maio 28, 2019

Mitos da Investigação Fundamental e Aplicada na Europa e Portugal

Existe uma ideia, recente em Portugal, de que as Universidades devem ser os motores da inovação do país, que devem ser as responsáveis por toda a investigação nacional, desenvolvendo-se ali o futuro do tecido industrial nacional. Ora isto é uma ideia sem pés nem cabeça. Diga-se que para isto muito contribuíram as faculdades de Engenharia, do IST à Universidade de Aveiro, ao desenvolverem modelos cada vez mais próximos da indústria, ou seja, aplicados, mas que estão longe de poderem servir de modelos a aplicar a toda a Universidade Portuguesa como modus operandi. Antes de explicar porquê, vou apresentar alguns dados que desmontam algumas ideias feitas, ou mitos.

Apenas 6% do investimento em investigação nas universidades americanas provem da indústria, a maioria (60%) vem do estado, e outra fatia vem das propinas dos alunos (25%).

Nos EUA a investigação nas Universidades é sustentada pelo Estado, como se vê neste gráfico acima, apenas 6% do investimento em investigação feita nas Universidades provém da indústria. E isto inclui universidades privadas como MIT, Stanford, etc. Ou seja, a ideia de que a Universidade na Europa, e a portuguesa, deveriam ser auto-financiadas por recurso a investigação feita com as empresas, porque é assim que se faz nos EUA, é um Mito.

O investimento americano total em investigação é maioritariamente feito pela indústria. o que contrasta desde logo com o gráfico acima, demonstrando que a investigação nos EUA se faz nas empresas, não nas universidades.

Olhando para a R&D americana, o seu verdadeiro pulmão está na indústria. É verdade que é ela quem mais paga para que se faça investigação, mas ela não paga às Universidades para a fazer. Essa investigação é feita nas empresas. Na HP, IBM, GM, Google, Apple, etc. etc. Porquê? Porque estamos a falar de uma investigação diferente, daquela que deve ser feita nas Universidades.

Repare-se ainda como na Europa, o programa H2020 (2014-2020) mudou completamente a agulha do investimento, pondo muito mais dinheiro nas empresas, assumindo-se cada vez mais as empresas como coordenadoras de projetos, ao contrário do que acontecia nos programas quadro anteriores. Ou seja, procura-se o modelo americano, mas apenas pela divisão dos dinheiro, já que quando olhamos ao gráfico abaixo, percebemos que a essência não mudou, a quantidade de investimento na Europa já foi ultrapassada pela China.  Este gráfico, mostra que temos na Europa ainda a ideia de que a investigação deve vir das universidades, porque aí pode sair a custo zero para as empresas. Mas o que isso está a fazer é que a Europa continua a investir muito pouco em R&D e está a ficar cada vez mais atrasada no desenvolvimento industrial.

O investimento europeu global em investigação continua estagnado abaixo dos 2%, quando a meta dos 3% vem sendo apregoada há quase 20 anos. Entretanto fomos ultrapassados pela China.

Mas reparemos agora mais em concreto em Portugal, e voltemos à questão de partida. A razão pela qual não acredito na investigação de um país alicerçada exclusivamente na Universidade é porque a universidade não é uma empresa, e a investigação que uma precisa é diferente da que a outra precisa. A universidade não pode fazer-se apenas de Engenharia ou Design, ou seja Investigação Aplicada, precisa, e muito, de Investigação Fundamental. Ora as empresas não fazem, nem querem saber da investigação fundamental, aquela em que se discute se A deve ser mesmo A, ou se podia ser B. A indústria só quer saber se A dá dinheiro ou não, é indiferente definir A como A ou como B, desde que funcione. Mas ambos os domínios são necessários, pois sem os avanços no aprofundamento dos fundamentos da ciência, a componente aplicada acaba por estagnar.

Investimento em Investigação Aplicada (R&D) por sector na Europa, EUA, China e Rússia. Repare-se como Portugal apresenta quase uma igualdade de investimento entre as Universidades e Empresas, e como isso não é seguido em mais país nenhum, a não ser a Sérvia e Macedónia.

Ora o problema é que Portugal não teve criação de suficiente tecido industrial, e por isso não tem indústria para sustentar a investigação aplicada. Por outro lado, se começarmos a colocar o esforço de toda essa investigação aplicada nas nossas universidades, corremos o risco de cada vez mais nos limitarmos a aplicar a ciência fundamental que as Universidades exteriores criam. Isto foi bastante visível na última abertura de concursos investigação da FCT que deu primazia a projetos não pela componente científica mas pelo seu impacto socioeconómico. E podemos até perceber que não tendo as condições dos outros países, a Universidade deve ajudar, como têm feito e bem as Faculdades e Departamentos de Engenharia e Design, mas têm de haver avanços claros por parte da indústria nacional sem depender das universidades. As universidades podem ser chamadas a contribuir para a ideação e inovação, mas não devem continuar a servir a implementação, como vem acontecendo, por falta de recursos especializados na indústria.

