outubro 22, 2016

“A Chave de Casa” (2007)

A escrita de Tatiana Salem Levy é simples mas poética, gera ritmo que nos envolve, cria fluir que nos arrasta. Com uma história que apesar de também simples, está estruturada de modo não-linear, por meio do entrelaçamento de 4 histórias, em paralelo, que se unem na figura da família da narradora. Enquanto primeira obra e enquanto trabalho de projeto a apresentar como parte de uma tese de doutoramento em literatura, é um trabalho surpreendente.


Abertura do livro: “Escrevo com as mãos atadas. Na concretude imóvel do meu quarto, de onde não saio há longo tempo. Escrevo sem poder escrever e: por isso escrevo. De resto, não saberia o que fazer com este corpo que, desde a sua chegada ao mundo, não consegue sair do lugar. Porque eu já nasci velha, numa cadeira de rodas, com as pernas enguiçadas, os braços ressequidos. Nasci com cheiro de terra úmida, o bafo de tempos antigos sobre o meu dorso. Por mais estranho que isso possa parecer, a verdade é que nasci com os pés na cova. ”
Levy começou a sua tese da forma mais tradicional, desenvolvendo um trabalho de fundo sobre a literatura brasileira contemporânea, contudo a insatisfação com o academismo do mesmo acabaria por a conduzir à criação deste romance, que surge desta forma como a sua primeira obra literária. A essência deste seu trabalho acaba assim por residir na exploração das raízes do Si por meio de uma análise em detalhe das suas ramificações familiares, que são particularmente instigantes pelo resumo que se pode ver aqui:
Excerto: “Nasci no exílio: em Portugal, de onde séculos antes a minha família havia sido expulsa por ser judia. Em Portugal, que acolheu meus pais, expulsos do Brasil por serem comunistas. Demos a volta, fechamos o ciclo: de Portugal para a Turquia, da Turquia para o Brasil, do Brasil novamente para Portugal.”
Na temática, o título da obra, “A Chave de Casa”, e seu leitmotiv, baseiam-se exatamente num mito em redor da partida dos judeus de Portugal. Os judeus, perseguidos pela inquisição em Portugal, fugiam levando consigo as chaves de casa, na esperança de poderem voltar um dia ao que era seu. O livro por sua vez leva-nos do Brasil, à Turquia, na volta passa por Portugal, criando um circuito de costumes, sonhos, ideais, e muitos fantasmas que são a motivação das nossas vidas.

Em termos de estrutura, o entrelaçar narrativo a 4 tempos é sedutor, mantém-nos em suspenso, sempre na espera do próximo trecho de cada história, embora soe por vezes algo formulaico, pouco orgânico, algo que não é alheio à inexperiência de uma primeira obra.

outubro 20, 2016

"Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881)

Um livro que precisa de ser encarado de dois ângulos distintos, o da história da literatura e o do prazer de leitura. Ou seja, o livro é um marco na literatura brasileira, não apenas por ser do "pai" da sua literatura, mas por ter aqui iniciado, na sua escrita e na do Brasil, todo o Realismo. Na língua portuguesa, tinha Eça iniciado o movimento com “O Crime do Padre Amaro” (1875), ao que Machado não foi indiferente, tal como não vinha sendo indiferente a Zola e Flaubert. Esta obra de Machado de Assis é assim o primeiro tomo da trilogia realista do autor, a que se sucedeu "Quincas Borba" (1891) e "Dom Casmurro" (1899).


Tendo em conta a inovação procurada por Machado de Assis nesta obra, com toda a mudança de registo operada, é natural que no texto se sintam fragilidades, como se sentem na obra de Eça. Estamos a falar de experimentação, da procura de novos modos, o que implica sempre falhar para conseguir ir além. Não estou com isto a dizer que a obra é falhada, longe de mim, antes quero dizer que lhe falta alguma fluidez, algum ritmo, mas que acaba sendo compensado pelo modo como apresenta o seu realismo, com um narrador, diria agressivo, que nunca deixa o leitor em paz, que assume um constante vai-e-vem entre o espaço ficcional e a nossa realidade. Algo que em minha opinião advém da experimentação com o real, parecendo a momentos, não estarmos a ler um romance, mas um texto não ficcional, mas que por outro lado Machado torna praticamente impossível com a premissa de partida, em que o narrador que conta a sua história está morto, o que por sua vez parece também querer aproximar-se de um certo realismo mágico que viria a surgir em força na América Latina do século XX.

