três regras para realizar prática profunda: Chunk, Repeat e Learn to Feel.

Regra 1: “Chunk”
“Deep practice feels a bit like exploring a dark and unfamiliar room. You start slowly, you bump into furniture, stop, think, and start again. Slowly, and a little painfully, you explore the space over and over, attending to errors, extending your reach into the room a bit farther each time, building a mental map until you can move through it quickly and intuitively.”
A ideia central passa por absorver a totalidade da acção a realizar, e depois quebrá-la em pequenas partes, que podem ser mais facilmente realizadas e apreendidas, no fundo a velha ideia de “baby steps”. Dos vários locais de treino intensivo que Coyle visitou, a mesma prática era repetida,
“First, the participants look at the task as a whole — as one big chunk, the megacircuit. Second, they divide it into its smallest possible chunks. Third, they play with time, slowing the action down, then speeding it up, to learn its inner architecture. People in the hotbeds deep-practice the same way a good movie director approaches a scene—one instant panning back to show the landscape, the next zooming in to examine a bug crawling on a leaf in slo-mo.”
Regra 2: “Repeat”

A repetição é condição essencial para produzir mielina. Vendo pelo lado oposto, a melhor forma de transformar um grande pianista num mau, é impedi-lo de treinar durante um mês. Mas isto não quer dizer que a repetição deva acontecer sem fim, sem descanso nem pausa. Dos estudos de Ericsson os grandes talentos mundiais praticam entre 3 e 5 horas diárias. Mas nas hotbeds visitadas por Coyle os treinos andam sempre abaixo das três horas diárias, para crianças mais novas (6 a 8 anos) 3 a 5 horas semanais é mais do que suficiente. Ou seja, depende muito de se conseguir reunir os três vectores simultaneamente - prática, ignição e mestre.

Regra 3: “Learn to Feel”
“I hate to practice! Hate, hate, hate! So what I did, I forced myself to make it as productive as it could be… You guys have to realize this is top sport. You are athletes. Your playing field is a few inches long, but it still is your field. You need to find a place to stand, know where you are. First, tune your instrument. Then tune your ear… If you hear a string out of tune, it should bother you… It should bother you a lot. That's what you need to feel. What you're really practicing is concentration. It's a feeling.” Skye Carman, concertmaster of the Holland Symphony
Ao longo do trabalho de Coyle, quando questionava as pessoas sobre as sensações que sentiam quando estavam a treinar de forma produtiva, referiam: “Attention; Connect; Build; Whole; Alert; Focus; Mistake; Repeat; Tiring; Edge; Awake.” Uma lista de sentimentos que evoca a ideia de se estar a atingir algo, a caminho de se conseguir algo, uma linguagem própria de montanhistas, descrevendo a sensação incremental, passo a passo. A ideia de esforço para atingir um objetivo concreto, e de se estar muito perto de o conseguir. A ideia de praticar muito não pode ser um mero exercício de repetição e esforço, mas deve ser antes uma busca por atingir algo que ainda não se atingiu, repetindo e iterando,
  1. "Pick a target.
  2. Reach for it.
  3. Evaluate the gap between the target and the reach. 
  4. Return to step one."
Ou seja, como diz Coyle, uma lista de palavras que nunca ouviu nos locais de treino foi - "natural, effortless, routine, automatic" - ou ainda "genius". Não que não existam génios, mas todos os mestres confirmam o mesmo, que eles surgem apenas num ratio de um para um milhão. A generalidade do talento humano é filho do treino, esforço, repetição, e aperfeiçoamento continuado.


VECTOR 2: Ignição (Motivação)

Se o primeiro vector depende exclusivamente do indivíduo já o segundo vector é uma mistura entre o indivíduo e o ambiente, ambos têm que dar para que as coisas funcionem e o talento possa emergir. Ou seja, o indivíduo necessita de estar atento ao mundo que o rodeia, procurar pistas, seguir pistas, auto-motivar-se, construir a sua ideia do mundo, mas para o fazer precisa que o mundo lhe prepare o terreno, construa um ambiente adequado a tal.