Por outro lado, esta discussão é maior que Portugal, já que ela surge muito colada aos atuais modelos tecnológicos, e Portugal por acordar tão tarde apanhou o barco que encontrou no cais. Ou seja, a Engenharia e o Design assumiram o controlo e o poder, são estas que regulam o grande desenvolvimento mundial tecnológico, e oferecem os maiores avanços técnicos e industriais, mas, e este mas é enorme, elas vivem de todas as restantes ciências, tanto da vida, como sociais, e mesmo das artes. São as inovações na Física, na Biologia, na Psicologia, na Economia, na História ou nas Artes que permitem à Engenharia e Design estarem continuamente a brilhar, pegando no conhecimento em bruto e encontrado formas de o aplicar tornando o conhecimento teórico em práticas úteis à sociedade. Por isso precisamos de Universidades fortes a produzir ciência fundamental e não ciência aplicada. Porque não podemos esquecer que sem uma Universidade forte em ciências e artes fundamentais não só não teremos inovação para alimentar a engenharia e o design, como não conseguiremos criar os melhores recursos humanos que sustentem o desenvolvimento da nossa indústria.


Ligações para os dados usados:
R & D expenditure, EC Europe, 2019
Historical Trends in Federal R&D, 2019

maio 25, 2019

"Mindfoolness" (2019)

Trago uma curta estreada esta semana na rede que apresenta uma elevada qualidade técnica associada a um twist narrativo com capacidade para impactar fortemente o espectador. Não sendo recomendado a menores ou pessoas mais sensíveis, tem potencial para nos lançar em múltiplas direções de questionamento, desde o valor da arte ao sentido da vida até algumas práticas que procuram oferecer-lhe respostas. "Mindfoolness" (2019) foi criado por um grupo de estudantes e ex-estudantes — Inês Graça, Joana Beja, João Garcia Neto, Rúben Duarte, Ricardo Mendes — do DeCA/UA, e venceu esta mesma semana o grande prémio do festival Made in DeCA 2019.


O trabalho eleva-se no campo do audiovisual, com nota máxima, nas componentes de Realização e Cinematografia, apresentando uma Montagem e Sonorização boas, mas de menor qualidade, sendo tudo envolvido por uma história original e minimal, trabalhada por meio de uma narrativa no formato de thriller que mantém o espectador colado até ao final do genérico.

Chamo a atenção para a composição de cena e enquadramento, nomeadamente o modo como operam em sintonia com a narrativa. A composição do espaço e objetos comunicam de forma muito eficiente aquilo que a trama pretende, sendo apresentados por meio de um enquadramento ultra-largo que trabalha bem todo esse espaço e labora de forma bastante hábil toda a encenação que mostra e esconde o foco da nossa atenção. Criado o impacto estético, a história desenvolve-se de forma fluída, quase sem necessidade de se esforçar, até que toma as rédeas do filme, tira o tapete ao espectador e obriga-o, de um momento para o outro, a mudar o modelo mental, passando da apreciação estética para a resolução do nó narrativo.

"Mindfoolness" (2019) de Inês Graça, Joana Beja, João Garcia Neto, Rúben Duarte, Ricardo Mendes

maio 21, 2019

Quando é necessário dizer Não

Há cerca de um mês fui convidado para realizar uma palestra no evento Pint of Science que decorre este ano pela segunda vez em Portugal, em várias cidades, incluindo Aveiro. Aquando do convite fiz alguma pesquisa sobre a organização após o que aceitei participar. Entretanto fui confrontado com o facto do evento, organizado na cidade do Porto, estar a promover palestras que defendem o Reiki como terapêutica de tratamento do cancro (ver programa do Porto e vídeo). Este cenário colocou-me face a um dilema: ir ao evento significaria pactuar com aquilo que se promove nessa palestra; não ir, significava não cumprir com a palavra que tinha dado. Após alguma reflexão e face a nenhuma alteração de programa, apesar dos alertas realizados pela comunidade nacional, decidi cancelar a minha participação. Deixo algumas palavras que sustentam a minha atitude, sabendo que não repararão a minha falta, ainda assim espero que contribuam para uma discussão que é preciso continuar a fazer.


A ciência é um domínio frágil, os seus praticantes operam numa base de humildade permanente face ao conhecimento, aceitando por isso o questionamento constante dos seus princípios. Juntamente com isto, atravessamos toda uma era complexa de enorme e facilitado acesso ao conhecimento que em vez de tornar a sociedade mais informada e capaz de lidar com a ciência, tornou-a mais rude e desconfiada, nomeadamente de toda e qualquer fonte de autoridade. "Se tenho acesso ao conhecimento todo por via da internet, não preciso de especialistas para nada, posso saber o mesmo que eles sabem". "Basta-me umas horas de pesquisa e sei tanto como o meu cardiologista, ou como o meu advogado, ou como o especialista em aquecimento global". No fundo, temos na nossa frente aquilo que os teóricos do pós-modernismo vinham defendendo há décadas: uma sociedade de valores e princípios altamente fragmentada, descrente de qualquer autoridade ou meta-narrativas, vivendo numa realidade líquida em contínua e acelerada mutação.

Tudo isto sendo problemático, não o seria tanto se não fosse usado e abusado por políticos sem escrúpulos. Personagens como Trump, Bolsonaro ou os líderes da extrema-direita europeia tornaram-se populares graças a uma atitude de total desrespeito para com toda e qualquer autoridade instituída. Usam o princípio de que não existem certezas, de que existem cientistas que publicaram um ou outro artigo com reservas como se isso fosse suficiente, ou sequer evidência de algo, para atirar mantos de total descredibilização sobre todos os consensos da Ciência, para a coberto dos mesmos poderem promover as suas próprias agendas ideológicas, mas principalmente económicas.


