agosto 31, 2015

“O Velho e o Mar” (1952)

Parábola do humano, ou significado do propósito e persistência. “O Velho e o Mar” procura ir à essência daquilo que nos define enquanto espécie, da verticalidade do que faz de nós uma das espécies mais arrojadas e completas deste planeta. Partindo da predação, Hemingway desenha um esboço da elevação das nossas faculdades, do como fomos para além da mera sobrevivência. Um livro curto para tão grande metáfora, ainda assim nada fica de fora, nada mais seria preciso dizer. Quando se toca a última página, o fechamento não está ali, porque o fechamento tem de ser construído pelo leitor, ainda que se requeira dele experiência de vida para o poder fazer.

“Não mataste o peixe só para viver e vendê-lo para ser comido. Mataste-o por amor-próprio e porque és um pescador. Amáva-lo quando estava vivo, e ama-lo depois de morto. Se o amas, não é pecado matá-lo. Ou será mais?”
Ler “O Velho e o Mar” é uma experiência particular, de profunda imersão num universo de isolação, perfeitamente tornado visual pelo virtuosismo da simplicidade da prosa de Hemingway. É-nos impossível escapar à solidão do alto mar, da acalmia e som das ondas, das aves que voam e os peixes que saltitam, é-nos impossível escapar a viver duas horas naquele barco com Santiago, sentir o cheiro a maresia, e ouvir a espuma das ondas bater no seu casco. Leia-se o pequeno excerto,
“Acordou com o sacão do seu punho direito contra a cara e a linha a arder-lhe a mão. Não sentia a mão esquerda mas travou quanto pôde com a direita, e a linha corria. Por fim, a mão esquerda encontrou a linha, e ele fez força com o corpo para trás, e agora queimava-lhe as costas e a mão esquerda, e esta suportava o esforço todo, que violentamente a cortava. Olhou para trás para os tambores de linha, que se desenrolavam com ligeireza. Nesse momento o peixe saltou, espadanando o oceano, e caiu pesadamente. Saltou mais uma e outra vez, e o barco deslizava rápido, apesar de a linha continuar a correr, e o velho ia elevando a tensão até à rotura, e elevando novamente e uma vez mais. Havia sido atirado contra a proa, tinha a cara no filete de ‘dorado’ e não podia mexer-se.” Da belíssima tradução de Jorge de Sena
Esta capacidade para tornar visual tem muito que ver com o detalhe, e esse só pode ser sorvido pela experiência, algo que Hemingway teve e de onde retirou muito daquilo que aqui podemos ler, enquanto dirigiu o seu barco, Pilar, pelas águas de Cuba. Assim, não fosse Hemingway tão visual e possivelmente não existiriam tantas adaptações desta história ao cinema, tanto na forma de longas como curtas de animação.

Dessas, a obra de Alexandr Petrov é sem dúvida alguma a de mais alto valor, atrevendo-me eu aqui a colocá-la ao nível da obra de Hemingway. Pode parecer heresia para alguns, mas graças à rede posso dar-vos a degustar aquilo de que vos falo no vídeo abaixo. São 19 minutos, escolham um tempo calmo e dediquem-lhe a vossa atenção, no final me dirão se me engano.

"The Old Man and the Sea" (1999) de Aleksandr Petrov

Se a obra de Hemingway recebeu o Pulitzer em 1953, e ele próprio foi galardoado com o Nobel em 1954, Petrov arrecadou quase todos os grandes prémios de cinema de animação entre 1999 e 2001, incluindo o nosso Cinanima, onde o vi pela primeira vez em 1999, e o Oscar de Melhor Curta de Animação em 2000. Petrov investiu dois anos e meio, juntamente com o seu filho, para criar os mais de 29 mil quadros, em óleo sobre vidro, que compõe os 19 minutos deste filme, fazendo do processo de criação deste filme, um hino ao significado da parábola da obra de Hemingway, com que abri este pequeno comentário ao livro.

agosto 26, 2015

A narrativa em “Mrs. Dalloway”

Virginia Woolf como muitos outros modernistas foi uma profunda estudiosa de arte, em particular da narrativa, não se limitando a estudar a mesma, publicando numerosos ensaios, mas procurando inovar aplicando o conhecimento granjeado. É deste modo que “Mrs. Dalloway” acabará por emergir como a sua primeira grande criação, em termos de inovação, marcando para sempre o mundo das letras. Woolf não inventou o “fluxo de consciência”, mas o modo como o trabalha permitiu-lhe criar o seu próprio estilo, e mais do que isso, fazer deste um quase-substituto da forma narrativa.


Woolf não se socorre do fluxo de consciência como estilística narrativa, ou seja, para ir dando conta dos objectos da história que nos conta, ela descarta por completo a forma regular de contar histórias, e em seu lugar usa exclusivamente o fluxo. Isto pode ser notado desde logo pelo facto de o livro não apresentar capítulos, sendo apresentado como um bloco único de texto, como se de um único jorro de ideias se tratasse, apresentado aos nossos olhos, como pensamento plasmado em estado bruto, sem tratamento ou filtragem, simplesmente o que é.

