dezembro 15, 2011

Pacotes de Jogos Indie #4

Os Humble Indie Bundles são pacotes de jogos independentes, que são vendidos e distribuídos online, por um preço que é determinado pelo jogador que compra. Para além disso os jogos são sempre multi-plataforma (Win, Mac e Linux) e livres de DRM. Uma vez comprados, ficamos com acesso a download vitalício do jogo.


De cada compra reverte sempre uma parte para associações de caridade (Cruz Vermelha Americana, ou Child's Play), no momento em que compramos podemos definir como é feita a divisão do dinheiro que pagamos: a percentagem que vai para a caridade, a percentagem para a distribuição, e a percentagem para os autores dos jogos. Como estes pacotes contém normalmente jogos num valor muito acima da média do que cada jogador paga, os pacotes nunca são disponibilizados durante mais do que 15 dias. Neste 4º pacote temos quatro grandes jogos independentes, entre outros.

Super Meat Boy (2010) é um jogo plataformas controverso, desenvolvido por apenas duas pessoas, Edmund McMillen e Tommy Refenes numa autêntica maratona para cumprir o calendário imposto pela Microsoft. Leiam o magnifico post-mortem do jogo realizado pela Game Developer Magazine.


Bit.Trip Runner (2011), foi o vencedor este ano do Excellence in Visual Arts, no 14º Annual Independent Games Festival.

NightSky (2011) é um jogo muito interessante de fisica em plataformas, mas que prima sobretudo pela beleza atmosférica.

Shank (2010), é destes quatro o que apresenta uma estética menos indie, e mais próximo da grande indústria até porque é distribuido pela EA. Julgo que a arte está muito boa, e só por isso vale a pena jogar.

A arte vista pelo nosso cérebro

Enquanto visitava virtualmente a Capela Sistina pintada por Michelangelo (tecto e altar), lia o recente artigo que Jonah Lehrer publica no seu blog, How Does the Brain Perceive Art?. Um artigo no qual Lehrer trata um assunto previamente muito bem trabalhado por Paul Bloom, em How Pleasure Works: The New Science of Why We Like What We Like, mas que ganha aqui mais estudos de suporte científico do campo da neurociência. Basicamente, o que está aqui em causa fica sintetizado nesta frase de Lehrer.
"We only see the beauty because we are looking for it." 
Capela Sistina (Séc. XV), Vaticano

Neste caso da capela em que Michelangelo trabalhou com vários outros artistas na pintura da capela, é interessante como as pessoas falam normalmente apenas e só do tecto da capela, e esquecem todo o restante trabalho aí presente.

Tecto da Capela Sistina (1508-1512), frescos de Michelangelo

Ou seja, claramente que se perderem algum tempo a olhar para os frescos da capela vão perceber que existem diferenças entre os que são do Michelangelo e os que são de Botticelli, Rosselli, ou Perugino mas essas diferenças não têm de significar obrigatoriamente uma superioridade, antes marcam diferenças estilísticas.

Punição dos Rebeldes (1480-1482), fresco de Botticelli na Capela Sistina

O que acontece é que quando se constrói toda uma ideia à volta de um determinado artista, essa ideia tolda a capacidade de análise do receptor. No estudo de Huang da Universidade de Oxford foram analisadas imagens da ativação cerebral durante o visionamento de trabalhos de Rembrandt, sobre a variável de autenticidade. Ou seja eram apresentados quadros de Rembrandt e cópias, e alternadamente era dito às pessoas que os quadros reais eram cópias, e vice-versa.


A resposta da nossa capacidade analítica é muitíssimo interessante, confirmando os trabalhos de Paul Bloom,
Interestingly, there was no difference in orbitofrontal response when the stamp of authenticity was applied to a fake Rembrandt, as the brain area responded just as robustly. The quality of art seemed to be irrelevant. 
Ou seja, mais importante do que aquilo que estamos a ver, é aquilo que nós já sabemos sobre aquilo que estamos a ver. E é exatamente este fenómeno que permite à arte criar toda uma cultura, capaz de através do enaltecimento crítico subjugar e dominar massas. Consequentemente permite que uma tela com apenas 77cm x 53cm tenha visto o seu valor subir astronomicamente ao longo da sua existência. Falo da Mona Lisa (1503–1506) de Da Vinci que avaliado apenas em termos de seguro, em 1962, estaria na casa dos mil milhões de euros, em valores de hoje. Mas em termos reais o quadro vale mais do que isso porque passou de não vendável ao estado de não poder sequer ser emprestado entre museus, o que lhe atribui um valor incalculável.


