dezembro 23, 2017

Gorogoa (2017)

“Gorogoa” de Jason Roberts é o videojogo sensação deste final de 2017, apanhando muita da crítica de surpresa, apesar de estar em desenvolvimento desde 2012, tendo mesmo ganho vários prémios antes mesmo de ser lançado — Visual Art no Indiecade 2012, Visual Art no IGF 2014, e já este ano nomeado na lista de melhores da E3 2017. Se a arte visual tem sido o elemento mais laureado, aquilo que eleva o seu  design para o nível de arte, é o desenho de jogo inovador que acaba por ser o principal responsável por nos fazer fazer submergir totalmente no universo representado.

"Gorogoa" (2017). Criado e ilustrado por Jason Roberts

O primeiro impacto é forte, parecendo não existirem quaisquer referências possíveis, contudo elas existem. A minha primeira associação surgiu pelo lado da banda desenhada, em especial a sua variante ainda pouco desenvolvida, dos interactive motion comics (ver por exemplo: "The Art of Pho" (2012) "The Random Adventures of Brandon Generator" (2012); “CIA: Operation Ajax” (2014)). Mas percorrendo as relações entre os videojogos e a BD podemos encontrar outros casos de interesse, surgindo à cabeça um caso de relevo, “Framed” (2014). Se dúvidas restassem quanto a estas referências, atente-se nas próprias palavras de Jason Roberts:
"The idea began long ago as an idea for an interactive comic whose panels could be moved around and interact with each other to effect the story. I abandoned some of the complexities of that idea for something that would be a little bit freer of strict narrative structure and a bit more abstract, which allowed different parts and layers of the game's world to dissolve together more easily. The design was also inspired by card games in a roundabout way, especially the idea of playing a card game that is simultaneously a magic trick." Jason Roberts em entrevista à Eurogamer, 11/10/2012
Este comentário de Roberts é particularmente relevante para se compreender a natureza de “Gorogoa” tanto no seu design quanto na sua narrativa. Não é fácil chegar à compreensão daquilo que o jogo está a tentar dizer por esse abandono da estrutura narrativa que Roberts refere, claramente em nome do impacto sensorial produzido pelo efeito das imagens dentro de imagens, seguindo, penso eu, o modo como os nossos pensamentos se vão formando, numa lógica de descasque de cebola. Por outro lado, a história escolhida é particularmente pessoal, como se pode ver nos dois comentários de Roberts abaixo, que recorrendo à fantasia do seu próprio imaginário e sem a devida contextualização, nos deixa completamente à deriva.
"The title is a word I invented when I was a kid for an imaginary creature, and since the game contains no language I wanted a title that is not a word in any language (or not meant to be) (..)  [it's about] "a boy seeking an encounter with a possibly divine monster." Jason Roberts em entrevista à Eurogamer, 11/10/2012
"There's the notion that the first thing you make—like if you make a book at 26, you've spent 26 years making that book in a way" Jason Roberts em entrevista Kotaku 11/14/12
Pode-se argumentar que o engenho inventivo no campo do design, pela sua necessidade de recriar a forma, é pouco dado à obediência à forma narrativa, o que não é completamente falso, contudo não faltam exemplos de inventividade capazes de dar resposta às necessidades do contar de histórias. Aliás, como disse acima, parece-me que o problema de comunicação do universo se prende mais com o facto do autor ter recorrido a um mundo fechado de sentidos, não tendo realizado o devido esforço para o dar a conhecer.

Neste mesmo sentido é inevitável convocar para esta conversa uma das bandas desenhadas mais inovadoras que li nos últimos anos, “Here” (2014) de Richard McGuire, não apenas pela inovação mas por apresentar claras proximidades com o trabalho criado por Roberts. “Here” é provavelmente a obra mais impactante criada por recurso à técnica de imagem dentro de imagem, recorrendo a uma lógica temporal para gerir o puzzle da representação que se vai desfilando na nossa frente. Não é neste caso também fácil chegar à história, contudo o foco de abstração escolhido por McGuire, por ser muito mais universal, facilita o nosso acesso, tornando a experiência imensamente compensadora. “Gorogoa” não usa o tempo mas em sua vez usa a interatividade que acaba por exponenciar a representação em puzzle e elevar a imersão do jogador.

Here” (2014) de Richard McGuire

O factor exponencial do puzzle é real, se em “Here” vamos sentindo a exigência de manter na mente as várias datas e alterações de cenário ao longo do virar de páginas, em “Gorogoa” tudo se complica ainda mais já que não podemos avançar sem fechar cada puzzle. No fundo falamos da essência que separa o videojogo do livro, ou seja, só podemos aceder aos passos seguintes se conseguirmos compreender o que a obra nos pede, não que faça muito sentido avançar num livro sem compreender o que se vê ou lê, mas nada impede o leitor de tentar avançar para ver se com mais informação consegue compreender o que antes não conseguiu.


Neste sentido “Gorogoa” é bastante exigente, não é que os puzzles sejam muito difíceis, a complexidade advém mais pelo uso da técnica da imagem dentro de imagem, que Roberts acaba por trabalhar em múltiplas camadas, obrigando o jogador a trabalhar também mentalmente com múltiplas imagens em simultâneo. Naturalmente, se conseguimos reter um máximo de 5 a 7 elementos na memória de curto prazo, sempre que nos pedem que a usemos em toda a sua dimensão, acabamos por sentir o esforço drenar-nos interiormente. Por outro lado, esta exigência de atenção, obriga-nos a um nível tão elevado de focagem, que se torna impossível pensar em algo mais para além de “Gorogoa” enquanto jogamos, o que produz uma imersão total.


"Gorogoa" pode ser jogado na Switch, Android e iOs.