E ainda assim, poderíamos enquanto membros da comunidade, desejar não nos imiscuir da política, que é um meio complexo, feito de ataques continuados, muitos deles pouco refletidos e menos ainda verdadeiramente sentidos, e que por isso mesmo não valeriam o nosso tempo. Contudo, o problema é grave, porque não se trata apenas de políticos à procura de benefício próprio, estas suas agendas têm impactos brutais sobre a sociedade, e até sobre o próprio planeta. Temos hoje milhares de pais a porem em risco milhares de crianças ao não vacinarem e ao apelarem à não vacinação. Temos milhares de pessoas que se colocam em risco e colocam outros em risco ao apelarem ao não tratamento químico de cancros. Temos milhares de pessoas que defendem que vivemos num planeta “plano”, mas pior, defendendo a inexistência de qualquer aquecimento global, usando a simples ideia de que tudo é questionável, e que a ciência não tem resposta para tudo. Claramente que a ciência não tem resposta, nem pretende ter, para tudo, mas as respostas que tem precisam de ser defendidas, e não colocadas à mercê dos ataques de quem não está minimamente habilitado ou sequer interessado na ciência. Assumir que tudo é igual, e todos têm direito à palavra com o mesmo grau de autoridade, deixou de ser uma condição aceitável, correndo o risco de tudo perdermos.

Temos que promover a ciência, temos de a defender, e isso implica tomar posições que por vezes são difíceis. Neste caso, os organizadores do evento no Porto preferiram o caminho mais fácil, defender as escolhas que tinham feito inicialmente, obrigando a que os investigadores ficassem com a escolha mais difícil, dizer que Não.


Notas Adicionais:
A tomada desta decisão foi feita no âmbito de um diálogo aberto com os organizadores do evento na cidade de Aveiro, que acabaram por compreender e aceitar a minha posição, manifestando a sua impossibilidade de atuação dada a autonomia que cada cidade organizadora do evento detém.

Do meu lado, esclarecer ainda que esta minha posição não deve ser lida como fundamentalismo científico, algo contra o qual tenho manifestado por várias vezes a minha posição, como se pode ver no texto que aqui publiquei no final de abril, "SciMed e a humildade em ciência".


Ler mais:
A Ciência não é Crença, Virtual Illusion
O Reiki funciona?, FFMS
Carta aberta à Pint of Science Portugal, Comunidade Céptica Portuguesa

maio 19, 2019

La Storia (1974)

Adorei o tratamento do interior da personagem principal, Ida, principalmente as primeiras 100 páginas, é delicioso. Assim como, mais a frente, tudo aquilo que envolve Ida e os filhos. Ela, eles, e a suas relações, seus medos e anseios, assim como Roma e os mundos criados pela imaginação deles, é tudo soberbo, sublime. Morante tem uma capacidade extraordinária para metaforizar os sentires, que são depois apresentados por uma escrita elegante, de elevada elaboração sem nunca se deixar levar em excessos de forma. Se tivesse permanecido no nível dessas primeiras 100 páginas, teria entrado diretamente para a minha lista de livros de sempre, o problema é que à medida que vamos avançando os problemas vão-se avolumando, muito por força das idiossincrasias da autora, e que passo listar:



— Inúmeras descrições de sonhos que não acrescentam nada ao relato. Uma abordagem claramente colada às ideias muito em voga da psicanálise dos anos 1970.
— Personagens com capacidades supranaturais, como falar com cães, sem qualquer razão nem motivação.
— Personagens que são aprofundadas e imensamente alongadas, mas que nada acrescentam à narração.

E a mais grave:

— Apresentação da epilepsia como algo maléfico.

Sente-se uma escritora demasiado presa a ideias dos anos 1970, o que não será alheio ao imenso sucesso do livro em Itália, tendo vendido mais de meio milhão de exemplares quando saiu, apesar da crítica não lhe ter sido favorável. Umberto Eco diria mesmo: "Talvez um dia venhamos a perceber que o romance aparentemente popular, era na verdade uma obra culta, muito meta-literária, quem sabe..." Apesar da crítica desfavorável, e do quase esquecimento da obra, ela marca presença na conceituada lista de 100 Obras do grupo do livro norueguês, criada em 2002.

Do meu lado, acredito que a popularidade do livro se deve a dois elementos: um histórico e sentimental; o outro de posicionamento político. O livro retrata a Itália no período do fascismo seguido do nazismo, entregando uma visão do interior de Roma em tempo de guerra e ocupação, que funciona como registo e ao mesmo tempo, pela forma como está escrito, parece transportar-nos para dentro dessa altura com imensa força. Por outro lado, Morante apresenta uma crítica política devastadora contra o capitalismo mas também contra o comunismo, parecendo colocar-se ao centro, que como sabemos é a área mais popular na política. Por causa disso acabaria por afastar dela alguns dos conceituados artistas italianos dessa época (ex. Pasolini), contudo eu não diria que Morante defende um centro político, apesar de algumas críticas apresentadas à anarquia, ao longo de todo o livro, são várias as vezes em que o movimento surge como o último reduto possível para a autora.