Será que podemos atribuir isto à qualidade do trabalho de Da Vinci? Claramente que não, o que está aqui em causa, é toda uma componente misticista construída culturalmente na psique colectiva que é conferida pelo carácter da autenticidade. As massas quando entram na sala 6 do Louvre, não olham verdadeiramente para a arte do desenho e pintura de Da Vinci, mas antes apenas e só, conferem e associam aquela imagem a todas histórias anteriormente contadas sobre aquela tela. E a verdade é que todo o tempo que estão naquela sala, estão de costas voltadas para uma obra magnífica de Veronese, Les Noces de Cana, saindo da sala quase sem reparar em algo que é impossível de passar despercebido, dado o seu tamanho imponente (994cm x 677cm).

Les Noces de Cana, (1563) óleo de Veronese

Levando estes dados para outras áreas da arte, mais dedicadas ao entretenimento por exemplo, talvez isto explique a razão pela qual a grande indústria americana, não se importe de pegar em 30% do valor investido na criação de um filme ou jogo, para produzir publicidade e acções de marketing. Porque sabe que mais importante do que a qualidade da obra que estão a vender, é aquilo que as pessoas pensam em associação a essa obra.

FIRST 2011: Animação nos Videojogos

Na passada terça-feira passei pelo FIRST 2011, o 5º Encontro de Estudantes das Artes da Animação nas Caldas da Rainha, a convite do Fernando Galrito, para falar dos processos e técnicas de animação nos videojogos, incidindo também sobre a comparação entre geração de animação para filme e para ambiente interativo.


Participei numa mesa com o Marco Vale da Vortix Games Studios que fez também uma óptima apresentação sobre os trabalhos desenvolvidos por várias empresas nacionais por onde circulou, e dando claro depois uma maior ênfase aos últimos projectos desenvolvidos na Vortix Games Studio.
Ficam aqui os slides da minha apresentação.

dezembro 12, 2011

Workshop de Concept Art para Videojogos

O concept artist de vários videojogos nacionais produzidos por empresas como a RTS, a Ignite ou a BlitPop, vai dar um workshop sobre concept art, principalmente de cenário e ambiente, direccionado para pessoas que queiram seguir carreira em videojogos ou animação.



O Tiago Lobo Pimentel frequentou Design Visual no IADE, mas o que ele trará de melhor para um workshop deste género é a sua experiência acumulada ao longo dos vários anos no desenvolvimento de concept art específica para videojogos. Não existem muitos concept artists em Portugal, e menos ainda com experiência neste campo. Por isso será uma excelente oportunidade de contactar e aprender directamente com quem faz.


O workshop será dado em Lisboa (14, 21 e 28 de Janeiro 2012), e no Porto (17, 18 e 25 de Fevereiro 2012). Mais informação sobre datas, locais, e preços no site da EDIT.

Bastion (2011), no Chrome

Bastion (2011) um dos mais fortes candidatos a jogo do ano está desde há dois dias disponível para jogar no Browser. Depois de ter sido lançado para a XBox Live, é um dos melhores exemplos a fazer uso do novo sistema da Google, o Native Client.


Assim são duas excelentes surpresas, e enquanto jogo Bastion, não sei com qual mais me admiro se com o quão espantoso é a arte de Bastion, ou se ter tudo isto a correr num browser independentemente da máquina. É que Bastion saiu para a Xbox e depois disso saiu no Steam mas apenas para PC, e andava um pouco triste com o facto de ainda não ter podido experimentar esta pequena jóia. Por isso agora percebem porque fiquei tão contente com esta inovação da Google.


Para além da SuperGiant Games, criadora de Bastion, já aderiram ao Native Client a Square Enix, a Bungie e a Unity Technologies. Ainda há uns dois meses a Unity se juntava ao Flash, e o UDK prometia também exportar para Flash. Agora a Google parece querer mais. É todo um mundo novo, e será uma questão de tempo até termos o sonho da Google concretizado, a substituição do OS pelo Browser.


Bastion é uma verdadeira jóia em três domínios concretos: arte visual, storytelling e música. Os três elementos combinados criam uma experiência de excelência rara num videojogo. E por isso mesmo é que será muito provavelmente o jogo do ano. Um jogo vindo de um pequeno estúdio independente, com um pequeno personagem, a fazer lembrar um outro grande jogo independente Braid (2008).