Motivação mais relevante que QI

Quem me conhece sabe que defendo o ensino profissional, ou técnico-profissional, ou vocacional, ou como desejarem chamar-lhe, há décadas. Não por razões económicas, não por trazer benefícios ao país, não para nos equiparar ao sistema alemão, mas simplesmente porque que a principal função da Escola é ajudar cada sujeito a encontrar-se. E é sobre isto que o texto da professora Rebecca Haggerty, da Annenberg School for Communication — "Highly motivated kids have a greater advantage in life than kids with a high IQ" — nos fala.


Continuamos a ser iludidos com medições e rankings, adoramos números, aparente garantia de sucesso, por isso desenvolvemos todo o tipo de medidas e quantificadores, sendo o do QI (Quoeficiente de Inteligência) um dos mais louvados pela sociedade contemporânea. Contudo, como vem sendo desmontado nos últimos anos o QI serve de pouco. Primeiro tivemos toda uma enorme discussão à volta do QE (Quoficiente Emocional), que nada resolveu por se querer limitar a fazer o mesmo que o QI, testando e medindo para o sucesso. Só mais recentemente começámos então a falar de Perseverância (ver: Grit & Character), Curiosidade (ver: Curiosity) e Motivação (ver: Drive & Motivation).

Haggerty cita agora o trabalho dos professores Adele e Allen Gottfried que assenta num estudo longitudinal — Fullerton Longitudinal Study — que seguiu 130 bebés ao longo de 4 décadas, recolhendo informação sobre os pais, professores, testes de QI e de motivação, visitas às casas, estudo de ambiente e hábitos, acesso a transcrições de muito daquilo que rodeou as vidas destes sujeitos, tendo recolhido milhares de evidências em redor dos 107 participantes sobreviventes até à data. A principal descoberta não me surpreendeu, vindo totalmente de encontro ao que referencio acima:
"As crianças que obtiveram maior pontuação em medidas de motivação intrínseca académica numa idade jovem - o que significa que eles gostaram de aprender por si próprios - obtiveram melhores resultados na escola, aceitaram cursos mais desafiadores, e obtiveram graus mais avançados do que os seus pares. Foram mais propensos a tornarem-se líderes e tinham mais autoconfiança sobre o trabalho escolar. Os professores viam-nos a aprender mais e a trabalhar mais. Como adultos jovens, continuaram a procurar desafios e oportunidades de liderança ".
Mas estes miúdos que conseguiram o sucesso nas suas vidas não eram os mais dotados intelectualmente. Só raras excepções dos 20% de miúdos do estudo com IQ acima dos 130, conseguiram surgir no grupo dos mais bem sucedidos, apontando a relevância dos factores motivacionais. A grande questão passa então por tentar compreender como podemos ajudar as nossas crianças a tornarem-se pessoas mais motivadas? E não pessoas mais "inteligentes" (redutor e usado aqui apenas no sentido de conseguir ter boas notas nos testes das escolas). Ora o que os estudos destes colegas apontam, também não é nada de novo:
"Em geral, os pais que incentivaram a inquisição, a independência e o esforço, e que valorizaram a aprendizagem por si mesmos, tiveram filhos com níveis mais altos de motivação e realização intrínseca. Além disso, os efeitos dessas práticas prolongaram-se à medida que as crianças cresciam. "Aquilo que vocês fizerem aos nove anos não só terá um impacto imediato, mas também um impacto de acompanhamento ao longo do tempo" disse Adele (..) recompensas externas como dinheiro ou estatuto tendem a diminuir o gozo de uma atividade por parte das pessoas, mesmo que antes gostassem de a fazer. As crianças para terem sucesso precisam de ser intrinsecamente motivadas - isto é, ver o aprender e o assumir de novos desafios como a própria recompensa. "Ensinar o desejo de aprender", escreveu o Gottfrieds em 2008, "pode ser tão importante quanto o ensino de habilidades académicas"."
Daqui pode passar a ideia de que então em vez de treinarmos com matemática ou português devemos treinar para a motivação, mas isso é o erro que tem impedido o sistema de educativo de se transformar, porque não se pode treinar para motivação, pelo menos em grande parte não é possível formatar essa motivação, já que ela está intimamente conectada com o ser individual de cada criança.

Deste modo, o que é preciso, tanto do lado da escola, e acima de tudo dos pais, é garantir as experiências, é abrir o leque de oportunidades, é mostrar o mundo, e dar pequenos empurrões mantendo iluminada a rede de segurança. É oferecer a oportunidade ao ser humano em potência de se encontrar a si mesmo. Sheri Werner, diretora de uma das escolas Charter americanas, diz então:
"'Há muito o medo de que se permitirmos às crianças aprenderem o que desejam aprender, elas não entrarão na faculdade.' Werner viu a ansiedade dos pais crescer ao longo dos anos, à medida que a concorrência foi subindo nas universidades e no mercado de trabalho. Mas ela acredita que as escolas não fazem favor nenhum quando dissuadem as crianças de explorar os assuntos que naturalmente lhes interessam, obrigando-os à força a estudar Cálculo. 'Que mensagem estamos a passar as crianças? Não é preciso sofrer no trabalho para chegar até ao fim-de-semana. É possível desfrutar do que se faz na vida'."
E é por isso que eu acredito tanto nas escolas profissionais/vocacionais, porque são elas as que podem garantir às crianças encontrar algo que as possa conduzir à sua própria realização, que lhes possa garantir retorno efetivo em termos emotivos para garantir a manutenção da motivação intrínseca. Acreditar que se pode motivar uma criança oferencendo-lhe no final pontuações (de 1 a 5, ou 1 a 20), ou a colocação em tabelas de líderes de turma (pautas de notas) ou crachás de líderes destacados de ano (quadros de honra) não passa de um conjunto de tiros no pé, aos quais muitos pais ainda acrescentam oferendas de fim de ano como consolas, viagens ou carros.