Libertação de Roma em 1944 pelos Aliados

Morante teve uma vida algo atribulada, sempre mergulhada em depressões, com vários suicídios no seu caminho, tendo ela inclusive tentado pôr fim à sua vida já na reta final. Deixo um excerto de uma carta escrita ao marido Alberto Moravia:
"Se tu soubesses a desordem da minha mente, que mal-grado tudo consigo esconder, e a incerteza que tenho a cada momento, a impressão de esterilidade, a que se junta a paixão deveras estranha e quase inaudita que em diferentes formas me calhou, terias ainda mais pena de mim do que já tens.
Não penses que não te sou grata pela maneira como me tratas e da qual me recordarei sempre. Estou muito mal, não sei se conseguirei tornar a encontrar um equilíbrio em alguma coisa. Queria poder trabalhar verdadeiramente, ou amar verdadeiramente, e seria feliz em dar a alguém ou a alguma coisa tudo aquilo que posso, contanto que a minha vida se cumprisse finalmente e encontrasse descanso no coração."
(fonte)

Ler mais:
Nazismo: ouro e livros, VI

maio 18, 2019

O que fazer da Curiosidade?

"Curiosity" permitiu-me conhecer melhor Alberto Manguel, e se numa primeira fase do livro criou em mim enorme admiração pela sua pessoa, à medida que fui avançando na leitura essa admiração foi-se desvanecendo. No final, a maior conclusão que tiro não tem nada de novo, ler muito não chega, ler muito é essencial, mas é preciso aprender a fazer algo com esse muito que se lê. Manguel leu toda a sua vida, é um dos maiores connaisseurs internacionais do cânone literário, mas na hora de criar obra não vai além da compilação daquilo que os outros fizeram. E talvez o maior problema desta obra tenha sido o ter acreditado que podia ir além, que podia criar um género de escrita novo, sair do seu domínio de Editor.


Em "Curiosity" Manguel recorre a uma mescla entre memórias da sua vida e as obras do cânone ocidental que faz desfilar na nossa frente por meio dos eventos da "Divina Comédia" (1320) de Dante. Posso dizer que nas primeiras 100 páginas funciona brilhantemente. Manguel sintetiza imensas visões literárias ao longo dos últimos 2500 anos sobre o que é a curiosidade e a sua importância para a nossa espécie. Contudo depois perde o foco, mesmo utilizando Dante e Virgilio para o guiar no resto da jornada, dedica as restantes 300 páginas a simplesmente vaguear pela literatura mundial, pescando ideias soltas aqui e ali, sem qualquer objeto ou motivo.

Manguel é dono de uma impressionante biblioteca com mais de 30 000 volumes, que tem transportado consigo ao longo da sua vida pelos vários países em que viveu — Israel, Argentina, Canada e França.

No final fica uma enorme sensação de tempo perdido. Claramente é interessante avaliar o que foi dito na literatura sobre um tema, mas é preciso dar sentido a tudo isso, e é aí que Manguel falha. Mais ainda porque Manguel nunca sai da sua área de conforto, a literatura. Dedica-se a discutir temas complexos como a linguagem ou consciência, a partir de obras com milhares de anos e textos literários, atirando borda fora todo o conhecimento humano produzindo ao longo dos últimos 100 anos pela psicologia, linguística e neurociências. No final passa a ideia que a ciência é um objeto estranho para Manguel, e que para si tudo pode ser compreendido por meio da literatura e alguns filósofos e religiosos.

Não posso deixar de apontar o dedo a mim próprio que me aproximei da obra com o intuito de aprender algo específico sobre curiosidade, já Manguel estava apenas interessado em compilar textos em redor da construção de outros textos. Mesmo as suas memórias são meras introduções a cada capítulo, muitíssimo curtas, e sem conexão abrangente com o que se vai discutir depois nas passagens literárias. Por sua vez, as passagens literárias acabam contaminadas por Dante, o que no início resulta interessante, mas rapidamente se torna cansativo por nada acrescentar. Percebe-se que Manguel utiliza a Divina Comédia apenas como estrutura, seguindo talvez o caminho de Joyce colado à Odisseia, mas totalmente incapaz de se apropriar da Comédia, como Joyce se apropriou e soube criar uma Odisseia para Bloom. Aqui não temos qualquer rito de passagem de Manguel, nem sequer da curiosidade, não partimos de lado algum, e menos ainda chegamos a qualquer lugar, como acontece com Dante na sua viagem através dos 3 estágios do além. Temos apenas um conjunto de capítulos que podem resultar interessantes soltos, pelo enorme conhecimento de Manguel, mas completamente incapazes de saciar a curiosidade que o livro prometia discutir e apresentar.

Manguel lembra-me Leonardo Da Vinci, ambos imensamente curiosos, mas apenas focados na busca por mais e mais, não conseguindo nunca parar para refletir, para analisar sobre aonde tudo o que já sabem os pode conduzir. Apenas parece interessar-lhes a novidade constante, sempre insatisfeitos, sempre necessitados de mais, do diferente, para acrescentar peças novas ao que já sabem.

Por fim, se tiverem encontrado, ou procurado, este livro de Manguel para saber mais sobre a curiosidade humana, aconselho antes a leitura de "Curious: The Desire to Know and Why Your Future Depends On It" (2014) de Ian Leslie.

maio 11, 2019

Nazismo: ouro e livros

Por mais que acreditemos saber já o suficiente sobre a Segunda Guerra Mundial, nunca saberemos tudo, é impossível, e acabamos sempre por nos surpreender sempre que lemos ou acedemos a novas histórias desses tempos, que alargam o espectro da maldade muito para além dos horizontes por nós já trilhados. A história que trago, nunca a tinha ouvido, porque ao pé de tantas outras, parece menor, não tem números impressionantes, aconteceu pela calada, e rapidamente foi silenciada por todos, mas não deixa de me impressionar pelo nível de dolo implícito.

