Há duas semanas
apresentei uma comunicação na qual dava conta dos problemas de estarmos a criar uma sociedade baseada no digital, baseada na imensidão de dados que pululam na internet, uma sociedade
que segundo Harari se está a virar da ciência e da religião para os dados, criando assim um novo movimento, o dataismo. Nessa altura apontei como alguns dos problemas na base do dataismo, as “Notícias Falsas” e os “Factos Alternativos”, mas optei por não desenvolver, crendo ser algo já amplamente reconhecido. Contudo a leitura recente de um texto da Wired
sobre a condição da mulher na Rússia mostrou-me algo que me tinha passado um pouco ao lado, a génese das Fake News internacionais.
O Brexit e a eleição de Trump trouxeram para o centro da discussão internacional o impacto das Notícias Falsas nas sociedades, nomeadamente pelo facto da Rússia se ter transformado, de novo como que renascida das cinzas, em arqui-inimigo dos EUA e simultaneamente do bloco UE. Só que desta vez o problema não assenta em força bruta, armas ou nuclear, assenta em algo muito menos visível mas paradoxalmente muito mais próximo, que entra pelas nossas casas e vidas adentro, a internet. Sobre esta rede como um todo, mas com particular destaque para as redes sociais —
Facebook e
Twitter —, pode dizer-se hoje, sem grande exagero, que se transformou no
Cavalo de Tróia perfeito para quem quer que deseje agir na arena geopolítica.
Mas como é que isto aconteceu? E como é que ninguém previu isto?
Existem vários pontos que sustentam o surgimento deste fenómeno. O primeiro é naturalmente a passagem de toda a informação e comunicação dos meios tradicionais para o meio digital. Ou seja,
toda a comunicação social, todas as empresas, todas as pessoas a nível pessoal, e claro também todos os governos passaram a comunicar através de uma canal único, a internet. Neste quadro, não só todos têm acesso às mesmas ferramentas de produção de informação, como todos acedem ao mesmo canal para divulgar e promover as suas ideias. Isto forçou o aparecimento de técnicas de comunicação que se assemelham mais a propaganda e menos a comunicação. Se primeiramente vimos as empresas a fazer uso destas, rapidamente os governos começaram a pensar que essa era também a única via.
Recordemos a revolução da década anterior no seio das indústrias criativas, nomeadamente musical e cinematográfica, em que as empresas viram os seus lucros cair a pique porque os seus produtos eram partilhados na rede pelas pessoas, minimizando drasticamente a necessidade de compra de novas cópias. As soluções encontradas foram múltiplas, desde processos em tribunal e consequente capacidade para eliminar sites que partilham, às atuais plataformas de streaming, mas pelo meio e de forma muito menos visível e menos discutida, as empresas utilizaram tácticas, e continuam a utilizar, de contrainformação. Ou seja, se tentarem procurar hoje na rede algum filme, música ou livro para fazer download vão encontrar dezenas e dezenas de links e sites dedicados, mas falsos. Os sites possuem descrições das obras, possuem vários botões que apontam para o potencial local em que se pode descarregar a mesma, mas nunca se chega a aceder verdadeiramente a obra. Faz-se circular por labirintos de informação falsa, sem retorno, cansando assim o potencial “pirata” levando-o a desistir das suas intenções.
Ora foram exatamente estas mesmas tácticas que a empresa conhecida como
Internet Research Agency baseada em St. Petersburg, mas às ordens do Kremlin, começou a utilizar para manipular a política interna. Putin está no comando da Rússia há quase duas décadas e isso num país com as assimetrias e dimensão que se conhecem não se consegue sem um controlo muito grande das populações. Não podemos esquecer que Putin foi agente do KGB, e depois diretor do mesmo, é alguém profundamente treinado no secretismo, nomeadamente na arte da manipulação humana. Deste modo quando Putin percebeu que apesar de controlar toda a Comunicação Social no seu país, a informação imparcial continuava a jorrar e entrava diretamente em casa da população por via da internet, foi obrigado a agir. Primeiramente tentando controlar a informação que circulava na rede, o acesso a meios internacionais, mas rapidamente percebeu, ao contrário da China (
não que a China não esteja a acordar para o fenómeno e talvez de forma ainda mais brutal), que não podia controlar a internet e por isso subiu a parada.
O passo seguinte foi inundar a internet com toneladas de informação falsa, impedindo os cidadãos russos de conhecer a verdade, ou pelo menos criarem uma base sólida sobre a realidade.
Falamos de uma técnica antiga de guerrilha,
a contrainformação, utilizada em toda e qualquer disputa pela verdade, e já amplamente utilizada pela URSS no passado. Mas no passado o governo da URSS limitava-se a deter os meios de comunicação social para debitar a informação que lhe interessava, criando assim uma sensação, imensamente descrita pelos povos que viveram sob esse regime, de choque permanente entre realidade e ficção. Hoje numa Rússia aparentemente mais livre, dotada de internet, é mais difícil controlar a informação que se produz, desse modo a alternativa que sobrou foi a de produzir informação falsa e contrária misturando-a com a demais. Se antes o povo sentia que aquilo que os órgãos de comunicação social da URSS diziam não se ligava muito com a vida real que levavam, hoje o povo ao aceder à informação e contrainformação, acaba por ficar de tal forma baralhado, sendo conduzido ao mesmo ponto do “pirata” de música, o de desistência.