Nesse sentido nós, pais, temos trabalhado contra a criação destas condições. Quando acreditámos que o ideal seria garantir as condições óptimas, ou garantir o acesso ao máximo de actividades para que as crianças pudessem escolher o que lhes falava ao coração, estávamos a entrar por um caminho completamente contrário à realidade das necessidades do treino do talento. Sei que custa ouvir isto, porque também me custa a mim, porque é muito difícil aceitar que o caminho para a construção de competências seja penoso e duro, mas é o que é. E é por isso que a prática deliberada, ou em profundidade, exige ignição, “combustível motivacional” como lhe chama Coyle.

Assim quando falamos do futebol no Brasil, do futebol de salão, isso não chega como condição para criar tantos bons jogadores. Existem duas outras condições que são fundamentais na criação de grandes jogadores brasileiros: a pobreza e a dureza das condições de vida. As mesmas que fizeram surgir Kournikova, que fazem surgir grandes violinistas em meios pobres da periferia, ou que fazem surgir grandes visionários da ciência ou construtores de fortunas. As condições de que se parte estão longe daquelas a que se pretende chegar, e é essa distância que dinamiza a força necessária para conquistar terreno. A tenacidade incutida pela dureza dá-lhe capacidade para aguentar o árduo caminho que terá de ser realizado para lá chegar. Ter um instrumento só meu, aceder a uma escola boa sem esforço, ter todo o tempo disponível para treinar, se tudo isto existir à partida, quer dizer que já chegámos a meio do caminho sem termos dado muito de nós, e assim sendo só muito dificilmente se poderá fabricar "combustível" para dar os passos que ainda são necessários dar até se conseguir atingir o talento.

Mas o ambiente é ainda responsável por criar o objectivo último a atingir, porque ninguém caminha por sentir um chamamento esotérico. O ser humano aprende por imitação, segue copiando e imitando. Para isso são precisos exemplos, ídolos, ícones, celebridades, estrelas que nos mostram o caminho, e nos referem o que podemos almejar. São eles que dizem que é possível. É o Cristiano Ronaldo que veio da aldeia mais pobre da Madeira e chegou a melhor Jogador do Mundo, que nos diz que todos podem também conseguir. É a Kournikova que todas as meninas tenistas da Russia querem imitar, ou a Madonna ou Michael Jackson que todos querem seguir. Todas estas pessoas, abrem o caminho para que os outros sigam os seus exemplos. Como se pode ver no atletismo, sempre que alguém quebra um recorde impossível, logo a seguir temos vários atletas a conseguir quebrar esse mesmo recorde. É um fenómeno de imitação, de cópia, “se outro alguém consegue, eu também consigo”.

Antes de avançar, preciso de fazer aqui um parênteses sobre um dos maiores problemas da atualidade, que veio toldar esta formula da imitação. Falo da televisão e revistas do jornalismo cor-de-rosa. Ou ainda dos reality shows, não dos Big Brothers, mas dos concursos de talentos, que têm emergido como cogumelos por aparentarem trazer algo de útil à sociedade. Ora o que todos estes realmente fazem, é destruir tudo aquilo de que falei até aqui. De que é preciso muita prática, muito esforço, muita dedicação para se atingir o auge. Porque estes nos mostram apenas partes da realidade, como faz normalmente o discurso audiovisual. O concurso de talentos não mostra tudo o que deu origem aos indivíduos que nos aparecem pelo ecrã adentro. Vozes são lançadas em programas de televisão como se nunca tivessem praticado em toda a sua vida e que de repente por chegarem à televisão surgem tal qual o cisne que emerge de patinho feio. Ou seja, a televisão vende-se a si própria como caixa mágica capaz de produzir talento, e as pessoas seguem porque querem acreditar que o talento depende de sorte, de ser bonito, de ser famoso, de um concurso!

