Talent is Overrated. What really separates world-class performers from everybody else é um livro de Geoff Colvin que me obrigou a imensa reflexão. Essencialmente porque numa primeira parte me obrigou a analisar concepções contrárias às que defendo sobre a aprendizagem e a criatividade, e numa segunda parte volta a aproximar-se das minhas ideias de origem. O livro de Colvin foi baseado num artigo inicialmente
escrito para a revista Fortune, da qual é editor chefe.
Assim o que Colvin começa por dizer neste livro é que o talento é uma espécie de desculpa que nós encontrámos para deixar de desenvolver determinadas competências. E que qualquer um de nós pode desenvolver as competências que quiser, desde que lhe dedique um esforço considerável (
as tais 10 mil horas de Andrew Ericsson). Baseia todo este discurso na análise da performance do ser humano. Um simples demonstrador da performance da técnica face ao talento inato sobressai quando olhamos para a constante quebra de recordes mundiais desportivos. Ainda este ano o NYTimes realizou um excelente trabalho de infografia em que demonstrava a
diferença entre o recorde dos 100 metros natação, de 2008 para 1896 com uma distância de quase 50%.
Um corrida (imaginária) com todos os medalhados de sempre (NYT)
Colvin continua com os exemplos de Mozart e Tiger Woods, demonstrando que ambos não eram nenhum talento especial em crianças, mas que a grande diferença entre eles e os demais esteve no facto de terem ambos em casa professores da profissão. Pais que não só os fizeram treinar, como os orientaram na melhor forma de o fazer desde muito pequenos, no fundo foram os seus primeiros professores. Nenhum deles terá inovado muito antes dos 20 anos, mas chegados a essa idade a quantidade de horas acumuladas de trabalho prático de qualidade desenvolvido por ambos terá feito com que estes se distinguissem dos demais.
Para suportar ainda mais esta ideia vai buscar nada menos que Laszlo Polgar, um defensor extremista da genialidade fabricada. Polgar teve três filhas com o simples intuito de as tornar campeãs mundiais de xadrez, tendo começado a treinar todas elas desde bebés, e dedicando-se ele e a mulher apenas e só à educação delas. As três irmãs são hoje heroínas da Hungria, conseguiram chegar as três a
grandmasters, conseguiram abrir a prática às mulheres, ultrapassaram muitos homens, foram modelos, e conseguiram grandes feitos. Mas no FIDE Top 100 a filha mais nova, Judit Polgar, foi a que chegou mais alto e nunca passou do 8º lugar, em 2005. E aqui começam as minhas dúvidas sobre todo este discurso.
As três irmãs Polgar
Ainda assim uma das conclusões que Colvin retira de tudo isto parece-me a reter, e que tem que ver com o conceito de Prática Deliberada ou intencional já definida antes por Andrew Ericsson. Para compreender este tipo de prática Colvin define-a em 5 passos,
- A prática intencional deve ter como objectivo melhorar a qualidade do trabalho.
- Múltiplas repetições. Primeiro definir o que é preciso melhorar, e depois ver se as acções levam a melhorar, e depois trabalhar intensivamente para melhorar.
- É preciso ter feedback dos resultados do trabalho. Se não é impossível saber como continuar a melhorar.
- O trabalho deliberado requer esforço mental. A intensa busca por melhorar só se consegue com focagem em profundidade.
- A prática deliberada não cabe em descrições românticas. É dura porque não é o momento em que treinamos aquilo em que já somos bons, mas antes aquilo em que ainda não somos.
Para suportar tudo isto dá ainda um exemplo, para mim muito mais interessante do que o de Lazlo Polgar, e que já explicarei porquê. O exemplo é de Benjamim Franklin (1706-1788) um dos fundadores dos EUA, apelidado de homem da renascença dadas as suas reconhecidas polivalências: escritor, político, cientista, inventor, activista, satirista, diplomata, entre outras coisas. O exemplo que Colvin nos traz é sobre o modo como Franklin aprendeu a escrever. Um dia o seu pai disse-lhe que os seus textos eram superiores aos dos seus colegas em conteúdo mas falhavam na forma e por isso acabavam por não conseguir fazer passar as suas ideias. Franklin resolveu então começar a trabalhar a sua escrita. Transcrevo agora parte directa da
autobiografia de Benjamim Franklin,
“Imitating the Style of the Spectator, (1789), Benjamim Franklin
About this time I met with an odd volume of the Spectator. I had never before seen any of them. I bought it, read it over and over, and was much delighted with it. I thought the writing excellent, and wished, if possible, to imitate it. With that view, I took some of the papers, and making short hints of the sentiment in each sentence, laid them by for a few days, and then, without looking at the book, tried to complete the papers again, by expressing each hinted sentiment at length and as fully as it had been expressed before, in any suitable words that should come to hand. I then compared my Spectator with the original, discovered some of my faults and corrected them. But I found I wanted a stock of words, or a readiness in recollecting and using them, which I thought I should have acquired before that time if I had gone on making verses; since the continual occasion for words of the same import, but of different length, to suit the measure, or of different sound for the rhyme, would have laid me under a constant necessity of searching for variety, and also have tended to fix that variety in my mind, and make me master of it. Therefore I took some of the tales and turned them into verse; and, after a time, when I had pretty well forgotten the prose, turned them back again. I also sometimes jumbled my collections of hints into confusion, and after some weeks endeavored to reduce them into the best order, before I began to form the full sentences and compleat the paper. This was to teach me method in the arrangement of thoughts. By comparing my work afterwards with the original, I discovered many faults and amended them; but I sometimes had the pleasure of fancying that, in certain particulars of small import, I had been lucky enough to improve the method or the language, and this encouraged me to think I might possibly in time come to be a tolerable English writer, of which I was extremely ambitious.”