Em termos retóricos Woolf não procura narrar, nem sequer descrever, expor ou argumentar (as chamadas quatro formas básicas de comunicação), ela está claramente à procura de uma forma de transpor estas formas convencionadas de comunicação, como se ela na verdade não pretendesse expressar-se, mas antes e apenas, dar acesso ao seu pensamento interior. Em suma, o fluxo de Woolf mais parece emanado do não-consciente do que do consciente, não no sentido descritivo de sonho (conceito usado no passado), mas antes num sentido cognitivo, enquanto bloco de fiapos de ideias, ligadas por pequenos nós de familiaridade e proximidade, sem linearidade nem noção de todo, à qual a consciência (aqui o leitor) acede por meio da força de processos mentais de estruturação e associação que originam ligações entre mais nós, fazendo emergir um todo, e assim sentido.

Daí que uma análise exclusiva da obra, sem tomar em conta o trabalho do leitor, acuse um texto não-narrativo, sem eventos, nem sucessão dos mesmos, não originando qualquer arco dramático, no texto não se encontra fechamento nem mesmo propósito. Por outro lado, o modo como Woolf trabalha esta ausência de marcas narrativas, não é inocente, antes pelo contrário, imensas “pistas” vão sendo espalhadas no texto, de modo a contribuir para os processos associativos que o leitor precisa de desenvolver para assim reproduzir em si mesmo, o conjunto narrativo, o todo e o sentido.

Uma dessas estratégias assenta na polifonia de vozes de personagens, que parecem por vezes emanar diferentes perspectivas sobre um mesmo tema, que acabam gerando redundâncias, repetições e por sua vez familiaridade no leitor. Ou seja, mesmo que possamos ler todos aqueles personagens como existentes apenas no interior da mente de Woolf, como pensamentos seus nas vozes de personagens por si imaginadas, elas acabam por funcionar como âncoras do que se vai dizendo, fazendo de si mesmos os eventos, gerando sucessão e coerência, por forma a garantir ao leitor um acesso narrativo ao texto.

Tudo isto não seria o que é, não fosse o virtuosismo e lirismo da prosa de Woolf que nos garante todo um universo impressivo de sons e imagens, facilitando-nos, no meio do caos, a reconstrução dos seus mundos. O modo como escreve aproxima-nos, pede-nos para que toquemos as suas palavras, as sorvamos, e é isso que nos permite seguir atrás de si, apesar de toda a desconexão superficial do seu texto.

Em termos da obra de Woolf, considero que “Mrs. Dalloway” (1925) foi o seu primeiro grande experimento, e que como tal sofre de alguma imaturidade, excessiva desconexão, talvez em parte por ser uma obra reconstruída a partir da fusão de dois contos seus, mas essencialmente porque quando comparada com “Rumo ao Farol” (1927), a obra seguinte, podemos notar um amadurecimento de toda a técnica acima descrita. Em ambos os livros usa - o caminhar para algo - (a festa e o farol) para nos facilitar a linearização de ideias, com o desenvolvimento a cargo do - desenrolar de expectativas e antecipação. Mas o segundo caso resulta melhor, talvez por apresentar um número mais limitado de personagens, permitindo mais marcas de redundância, e também por termos um propósito refletido num espaço geográfico, o que em conjunto facilita a nossa apreensão do trabalho de Woolf.

agosto 21, 2015

"A Mancha Humana" (2000)

Em termos formais, a Mancha é pura tragédia, e por isso não adianta gritar contra Roth e a manipulação emocional, isso faz parte do género, está na essência do tecido de relações humanas recortado para nos ser contado. O que podemos analisar é como o faz, procurar perceber se se limita à exploração de sentimentos, ou se esses estão ali a serviço de algo maior e disso restam poucas dúvidas quando terminamos a leitura do último parágrafo. A "Mancha" é humana, a sua essência somos nós, e por meio da tragédia Roth leva-nos ao interior do nosso ser, desembaraça-nos dos despojos da vida em sociedade, dos seus medos, culpas e vergonhas e obriga-nos a refletir sobre aquilo que de nós resta.

A tradução de Fernanda Pinto Rodrigues para a Dom Quixote está soberba, ainda assim dos excertos que li em inglês, posso dizer que Roth é ainda mais entusiasmante no original.

Coleman Silk atingiu o pico da carreira, Reitor de uma universidade americana, a sua queda é o tema central da tragédia, focando-se Roth sobre aqueles que o vão acompanhar nessa descida, o amigo escritor Zuckerman (espécie de alter-ego de Roth), e o confronto entre o seu passado pré-universidade, o presente e o futuro. Este é o cenário de fundo que vai permitir a Roth explorar os mais intrincados comportamentos humanos, do poder ao racismo, da amizade à família, do amor ao ódio. Tudo isto pode ser visto no filme homónimo realizado por Robert Benton, que conta com nada menos do que Anthony Hopkins e Nicole Kidman, mas que apesar de nos poder dar a conhecer a história em toda a sua evidência, e sendo um bom filme, fica imensamente distante do livro.