"Everybody said Jessica [Simpson] was a Texas girl who'd been singing in her church choir. That's ridiculous — that girl worked to become the singer she was. They said [American Idol winner] Kelly Clarkson was a waitress, like she never sang before. Waitress? Excuse me? Kelly Clarkson was a singer — we all knew Kelly Clarkson. She had training, and she worked her tail off like anybody else does. She didn't come from nowhere any more than Jessica came from nowhere. It's not magic, you know." Linda Septien professora de voz
Voltando à ideia da imitação, ela continua sendo central, porque é a partir dela que se constrói a Ignição, ela é central e determinante para o futuro do talento. Como demonstra um excelente estudo de Gary McPherson que procurou perceber o factor que determina a progressão das crianças no estudo de um instrumento musical. McPherson realizou estudos com centenas de crianças que aprendiam instrumento, para perceber porque umas eram melhores que outras, e foi eliminando variáveis - IQ, IE, sensibilidade, capacidades motoras, nível financeiro, etc -. A diferença fez-se notar fortemente apenas quando este lhes lançou uma simples questão, how long do you think you'll play your new instrument?"
"They mostly say Th, I dunno' at first… But then when you keep digging and ask them a few times, eventually they will give you a real solid answer. They have an idea, even then. They've picked up something in their environment that's made them say, yes, that's for me."
As hipóteses de resposta eram: “ao longo deste ano”, “ao “longo da primária”, “até ao liceu”, ”toda a minha vida”. Isto foi condensado em Pequeno, Médio e Grande Comprometimento. Estes dados foram cruzados com o tempo que cada criança praticava por semana  - 20, 45 e 90 minutos por semana. O que daria o gráfico abaixo,

Os alunos quando motivados por um comprometimento de longo termo com o instrumento, conseguem performances 400% superiores aos que apresentam um comprometimento de curto termo.

Ou seja, tendo em conta o mesmo tempo de prática/semana entre crianças, nada além do comprometimento tinha impacto no nível que se atingia de evolução na performance. E quando se juntava o comprometimento de longo termo com a prática mais elevada, a performance disparava para mais de 400% face aos restantes. Ou seja, duas crianças poderiam treinar o mesmo tempo toda a semana, mas aquela que estava profundamente motivada conseguia fazer disparar o rendimento dessa prática. Ou seja, não era a mera repetição, mas aprendizagem profundamente produtiva.
“We instinctively think of each new student as a blank slate, but the ideas they bring to that first lesson are probably far more important than anything a teacher can do, or any amount of practice. It’s all about their perception of self. At some point very early on they had a crystalizing experience that brings the idea to the fore, that says, ‘I am a musician’. That idea is like a snowball rolling downhill.”
Algo que nos deve fazer refletir enquanto pais, mas também enquanto professores. Ensinar alguém que não tem uma motivação interna, pode muito bem não representar mais do que o velho ditado “chover no molhado”. Por isso continuo a defender as escolas técnico-profissionais, profissionalizantes, vocacionais, o que lhe queiram chamar. Nada pode ser pior do que manter uma criança fechada num espaço durante 18 anos a fazer de conta que aprende. Esta é também a razão pela qual digo a todos os meus mestrandos e doutorandos que uma tese com valor, só se pode fazer sobre algo que se ama, de outra forma é tempo perdido, para eles e para mim.


VECTOR 3: Mestres de Instrução

Apesar de tudo o que se disse até aqui, do primeiro vector fundamentalmente dependente do indivíduo (interno), do segundo vector dependente deste e do meio-ambiente (interno-externo), existe um terceiro vector extremamente relevante e totalmente dependente do ambiente (externo). Falo do professor ou simplesmente instructor (coach). Aquela figura que por vezes é tida como secundária, como quase irrelevante, que qualquer um pode fazer! Aliás de tanto se acreditar na sua irrelevância nos últimos anos começámos a pensar que seria possível substituir o mesmo por meros jogos de computador, ou criar cursos para milhares de alunos em simultâneo.

Coyle abre o capítulo com uma ideia muito atual nomeadamente no campo do treino animal, os Whisperers. E é verdade que costumamos olhar para estas pessoas como dotadas de um qualquer dom mágico, porque capazes de comunicar numa linguagem indecifrável para nós, normalmente a do animal. O que não anda muito longe da realidade.