Rua do Gueto Judeu de Roma (2018)

A 8 de setembro 1943 os nazis ocuparam Roma. Dos 8 mil judeus que aí viviam pouco mais de mil ficaram na cidade no Gueto de Roma, estabelecido em 1555. Neste encontrava-se a Biblioteca della Comunità Israelitica recheada com mais de 7 mil livros raros ou únicos, datados desde o século XVI.

No dia 26 de setembro 1943, o comandante da Gestapo em Roma anunciou que se não lhes fosse entregue 50 Kg de ouro, 200 famílias seriam deportadas. No dia 28 setembro ao meio-dia, o prazo dado, os 50 Kg apenas conseguidos graças ao contributo de toda a cidade de Roma, foram entregues.

No dia 14 de outubro 1943, menos de um mês depois, os 7 mil livros da Biblioteca della Comunità Israelitica foram levados, carregados em duas carruagens e conduzidos alegadamente para Alemanha. Estas duas carruagens nunca voltariam a ser encontradas, tal como todo o seu conteúdo, até hoje.

No dia 16 de outubro 1943, dois dias depois, os militares alemães cercaram e selaram o gueto. Cerca de 1030 judeus foram presos e deportados para Auschwitz. Apenas 16 sobreviveram.



Nota: Pesquisa realizada por via da Wikipédia, confirmada por meio de alguns artigos científicos, seguindo o rasto dos 50 kg de ouro, mencionados no livro “A História” (1974) de Elsa Morante.

maio 04, 2019

Talento ou motivação para criar?

Quando uma filha (14) ganha um concurso ficamos contentes, imensamente alegres por ela, mas quando ganha um concurso a nível nacional de escrita (criativa em inglês), que descobrimos apenas que ela participou quando soubemos que ganhou, além de nos fazer sentir felizes, questiona-nos: como e porquê? Não podendo deter-me no artefacto, foi escrito na hora do concurso em resposta ao tema e à mão e por isso não o pude ainda ler, detenho-me então sobre o seu percurso, não meramente escolar, mas essencialmente no ambiente que lhe foi proporcionado. Muito rapidamente me dou conta de algo que já há algum tempo vinha desmontando sobre a criação de talentos, não basta o ambiente social, nem sequer o investimento e trabalho árduo. Existe algo mais.


Nos últimos anos tenho-me dedicado a tentar compreender o modo como se criam os chamados talentos, no sentido de compreender a motivação e envolvimento humanos. Trabalho com media interativos, e por isso tenho como objeto central da minha investigação compreender o modo como o ser humano se envolve ou engaja com a realidade e os outros, descobrir o que é necessário para convencer alguém a agir, a sair da sua passividade do mero consumir para interagir. Dos estudos que fui lendo, notei uma ênfase enorme na necessidade de esforço e trabalho, relatados em análises de grandes nomes das mais diversas áreas, desde o Cristiano Ronaldo a Pele, passando por Kournikova, mas também Avicii ou Lady Gaga, passando pelas estrelas criativas do cinema romeno Cristian Mungiu ou Cristi Piu, ou inovadores tecnológicos como Bill Gates e Steve Jobs, ou ainda nomes maiores como Mozart ou Proust [1, 2, 3, 4].

A ideia que passa, no final de entrarmos nestes universos de desmontagem académica dos processos de formação de talento, é de que é tudo criado por nós, que existe uma fórmula que podemos seguir para desenvolver qualquer talento, a ponto de podermos concluir que pode ser atingido por qualquer ser-humano desde que se esforce para tal. Mas em todos esses estudos fui sempre apontando um detalhe, que parece menor, mas é fundamental, a motivação intrínseca. Aquilo que nos move internamente. Não estou a falar do célebre “jeito”, menos ainda “dom”, mas de motivação para investir horas diárias a chutar numa bola, a programar, ou a escrever, porque todos os exemplos dados acima tiveram isso, nenhum deles foi formatado para ser o que é, foram eles que foram sempre além daquilo que o ambiente lhes pedia, porque queriam mais. Ou seja, não nascemos com um dom para ser cantores ou escritores, mas nascemos com inclinações que nos predispõem a sacrificar tudo o resto em nome daquilo que mais gostamos.

O exemplo que tenho em casa mostra bem isso. Claramente que é uma miúda privilegiada, com acesso a centenas e centenas de livros espalhados por toda a casa, assim como centenas de DVD e videojogos, ao que se acrescentam vários serviços de conteúdos online na televisão, consolas e computador. Mas tem as suas inclinações que a separam totalmente do irmão (10), que tem acesso exatamente ao mesmo entorno material e social. Adora cinema e séries mas não gosta de jogos de mestria ou abstratos, é boa aluna, mas não é brilhante, não se colocando ao lado das suas colegas que correm as pautas a cincos. Se os mando continuamente ler aos dois, já que os ecrãs são a sua maior perdição, ela vai lendo vários livros ao longo do ano, enquanto ele parece estar sempre a fazer provas de superação sempre que vai ler, a única coisa que vejo capaz de agarrar o seu foco, até agora, tem sido os jogos, digitais ou físicos.