A motivação anda de mão dada com a criatividade. Permitir que a segunda se revele é aumentar o poder motivacional intrínseco de cada um. O problema é que nem todos se vão rever no Lego, porque também nem todos se reveem na matemática, assim como também nem todos se reveem na criação de histórias. O primeiro factor para se encontrar surge pelo brincar, e esse precisa de continuar a ser estimulado pela ação criativa individual.

A questão central é que o ser humano precisa de ser movido a partir de dentro, precisa de um centro interior de energia auto-renovável, e esse só se cria por meio da progressão no caminho para a realização pessoal, que não passa pela conquista externa de marcadores, sejam eles cursos superiores, dinheiro ou outra coisa qualquer.


Ler mais:
Porque fazemos o que fazemos?, 2015 no VI
Cognição e biologia na base do sucesso, 2013, no VI
Drive (2010) de Daniel Pink, 2011, no VI
Mais artigos sobre Motivação no VI
Mais artigos sobre Criatividade no VI

dezembro 16, 2017

“A Estrada”, da experiência texto e audiovisual

Antes de entrar na discussão das diferentes experiências, quero deixar breves notas sobre o livro de Cormac McCarthy, “A Estrada” (2006). A história é bastante simples e direta, trabalhando o tema do pós-apocalipse que tem inundado o imaginário com múltiplas obras: filme — “Mad Max” (1979), “Stalker” (1979), "Children of Men" (2006), “The Book of Eli” (2010); videojogos — “Fallout 3” (2008), “Metro: Last Light” (2013), “The Last of Us” (2013); banda desenha — “The Walking Dead” (2003). O trabalho de McCarthy segue uma abordagem menos comum, ou seja, menos fantasiosa optando por um certo naturalismo, muito por McCarthy não ser um autor de género, acabando por realizar esta sua incursão na ficção-científica, à semelhança de outros escritores, num modo quase exclusivamente dramático, tal como aconteceu com Saramago quando fez “Ensaio sobre a Cegueira” (1998).

Depois de escrever esta análise, não poderia estar mais de acordo com a capa apresentada. Apresenta tudo aquilo que precisamos para começar e acabar a leitura. A melhor imagem do universo apresentado no livro é aquela que cada um de nós cria dentro de si próprio.

McCarthy situa a ação num momento posterior a uma qualquer catástrofe que destruiu todas as formas de vida no planeta, tendo apenas sobrevivido uma pequena parte da espécie humana. Somos colocados no encalço de um pai e filho que viajam para sul, atravessando áreas completamente inóspitas, e encontrando alguns, poucos, desses sobreviventes, quase sempre hostis. O tom é marcadamente pesado e violento, a esperança não tem significado, e por isso a ideia central da obra acaba por se centrar numa busca para a fundamentação da sobrevivência. Não raras vezes, damos por nós a questionar, tal como acontece aos personagens: "para quê tudo isto, porquê continuar com todo este esforço?" McCarthy não dá respostas, nem podia dar, essas só podem ser dadas por cada um, individualmente.

Ora o livro saiu em 2006 e o filme homónimo de John Hillcoat em 2009. Vi o filme quando saiu, tendo deixado grande impressão em mim, pela sua narrativa, ritmo e cor muito particulares. Li o livro agora, e no final resolvi voltar ao filme. Foi um choque, senti-me perturbado pelo filme ao ponto de parar a sua visualização a meio. Tal não aconteceu pela qualidade do filme, que é boa, mas pela perturbação que o filme estava a introduzir na minha experiência estética do livro. Terminei porque o filme estava a “destruir” uma experiência emocional e reflexiva criada aquando da leitura do livro. Pergunto-me se a necessidade de criar um universo subjetivo a partir da leitura, impossibilita a aceitação de um universo criado por outrem a partir do mesmo artefacto?

As memórias do filme: pai e filho, estrada, mundo sem vida, andamento em fuga, encontro de bunker, procura do sul, chegada ao mar, ondas cinzentas. Isto é o que as minhas memórias me diziam, e que se coadunaram com os traços gerais da narrativa apresentada no livro. Contudo estas memórias que tinha do filme eram imagens gráficas, borrões de cores castanho e cinza, pai e filho apenas na forma movendo-se ao longo de uma estrada com um carrinho de hipermercado. Apesar de lembrar o pai como Viggo Mortensen, não tinha qualquer recordação da cara do filho, recordava-o apenas debaixo do anoraque sempre colado ao pai. Quando agora fui confrontado com Charlize Theron, como mãe/esposa, fiquei chocado, essa memória não existia de todo em mim, tinha sido completamente apagada. Mas o que mais me impressionou, e acabou por levar a desligar do filme, foram as imagens muito vividas, demasiado reais, os movimentos e as caras dos atores, apesar de muito bons, não ligavam com a ideia criada em mim daquele universo. Era como se eles estivessem a tentar encenar algo que dentro de mim existia a partir do modo como eu vi, e vivi. Estranho.

Estranho, porque enquanto lia o livro, fui recordando o filme, mas agora percebo que ia recordando imagens gráficas, ou fotografias sem movimento, estáticas, as quais ia eu insuflando de vida com as palavras que ia lendo de McCarthy. Quando revejo filmes ou livros, sou constantemente surpreendido, quase nunca me lembro dos finais, não tenho memória das frases que foram ditas... Guardo mais impressões do que ideias, guardo sensações, se gostei ou adorei, ou se não me tocou. Guardo imagens chave, e preservo-as nos seus tons e sonoridades, crio mundos interiores do que presenciei, aproprio-me deles, faço-os meus, experiências vividas.

