Musicophilia
(2007) de Oliver Sacks fala-nos sobre o modo como o nosso cérebro reage à música, através da descrição
de vários casos patológicos analisados à luz da neurociência. O mais
interessante desta leitura foi que o livro gerou um impacto em mim
muito para além da compreensão do fenómeno perceptivo musical. Este livro abriu-me toda uma nova forma de nos compreendermos a nós mesmos, mais
concretamente de compreender o que somos, de poder pela primeira vez perceber
do que falamos quando falamos de consciência.
Musicophilia é um livro carregado de histórias de pacientes que nos ilumina sobre o
assunto mas que não traz conclusões, sumários, nem síntese. Sacks dá-nos a ver
o sumo e pede-nos que sejamos nós a tirar ilações. Concordo e discordo de
Kakutani do NYTimes
quando diz que um trabalho em profundidade de edição poderia ter ajudado, porque se sinto que segue um trajeto demasiado descritivo das patologias,
percebo que o assunto em questão é complexo e difícil, ou impossível, de
explicar com o conhecimento que possuímos atualmente.
A história que abre o livro é das mais impressionantes e é aquela que me atira diretamente
para a discussão sobre o que é a consciência. Tony Cicoria é um cirurgião que
foi atingido por um relâmpago tendo sofrido alterações de percepção. Ou seja, a
partir dessa altura começou a ouvir música dentro da sua cabeça. Não quando
queria ou imaginava, mas como ele descreve de forma quase “possuída”, e em
torrentes, a tal ponto que apesar de nunca ter estudado música começou a
aprender piano, e ao fim de algum tempo começou a compor a partir daquilo que ouvia.
O que acontece neste exemplo é que sem uma perspectiva científica do assunto, sem
uma abordagem neurológica, poderíamos ser levados por caminhos da religião, de
forças do oculto, ou de forças do além. Imaginem o que é estarem a tentar fazer
alguma coisa, ou a tentar dormir e a música estar a tocar dentro da vossa
cabeça sem parar, sem terem qualquer controlo sobre a mesma. Depois, todo o lado
romântico da música, da inspiração e das musas contribui ainda mais para que
possamos voar em busca de valores espirituais, dada a não-representabilidade da
música, dada a sua existência não material. Cicoria a uma certa altura chega a
pensar que poderia estar conectado ao céu, ter uma ligação telefónica direta
com Deus.
E é exatamente por isto que eu me comecei a questionar sobre o valor da consciência. É
impossível não pensar em Damásio, mas Damásio nos seus trabalhos literários,
apesar de ser um neurocientista, teve sempre uma certa inclinação para colocar
a consciência num certo pedestal, num lugar imaculado, longe da nossa
compreensão. E se é verdade que ainda hoje não conseguimos perceber como se
forma, como emerge a consciência dentro de nós, não é menos verdade que sabemos
que ela não é nenhum fantasma ou espírito que paira dentro de nós, ou dentro do
nosso cérebro.
Julgo que Sacks ao apresentar os casos desta forma clínica, tão despegado da tentativa
de lhes dar sentido, acabou por nos dar a ver aquilo de que é feita a nossa
consciência, no nosso cérebro. Ou seja, algo bastante mecânico que sofre com
cada ajuste neuronal operado na camada física. Se levamos uma pancada, um raio,
um choque, ou se somos atacados por uma qualquer doença degenerativa do
cérebro, como o Alzheimer, ou se sofremos um acidente vascular, o nosso cérebro
altera-se fisicamente. E essa alteração física trás sempre associada, de modo
inevitável, alterações do foro da consciência. Ora se assim é, restam poucas
dúvidas de que aquilo que somos, aquilo que identificamos como a nossa pessoa,
a nossa consciência, não é mais do que uma combinação bem intrincada da
informação presente no nosso cérebro e das inter-relações que se sucedem entre
essa informação.
No fundo, somos tecnologia construída a partir de tecidos orgânicos, que evoluíram
ao longo de milénios de anos permitindo que a complexidade de armazenamento de
informação na nossa cabeça se complexificasse a um tal ponto levando a que esta
própria complexidade fizesse emergir em cada um de nós, personalidades com
traços próprios. Mas no fundo não passamos de máquinas biológicas com data de
validade inscrita à nascença. Aliás nesse sentido, se algum dia viermos a
perceber o que faz despoletar a emergência do ser no nosso cérebro, poderemos simular
isso em computadores, e a partir daí seremos obrigados a respeitá-los tanto,
como respeitamos hoje qualquer outro ser humano. Talvez Kubrick e
Spielberg (
AI, 2001), tivessem razão, e daqui a 10 mil anos já não existiremos
por cá enquanto máquinas biológicas, mas antes como resquícios esquecidos em
pequenos robôs.
Voltando à música e a Sacks, depois de apresentados mais de uma dezena de casos, acaba
por fechar dando a música como algo que continua a fugir à compreensão
científica. Aliás talvez por isso mesmo tantos cientistas tenham sempre evitado
discutir o assunto. Sacks refere que William James por exemplo se referiu
parcamente ao fenómeno, e quando o fez foi para dizer que esta não tinha
qualquer utilidade biológica. Que Darwin se desinteressou totalmente pela
música a partir do momento em que começou a teorizar sobre os processos de seleção
natural. Que Freud terá dito que o seu lado racional o impedia de ser afectado
por algo que este não conseguia compreender porque é que o afectava. E ainda
Steven Pinker que se refere à música como um “acidente evolucionário”, uma
espécie de “doce auditivo” que explora recursos que inicialmente teriam
evoluído para dar reposta à fala.
Sacks
responde a todos eles que é muito fácil tornarmo-nos seres obcecados com as
nossas ideias e atividades, com as nossas teorizações sobre o funcionamento do
mundo, e pararmos de reparar na beleza de que é feito o mundo à nossa volta.
Não é por acaso que Sacks acaba por terminar o livro defendendo a
musicoterapia, dizendo que a música pode ser muito útil em termos terapêuticos, que esta é capaz de levar as pessoas a aceder a determinadas partes do cérebro aonde a
consciência sozinha não consegue chegar.