A narração dinâmica é muito boa, não é a primeira vez que vejo, mas aqui está muito bem conseguida, tanto na voz escolhida como no modo como usa as nossas acções em tempo real, para assim criar ainda mais envolvimento. Depois no campo da arte visual, é uma delícia, estamos constantemente a ser surpreendidos por zonas carregadas de detalhe e cor, arriscaria dizer que Bastion sofre de excesso, e talvez por isso o classificaria como, manga barroca. A música vai no mesmo sentido, diria que sinto um pouco do sabor dos épicos dos anos 80, muito ritmada, concede à narração toda uma outra densidade e dá vida à aventura. Não se deixem levar pelo trailer, joguem, o que eu descrevo aqui acima só é possível experienciar jogando.

dezembro 10, 2011

Melancholia (2011), sem esperança, não há medo


Depois de ver o filme e ler o press release, fico contente de saber que Lars não pretende que o filme seja mais do que aquilo que nos mostra. O filme é bastante simples, e com pouco enquadramento é possível chegar à simplicidade do que está em questão. Existe aqui apenas uma pequena condição, é que o filme irá dar-se muito melhor com quem já sofreu algum dia de depressão. O nome do filme define ao que vimos, a Melancolia, e a raiz nasceu de uma afirmação do psicanalista de Lars,
"My analyst told me that melancholiacs will usually be more level-headed than ordinary people in a disastrous situation, partly because they can say: 'What did I tell you? But also because they have nothing to lose."
Algo que me faz recuar no tempo, lembro-me de ter afixado na parede do meu quarto uma frase que tinha retirado do cd Bloody Kisses (1993) dos Type O Negative,

No Hope = No Fear

E é isso que o filme nos trás, de forma singela e plasticamente perfeita. Uma das irmãs, Justine (Kirsten Dunst), sofre de uma profunda depressão, ou estado de melancolia, enquanto a outra irmã, Claire (Charlotte Gainsbourg), representa o contra-ponto, a regularidade, e a aceitação da vida. Assim numa primeira parte vemos o desmoronar de Justine, enquanto Claire tenta dar suporte à sua irmã, no enfrentar da normalidade, dos rituais da vida. Na segunda parte, com a aproximação do fim do mundo, os papéis invertem-se, e a melancolia torna-se mais forte, e é ela agora quem dá suporte a quem desespera.


Lars assume claramente que o personagem de Justine é decalcado da sua pessoa, o que não é difícil de perceber, enquanto Claire é supostamente a encarnação da pessoa normal, sem problemas do foro depressivo. Lars não se cansa de dizer que o filme é menos árido que Antichrist (2009), que é muito mais polido, o que é verdade. Melancholia é todo ele um objeto que se dá sem esforço, sem complexidade, que não se esconde por detrás de incertezas de sentido. Mas é apenas à primeira impressão, porque quando mergulhamos em profundidade no tema, damo-nos conta que Lars nunca tinha utilizado um tema tão limite, porque não existe limite para além deste.

If it could happen in an instant, the idea appeals to me. As Justine says: Life is evil, right? And life is a wicked idea. God may have had fun at creation, but he didn't really think things through... So if the world ended and all the suffering and longing disappeared in a flash, I'm likely to press the button myself. If nobody would be in pain. Then people might say: how nasty, what about all the lives that wouldn't be lived? But I can't help seeing it all as a mean streak.
Nem mais. E agora podemos perceber muito melhor o que se passou na conferência em Cannes.


Em termos estilísticos, e à semelhança do que já acontecia em Antichrist, temos um objeto tecnicamente muito perfeito. Embora possa dizer desde já, que de tudo o que menos gostei foi do constante tremer da câmara, percebo a necessidade de contraste com o classicismo do resto da representação, mas acho que contrasta em demasia. Por vezes só me apetecia sorver o que está dentro do enquadramento e não ser incomodado com as tremuras, mas também percebo que talvez sem elas teríamos voado para outras paragens que não eram as do interesse deste filme. A magnífica imagem do filme ficou a cargo de Manuel Alberto Claro que fez uso de uma Arri Alexa e uma Phantom, e os efeitos visuais foram desenvolvidos pela polaca Platige Image. No campo da música, é muito interessante que apesar de ser o filme de Lars mais musicado, é-o fazendo uso quase apenas e só do prelúdio de Tristan und Isolde (1865) de Richard Wagner, que serve para engrandecer e embelezar, carregando em força no classicismo.


O filme foi feito com recurso a muito improviso, e isso está em total sintonia com a câmara ao ombro, sente-se por vezes que os atores voam livremente, recebem apenas algumas instruções prévias aos takes e depois são lançados na personagem. Ainda bem que a Penélope Cruz não pôde fazer o filme, e ficou para a Kirsten Dunst. Lars refere que ficou admirado com o seu largo espectro de nuances, e isso pode ser comprovado neste filme.