Na leitura este processo não é muito diferente, ou talvez seja, e é sobre isso que agora me questiono. O facto de o livro não mostrar, mas descrever por um meio simbólico (alfabeto) sem qualquer relação com a realidade, obriga-me a projetar o “teatro” completo na minha mente. Tenho de criar os personagens, desenhar os cenários e projetar as ações. Não existem pessoas de carne e osso, não existe tonalidade, luz ou sombra fechadas, sou eu quem determina o detalhe do que vai sendo descrito. Ou seja, as palavras escritas funcionam como estímulos e alicerces das realidades produzidas pelas nossas mentes.

Continuando a reflexão, sinto que temos de ir além daquilo que ficou como a grande contribuição de Umberto Eco na “Obra Aberta”, do preenchimento de espaços vazios pelo leitor. Estamos a falar da Fabula, termo proposto por Propp para definir a história cronológica por oposição ao Syuzhet (o discurso). Termo repescado mais tarde por Bordwell, entre outros autores, para definir a história que os recetores criam na sua mente por oposição à história que o autor possui e procura plasmar no texto/filme. No fundo, algo que desde o início dos meus trabalhos com a narrativa, venho trabalhando por meio do gráfico seguinte:

A história contada pelo autor e a história mentalmente construída pelo recetor. Só uma parte se interseta, o resto é parte do mundo de cada um.

Ou seja, aquilo que eu estive a tentar descrever acima, as minhas memórias do filme, e o que vou fazendo na leitura do livro, não é mais do que o natural processo de efabulação. Um processo no qual nos vamos apropriando dos eventos contados, impregnando os mesmos com as nossas experiências passadas. E é isto que faz com que a comunicação de uma ideia produza impressões tão diferentes em cada um de nós. Usar a oralidade, texto ou imagem em movimento produz naturalmente experiências diferentes, nomeadamente por meio de dois eixos qualificativos dos meios: abstrato-concreto e simbólico-realista.

Como fruto desta reflexão, compreendo agora que o meu choque ao rever o filme surge pelo contacto entre aquilo que a equipa de Hillcoat considerou ser a plastificação audiovisual correta do descrito por McCarthy e a minha fabula. Compreendo também, não sendo novidade, mas agora compreendo sentindo, porque se torna muito difícil um filme ultrapassar um livro. Durante muito tempo defendi que essa diferença assentava na capacidade descritiva do texto versus imagem. Que a imagem tem maior poder de dar a ver, mas menor poder de especificar o que sentem os personagens, já que não pode mostrar o seu interior, enquanto o texto pode descrever esse interior por meio da metaforização. Ora com esta experiência vou mais além e em direção a algo que já muitas vezes me ia sendo apresentado mas que considerava não ser chave, a subjetivação da experiência.

Ou seja, a descrição do interior dos personagens, não só é feita por meio dos símbolos do alfabeto, mas é feita por recurso a diferentes metáforas, já que não é possível descrever o que se sente sem essas metáforas. Por exemplo, quando alguém se sente triste, poderíamos simples dizer — “estava triste” — mas isso dá apenas conta da emoção sentida, não descreve como se sente verdadeiramente a pessoa. No cinema, podemos mostrar por meio de ações: mostrar o personagem cabisbaixo, sentado na borda da cama, com as mãos na cabeça, muito imóvel e olhar fixo, uma lágrima, um gemido. Mas o texto pode descrever o sentimento de formas impossíveis para a imagem, como por exemplo: “O meu coração sofre em silêncio”.

A metaforização, além de descrever, pressupõe todo um trabalho do lado do leitor que a imagem não requer, porque pressupõe experiência humana e conhecimento da realidade cultural, capaz de interpretar essa mesma metáfora. Para compreender a metáfora do parágrafo anterior, somos obrigados a recordar um momento pessoal, em que tenhamos sentido profunda tristeza, para conseguir “visualizar” a ideia — um coração sofrendo em silêncio.  Ler “Eu estou triste” e ler “O meu coração sofre em silêncio”, produz sensações distintas porque o segundo obriga a emoldurar o texto com os sentires pessoais de cada um dos leitores.

Neste sentido, quando lemos metáforas, as imagens mentais que vemos são nossas, totalmente subjetivas. Por isso, a leitura é a criação de fabula do leitor, porque o texto é completamente reconstruído em nós, alimentado pela nossa própria mundividência. Por isso, também não admira que os jovens tenham dificuldade na leitura de obras mais elaboradas, pois sem experiência da realidade, sem conhecimento do mundo, é difícil compreender o que nos vai contando o texto. Já um filme é, em princípio, bastante mais acessível, uma vez que não pode simplesmente evocar imagens nossas, tem de as apresentar de modo concreto, e elas têm de ser o mais amplamente reconhecíveis, ou seja, fruto de generalização realista.

Em “A Estrada”, a relação pai-filho é por si só um par descritivo potenciador de metáforas a requerer constante interpretação do leitor, e que será tanto ou mais interiorizado, ou seja mentalmente visualizado e sentido, quanto maior for a experiência do leitor nesse tipo de relação, nomeadamente do ponto de vista escolhido por McCarthy, o do pai. Neste sentido, durante a leitura, não raras vezes, recorri à minha relação com o meu filho para compreender completamente o que se passava em cada quadro. Contudo, ao ver o filme, essa situação deixou de acontecer, porque tinha atores de carne osso, pessoas humanas, na minha frente. Podia comparar, podia imaginar o que faria eu, mas não podia substituir as imagens que via por novas imagens criadas dentro de mim.

dezembro 14, 2017

Bury me, My Love (2017)

Um dos jogos que ficará deste ano será sem dúvida “Bury me, My Love” (2017) de Florent Maurin do estúdio francês The Pixel Hunt, que já nos tinha dado o interessantíssimo jogo de gestão de crises de comunicação. É apenas uma ficção interativa baseada em mensagens, com meia-dúzia de ilustrações, no entanto com tão pouco consegue fazer muito, consegue dar a sentir, em parte, o que sentem os refugiados sírios que partem para a Europa e os seus familiares que ficam a vê-los partir. O título é baseado num ditado popular árabe, usado por quem parte, para frisar “Nem penses em morrer antes de mim”. Como referência da jogabilidade temos "Lifeline" (2016), um dos jogos sensação do ano passado.