Ela não lê desenfreadamente, pois por uma qualquer razão só gosta de ler quando vai para a cama à noite. Ainda ontem lhe perguntava pelo Harry Potter, só leu até ao 5º volume, por outro lado, viu os 8 filmes provavelmente mais de meia-dúzia de vezes. Do mesmo modo, leu ainda apenas os primeiros quatro livros do Game of Thrones, mas está quase a acabar a série. É alguém que adora histórias, independentemente do medium. Começou a ver longas-metragens completas da Disney aos 2 anos, enquanto o irmão, já com 10 anos, continua a perder o interesse nos filmes antes de chegarem ao fim. Quando era mais pequena levava-a a eventos com performers que contavam histórias e ela deliciava-se. E isto é talvez aquilo que vem inscrito na sua motivação, o universo das histórias, contadas, visualizadas, escritas e imaginadas. Não fomos nós em casa que lhe dissemos que as histórias eram relevantes, é algo que a atrai, que a motiva, que puxa pela sua curiosidade e a faz mover. Agora, claramente que precisa de alguém que a vá guiando que lhe mostre a diversidade criativa existente, mas mais do que isso, que existe algo para além do mero consumo, que ela também pode ser parte desse mundo de criação, e isto tem sido algo para o qual a mãe tem dado o maior contributo cá em casa. Entretanto, do que conseguimos perceber, tem vindo a dar os seus passos, mas tudo no segredo do seu quarto e dos seus cadernos pessoais, desconhecendo nós que qualidades ou fragilidades possui, mas a julgar por este concurso, parece estar a dar alguns frutos.

Desta pequena súmula volto a retirar o essencial daquilo que considero ser o papel principal da Escola, ajudar as crianças a encontrarem o seu próprio filão interior. O que gostam, como se vêem, o que os move e demove. São muitas as disciplinas que se ensinam na escola, e eles não precisam de ser bons em todas, menos ainda excelentes, e por isso talvez devessem ser ainda mais as disciplinas, as áreas abordadas, dada a amplitude de possibilidades de realização que o mundo complexo em que vivemos nos proporciona, ou pelo menos abrir-se mais o leque em termos de valências extra-curriculares. É por isso que além do que a escola oferece, lhe proporcionamos ainda o acesso a escolas de dança (ballet) e música (orgão). Acredito que é na frequência da multidisciplinaridade que as crianças e jovens poderão encontrar o seu modo, a sua força intrínseca, criar o seu espaço de ação interior e exterior, e virem a ser capazes de agir no seio dos outros de modo consequente.

Deixo ainda uma nota de agradecimento à escola e aos professores portugueses, que a sociedade teima em desprezar, em apontar o dedo atirando farpas de que tudo está sempre igual a quando por lá passaram. Mas a escola de hoje é diferente, porque os professores de hoje têm uma formação muitíssimo superior à que tinham os nossos professores. São muitas, imensas as atividades que todos estes professores criam e gerem ao longo do ano em cada escola, de Norte a Sul, desde os concursos de escrita criativa, a debates argumentativos, a construção de robôs, e modelação e impressão 3D, passando por programação de jogos, simuladores, jornais escolares, reportagens, olimpíadas de matemática, experiências, audições, intercâmbios, exposições, etc. etc. Claro que a maior parte de tudo isto está nas mãos dos professores individualmente, são eles sozinhos que retiram do tempo da sua família para dedicar sábados e fins de dia para que os alunos tenham mais do que aquilo que vem inscrito nas matrizes estandardizadas de conteúdos. Provavelmente precisamos de mudar essas matrizes, precisamos de uma matriz menos sobrecarregada e de fazer dos projetos individuais dos professores projetos de escola, e julgo que de certo modo é isso que está a ser feito com a chamada Autonomia e Flexibilidade Curricular, aguardemos pelos seus frutos. E bem-hajam.


[1] O Talento é Sobrestimado, 2012
[2] Outliers, 2011
[3] Código do Talento, 2014
[4] Necessidades e Realização Pessoal, 2018

abril 30, 2019

SciMed e a humildade em ciência

Entro na rede à procura de clínicas para fazer um exame de endoscopia, encontro uma perto de casa, entro e vejo que fizeram um vídeo explicativo do processo, acabo de ver o vídeo e como sempre faço, talvez por deformação profissional, vou ao YouTube ver de onde vem o vídeo, quantos o viram, comentaram, e que vídeos o YouTube me sugere mais. Surge um tal de "Dr. Lair Ribeiro - Ozonioterapia", não faço ideia do que seja, mas pelo título parece mais uma medicina alternativa. Começo a ver, invisto vários minutos e começo a pensar que o YouTube se tornou na maior arma de charlatanice da história. Pego no nome do senhor e faço pesquisa, nos primeiros cinco resultados aparece-me uma página do SciMed que me diz que o senhor, médico brasileiro, esteve recentemente em Portugal a debater com Rui Unas no Maluco Beleza. Em dúvida, entro no vídeo do Unas, vejo que se trata de uma entrevista de uma hora e meia, fico boquiaberto. Passo os olhos pelos comentários ao vídeo, só elogios ao senhor Lair!!! Volto ao artigo do SciMed, intitulado "Lair Ribeiro é um Charlatão – Análise Crítica às Suas Afirmações no Programa Maluco Beleza" no qual o médico João Júlio Cerqueira se dispõe a desmontar as falácias de Lair ao longo de um artigo longuíssimo (18 páginas). Se começo concordando, pensando em partilhar o texto para louvar o exemplo e esforço de desmontar falácias, quanto mais vou lendo mais incomodado me vou sentindo, já perto do final só sinto um trago amargo por cada novo parágrafo, até que bato com os olhos nos comentários dos leitores, uma enxurrada de ataques ao João em defesa de Lair, já com discussão xenófoba Brasil-Portugal pelo meio...