Não se trata apenas do detalhe ou da diferença entre os diferentes média, a diferença aqui é evidenciada pela mestria de Roth no manejo da escrita. O modo como trabalhou o enredo, numa estrutura encapsulada e não-linear, para a qual criou personagens, não apenas soberbos e interessantes, mas que descreve de um modo profuso, intenso e extremamente íntimo. Com a não-linearidade a fazer brotar constantes descobertas, à medida que vamos lendo, e vamos compreendendo mais sobre cada um dos personagens. Roth não usa a deslinearização apenas como artifício para a participação do leitor, mas antes para enriquecer o que nos vai contando, de modo a levar-nos cada vez mais ao fundo de cada um dos envolvidos. A cada novo descamar do enredo, percebemos que não apenas saltamos no tempo, para frente ou para trás, mas que Roth como que abre um vortex por meio do qual nos leva a conhecer o interior do sentir de mais um daqueles personagens.
Durante quarenta anos fez o que era necessário fazer. Andou atarefado, e a natureza, que é a besta, mudou-se para uma caixa. Agora essa caixa está aberta. Ser reitor, ser pai, ser marido, ser intelectual, professor, ler livros, dar lições, corrigir textos, dar notas, tudo isso acabou. Evidentemente que já não é a vigorosa besta lúbrica que foi. Mas o que resta da besta, o que resta dessa coisa natural, é com isso que ele está agora em contacto, com o que resta. E sente-se feliz por isso, sente-se grato por estar em contacto com o que resta. Sente-se mais do que feliz: sente-se emocionado, e já está ligado, profundamente ligado a ela, por causa dessa emoção. Não é de família que se trata, a biologia já não lhe serve para nada. Não é família, não é responsabilidade, não é dever, não é dinheiro, não é uma filosofia partilhada ou o amor à literatura, não são grandes discussões de ideias. Não, o que o liga a ela é a emoção. Amanhã descobrem-lhe um cancro e acabou-se. Mas hoje, agora, tem essa emoção.” (excerto de "A Mancha Humana")
"(..) nós deixamos uma mancha, deixamos um rasto, deixamos a nossa marca. Impureza, crueldade, mau trato, erro, excremento, sémen. Não há outra maneira de estar aqui. Não tem nada a ver com desobediência. Nem com graça, ou salvação, ou redenção. Está em todos. Sopro interior. Inerente. Determinante. A mancha que existe antes da sua marca. Sem o sinal de que está lá. A mancha que é tão intrínseca que não precisa de uma marca. A mancha que precede a desobediência, que engloba a desobediência e confunde toda e qualquer explicação e compreensão. É por isso que toda a purificação é uma anedota. É uma anedota básica, ainda por cima. A fantasia da pureza é aterradora. É demencial." (excerto de "A Mancha Humana")
De algumas análises que li, nomeadamente na comparação da alegada “Trilogia Americana” de Roth, na qual a “Pastoral Americana” (1997) seria o primeiro volume, “Casei-me com um Comunista” (1998), o segundo, e “A Mancha Humana” (2000) o terceiro, parece ser consensual, apesar da “Pastoral” ter ganho o Pulitzer, que a “Mancha” é o pináculo, não apenas da trilogia, mas da obra de Roth. Provavelmente por ser aqui que vai mais longe na análise das pessoas, centrando-se nos efeitos das convenções sociais que as amarram e domesticam, e menos nas componentes políticas de cada um dos momentos representados.

Por outro lado, e ao contrário do que por vezes já disse aqui no blog, a quantidade de trabalho criado por Roth não lhe foi saindo como repetição, mais do mesmo, mas antes como aprimoramento da sua mestria, com esta a evoluir continuamente ao longo da sua carreira. Roth tinha 70 anos quando escreveu a “Mancha” e isso nota-se, muito do que aqui se diz, não era possível de ser pensado por alguém com 30 ou 40 anos, é preciso experiência de vida, viver, sofrer, acertar e errar. A sua escrita foi assim tornando-se mais intensa, entrosada, e íntima, sendo responsável por muito daquilo em que se transforma a experiência das suas tragédias narradas.

Para fechar, quero deixar um excerto de uma passagem, na qual Roth usa uma referência a um andamento de Mahler, que descreve de modo belíssimo, e aproveitando a particularidade multimédia do blog deixo a música, esperando assim proporcionar um momento especial a quem desejar realizar a leitura enquanto ouve:

Mahler, Symphony No 3, por Claudio Abbado
O percurso a pé para o cemitério, a três quarteirões de distância, foi em grande parte memorável pelo facto de, aparentemente, não ter acontecido. Num momento estávamos paralisados pela infinita vulnerabilidade do adágio de Mahler, por aquela simplicidade que não é artifício, que não é uma estratégia, que quase parece desenrolar-se com o ritmo acumulado da vida e com toda a relutância da vida em terminar… num momento estávamos paralisados por aquela rara justaposição de grandiosidade e intimidade que começa na serena, cantante e contida intensidade das cordas e depois sobe, em vagas, pelo pesado falso final que conduz ao verdadeiro, ao prolongado, ao magnífico final… num momento estávamos paralisados pelo crescendo, pela subida, pela culminância e pela acalmia de uma orgia elegíaca que se espraia, espraia, a um ritmo determinado que nunca muda, recuando para logo voltar como uma dor ou um anseio que não desaparecem… num momento estávamos, levados pela insistência crescente de Mahler…” excerto de "A Mancha Humana"

agosto 20, 2015

Do sucessor de "Ready Player One"

Esta semana escrevi para o IGN a análise do novo livro de Ernest Cline, "Armada" (2015). Como tenho dito, a escrita de Cline não é nada de especial, contudo os seus livros não passam despercebidos, nem nos deixam indiferentes. Diria que os mesmos estão para a literatura, como os doces conventuais estão para a comida, são absolutamente deliciosos mas não alimentam, e em excesso podem fazer mal!