Na realidade o velho provérbio, “quem não sabe fazer, ensina” é meia verdade, porque só quem já soube fazer, e já não faz, pode ensinar. Normalmente quem ensina são pessoas que por algum motivo pararam de o fazer, e se dedicaram desconstruir os processos de fazer, a compreender o detalhe e as minudências, a ponderar os prós e os contras, a encontrar os defeitos e os atalhos, a definir as metas e os objectivos. Se dedicaram a criar uma linguagem, o “whispering”, capaz de colocar em palavras entendíveis por quem faz, os processos para atingir a melhoria. Quando lá atrás se disse que temos de, escolher um objectivo, trabalhar para o atingir e avaliar a diferença entre o que se atingiu e o que falta, é preciso compreender aquilo de que falamos. É preciso perceber que objectivo nos falta atingir, compreender quais devemos percorrer em primeiro lugar, compreender porque não conseguimos ainda lá chegar, compreender que treinos podemos realizar em repetição, para aperfeiçoar e chegar a ser aquele modelo abstracto que temos em mente. E é isso que faz o professor, o coach, comunica e guia, orienta e claro motiva. Mas é ele quem desconstrói as etapas a realizar por nós, que nos mostra os passos que já demos, e aqueles que ainda nos faltam dar, que nos mostra por onde podemos seguir para conseguir dar os passos em falta, e mais importante de tudo, que nos faz ver que além do objectivo final, existem múltiplos objectivos intermédios que precisamos de atingir para chegar ao que tanto desejamos.

A propósito dos treinadores Coyle fala de um contraste muito interessante entre as certezas e o conhecimento em profundidade que estes detêm sobre os detalhes da arte em si, e as dúvidas que estes demonstram sobre o todo, sobre a capacidade um indivíduo pegar em tudo o que sabe e ir além, de uma equipa de estrelas se superar. Na verdade, isto faz todo o sentido, e demonstra apenas a humildade imprescindível a qualquer professor que se reflecte no simples facto de que por mais que se faça, a última palavra depende sempre da capacidade interna do indivíduo, o coach é apenas um dos vectores como já vimos. Ele molda, ele ajuda a crescer, mas é o indivíduo quem decide, quem a determinada altura tem de tomar em mãos o seu caminho.

Deixo um estudo empírico sobre o treinador de basquete, John Wooden, considerado o melhor treinador da história da NCAA, realizado por dois psicólogos educacionais, Ron Gallimore e Roland Tharp que procurava compreender a sua fórmula de sucesso.
“practice began… Wooden didn't give speeches. He didn't do chalk talks. He didn't dole out punishment laps or praise. In all, he didn't sound or act like any coach they'd ever encountered… Wooden ran an intense whirligig of five to fifteen-minute drills, issuing a rapid-fire stream of words all the while. The interesting part was the content of those words… teaching utterances or comments were short, punctuated, and numerous. There were no lectures, no extended harangues ... he rarely spoke longer than twenty seconds… Here are some of Wooden's more long-winded "speeches":

"Take the ball softly; you're receiving a pass, not intercepting it."
"Do some dribbling between shots."
"Crisp passes, really snap them. Good, Richard—that's just what I want."
"Hard, driving, quick steps."

Gallimore and Tharp were confused… This was great coaching?… As weeks and months went by, an ember of insight began to glow… it came mostly from the data they collected in their notebooks. Gallimore and Tharp recorded and coded 2,326 discrete acts of teaching. Of them, a mere 6.9 percent were compliments. Only 6.6 percent were expressions of displeasure. But 75 percent were pure information:

What to do, how to do it, when to intensify an activity.

One of Wooden's most frequent forms of teaching was a three-part instruction where he modeled the right way to do something, showed the incorrect way, and then remodeled the right way, a sequence that appeared in Gallimore and Tharp's notes as M+, M-, M+… Wooden's demonstrations rarely take longer than three seconds, but are of such clarity that they leave an image in memory much like a textbook sketch… The information didn't slow down the practice; to the contrary, Wooden combined it with something he called "mental and emotional conditioning," which basically amounted to everyone running harder than they did in games, all the time."
O coach ou mestre é isto, alguém que dá feedback muito objectivo e muito concreto sobre cada uma das acções, alguém que indica se estamos no caminho correcto, e se não estamos explica como podemos retomar esse caminho. A construção de talento não acontece no vazio, por mais motivação que se detenha, aprendemos com os erros mas precisamos de saber como fazer na vez seguinte. Podemos até fazê-lo a solo, por tentativa e erro, mas isto vai demorar muito mais tempo, correndo o risco sério de destruir o combustível motivacional que se detém. A motivação é algo frágil que precisa de ser continuamente alimentada, e um desses alimentos é o sentimento de progressão, se nos sentirmos a encalhar mais facilmente entraremos na espiral de desistência.