Para quem quiser aprofundar a leitura, existe muito por onde se iniciar, desde logo porque o texto está pejado de referências, desde Shakespeare a Stendhal, passando por Homero, Virgílio, Erasmo, Schopenhauer, Bocage, Sterne até às “Mil e Uma Noites”. Sobre a obra em si, muito, mas mesmo muito existe, leituras entretanto realizadas capazes de encontrar traços referenciais desde a sua estrutura à filosofia apresentada na figura de Quincas Borba. Nada que nos admire, já que se o livro foi recebido com algum desconfiança, muito motivado pelo que dissemos acima sobre a experimentação e o novo, a verdade é que Machado de Assis viria a fundar a Academia Brasileira de Letras em 1897, sendo o seu primeiro presidente.


Nota: a obra foi publicada no formato de seriado no ano de 1880, surgindo em livro apenas em 1881.

outubro 17, 2016

Na Síria com uma mãe, em banda desenhada

A Marvel e a ABC News juntaram-se para criar a banda desenhada online “Madaya Mom” (2016), a partir de uma mãe real e do seu diário, escrito por meio de SMS partilhados com Rym Momtaz, produtora da ABC, que por sua vez contactou o artista croata, Dalibor Talajic, para juntos criarem a novela gráfica. O trabalho final é absolutamente brutal, autêntico e doloroso, toda a empatia aqui criada deixa-nos sem margem para continuar a olhar para o lado, e se alguém ainda tinha dúvidas de que é preciso parar o que está a acontecer na Síria, fica aqui mais uma chamada de atenção profundamente humana.



Arte e jornalismo para chegar ao sentir das pessoas

Madaya Mom” é a demonstração do poder da banda desenhada para comunicar, para ser literatura, para elevar a expressividade e tocar as pessoas no seu íntimo mais retraído. É autêntico horror psicológico o que aqui vemos, mas não é de fantasia, é sofrimento de uma família com 5 crianças reais, que passou do dia para a noite, de condições de vida do século XXI para condições de vida pré-históricas, sem acesso a comida, saúde, electricidade, nem aquecimento. Dá vontade de chorar e gritar no virar de cada página...

Não quero dizer mais nada, o trabalho é absolutamente sublime, e atinge todos os objetivos dos autores, que podem perceber melhor vendo o vídeo do making of. Para os professores que queiram usar este belíssimo trabalho nas suas aulas, a ABC disponibiliza ainda todo um Guia para o Professor. Esta não é a primeira banda desenhada sobre o conflito na Síria, já antes aqui tinha trazido “Syria's Climate Conflict" (2014).

Ler "Madaya Mom" na íntegra e gratuitamente.



Atualização: 17.10.2016 19:43
Vi esta notícia no Arts.Mic, entretanto depois de ter publicado percebi que o Público também tinha feito matéria hoje com o tema, e por acaso fiquei bastante bem. Ficam as referências.

outubro 15, 2016

"Vozes de Chernobyl" (1997/2013)

Fez em abril 30 anos o acidente de Chernobyl, um acontecimento trágico da nossa história recente, com ramificações dramáticas em múltiplas frentes, nomeadamente na relação entre o homem e a Terra que nos obriga a refletir sobre o conhecimento que andamos a criar. A tragédia arrepia tanto como fascina, pela nossa incapacidade de lidar com o resultado desse conhecimento, exercendo simultaneamente uma atração por um desconhecido imensamente poderoso, como se miticamente, tivéssemos despertado um Deus da Matéria que contra nós se virou. É sobre isto que Svetlana Alexievich escreve, usando para tal todo um estilo literário muito pessoal, humano, intenso e único.