Fica a ligação para a análise: "'Armada', a elite dos Geeks"

agosto 11, 2015

“Dom Quixote de la Mancha” (1605 & 1615)

Dom Quixote” é uma viagem por uma geografia de nós tão próxima, ainda que num tempo tão distante, mas capaz de nos levar a conhecer gente que tão pouco de nós difere e assim nos dar a conhecer mais sobre nós mesmos. Se isto não bastasse, ler "Dom Quixote" é ler a pauta da história da literatura, encontrar o berço da forma e estrutura daquilo que hoje assumimos simplesmente como, o Romance.

Sancho Pança e D. Quixote, Alcalá de Henares, Madrid, Espanha


1. O significado do meu Dom Quixote

“O Cavaleiro de Triste Figura” é este o título que D. Quixote adota a meio da narrativa, sendo este central na compreensão do personagem, dos seus motivos e desígnio, e que sustentando todo o universo choca com o reconhecido género cómico de que se compõe a obra.


Série de animação “Don Quijote de La Mancha” (1979)

Tive o meu primeiro contacto com a personagem de D. Quixote através da série de animação para televisão, “Don Quijote de La Mancha” (1979) , que passou em Portugal em 1984, nas manhãs de sábado, na RTP 1. A marca foi forte, e desde então nunca mais me abandonou, ficando na memória alguns dos episódios marcantes que agora pude revisitar ao ler o livro. Em essência guardo dessas manhãs mais questões que respostas, o que evidencia desde logo toda a importância do universo criado por Cervantes. D. Quixote não tinha propriamente um desígnio, além da sua Dulcineia, que nunca surge, que não existe, tal como quase tudo apenas existe na sua cabeça. O desenho animado foi aqui crucial por poder mostrar o fantástico e o impossível,  permitindo-nos entrar pela mente adentro do personagem, obrigando-nos a questionar a diferença entre o real e o imaginário.

O primeiro volume (1605) é bastante mais cómico, centrado em acções concretas e delimitadas - exemplos como: os Moinhos, as Ovelhas ou o Elmo de Mambrino - e aquele de que tenho mais memórias, ainda que televisivas. O segundo volume (1615), apesar de servir uma Busca/Demanda também, a terceira saída de D. Quixote, é também a sua última, mas mais do que isso, é muito mais madura, o personagem D. Quixote está envelhecido, porque a própria pena de Cervantes tem agora mais 10 anos. Notamos que a escrita e a estrutura é bastante mais robusta, mas notamos que o universo quixotesco se complexifica, ganha densidade e profundidade. Relendo estas palavras percebo que aquando do visionamento da série, a minha idade não me terá permitido atingir o fundamento da segunda metade.

O “cavaleiro-andante” que servia de rótulo ao tipo de cavaleiro dos romances medievais, o senhor seguidor das normas do cavalheirismo, em Cervantes, pela crítica desse modelo, e por via de uma abordagem anti-herói, assume o lugar de todos nós, errantes nesta vida. O cavaleiro não quer seguir apenas as regras e convenções, antes procura respostas, busca um sentido para a vida. D. Quixote é apresentado como alguém extremamente lúcido mas que sofre de uma mania (ser cavaleiro-andante) que o deixa louco a esparsos momentos, mas não teremos todos momentos destes, com manias nossas? Daí que ler "Dom Quixote" exija um esforço da nossa parte, sermos capazes de nos revermos no personagem para o podermos compreender, porque a todo o momento Cervantes nos vai rasteirando, lançando a dúvida sobre se o próprio D. Quixote acredita naquilo que diz.

Para se chegar ao coração de toda esta busca e errância, que define o quixotismo, temos de olhar para história de vida do próprio Cervantes. Nascido de boas famílias, mas sem grandes posses, teve uma vida atribulada (cativo durante anos, em tempo de guerra em Itália, e mais tarde preso por falta de pagamento de dívidas), viveu em Lisboa dois anos, mas foi em Espanha que viveu como verdadeiro nómada, passando por imensas cidades ao longo da sua vida. Os empregos medianos que teve nunca lhe agradaram, e as vezes que procurou outros lugares, foi sempre preterido. No amor passou por amores proibidos pelas famílias, nunca encontrando um amor que lhe permitisse assentar. Apesar do sucesso dos seus livros em vida, nunca pôde viver da escrita.


2. Do nascimento da Prosa Narrativa

Antes de “Dom Quixote” existiram várias formas narrativas, porque é que então consideramos este como a origem do livro de ficção (romance), tal como hoje o conhecemos? Para tal é preciso olhar à história e procurar compreender como contávamos histórias, nomeadamente com livro como meio. Essencialmente tivemos três formas: o Poema, o Drama e a Prosa.

As histórias na forma de Poema, ou seja em que história vai sendo contada por meio de versos estruturados para a produção de efeitos estéticos. Iniciados com os fundacionais épicos “Gilgamesh” (~-2100), “Ilíada” (~-800) e “Odisseia” (~-800) que serviram de modelo a “Eneida” (~-30), “Metamorfose” (~800), “Beowulf” (~900), “Divina Commedia” (~1300) e “Lusíadas” (~1500).

As histórias na forma de Drama, ou seja, em que a história vai sendo contada por meio de diálogos, aqueles que poderão ser colocados em cena por atores. Iniciadas com as tragédias gregas de Ésquilo , Eurípides e Sófocles à volta de -450, e que atingiriam o pináculo da sua forma com Shakespeare, no tempo de D. Quixote, em ~1600. Aliás Shakespeare morreu 10 dias depois de Cervantes, dois génios das letras, viveram na exata mesma época a poucos quilómetros entre si, mas nunca chegaram a conhecer-se.