No campo da ideia e conceito, o autor realizou um extenso e interessantíssimo post-mortem que aconselho a ler depois de jogarem. Interessou-me particularmente a inspiração para o jogo que adveio por meio de um artigo no Le Monde “Le voyage d’une migrante syrienne à travers son fil WhatsApp" que usa uma abordagem na apresentação da informação muito próxima daquilo que viria a ser o jogo. Nesse sentido, Maurin refere mesmo que recorreu depois à jornalista para encontrar pessoas reais que tivessem passado pela situação, no sentido de desenvolver um guião o mais credível possível.

"Bury me, My Love" conta a história de Nour, durante a sua fuga da Síria para a Europa, colocando-nos no lugar de Majd, o seu namorado, que fica na Síria e vai comunicando com ela por SMS.

Relativamente ao desenho de mecânicas e experiência, apesar de ser ficção interativa, Maurin não se limitou a criar uma linha de diálogo com pontos de morte ou desistência, foi desenvolvida toda uma estrutura lógica de suporte ao jogo assente em quatro grandes variáveis: Moral, Relacionamento, Orçamento e Inventário. Desta forma, cada nova vez que jogamos, ou reiniciamos o jogo, podemos passar por eventos diferentes, mas mais importante é sentirmos o evoluir da nossa relação em função das nossas escolhas, o que contribui para nos aproximar do casal, tanto de Majd como de Nour. Sobre tudo isto, o jogo (se jogado no modo normal) condiciona a jogabilidade a tempo real, ou seja, vamos interagindo com Nour à medida que ela vai progredindo no terreno, o que pode levar horas ou dias.

No campo da narrativa, consegue conduzir-nos a estabelecer uma ligação com as personagens, enfatizada pelas nossas escolhas interativas que nos vão fazendo compreender melhor quem são aqueles personagens, e porque fazem aquilo que fazem. O mais relevante de tudo para mim, acabou por ser a proximidade que se desenvolve, obrigando-nos a "abrir os olhos" e a sentir aqueles refugiados como nós mesmos, porque apesar de virem de outro continente, pouco ou nada diferem de nós, partilhando culturas tão pouco diferentes das europeias. O jogo acaba assim por funcionar como um excelente medium na comunicação das diferenças mas acima de tudo das semelhanças, fazendo mais pela compreensão dos refugiados do que muito do jornalismo que vimos ao longo destes últimos anos.

dezembro 11, 2017

"Ilíada" de Homero

Durante muito tempo me questionei porque sempre que se citava Homero, ou se citavam os clássicos da literatura grega, era da “Odisseia” que primeiro se falava, quando em termos cronológicos, tanto da sua conceção como da história contada, é a “Ilíada” o primeiro dos dois livros. Não compreendia, até porque na tradição contemporânea, o mais importante das histórias está normalmente associado ao primeiro livro, ou primeiro filme, não passando os restantes de sequelas, sucedâneos, que não raras vezes falham em atingir o nível dos primeiros volumes das séries. Assim, e tendo eu lido primeiro a “Odisseia”, no ano passado, agora terminada a leitura da “Ilíada”, compreendi o porquê, e é sobre isso que me irei deter nas próximas linhas.

"O Triunfo de Aquiles" por Franz Matsch, num fresco do século XX, em que se vê Aquiles puxado pelos seus "cavalos de casco não fendido", arrastando, pelos pés, o corpo de Heitor.

A “Odisseia”, como o próprio título indica, trata uma viagem, no caso, a do regresso de Ulisses a casa, depois dos 10 anos que duraram a Guerra de Tróia. Já a “Ilíada” foca-se nessa guerra, mas se dá conta das razões que a ela conduziram, acaba por depois se centrar quase exclusivamente num punhado de eventos, realizando avanços e recuos ao longo de toda a sua descrição, sem nunca chegar a concluir o que inicia. Assim, temos como razão para o início da guerra, um tanto tonta como Heródoto já terá dito: Paris, filho do rei de Tróia, rapta a mulher, Helena, do rei de Esparta (Antiga Grécia), Menelau, e fogem ambos para Tróia, fazendo com que os gregos se levantem em sua perseguição, e iniciem uma guerra de 10 anos para destruir Troia e reaver Helena.

A edição em capa dura da Cotovia é deliciosa, mas o melhor continua sendo a tradução, como já havia dito a propósito da "Odisseia", realizada por Frederico Lourenço.

Os avanços e recuos nesta guerra acabam por ocupar a maior parte do livro, com as peripécias dos diferentes personagens. Do lado de Tróia: Paris, o seu irmão Heitor, e pai Priamo, ou o militar Eneias, que surgirá mais tarde como personagem principal da “Eneida” de Virgilo. Do lado dos gregos, temos Menelau, Agamenon, Ajax, Pátroclo e Ulisses que será o principal personagem da “Odisseia”. O miolo da narrativa arrasta-se bastante, não fossem as intervenções dos Deuses (Zeus, Ares, Afrodite, Atena, Apolo, Hera, Poseidon, etc.) em defesa de cada fação! Sim os Deuses defendem lados e atacam-se uns aos outros, tornando-os numa das mais interessantes atrações deste livro.