Esta questão torna muito mais claro e óbvio o que viria a acontecer no ano passado com o Brexit e Trump. Depois de criada a “Fábrica de trolls” na Rússia, e controlada a sua própria população, era preciso continuar a dar trabalho a todo um exército digital, e nada poderia ser mais apetecível do que a destruição dos seus rivais, no fundo os responsáveis pela entrada da tal “informação imparcial” no seu país por via da internet. O bloco europeu, mesmo ao lado, tem sido uma das maiores ameaças ao seu poder, muito provavelmente um dos maiores responsáveis pela queda da URSS, pelo exemplo democrático, de modo que tudo o que puder afundar esse bloco servirá a causa de Putin. Já no caso dos EUA não seria preciso grande motivação para além de todo o historial entre os dois países, mas é claro que a supremacia económica e cultural ainda detida pelos EUA continua a ser um alvo apetecível.
É claro que se o problema tivesse partido de Putin e tivesse ficado contido na sua figura, como o “elo do mal”, nada disto seria muito preocupante para os povos não governados pelo mesmo. Ou seja, se os restantes governantes e políticos tivessem recusado estas tácticas e se tivessem desviado das mesmas, o seu impacto teria sido muito atenuado. O problema é que tivemos políticos em todo o lado,
dos EUA ao Reino Unido, passando pelos casos mais recentes da Alemanha e Áustria que resolveram enveredar pelo mesmo caminho. Alguns assumindo uma fachada de inocência, limitando-se a surfar a onda proporcionada pela contrainformação das fábricas russas, outros indo mais longe, iniciando as suas próprias estratégias, se não produzindo especificamente contrainformação, fazendo uso das mesmas tácticas de apelo emocional. Ou seja, fazendo política com base no nacionalismo como forma de luta contra a crise económica internacional, como pudemos ver na Hungria, em Inglaterra, na Holanda, em França, na Alemanha, na Áustria e agora mesmo iniciando-se a nível regional em Barcelona e no Norte de Itália.
Fica só a faltar o último “player” de toda esta equação, as redes sociais, porque se a internet é o canal que tudo proporciona, as redes sociais são as plataformas que verdadeiramente interligam todas as pessoas, predispondo-as a abrir-se à informação, mas acima de tudo à comunicação. Neste sentido as redes sociais tornaram-se muito mais poderosas que os órgãos de comunicação social, pois acreditamos mais num ato de comunicação do que num de mera informação. Ou seja, em conversas que possamos ter com outros, que vão reforçando as nossas crenças, porque são nossos amigos próximos, e nos habituámos a respeitar. E por isso se uma informação começa a circular sem fundamento, mas alguém próximo de mim a partilha, abre-se desde logo um precedente para que eu próprio inicie a crença nessa informação. E uma vez instalada, torna-se difícil de apagar, mesmo quando a informação surge desmontada, porque mais uma vez, acreditamos mais nas pessoas iguais a nós do que em órgãos de informação abstratos. Veja-se o caso decorrido esta semana em Portugal, que ficou conhecido por "
Chemtrails".
Não admira então que dentro de poucos dias,
a 1 de Novembro, o Twitter, o Facebook e a Google vão ser ouvidos nos EUA pelo Senate Select Committee on Intelligence, uma audição imensamente aguardada não apenas para tentar compreender melhor o que aconteceu com a eleição de Trump, mas para tentar compreender o papel que estas três empresas estão verdadeiramente a desempenhar na formação e manipulação da opinião pública. A quantidade de dados que existem já oferecem poucas dúvidas à intromissão da Rússia nas eleições americanas de 2016, seja pela produção de contrainformação, seja pela recente descoberta de
compra de anúncios por esta. O cenário para um completo embuste foi montado, agora falta descobrir o quão efetivo verdadeiramente foi. E a verdade é que
a imagem de Silicon Valley não sairá disto incólume.
“I think the time has come that we are going to see an end to Internet exceptionalism where platforms can continue to claim some sort of immunity because of their nature.
It's going to be an interesting moment of seeing where the rubber hits the road in terms of…their kind of market positions as bastions of liberal ideals, and their distaste and disdain for being regulated by anyone but themselves”.
Posto tudo isto, encontramo-nos numa encruzilhada. Criámos as melhores tecnologias de informação e comunicação algumas vez existentes, mas em vez de servirem para nos unir, parecem estar a produzir o oposto. Pode parecer surpreendente, mas não é. Na verdade as tecnologias não mudam o ser-humano, apenas ampliam as suas qualidades, e claro os seus defeitos. Neste caso a internet e as redes sociais estão a fazer exatamente isso, a ampliar a nossa sede de comunidade, a nossa sede de grupo, e essa precisa de ser alimentada, precisa de "um outro". A criação de uma comunidade global completa não deixa de ser uma utopia, tal como a Torre de Babel o foi. Precisamos de cola para unir o grupo e a comunidade, e essa só pode ser fornecida pela existência de perigos a partir dos outros, iguais a nós mas em quem sempre encontraremos a diferença. Porque no fundo, aquilo que verdadeiramente nos une enquanto comunidades, não é a fraternidade, mas o medo.