As histórias na forma de prosa começaram antes dos Poemas e Drama, mas no início serviram apenas a não-ficção. Costumamos reportar na nossa noção histórica ocidental à Grécia antiga, nomeadamente ao seu legado filosófico, com a tríade Sócrates, Platão e Aristóteles. Esta nunca desapareceu e continua até aos dias de hoje, nas várias disciplinas académicas. Aqui usa-se a prosa, mas o objetivo não é elaborar uma história, antes reportar um problema real, preocupando-se apenas com o fundamento do problema, esquecendo a forma, assumindo-a o mais próximo possível da oralidade e do suposto pensamento. Assim na Grécia antiga era fácil distinguir o real do ficcional olhando apenas à forma dos escritos.

A prosa como ficção surge muito mais tarde, no final da Idade Média (~1300). Os primeiros escritos surgem como registos de lendas, em que o ficcional se mistura com o real. Das lendas não se sabia o que era verdade, e o que era inventado, daí que os registos que vão acontecendo sofram dessa ambivalência na própria forma. Estas lendas escritas iniciam um novo género que se intitularia de “Romances de Cavalaria”, sendo estes a base daquilo que viria ficar conhecido como simplesmente Romance. O pioneiro, ou o mais recordado, dos registos destas lendas, é marcado por Rei Artur, responsável por vários romances em França e Inglaterra (~1300), e o final por “Dom Quixote” (1605 e 1615), pelo meio muitos houveram, tais como o imensamente citado em "Dom Quixote", “Amadis de Gaula” (1496), que ainda hoje se discute se terá sido escrito por espanhol ou português.


3. A importância de “Dom Quixote

Dom Quixote” (1605 e 1615) de Cervantes, à semelhança de “The Birth of a Nation”  de D.W. Griffith no cinema, não inventa propriamente nada, antes consolida, solidificando conhecimentos previamente distribuídos em várias obras. Os processos criativos não emergem no vazio, mas antes da complexidade e imensidade de caminhos de cada movimentação artística. Obras como “Dom Quixote” ou “The Birth of a Nation", surgem como marcos de viragem porque dão sentido ao caos de possibilidades criativas, criando uma base sólida a partir da qual todos os que lhe sucedem, ali se ancoram.

Na verdade o século XVII é considerado como o século de ouro espanhol por tudo aquilo que o país deu à humanidade em termos artísticos e científicos. Não foi apenas um efeito tardio da Renascença, embora também, mas foi um um claro efeito da imensa riqueza extraída das colónias da América Latina. O mais visível destes efeitos surgiu na forma arquitectónica das suas catedrais, assim como na pintura de Velázquez, El Greco, Murillo, Alonso Berruguete ou Luis de Morales, mas tudo em redor beneficiou desta erupção intelectual, sendo "Dom Quixote" um dos melhores exemplares desse período.

Em termos da prosa narrativa “Dom Quixote” estabelece convenções e parâmetros estéticos centrais no contar de histórias elaboradas que se mantém até hoje. Desde logo pela troca de lugares entre a relevância do enredo pelos personagens. Aristoteles considerava o enredo a primeira força motriz do drama, no entanto Cervantes vem demonstrar como só pela assunção dos personagens como dominantes se pode construir uma história de eventos longa e complexa, capaz de eliminar a impressão de meros quadros delimitados e sucessivos de acções. Com a história a progredir pela força dos personagens, e não estes a serem empurrados pelas acções narrativas, o entrelaçar da estrutura de eventos torna-se mais fluída, porque mais coerente, mais próxima da estrutura de que se compõem o modo como vemos as nossas próprias vidas. Isto nota-se logo no primeiro volume, mas é no segundo que a estratégia é mais bem desenhada, e a estrutura assume toda a sua evidência. Mesmo fazendo uso do recorte em pequenos capítulos, estes nunca são desligados, Cervantes esforça-se por manter uma coesão completa entre cada momento, como se um fio de realidade nos fosse sendo servido, e não apenas um conjunto de cenas ou momentos.


4. Da escrita e tradução

A escrita em "Dom Quixote" apresenta dois problemas que a tornam ligeiramente difícil, a erudição e os arcaísmos. Os livros são do século XVII, como tal o espanhol escrito é bastante distante do que hoje se escreve, não apenas alguns dos termos, como expressões e artifícios gramaticais que foram caindo em desuso. Por outro lado Cervantes apresenta um enorme background literário que lhe permite não apenas chamar ao seu texto citações de muitos clássicos e seus contemporâneos, e ao mesmo tempo apresentar uma linguagem bem elaborada, entrosada e trabalhada. Tudo isto dificulta a leitura, mas antes disso dificulta o trabalho de tradução.