O sr. Lair pelos vistos perdeu-se no caminho da medicina, já que em tempos foi um médico de valor, inclusive investigou e publicou quase uma centena de artigos científicos, mas num certo momento da sua carreira algo lhe terá acontecido, porque abandonou a ciência, e começou a dedicar-se "à salvação dos mais necessitados" por meio das medicinas alternativas. Não sabemos se teve alguma experiência paranormal, ou se foi mera vítima da gula charlatã. Mas se o senhor é hoje um charlatão, não deixa de ter grande número de seguidores, tal como tem Edir Macedo, Olavo Carvalho ou Jordan Petersson. São pessoas dotadas de grande carisma, que acreditam estar imbuídas de uma missão, ou então são apenas pessoas despudoradas, capazes de tudo em nome de poder, fama e proveito económico.

Dito isto, não é difícil compreender que se movem ânimos intensos a favor e contra estas personagens. Não são apenas os seus defensores que se jogam na frente e dão o corpo em sua defesa. Todos aqueles que todos os dias trabalham em prol da sociedade, sentem-se de algum modo injustiçados por indivíduos que por graça do seu carisma contribuem apenas para destruir aquilo que vai dando tanto trabalho a criar, e por isso quando podem alinham-se também na primeira fila do pelotão, prontos a fuzilar. O João apresenta-nos um texto de puro fuzilamento. Em defesa do João podemos dizer que apresenta evidência, que desmonta os argumentos contrapondo com factos, reportando a estudos da comunidade internacional, que tornam claro quem tem razão, ou quem está mais próximo da verdade. Contudo, todo esse trabalho é destruído pelo tom do discurso, que por vezes conta mais do que o teor do conteúdo, mais ainda se tratando de esgrima argumentativa. E não adianta falar em falácias, ou conhecer as comuns falácias argumentativas, sem comunicação apropriada as ideias não se sustentam.

Começa logo na imagem usada para o artigo que dá o mote para a chacota que percorre todo o resto do texto. O João ainda começa por dizer que vai fazer uma “análise crítica”, mas logo a seguir inicia com termos como “missa habitual” seguido de “paletes de mentiras”, e ao longo de todo o texto, aqui e ali, vai como que encostando a ponta da faca da espingarda à barriga de Lair — “quem percebe o mínimo de medicina”, “ser evangelizado pelo Lair Ribeiro”, “é uma treta”, “tretólogo”, ”crendice”, “está tão gasto que dói”, “cheirar a mofo“ — ou até puro ad hominem disfarçado com “oligofrenia” e “culto oligofrénico”. Mas vai mais longe, embevecido pela sua luta, e vontade de fuzilar, leva tudo na frente cometendo erros graves como dizer: “Nenhum cientista que se preze cita livros para justificar posições.” Posso até conceder que na sua área não usem, mas a sua área não é toda a ciência. E mais, atacar assim o livro, enquanto objeto central do conhecimento, acaba por só levantar dúvidas à sua argumentação, mais ainda de todos aqueles que não trabalham com ciência e nem sequer sabem o que é um paper. Acrescentando por fim que o João acusa o Lair de se autocitar, vangloriando o Eu em vez da ciência, e depois acaba por ele próprio autocitar-se ao longo do texto várias vezes.


Chegado ao final, pergunto-me: o que retira o João de todo este trabalho, são horas e horas que estão ali (de análise de vídeos, desmontagem de argumentos, composição de imagens e diagramas, pesquisa e escrita)? É capaz de se sentir realizado porque despejou o saco, ventilou, pôs cá para fora toda a irritação de ver a ciência, e o seu trabalho, maltratados. Mas o João já se perguntou se aqueles que seguem o Sr. Lair deixam de o seguir depois de ler o João? A julgar pela discussão nos comentários ao texto do João, é fácil perceber que não. Para que serve então tudo isto?

O que me apraz dizer é algo que não é novo, que fazem falta nos cursos de medicina disciplinas que trabalhem a empatia dos médicos, que os ajudem a colocar-se no lugar do outro, neste caso teria sido muito útil ao João, perceber que ele não está a escrever para o seu Eu. Mas talvez mais importante do que isso, e já que vivemos tempos em que o Japão (já voltou atrás) e o Brasil (espero que volte atrás) querem acabar com os cursos de Filosofia, seria importante que todos os alunos de Medicina, mas não só, tivessem disciplinas de Filosofia, porque a Humildade Científica é o valor mais importante de qualquer aprendizagem científica.

abril 26, 2019

Sobre o Mito: “desde que se leia”

Um dos grandes mitos que surgiu nas últimas décadas com a elevação do discurso pós-moderno a discurso popular e consequente queda de reconhecimento dos especialistas, foi o da colocação ao mesmo nível de qualquer texto, independentemente da sua forma ou conteúdo. Diz-se e lê-se um pouco por todo o lado: “o que é preciso é ler, desde que se leia, não importa o quê”. Nada podia ser mais erróneo. Vamos usar um modelo simples de análise textual para perceber porque importa e faz diferença aquilo que se escolhe para ler.