Em termos de proximidades, senti durante a primeira parte uma pequena colagem a Festen (1998) do seu colega Thomas Vinterberg, mas sem dúvida que a grande colagem aqui vai para Solaris (1972) de Tarkovsky. Apesar do contraste que falei acima, o classicismo apresentado, a música, o ritmo, as paisagens verdes e abertas, o algo maior (ou ausente) que a humanidade, segue uma veia poética muito próxima de Tarkovsky.

Composição Real + 3d, pela Big Lazy Robot

A espanhola Big Lazy Robot acaba de lançar mais um trabalho na rede, o trailer para a sua curta Keloid (TBC), com uma qualidade assombrosa. A história é baseada num experimento de investigação que roça a FC, "A.I. Box" (2002) de Eliezer Yudkowsky, e é de si já bastante impressionante.


Mas é o trabalho de 3d, e acima de tudo de composição entre real e 3d, que mais impressiona aqui. A BLR (constituída por Hugo Bermúdez, Juan Civera, David Cordero, Alex Martín, JJ Palomo e Leopoldo Palomo) tem já uma vasta experiência com outros trabalhos neste campo. Para além de terem já participado nos efeitos visuais de um filme de grande orçamento de Hollywood,  Transformers (2007), um dos trabalhos que mais recordo deles é o do robô que fazia parkour num anúncio da Nike, Runner (2009). Vejam aqui abaixo, e depois vale a pena ver também o making of desse anúncio.



Depois disso realizaram os efeitos visuais para Gift (2010), realizado por Carl E. Rinsch para a Philips, que me parece ter servido de forte influência para avançarem com a sua própria curta. Como ainda não nos dão a ver a curta nova completa, aproveitem para ver este Gift, que se passa também na Rússia e apresenta toda uma atmosfera FC muito interessante.



Vendo Gift, e vendo o trailer de Keloid, percebemos que existem aqui muitas aproximações, tanto estéticas, como geográficas, como até de conteúdo. Não sabemos se a curta sairá ainda em 2011 ou só em 2012.



Trailer: Keloid (2011)

entrevista ao Nós da UMinho

Este mês de Dezembro aparece no Nós, Jornal On-line da Uminho uma entrevista minha a propósito do campo de estudos dos videojogos na academia. Mas mais do que isso a entrevista reflete sobre o trabalho que tenho andado a fazer sobre a história nacional dos videojogos e que espero ver publicada no ano de 2012. Ficam aqui alguns excertos,


Sobre a formação superior
A formação superior permite melhorar talentos inatos, dominar várias áreas, despertar a inovação e o empreendedorismo, gerar empregos; enfim, é aprender a aprender, ganhar bagagem cultural com professores e colegas, construir um novo mundo para melhor chegar às pessoas.
Sobre a história nacional,
Mal se sabe o que foi feito nos videojogos em Portugal e as pessoas não se conhecem. Podemos ter uma indústria mais sedimentada ao reunir a história e colocar todos no mesmo barco, mostrar que, juntos, podemos fazer melhor. Ao darmos conta deste potencial e do que já se conseguiu, perceberemos que é possível ir mais além.

Leiam a entrevista completa.

dezembro 09, 2011

Musicophilia (2007), música e consciência

Musicophilia (2007) de Oliver Sacks fala-nos sobre o modo como o nosso cérebro reage à música, através da descrição de vários casos patológicos analisados à luz da neurociência. O mais interessante desta leitura foi que o livro gerou um impacto em mim muito para além da compreensão do fenómeno perceptivo musical. Este livro abriu-me toda uma nova forma de nos compreendermos a nós mesmos, mais concretamente de compreender o que somos, de poder pela primeira vez perceber do que falamos quando falamos de consciência.


Musicophilia é um livro carregado de histórias de pacientes que nos ilumina sobre o assunto mas que não traz conclusões, sumários, nem síntese. Sacks dá-nos a ver o sumo e pede-nos que sejamos nós a tirar ilações. Concordo e discordo de Kakutani do NYTimes quando diz que um trabalho em profundidade de edição poderia ter ajudado, porque se sinto que segue um trajeto demasiado descritivo das patologias, percebo que o assunto em questão é complexo e difícil, ou impossível, de explicar com o conhecimento que possuímos atualmente.


A história que abre o livro é das mais impressionantes e é aquela que me atira diretamente para a discussão sobre o que é a consciência. Tony Cicoria é um cirurgião que foi atingido por um relâmpago tendo sofrido alterações de percepção. Ou seja, a partir dessa altura começou a ouvir música dentro da sua cabeça. Não quando queria ou imaginava, mas como ele descreve de forma quase “possuída”, e em torrentes, a tal ponto que apesar de nunca ter estudado música começou a aprender piano, e ao fim de algum tempo começou a compor a partir daquilo que ouvia.