Em português existem várias traduções, uma das mais conhecidas é a do escritor Aquilino Ribeiro, que de tanto ter trabalhado a tradução acabou por criar uma nova versão, em vez de uma tradução. Li apenas os primeiros capítulos nesta versão, e pareceu-me demasiada arcaica, existe uma clara tentativa de traduzir do espanhol antigo para o português antigo, o que dificulta imenso a leitura. No Brasil existem várias traduções recentes, li vários capítulos da nova da Penguin Brasil, realizada por Ernani Ssó, no qual este procura realizar o inverso, trazendo a obra para um português contemporâneo. O texto fica muito mais acessível, assumo mesmo que as partes cómicas ficam com mais graça, mas o texto perde em erudição, e acaba criando-se uma nova versão da obra, já que muitas vezes Ssó transforma completamente aquilo que o autor escreveu. A versão na qual acabei por ler praticamente todo o texto foi a de Miguel Serras Pereira, premiada em 2006 pelo PEN, e agora re-editada numa edição especial para a comemoração dos 50 anos da editora D. Quixote. Comparando alguns trechos com a versão espanhola, mais recente da Real Academia Española, o texto segue quase totalmente o original, obrigando-nos muitas vezes a recorrer ao dicionário pelo uso de vocábulos já fora de uso, ou provenientes do castelhano. De qualquer modo a leitura, apesar de menos escorreita que a versão de Ssó, é ainda assim bastante fluída, com a vantagem de podermos sentir por vezes a proximidade temporal por via do texto.

agosto 09, 2015

Interatividade corpórea

Esta semana escrevi para o IGN a propósito da vaga de videojogos com personagens físicas, iniciada pela Activision com "Skylanders", seguida pela Disney, Marvel e Nintendo, aguardando-se ainda para este ano Star Wars e LEGO. Relevante perceber como de há alguns anos para cá assistimos ao movimento inverso daquele que nos trouxe até aqui, ou seja uma materialização do virtual.




O texto aflora apenas alguns itens da relevância deste assunto, abrindo portas para que se procure mais, já que passa por aqui o futuro do design de interacção e de experiências.

Ler texto completo no IGN Portugal, "Experência do Entertenimento".

julho 31, 2015

"Survival of the Beautiful" (2012)

Rothenberg é filósofo e artista, e só desse modo se explica o modo como aborda o evolucionismo na arte. A sua proposta é polémica, porque assenta num princípio, que apesar de oferecer demonstração dedutiva, corre contra outra proposta, que ainda que seja também apenas passível de demonstração dedutiva, é aceite pelas restantes ciências.


Vamos ao que nos é dito. Rothenberg faz um belo trabalho de revisão da teoria estética evolucionária, nomeadamente Denis Dutton (ver "The Art Instinct", 2008), defendendo grande parte dos seus valores, mas indo ainda mais longe. Um dos problemas que se coloca a quem baseia a relevância da arte na teoria evolucionária de Darwin, é que esta transforma a arte numa funcionalidade. Ou seja, a evolução coloca a criação estética ao serviço da optimização da espécie, o belo passa por mero atributo da conquista sexual. Esta abordagem, que é de certo modo consensual na biologia, diz-nos que a Seleção Sexual de Darwin é uma subcategoria da Seleção Natural, ou seja, uma forma de seleção que trabalha para a otimização da adaptabilidade das espécies.

O interessante deste livro é que coloca em causa esta abordagem, sem colocar em causa o evolucionismo. Rothenberg defende assim que a Teoria da Seleção Sexual, deve antes ser considerada a par com a Teoria da Seleção Natural, e não como subclasse desta. Porque o faz? Porque ao fazê-lo permite-lhe desligar o objecto da arte do funcionalismo adaptativo. Deste modo a arte pode continuar a funcionar como um exercício demonstrativo de qualidades, mas a sua apreciação não tem um propósito, antes se define por um gosto subjectivo de quem aprecia. Rothenberg trabalha todo o livro para demonstrar esta teorização, que não é fácil, já que como facilmente se perceberá, fica-se preso ao subjectivo, não existindo verdadeiramente um modo de demonstrar a abordagem.


Do meu lado, sinto-me totalmente perplexo, e incapaz de tomar um lado. De um modo mais racional, tenho muitas dúvidas sobre a exequibilidade desta teorização, mais ainda quando Rothenberg procura defender que a selecção sexual procede pelo lado feminino. Ou seja, as caudas dos pavões machos, são assim, porque as fêmeas, "grandes estetas", têm demonstrado preferência por aqueles padrões, e não outros! Rothenberg procura mesmo dizer que esta abordagem não foi aceite no tempo de Darwin, porque seria inaceitável conceber a mulher com tanto poder em pleno século XIX. Até acredito nas polémicas desses tempos, mas hoje é ainda mais polémico, mas por outras razões, ou seja, como explicar em tempos de igualdade de sexos, possa existir tanta predominância num deles? E porque apenas um deles pode ser esteta?!

Por outro lado, esta teorização tem alguma relevância quando pensamos no modo aleatório como o real natural é autogerido (ver "The Drunkard's Walk", 2008). Ou seja, tendo em conta o acaso e o aleatório que compõem o detalhe da essência deste universo, porquê acreditar que tudo tem que ter uma função concreta, tudo se dirige a um objecto predeterminado?

Tabela de conceitos polarizadores do real

Complicado. Mas mais interessante foi a teorização que a leitura desta oposição, entre Selecção Natural e Selecção Sexual, acabou por despoletar em mim. Comecei a ver o modo dicotómico, profundamente polarizado, como concebemos a realidade à nossa volta, como a classificamos, categorizamos, através dos nossos modelos mentais, que gerando esta dicotomia, se repetem a si próprios, num ciclo contínuo e redundante. Deixo acima uma tabela com alguns conceitos e opostos, mas que poderia ser preenchida quase infinitamente, sendo que o mais relevante advém da teorização que podemos desenvolver sobre este modo peculiar que temos de conceber a realidade.

julho 25, 2015

"Logicomix"

Brilhante. Em múltiplos sentidos, “Logicomix” impressiona, e brilha mesmo na forma como coloca o storytelling ao serviço da divulgação de ciência, sem nunca se deixar comprometer. A banda desenhada como medium pode servir qualquer forma expressiva, contudo como noutros media, a forma mais poderosa de envolver os leitores assenta no formato narrativo, no contar de histórias. Dessa forma os autores deste livro, que aborda um dos assuntos mais complexos e abstractos da ciência, optaram por garantir primeiro o contar de história, e só depois a verdade. Pode parecer um compromisso falhado, mas não o é, e acima de tudo deveria servir de exemplo a todos aqueles que sonham em usar o cinema ou os videojogos para educar.