"Do Deus da ciência e do conhecimento, ou do Deus do Fogo? Neste sentido, Chernobyl ultrapassou Auschwitz e Kolymá. Ultrapassou o Holocausto. Chernobyl sugere finitude. Vai de encontro ao nada.” (p.53)
Em 1986 compreendia pouco do mundo que me rodeava, mas o impacto do acidente chegou-me, mais histórias e mitos do que factos e informação, o que serviu para criar todo um imaginário que nunca deixou de se ampliar com os anos, com a queda do Muro e o jornalismo, com a banda desenhada, o cinema, e depois a internet. Nos anos mais recentes começaram a chegar imagens da Zona, dando conta do abandono e da retoma do espaço pela natureza, e ao mesmo tempo de um fascínio que continua intacto.

"Hotel Polissia" de Quintin Lake2007, Pripyat, Ucrânia

As Vozes de Chernobyl” foi publicado pela primeira vez em 1997, como fruto de 10 anos de entrevistas, tendo sido revisto e atualizado em 2013, podendo assim encontrar-se na versão atual menções a eventos recentes da história humana, contudo a generalidade dos relatos situam-se nessa janela temporal que medeia a primeira década após o acidente. À semelhança de outras obras da autora o registo resulta de entrevistas a centenas de pessoas reais, compostas num todo encadeado que dá corpo a um estilo descrito como polifónico, principal responsável pelo prémio nobel atribuído em 2015.

Quero contudo dizer que apesar de apresentado como não-ficcional, e de se enfatizar o  jornalismo como profissão da autora, a obra deve pouco a esses registos, essencialmente porque não se coíbe perante a falta de prova ou contraditório, não buscando nunca o mero ato informativo. É verdade que a obra de Alexievich brota do real, mas que obras não brotam, existirá outro espaço de onde alguma criação humana possa emergir além do real? São pessoas reais que falam, mas não são máquinas de registo de verdade, são seres criadores de mitos e histórias, por sua vez filtrados pela autora do texto.

O facto das entrevistas serem realizadas com pessoas reais, não torna o texto de Alexievich mais não-ficcional, já que ele se apresenta filtrado de modo assumidamente autoral. O exemplo fotográfico acima dá bem conta do poder significativo da filtragem do real.

Porque a técnica de Alexievich, que dá forma ao seu estilo polifónico, não se limita à filtragem ou escolha dos melhores relatos, não se podendo falar de mera curadoria. O trabalho resulta antes de todo um processo criativo que recorre às entrevistas como material base para a criação do texto final. Das 500 pessoas entrevistadas, a autora selecionou cerca de uma centena, que por sua vez entrevistou mais de vinte vezes, resultando cada pessoa numa “voz”, que se faz representar num bloco de mais de 100 páginas. Alexievich refere em entrevista, no prefácio, que era “como pintar um retrato. Continuava a contactar as pessoas, e de cada vez acrescentava uma nova pincelada.” Estas “vozes” formam assim as unidades de trabalho de Alexievich, que podem funcionar como as tintas do pintor mas que são muito mais densas do ponto de vista humano, contribuindo diretamente para o traço autoral do trabalho.

Aliás, e apesar da obra de Alexievich ter mais de 30 anos, o seu reconhecimento agora, é imensamente representativo da época em que vivemos, do momento em que finalmente aprendemos a reconhecer o valor do remix na cultura humana, em que compreendemos como a criatividade não existe sem esse mesmo processo de remix, já que não pode surgir do vazio. Sempre o soubemos, mas foi necessário o surgimento das tecnologias criativas e de comunicação, e de toda uma geração capaz de criar e recriar obras completas com recurso a uma mera conexão à internet, para que nos questionássemos sobre leis que tínhamos criado no passado (ex. copyright) que impedem exatamente todo esse processo criativo profundamente humano.