Visualização de Musicophilia realizada por Austin Kleon

O que acontece neste exemplo é que sem uma perspectiva científica do assunto, sem uma abordagem neurológica, poderíamos ser levados por caminhos da religião, de forças do oculto, ou de forças do além. Imaginem o que é estarem a tentar fazer alguma coisa, ou a tentar dormir e a música estar a tocar dentro da vossa cabeça sem parar, sem terem qualquer controlo sobre a mesma. Depois, todo o lado romântico da música, da inspiração e das musas contribui ainda mais para que possamos voar em busca de valores espirituais, dada a não-representabilidade da música, dada a sua existência não material. Cicoria a uma certa altura chega a pensar que poderia estar conectado ao céu, ter uma ligação telefónica direta com Deus.

E é exatamente por isto que eu me comecei a questionar sobre o valor da consciência. É impossível não pensar em Damásio, mas Damásio nos seus trabalhos literários, apesar de ser um neurocientista, teve sempre uma certa inclinação para colocar a consciência num certo pedestal, num lugar imaculado, longe da nossa compreensão. E se é verdade que ainda hoje não conseguimos perceber como se forma, como emerge a consciência dentro de nós, não é menos verdade que sabemos que ela não é nenhum fantasma ou espírito que paira dentro de nós, ou dentro do nosso cérebro.

Julgo que Sacks ao apresentar os casos desta forma clínica, tão despegado da tentativa de lhes dar sentido, acabou por nos dar a ver aquilo de que é feita a nossa consciência, no nosso cérebro. Ou seja, algo bastante mecânico que sofre com cada ajuste neuronal operado na camada física. Se levamos uma pancada, um raio, um choque, ou se somos atacados por uma qualquer doença degenerativa do cérebro, como o Alzheimer, ou se sofremos um acidente vascular, o nosso cérebro altera-se fisicamente. E essa alteração física trás sempre associada, de modo inevitável, alterações do foro da consciência. Ora se assim é, restam poucas dúvidas de que aquilo que somos, aquilo que identificamos como a nossa pessoa, a nossa consciência, não é mais do que uma combinação bem intrincada da informação presente no nosso cérebro e das inter-relações que se sucedem entre essa informação.


No fundo, somos tecnologia construída a partir de tecidos orgânicos, que evoluíram ao longo de milénios de anos permitindo que a complexidade de armazenamento de informação na nossa cabeça se complexificasse a um tal ponto levando a que esta própria complexidade fizesse emergir em cada um de nós, personalidades com traços próprios. Mas no fundo não passamos de máquinas biológicas com data de validade inscrita à nascença. Aliás nesse sentido, se algum dia viermos a perceber o que faz despoletar a emergência do ser no nosso cérebro, poderemos simular isso em computadores, e a partir daí seremos obrigados a respeitá-los tanto, como respeitamos hoje qualquer outro ser humano. Talvez Kubrick e Spielberg (AI, 2001), tivessem razão, e daqui a 10 mil anos já não existiremos por cá enquanto máquinas biológicas, mas antes como resquícios esquecidos em pequenos robôs.

Voltando à música e a Sacks, depois de apresentados mais de uma dezena de casos, acaba por fechar dando a música como algo que continua a fugir à compreensão científica. Aliás talvez por isso mesmo tantos cientistas tenham sempre evitado discutir o assunto. Sacks refere que William James por exemplo se referiu parcamente ao fenómeno, e quando o fez foi para dizer que esta não tinha qualquer utilidade biológica. Que Darwin se desinteressou totalmente pela música a partir do momento em que começou a teorizar sobre os processos de seleção natural. Que Freud terá dito que o seu lado racional o impedia de ser afectado por algo que este não conseguia compreender porque é que o afectava. E ainda Steven Pinker que se refere à música como um “acidente evolucionário”, uma espécie de “doce auditivo” que explora recursos que inicialmente teriam evoluído para dar reposta à fala.

Sacks responde a todos eles que é muito fácil tornarmo-nos seres obcecados com as nossas ideias e atividades, com as nossas teorizações sobre o funcionamento do mundo, e pararmos de reparar na beleza de que é feito o mundo à nossa volta. Não é por acaso que Sacks acaba por terminar o livro defendendo a musicoterapia, dizendo que a música pode ser muito útil em termos terapêuticos, que esta é capaz de levar as pessoas a aceder a determinadas partes do cérebro aonde a consciência sozinha não consegue chegar.