O que podemos ver neste texto, é exatamente aquilo que Andrew Ericsson disse, e Colvin aqui repete, como Prática Deliberada. Trabalhar repetidamente em busca da melhoria, constante, sem parar nunca. Ora isto levanta um problema claro, e que ficou já bem evidenciado no exemplo das filhas de Lazlo Polgar. Estas chegaram aos 20 anos e desistiram de competir no xadrez de alto-nível. A explicação é dada por elas. Queriam ter filhos, queriam conhecer mundo, queriam mais do mundo em que viviam, e o xadrez não as preenchia. Porque aliás num outro exemplo que Colvin dá a respeito de grandes músicos, através de inquéritos realizados, aquilo que custava mais a estes músicos, era a parte em que treinavam sozinhos além dos períodos de treino normal na orquestra. Mas eram exatamente estes músicos aqueles que se destacavam dos demais, porque treinavam muito além dos outros. Aliás aqui não posso deixar de citar um exemplo popular português, Cristiano Ronaldo.
A incansável busca pela perfeição é dolorosa e este é para mim o elemento central de tudo.
É o ponto que deita por terra esta conceptualização totalmente errada do ser humano nascido tal uma tábua rasa à espera de ser moldada através de práticas radicais behavioristas. É possível criar grandes profissionais, Polgar demonstrou-o, mas não é possível criar génios. Não é possível fazer mentes brilhantes com as nossas mãos apenas. E porquê? Bem a resposta é muito simples, e a resposta está num livro de
Ken Robinson, The Element que nos fala de descobrirmos o elemento no qual nos sentimos bem, no qual sentimos que podemos contribuir para a sociedade, no qual os outros que nos rodeiam também acreditam que podemos retribuir. Colvin dá exemplos de grandes mentes que vieram de pequenas cidades, e diz que isso pode ter sido um bom estímulo, porque num meio pequeno é mais fácil destacarmo-nos, sermos elogiados pelo que fazemos bem, o tal feedback não é apenas no sentido de explicar o que devemos melhorar, mas é também para nos levar a continuar, a enfrentar o doloroso esforço da prática deliberada.
Os seres humanos não são tábuas rasas
Ora o que falamos aqui vem de encontro ao que ainda esta semana defendi na
conferência COIED e que é o factor de sermos todos diferentes, termos todos talentos únicos.
Como poderíamos ser todos diferentes e únicos por fora, e por dentro sermos totalmente iguais e moldáveis como nos é dito aqui?! Agora não podemos sobrestimar os talentos, e aqui em total acordo com Colvin. Precisamos verdadeiramente é de encontrar em nós o mais cedo possível aquilo que nos move, que nos faz correr incansavelmente. E é por isso que considero o exemplo de Benjamim Franklin totalmente diferente de Lazlo Polgar,
porque o que Franklin fez partiu totalmente da sua motivação intrínseca (Drive). A força de querer fazer, impeliu-o para o seu elemento e deu-lhe força para continuar a tentar, a desenvolver a escrita e a verbalização de ideias.
Slides da minha comunicação na COIED
Nada devia ser mais importante na Escola do que ajudar os alunos a encontrarem-se, a descobrirem aquilo que mais gostam de fazer e em que são verdadeiramente dotados. É claro que o caminho de lhes dar a conhecer o mundo é necessário, mas depois é preciso ir além disso, é preciso trabalhar individualmente com cada criança, e ajuda-la a encontrar-se. Não é possível ajudar crianças a serem geniais em turmas de 20 ou 30 alunos. Serão apenas medianos se não tiverem alguém ou pais que se dediquem de amor e alma à educação destes. Porque o talento, até pode estar lá, mas se não for ajudado a estruturar-se nunca florirá em força. E para isso temos de ser capazes de lhes proporcionar um ambiente próprio para tal. E aqui Colvin vai buscar os estudos de Mihaly Csikszentmihalyi da Universidade de Chicago, um dos mais importantes investigadores no campo da criatividade para nos dizer, a partir da sua investigação,
“why it's easier for some adolescents than others to sustain concentrated, effortful study, the core of deliberate practice and high achievement. The research focused on the students’ family environments, evaluating them on two dimensions, stimulation and support. A stimulating environment was one with lots of opportunities to learn and high academic expectations. A supportive environment was one with well-defined rules and jobs, without much arguing over who had to do what, and in which family members could rely on one another. The researchers classified family environments as stimulating or not and supportive or not, creating four possible combinations. Adolescents living in three of those combinations reported the typical low-interest, low-energy experience of studying. But in the fourth combination, the environment that was both stimulating and supportive, students were much more engaged, attentive and alert in their studying.” (p.174)
Ou seja, o talento tem de estar lá, mas precisa de ser explorado. É preciso ajudar a pessoa a conseguir chegar a ele. Assim como temos de ajudar uma criança a aprender a comer com o garfo, a aprender a andar de bicicleta, e isso requer tempo e atenção, também temos de a ajudar a aprender a encontrar-se. Para isso
não basta estimular a curiosidade, é preciso garantir apoio, muito apoio. Só o feedback constante, mas verdadeiro, pode levar a que uma mente jovem se consiga encontrar.