A desconstrução, simples, de texto pode ser feita nas suas três unidades básicas que funcionam como camadas: sintaxe, semântica e pragmática. Assim, temos:
1º nível – Sintaxe: conjunto de regras e princípios que governam a estrutura das frases (Ex. explica como se conjugam verbos, ou plural e singular, etc.); 
2º nível – Semântica: é onde se atribui sentido às palavras e frases (Ex. “bola”, quer dizer pedaço de borracha esférica; mas “bola de futebol americano” quer dizer pedaço de borracha oval).
3º nível – Pragmática: aqui elevamos a complexidade, é onde se atribui sentido às palavras e frases em função da relação que temos com os significados ou com a pessoa que as emite. (Ex. “cruz”, um católico pensará em Cristo, mas um matemático tenderá a pensar em sinal de multiplicação; se um professor e um médico nos dizem “que não estamos a ir bem”, apesar da mesma sintaxe e mesma semântica, não querem dizer o mesmo).
Quando iniciamos os nossos passos como leitores, perto dos 6 anos, começamos pela sintaxe. Aprender as letras, depois palavras, depois regras que nos permitem juntar palavras e formar frases. Quanto mais lermos, mais exemplos vamos conhecer sobre como juntar letras e palavras para criar frases. Depois disso, começamos a perceber que existem muito mais palavras do que aquelas que usamos no dia-a-dia e que exigem durante o processo de leitura o uso do dicionário, o que nos vai fazendo ampliar o vocabulário, assim como acrescentando novos significados a frases compostas que antes desconhecíamos. Depois disso, começamos a perceber que apesar de poderem ser as mesmas palavras ou frases, elas variam em função de quem está a falar, do contexto, do local ou momento em que estão a ser ditas, e por isso vamos ampliando a nossa bagagem das múltiplas interpretações possíveis da linguagem.

Tendo em conta estes processos, podemos dizer que ler sempre o mesmo, ou um conjunto restrito de estilos textuais, é suficiente para o domínio sintático. Ou seja, para uma criança pequena, a dar os primeiros passos, não interessa muito o que vai lendo, desde que leia. O que se pretende é que memorize as letras, palavras, frases as suas posições, organizações e usos. Mas a determinada altura, temos de começar a guiar as leituras, temos de lhes oferecer textos que eles compreendam para que se mantenham a ler, mas que ao mesmo tempo vão exigindo mais e mais conhecimento de significados, de forma a garantir que eles vão ampliando o vocabulário, os diferentes usos frásicos, assim como as noções de composição diferentes dessas mesmas frases. Chegados à terceira fase, temos de começar a ler aquilo que numa primeira leitura não nos atrai, por ser diferente do que estamos habituados, ou seja, "sair da zona de conforto". Porque já não chega ampliar o vocabulário, precisamos de ler diferentes versões da realidade para podermos começar a comparar, a confrontar e a contrastar, e assim começar a compreender porque as mesmas palavras, e as mesmas frases, e as mesmas ideias podem conter outros significados até aí desconhecidos.

É por isso que ler qualquer coisa não é indiferente. Se lermos todos os dias, mas a leitura for colocada sempre ao mesmo nível de desafio, ou seja, não forem apresentados significados novos de palavras, frases, ou dos seus diferentes usos, é como se não estivéssemos a ler nada. O texto está a servir apenas de condutor, de envelope, ao qual nem sequer prestamos atenção. É como passar todos os dias na mesma estrada, não aprendemos mais sobre ela depois de passar por ela 100 vezes, não é por acaso que na maior parte dos dias não nos lembramos sequer de ter feito a estrada para o trabalho, nada de novo chamou a nossa atenção, foi mera repetição, por isso nada ficou dessa passagem.

Ou seja, ler Dan Brown ou José Rodrigues Santos pode até saber-me bem pela intriga e aventura, pode funcionar como umas horas bem passadas de entretenimento, mas por mais horas que os passe a ler, as minhas competências tanto de compreensão textual como de escrita não vão melhorar em nada (a não ser que seja um adolescente, ou seja alguém que leu muito pouco, e ainda não tenha atingido um nível médio). Lê-los, será como passar pela mesma estrada para o trabalho todos os dias, com a vantagem de poder ser divertido.

Do mesmo modo, se for um livro de não-ficção — sobre Astronomia, Vinhos ou Cinema — aprendo sobre o assunto em questão, mas não devo esperar que essa leitura altere ou contribua para melhorar as minhas competências de leitura e escrita. Por outro lado, se não incrementar o nível de detalhe, aprofundamento e erudição dos tópicos sobre esses temas, pela ausência de variação continuarei apenas a solidificar o que já sei, não passando disso. É por isso que as novelas de amor e traição se revelam tão pouco relevantes para além do mero divertimento, não só são limitadas no uso das funções textuais, como não vão além do baralhar e voltar a dar das tramas amorosas, descurando toda a restante complexidade humana.

Nunca se leu tanto no planeta como hoje, porque nunca as pessoas viram a sua realidade tão mediada por ferramentas que operam com imagens e texto, sendo o texto o principal meio de que as pessoas dispõem para se fazer ouvir. Desde os jornais e suas caixas de comentários ao Facebook, Twitter ou WhatsApp, nunca nos vários milhares de anos que levamos como espécie, houve tanta pessoa alfabetizada e obrigada a ler todos os dias para poder levar a sua vida por diante, no entanto essa prática diária não alterou propriamente as competências de leitura e escrita das pessoas. Basta perder um pouco a ler essas mesmas caixas de comentários e deter-se sobre o uso dado ao texto, a sua sintaxe, semântica e pragmática.


Podia terminar com o último parágrafo, mas não estaria a dar um contributo completo, por isso deixo duas recomendações: The Greatest Books e PNL2027.