O núcleo da narrativa, acabará por surgir apenas na última parte do texto, com Aquiles a assumir por completo o protagonismo, a ponto de no final se tornar inevitável ler a “Ilíada” como o livro de Aquiles, ou como é reconhecido por alguns, "A Ira de Aquiles". Isto é no mínimo surpreendente, já que apesar de Aquiles surgir desde o início, ele é praticamente secundário durante todo o livro, contudo o modo como depois Homero o trabalha nesse último terço, acaba por elevar a sua personagem a um ponto de destaque não dado a mais nenhum dos restantes elementos. Aliás, em parte, o problema desta "Ilíada" está exatamente no quão pouco trabalhados vão surgindo cada um dos personagens, completamente lineares, ao contrário do que acaba por acontecer com Aquiles, o problema é isto acontecer apenas na reta final. Repare-se como em a "Odisseia", o trabalho de desenvolvimento de personagem recai sobre Ulisses mas esse é trabalhado o início ao final do poema.
“E Aquiles atirou-se a ele, com o coração cheio de ira
selvagem, e cobriu o peito à frente com o escudo,
belo e variegado, agitando o elmo luzente
de quatro chifres. Belas se agitavam as crinas
douradas, que Hefesto pusera cerradas como penacho.
Como o astro que surge entre as outras estrelas no negrume da noite,
a estrela da tarde, que é o astro mais belo que está no céu —
assim reluziu a ponta da lança, que Aquiles apontou
na mão direita, preparando a desgraça para o divino Heitor,
olhando para a bela carne, para ver onde melhor seria penetrada.”
Canto XXII 
Se é crível o despoletador da chama de Aquiles (a morte do seu amigo Pátroclo)? Julgo que é tão crível como uma cidade inteira deixar-se levar para uma guerra destrutiva por causa de um capricho, moralmente indefensável, de um filho de um rei. No fundo a "Ilíada" mostra, como desde a primeira hora, a narrativa teve de lidar como problemas de dissonância cognitiva, no caso: com tantos e tantos personagens mortos de formas violentíssimas, descritas para nos fazer sentir o terror da guerra, quer depois a narrativa que se chorem alguns desses personagens em particular, como se umas vidas tivessem mais valor que outras. Isto apenas se explica porque como muitos foram dizendo, estes poemas épicos não procuram retratar a realidade, antes dão conta de histórias populares, folclore, com um sentido de puro entretenimento, recorrendo à fantasia e mitologia.

Neste sentido, interessa menos a credibilidade do que se conta, e mais a ênfase do heróico dos personagens, que para o ser requer emocionalidade, e nesse campo Aquiles acaba sendo um dos poucos a ser capaz de nos emocionar. Faltam episódios marcantes, mais ainda quando comparado com a “Odisseia”, nem mesmo o Cavalo de Tróia aqui surge, ou o tendão de Aquiles, ainda que no último terço surjam todo um conjunto de eventos fortes enquadrados pela Ira de Aquiles — a morte de Pátrocolo; o resgate do seu corpo; a luta entre Heitor e Aquiles; a morte de Heitor; e o pedido de Priamo para levar o corpo do seu filho Heitor de volta.

"Priamo implorando a Aquiles" (1815) de Bertel Thorvaldsen 

Dito tudo isto, julgo que fica clara a relação das duas obras, e nomeadamente porque “Odisseia” vai surgindo quase sempre como a referência desta época. Não fosse a “Íliada” o primeiro poema épico sobrevivente (depois do curto poema “Gilgamesh”),  e provavelmente acabaria esquecido na nossa história. Tudo o que tem para oferecer é imensamente melhor conseguido na “Odisseia”. Ainda assim, não posso deixar de recomendar a sua leitura. É um processo lento, mas em que o crescendo se vai instalando, para no último terço, vivido com Aquiles, recompensar todo o nosso investimento. Como já tinha dito a propósito da “Odisseia”, Homero parece um autêntico realizador de cinema de Hollywood, capaz de nos arrastar pelo pescoço, com a emoção pendurada desde o canto do olho até à ponta do coração. Pura visceralidade, não fosse este é um Poema Épico.


A ler:
"Odisseia" de Homero, in Virtual Illusion

dezembro 10, 2017

Nolan salvo por Churchill

Dunkirk” (2017) é pura sensorialidade. É um filme sobre guerra que trata o que acontece numa guerra do ponto de vista da emocionalidade humana, individual e coletiva. Não há lugar para a discussão ou intelectualização do que está a acontecer, é tudo muito rápido e munido de um objetivo único, a sobrevivência. Nolan criou uma obra poderosa através de uma enorme síntese de informação e da modelação dos ritmos visual e sonoro que impedem o espetador de desligar.



Nolan trabalha a narrativa em três linhas distintas — na terra, pelo ar, e pelo mar — de modo a intensificar a emocionalidade.

Dunkirk” é um hino à arte de mostrar em vez de contar. Dada essa capacidade, de economizar no relato, de secundarizar a descrição, quase poderia ter sido feito por meio de meros quadros, ou fotografias estáticas, coladas pela música poderosa de Hans Zimmer. Nolan não quer dar conta do quê e do porquê, Nolan está apenas focado no que se sente. Claramente que é tudo espetacularizado, e por isso acabamos por sentir apenas o desnorte, o desapego, já que o medo real não consegue chegar até nós, nomeadamente por estarmos constantemente a ser estimulados pela surpresa.