Em termos concretos “Logicomix” (2008) apresenta-se como a história do surgimento da Lógica Matemática, que viria a criar as bases para a criação do computador, nomeadamente das linguagens de computação. Para contar esta história os autores utilizaram vários artifícios narrativos, desde logo incluindo-se a si próprios no livro, discutindo as abordagens e bifurcações da história que queriam contar. Como bons storytellers, os autores não se focaram na abstracção - “o que é a lógica?” -, mas antes nas pessoas que a fizeram surgir. Deste modo Bertrand Russell é usado como o veículo condutor e estrutural da teorização, fazendo uma história sobre a lógica soar a biografia de Bertrand Russell. Reconhecido como uma das mentes mais brilhantes da nossa História, Russell encarna na perfeição o papel de herói, que é depois servido por encontros não menos fantásticos com outros ícones da história das ideias, tais como Ludwig Wittgenstein, Kurt Gödel, Georg Cantor, Henri Poincaré, John Von Neumann, Alfred North Whitehead, Gottlob Frege e David Hilbert.



Uma das opções mais inteligentes dos criadores assentou exatamente na encenação dos encontros entre Russell e os seus colegas. Como admitem no final do livro, num texto em forma de adenda, muitos desses encontros nunca existiram, por várias razões, embora sejam plausíveis no sentido em que as ideias circularam entre eles. Contudo para o contar da história, para lhe garantir verosimilidade, crença por parte de quem lê, são vitais. Ou seja o design da narrativa, não se quedou por seguir paulatinamente a história real, antes a ajustou às suas necessidades, procurando de qualquer forma não ferir nunca o essencial do que se procurava transmitir. Deste modo garante-se o envolvimento do leitor, a sua total atenção, permitindo que o núcleo do que se quer transmitir passe.

Tudo isto só pode ser aceite, desde que como aqui acontece, seja admitido na própria obra, de outro modo estaríamos a induzir em erro os leitores (um problema que é inclusivamente abordado em termos filosóficos no próprio texto, no sentido da auto-referenciação e da mentira no discurso previamente assumido como mentira). Aceita-se também porque ganhando o storytelling, ganha a capacidade de comunicar, ganhando a capacidade de assimilação e compreensão por parte dos leitores, que diga-se neste caso não é de somenos, já que o assunto em questão é verdadeiramente complexo.


Assim sendo a importância deste livro vai muito para além da sua capacidade de divulgar às massas ideias altamente complexas, o seu formato é uma lição para todos aqueles que procuram novas formas de comunicação, nomeadamente assentes no storytelling ou jogos. Este livro demonstra que é possível, a prova está que no final da leitura, poucos de nós não sentirão admiração pela ciência e espírito científico.

O livro foi entretanto publicado em Portugal pela Gradiva, no ano passado.

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julho 23, 2015

“O Som e a Fúria” (1929)

Terminada a leitura, são muitas as ideias que pairam e iluminam caminhos de análise. Resolvi assim indicar brevemente as impressões sentidas, e depois focar-me mais sobre os aspectos narrativos do texto. Vi-me obrigado a separar os aspectos impressivos dos estéticos, porque são ambos imensamente salientes, fazendo mais sentido discuti-los em separado, no entanto o grosso da análise acaba por se deter sobre os aspectos estéticos.


Impressão emocional
Intenso e cru. A leitura de “O Som e a Fúria” impacta forte, por vezes indigesto, mas sempre muito envolvente, mantendo-nos agarrados ao que vem a seguir, na ânsia por respostas e explicações. Se a história é simples, a forma como se conta é brutalmente complexa, se a história não apresenta temas novos, a crueza com que o faz surpreende-nos. Os personagens são tão reais, e ao mesmo tempo tão brutais que dói ler certas páginas. É uma viagem complexa e difícil, porque difícil de assimilar e difícil de aceitar o que vamos lendo, mas talvez por isso mesmo nos mantemos numa espécie de transe até ao virar da última página. É mesmo o som (a vida) e a fúria (a emoção).


Leitura racional da obra
[Ler por quem já leu, ou procure pistas para uma leitura mais orientada]

“O Som e a Fúria” é provavelmente o romance mais experimental que li, e por essa mesma razão, o romance que melhor expõe a técnica narrativa de “fluxo de consciência”. Faulkner ao contrário de outros autores, não faz apenas uso da técnica, ele usa-a e molda-a em três variações distintas, numa mesma obra, desenvolvendo assim todo um leque de possibilidades da técnica, que não só a tornam auto-explicativa, como nos impressiona pelo virtuosismo técnico de Faulkner.