Para concluir, Coyle tudo faz ao longo deste livro para demonstrar que o talento é algo que se constrói, algo que se produz, algo que todos podem atingir. O talento não é dom, não nasce, não é mágico, nem existe sob a forma de pó de estrelas. Ou seja, a velha discussão Natureza ou Cultura é aqui bem evidenciada, e fica claro que apesar da natureza nos criar diferentes, podemos cada um gerar os nossos próprios talentos e destacarmo-nos à nossa maneira. Ainda assim Coyle sabe, e todos sabemos, que de tempos a tempos vão surgindo indivíduos fora do normal, os que apelidamos de génios, o tal um num milhão, mas mesmo esses se não tiverem a sorte de ter em seu redor a triangulação - Prática, Motivação e Mestres - dificilmente emergirão.


Epílogo

No final do livro Coyle tenta aplicar algumas destas ideias à Educação, e na verdade podemos questionar-nos, porque sabendo a fórmula isto não funciona nas nossas escolas? Não me julgo detentor de respostas, mas ao fim de alguns anos a trabalhar como professor e a estudar este assunto, julgo que o centro nevrálgico acaba por estar na motivação, na Ignição. Por isso falei lá em cima que acredito na escola vocacional. Julgo que tudo neste mundo é possível para todos quando estes estão motivados, sem essa motivação nada se pode fazer. E se é verdade que o sistema escolar americano KIPP tem conseguido enormes resultados, para mim não restam dúvidas que se devem ao meio social em que se inserem, um pouco como acontece com o futebol no Brasil. A filtragem para essas escolas acontece de uma forma natural, sendo procuradas por um grupo de pessoas muito específico, pais e filhos fortemente motivados pela ideia de que para sair do ciclo de pobreza é preciso chegar à Universidade. Daí que as ideias de mais horas de escola, mais dias por semana, menos férias, mais exames e testes, etc. funcionem muito bem, porque tudo isso é apenas mais combustível para manter a motivação acesa.

Mas esta abordagem se aplicada a crianças de classe média, com pais com estudos superiores em casa, ou com acesso a uma boa qualidade de vida, simplesmente não funcionará. E é por isso que numa grande maioria das escolas, um pouco por todo o mundo, os professores em vez de funcionarem como instrutores de cada área de conhecimento, têm de funcionar como psicólogos, produtores de motivação, para manter os alunos interessados em algo que na verdade não lhes interessa, não os motiva, não lhes acende a combustão. E desiludam-se aqueles que pensam que para produzir essa combustão basta adicionar tecnologias ou videojogos à equação...

A questão que temos então de nos colocar neste momento é saber como orientar para a motivação, e não tanto como motivar. Este é um assunto que Ken Robinson tenta trabalhar em "The Element: How Finding Your Passion Changes Everything" (2009) mas que é complexo e de difícil resposta. A ideia central passa por estar atento, às crianças e pessoas, e contribuir para que estas possam auto-descobrir-se, mas a linha entre o ajudar e o formatar é muito ténue. E o risco é elevado, já que quando a pessoa se sente empurrada, pode sentir-se acossada, com a liberdade individual posta em causa, e pode reagir pela negação. A motivação para funcionar com toda a sua combustão, tem de ser algo interno, algo muito próprio, muito individual, só nosso. Algo que outros seguem, mas que apenas alguns conseguem seguir tanto como nós, dá-nos prazer ter uma área em que nos destacamos dos demais, em que temos ídolos, mas no nosso contexto somos nós os melhores naquela atividade. Não é uma questão competitiva com o mundo, é antes uma afirmação da nossa identidade, do nosso ser perante os outros.


Links de interesse
“Outliers” de Malcolm Gladwell, in Virtual Illusion
"The Element" de Ken Robinson, in Virtual Illusion
"O Talento é Sobrestimado", in Virtual Illusion