No final do filme não sabemos porque aconteceu nem como foi possível acontecer tal, mas isso não é relevante. Em última análise o filme de Nolan corria o risco de se transformar num mero enorme teledisco, mas isso não acontece. Não, porque existe algo de surpreendente que ele consegue fazer-nos sentir. Depois de criada a dissonância cognitiva narrativa, comum em histórias de guerra em que as histórias se focam numa vida enquanto deixam morrer milhares, esta acaba sendo ultrapassada. Ou seja, se a meio do filme sinto o desperdício de tempo dedicado a um ou outro personagem, porque ao lado existem milhares a tombar, no final, tudo isso se apaga quando a força das palavras de Churchill são lidas a partir de uma folha de jornal.
“Even though large tracts of Europe and many old and famous states have fallen or may fall into the grip of the Gestapo and all the odious apparatus of Nazi rule, we shall not flag or fail. We shall go on to the end, we shall fight in France, we shall fight on the seas and oceans, we shall fight with growing confidence and strength in the air, we shall defend our island, whatever the cost may be, we shall fight on the beaches, we shall fight in the landing grounds, we shall fight in the fields and in the streets, we shall fight in the hills; we shall never surrender, and even if, which I do not for a moment believe, this island or a large part of it were subjugated and starving, then our Empire beyond the seas, armed and guarded by the British fleet, would carry on the struggle, until, in God’s good time, the New World, with all its power and might, steps forth to the rescue and liberation of the old.”
“Speech on the Evacuation”, por Winston Churchill à House of Commons, no Parlamento do Reino Unido, 4 Junho 1940 (Discurso audio completo, 12m)
Mas tudo isto demonstra que a sensorialidade de Nolan não chegava. Sem a racionalização, intensamente impressiva, de Churchill, o filme de Nolan teria sido uma grande obra plástica, mas vazia.

dezembro 09, 2017

Nintendo Storytelling

Em 2017 a Nintendo lançou a sua nova consola Switch de que aqui dei conta com grandes expectativas, mas não é para falar da consola que escrevo já que com ela chegaram ao mercado neste mesmo ano, os seus dois novos títulos bandeira, “The Legend of Zelda: Breath of the Wild” que abriu as hostes e fez muitos de nós, eu incluído, correr a comprar, e “Super Mario Odyssey” que saiu agora mais perto do Natal. Interessa-me então neste pequeno apontamento sintetizar algumas ideias que tenho vindo a trabalhar em redor do design de jogo destes dois jogos, que simbolizam o design de excelência da Nintendo.



Começar por dizer que joguei ambos, Zelda e Mário, mas não terminei nenhum. No caso de Zelda, apesar do design inovador apresentado por força do novo modelo de mundo aberto, com um level design perfeito, uma progressão clara e apelativa, com todo um mundo muito bem orquestrado, não senti que o jogo puxasse por mim. Já com Mário, acho que nem sequer coloquei a hipótese de o terminar, pois nunca o fiz antes com nenhum da série. Joguei ainda menos que Zelda, apesar do design de jogo vir ainda mais artilhado, ou seja apresentando clara diferenciação face aos títulos anteriores, podendo classificá-lo mesmo como muito imaginativo, um hino ao fator divertimento, melhor do que qualquer parque temático.

Mas então porque não termino estes jogos? Julgo que o problema está no storytelling. Ou seja, a Nintendo utiliza o storytelling como mecânica de jogo, e não como meio para contar histórias. O modelo criado por Miyamoto, e que continua a servir a Nintendo até hoje, define o storytelling como mero condutor da ação para um fim, mas que nunca é afetado por essa ação, nem por esse fim. Ou seja os personagens evoluem nas suas capacidades de ação sobre o mundo, mas não mudam por dentro. E isto acontece porque Miyamoto não trabalha os personagens como pessoas, mas apenas como objetos. Atribui-lhes apenas capacidades de ação sobre o mundo, esquecendo as capacidades para sentir as ações desse mundo. No fundo, temos uma espécie de objetos semi-inteligentes, robôs, que nada mais sabem ou querem saber, além de circular por mundos em busca do seu fim (“a princesa perdida”), a quem vão sendo apresentados obstáculos que eles têm de resolver.

Ou seja, Miyamoto é magnífico no desenho dos obstáculos, e ainda mais no desenho das ações de resolução desses obstáculos, no modo como interliga todos os objetos e personagens na cena, mas não perde um segundo a pensar no que tudo isso representa para o seu personagem, e menos ainda para o seu jogador. Miyamoto joga tudo no fator divertimento, na criação de um sentido de fluxo pleno, por meio de ativação da lógica sobre o qual trabalha brilhantemente os ritmos de recompensa e punição, que garantem a emocionalidade, muitas vezes visceral. Mas nada do que se faz releva para o sentir dos personagens, nem o fim objetiva a dar qualquer significação aos esforços encetados.



E é por isso que quando comecei a jogar “The Legend of Zelda: Breath of the Wild”, apesar de sentir imensos avanços na lógica do design, não consegui deixar de sentir que estava a repetir a experiência vivida em “The Legend of Zelda: Skyward Sword” (2011). Zelda tem bastante mais lore que Mario, mas o lore serve de mera gratificação estética, não corresponde às necessidades de um contar de histórias, é preciso mensagem, é preciso existir algo para dizer, se não ficamo-nos pelo mero window dressing, indo pouco além do storytelling que qualquer ride de parque temático oferece.

Com tudo isto não quero dizer que os jogos são maus, ou irrelevantes, apenas constato o modo como são desenhados, acreditando que para esse desenho se tem em mente um público mais juvenil, que procura menos significação e mais gratificação emocional. O mesmo público que adora parques temáticos, sendo que existem muitos adultos que continuam a gostar dos mesmos. O mais interessante para mim é verificar que o storytelling é aqui uma mecânica, que serve ao lado das restantes mecânicas do design de jogos, para nos manter engajados no tempo, nada mais.