O livro é composto em 4 grandes blocos, divididos por datas claras. Dos 4 blocos, apenas o último é relatado na terceira-pessoa, com um narrador heterodiegético, enquanto os primeiros três são servidos na primeira pessoa, por cada um dos irmãos da família central do enredo. O último bloco assume-se assim como o indicador da normalidade, ou relato clássico, e permite ao leitor comparar discursos, identificando rapidamente as diferenças.

Ora as diferenças não se ficam pelo uso da primeira-pessoa, cada uma das pessoas por detrás da narração, possui uma particularidade cognitiva, que pelo facto de se estar a utilizar a técnica de “fluxo de consciência”, contamina completamente o discurso. Assim, no primeiro bloco o personagem que relata sofre de atraso mental, por essa razão o discurso é profundamente caótico, temporal e espacialmente, ora fala alguém com 3 ou 4 anos, num discurso entrecortado e básico, ora fala alguém muito mais velho, com um discurso fluído e mais refletido. É sem dúvida o bloco mais difícil de todo o livro, e questiono-me porque Faulkner o terá colocado logo a abrir! No segundo bloco, o narrador sofre de depressão e tendências suicidas, assim e apesar do discurso ser menos caótico inicialmente, à medida que se vai aproximando do final do bloco, e a pressão se vai agudizando, vai-se tornando mais e mais incompreensível, com frases e pensamentos deixados a meio, sem nexo, ou conexão com o que se diz antes ou depois. Por fim, o terceiro bloco, é servido por um personagem, ainda que sui generis, perfeitamente normal em termos cognitivos, construindo-se assim aquilo que podemos designar por um registo regular de “fluxo de consciência”. Se o quarto bloco serve comparativo entre a narração clássica e o “fluxo de consciência”, o terceiro bloco serve de comparativo dentro dos registos de “fluxo de consciência”.

Sobre o primeiro bloco, é interessante verificar que Faulkner tinha a intenção de apresentar o texto colorido (14 cores) para permitir que o leitor pudesse seguir cada um dos fios discursivos, tendo percebido que aquilo que pretendia expor seria praticamente impossível de assimilar pelo leitor. No entanto, por razões técnicas e comerciais, tal não foi possível, o que obrigou a várias reescritas do bloco. Em 2012 foi lançada uma versão com as supostas cores, mas acredita-se que depois das revisões feitas pelo autor isto talvez já não faça sentido. Isto porque Faulkner ao perceber que não poderia usar cores, ter-se-á obrigado a moldar todo o texto de modo a torná-lo, ainda que no seu caos, de algum modo compreensível. Por isso mesmo fica a dúvida, se Faulkner não tivesse sido impedido de usar cores, teria ele conseguido criar o texto que criou? Usando ele as cores para controlar a lógica discursiva, provavelmente não teria precisado de fundir tanto o texto, ou de diferenciar tanto as diferentes vozes no discurso deste bloco!

Edição limitada de 2012, com as vozes do discurso diferenciadas por cores, segundo orientação de Faulkner.

Voltando ao experimental, o livro acaba por não funcionar como um todo, no sentido tradicional a que estamos habituados, já que o discurso de Faulkner não é uno, nem sequer coeso em termos estilísticos, são vários mundos, apesar de ser sempre o mesmo tema, a mesma família. Consigo até sentir a unidade, emocionalmente, mas quando racionalizo, a obra fragmenta-se nos 4 blocos, por isso mesmo dividi este texto em dois momentos reflexivos. O que me leva a inevitavelmente rotular este livro como um experimento faulkneriano, que apesar disso representa um enorme valor pedagógico, não apenas na compreensão das técnicas narrativas, mas também na compreensão dos fundamentos do modernismo.

Ou seja, a leitura deste livro permitiu-me compreender melhor o que separa o modernismo do pós-modernismo, porque se eles parecem usar técnicas similares, como a não-linearidade e a fragmentação discursiva, o seu propósito é bastante distinto. Ou seja, Faulkner não deslineariza o discurso baseado numa questão estética, mas antes numa questão funcional, por exemplo a fragmentação discursiva que aqui ocorre procura representar uma realidade cognitiva concreta. O que Faulkner faz é criar novas formas de representação textual do real, que estão para além daquilo que os discursos clássicos da literatura permitiam. Por exemplo se contrapormos com “Infinite Jest” de DFW, um discurso assumidamente pós-moderno, vemos uma enorme diferença, já que aí a fragmentação e deslinearização é um atributo exclusivamente estético, o autor está focado na modelação da forma pela forma, num levar ao limite o discurso, para de certa forma assim estabelecer uma maior relação de proximidade com o leitor, ao o obrigar a participar na co-construção do enredo.

De certa forma o modernismo acaba por sofrer de um excesso de racionalização, na ânsia por se libertar das regras do classicismo, sem contudo perder noção da relevância das regras. Pelo seu lado o pós-modernismo na sua ânsia por voltar a libertar-se, e como que funcionando numa força de segunda vaga, nomeadamente depois do ainda mais regrado estruturalismo que sucedeu ao modernismo, abandona tudo, desistindo das regras assim como da racionalização. O discurso em si mesmo é o único limite, é o de cada criador, não existindo limites externos, nem cânones.

Julgo, em certa medida, que tudo isto que acabo de expor justifica a manutenção desta obra como um clássico obrigatório para quem quer que goste de literatura, ou queira compreender melhor a sua história e estética. É uma obra profundamente emocional, e ao mesmo tempo profundamente pedagógica, não se lhe poderia exigir mais.