What Remains of Edith Finch (2017)

É uma experiência de sublimação. À medida que vamos jogando, vamos ficando a conhecer a família Finch, e quanto mais vamos sabendo mais nos vamos emocionando, como se aquela família pudesse de algum modo representar todas as famílias e nos pudesse dar um olhar para a realidade da vida, para aquilo que representa estar-se vivo. É história, é ficção, é um jogo mas podia ser um filme, ou melhor ainda, um livro, porque para quem gosta de literatura a casa dos Finch mais parece um paraíso na Terra (ainda que tivesse gostado de ver um melhor trabalho de curadoria dos livros em função das pessoas e partes da casa, nomeadamente evitando repetições).




Em termos de jogo, temos uma espécie de walking simulator munido de uma série de inventivos minijogos. À partida, os minijogos atirarmos-iam logo para sequências inconsequentes, ou mesmo irrelevantes, contudo em “…Finch” estes assumem um caráter de grande relevância, não apenas pelo engenho e imaginação, mas porque funcionam como mudança de ponto de vista, permitindo que a voz que narra se desdobre, alargando o nosso conhecimento daquela realidade e densificando a experiência. Podemos mesmo dizer que a partir do meio do jogo, começamos a sentir uma enorme vontade de encontrar esses pontos, na ânsia por descobrir como será a experiência, mas também por tudo aquilo que esses pontos representam na árvore genealógica foi Finch.

No campo da história, o primeiro impacto da nossa tentativa de compreender o que nos está a ser contado, é de incredulidade. Não é por acaso que Marty Silva, no IGN, classifica a mesma de realismo-mágico. Ultrapassada essa barreira, deixando-nos inebriar pela história, vamos seguindo o fio da mesma, aceitando o fantástico, mas ao mesmo tempo relacionando-o com a nossa realidade, compreendendo aquilo que se nos conta como exagero mas próximo, sentido e realista. Ou seja, temos uma universo profundamente trágico, mas ao mesmo tempo divertido, porque aceita a tragédia como parte daquilo que faz de nós seres-humanos.



Para que tudo isto funcione, ajuda imenso a arte visual e sonora. A narração é suportada por uma voz graciosa, que vai pautando o ritmo do jogo, por sua vez amplamente suportada por texto que surge diretamente no mundo virtual, intensificando aquilo que o jogo vai querendo dizer. Se em termos de design faz lembrar walking simulators como “Firewatch” (2016) ou “Gone Home” (2013), em termos de experiência estética, tanto no aspeto visual como pela personagem principal, aproxima-se bastante de “Life is Strange” (2015).

Ian Dallas já nos tinha dado antes o belíssimo “The Unfinished Swan” (2012), uma aventura surrealista movida por um game design de pura inventividade. Desta vez, provavelmente movido pela morte da sua mãe, Shirley Dallas (1948-2013), a quem dedica o jogo, seguiu uma abordagem de design mais simples, focando-se no contar de história, dotando-o de um discurso direto, assumido pelas vozes e textos, secundarizando em parte o game design, com o objetivo claro de ir mais ao fundo do sentir dos personagens do universo criado. Um criador para continuar a seguir.

Uma imagem que dá conta da qualidade da arte visual.

dezembro 08, 2017

Pode a IA dar-nos melhor literatura?

Stephen Marche é um escritor canadiano com obra publicada e reconhecida, dedicando uma boa parte do seu trabalho à escrita de artigos e histórias para a Esquired, L.A. Review of Books, Wired, The Guardian, New York Times, entre muitas outras publicações internacionais. No meio de toda essa atividade, e como diz, estando atento ao desenvolvimentos computacionais, nomeadamente da IA, resolveu criar uma história com a ajuda de um desses programas de IA, na expectativa de conseguir criar algo nunca visto. A história é publicada na Wired deste mês, e no final conta com a análise de dois editores de topo.


O programa utilizado foi desenvolvido por dois investigadores da Universidade de Toronto, Adam Hammond na área das Humanidades Digitais, e Julian Brooke na área das Ciências da Computação. A aplicação consiste num comparador de histórias, baseado em estruturas e estilo, usando técnicas de "machine learning", como o "topic modelling", para sugerir e guiar o escritor no seu processo de escrita. Pode-se assim ir escrevendo bocados de texto e obtendo comparações com os textos existentes a vários níveis, desde o simples uso das palavras, a estrutura frásica, os nós narrativos, chegando assim aos estilos de artistas reconhecidos. Marche utilizou a ferramenta para otimizar o seu trabalho criativo, tendo utilizado como base de suporte à máquina, alguns textos de referência de grandes autores da ficção-científica — Ursula K. Le Guin, Philip K. Dick e Ray Bradbury. O resultado pode agora ser lido na Wired.

O género literário da FC não é muito exigente em termos de escrita, os seus autores são mais reconhecidos pelos universos que criam do que pela beleza da sua prosa. Daí que encetar um esforço destes na área da FC poderia ser um bom ponto de partida, contudo da leitura do texto percebemos que o resultado acaba por ficar bastante aquém. Vale a pena ler as notas que Marche faz na lateral do texto, explicando as interações com a máquina, para ir percebendo o processo e o input da máquina num texto, que ainda assim conta com imensa mão humana.

Se dúvida houvesse quanto à qualidade, fica a primeira impressão de Andy Ward, editor da Random House, que não sabendo nada sobre o origem da história, diz tudo sobre o caminho longo que a IA ainda terá de percorrer:
“Full of unnecessary detail, wooden, implausible dialog (Who talks like this?), and sentences that don’t actually hold up when you read them carefully. They seem like they hold up, but they don’t. It’s aimless. It uses language to describe things rather than reveal them (flowing “brightly and glamorously,” etc.). That stuff doesn’t sound human—or, better, doesn’t sound writerly. Feels like words on a page.” 
Andy Ward, editor da Random House