E também, porque somos tapeçaria, somos coletivo, somos fruto de gerações e gerações que nos precederam, e da que nos rodeia em cada momento, é por isso que a obra de Alexievich nos fala tanto. Porque não é apenas ela, o indivíduo que fala, mas como disse antes, as suas unidades de trabalho, as "vozes", dão-lhe toda uma força, não apenas por estarem ali, mas porque ela soube tão bem, por meio delas, reconstituir o espaço por meio do tempo, e assim criar uma história.

Em termos de experiência, recomendo uma contemplação faseada, já que a tapeçaria de vozes apresentada por Alexievich é intensamente dolorosa. Enquanto lia, acabei descrevendo o que sentia como "murros no estômago, uns atrás dos outros". O livro reflete uma realidade passada na Bielorússia, um país pequeno e distante, do qual pouco conhecemos, mas é daí que vem o filme mais doloroso que alguma vi, "Come and See" (1985) de Elem Klimov, que apresenta uma reflexão sobre uma tragédia anterior noa país, a ocupação Nazi. Os entrevistados de Chernobyl comparam amiúde os dois eventos, e um deles chega mesmo a falar da impressão forte deste filme (p.267) para definir o que sente face a tudo o que vive.


Neste sentido, preciso de aprofundar e referir que apesar de aqui desmontar o trabalho de Alexievich em termos da sua ficcionalidade, de o apresentar enquanto obra que vai para além do mero rótulo de não-ficcional, essencialmente por apresentar uma visão pessoal do mundo, existe nesta, tal como acontece no filme de Klimov, uma subliminaridade de verdade, um traço de fundo que a todo o momento clama, dizendo, 'estas pessoas são reais', 'o seu sofrimento aconteceu'.

Por outro lado, à medida que vamos adentrando no livro uma certa capa de insensibilização vai-se formando em nós, como que para nos proteger dos choques seguintes, ainda assim a construção narrativa funcionando em crescendo nunca nos dá verdadeiro descanso, o que por outro lado acaba contribuindo imenso para a manutenção do interesse na leitura. Num trabalho desenhado a partir de tantas vozes sobre um mesmo assunto, seria expectável alguma redundância e sensação de repetição, contudo isso nunca chega a acontecer, o que dá bem conta do trabalho em detalhe realizado pela escritora, e do modo como manipula as vozes para construir a sua própria visão narrativa do tema.
"Bétulas leves... Abetos pesados... Não vou voltar a ver nada disto? Prolongar a vida por mais um segundo, mais um minuto! Para que passei tanto tempo, horas, dias, em frente da televisão, entre pilhas de jornais? O mais importante é a vida e a morte. Nada mais existe. Não dá para os pôr nos pratos de uma balança... Percebi que só o tempo vivo tem um sentido... O nosso tempo vivo..." (p.250)
Ler "Vozes de Chernobyl" é importante porque ajuda a compreender Chernobyl, mas não só, ajuda a compreender o ser-humano, o modo como funcionamos individualmente e em colectivo, dando conta da resistência humana, tanto no campo biológico como cognitivo. Em certa medida até apazigua, porque atira alguns mitos de Chernobyl borda-fora, embora o faça à conta de evidenciar a relação perversa entre políticos, cientistas e o povo. Do mesmo modo lança luz sobre a manipulação de informação dos estados comunistas, e como isso contribuiu para o fim desses mesmos estados, o que não nos descansará muito se pensarmos no quão pouco tudo o que aqui se descreve, sobre essa manipulação, se diferencia daquilo que os estados capitalistas hoje fazem (ex. Edward Snowden).


Nota final: sobre o filme “Voices from Chernobyl” (2016) de Pol Cruchten, baseado neste livro, que tem tido boa recepção da crítica, mas que eu, apesar de apenas ter só visto o trailer, não tenho intenção de ver. Como disse acima, estamos perante uma obra profundamente autoral, criadora de profundas impressões em nós, e se até gostei visualmente do trailer, pouco ou nada o consegui relacionar com a minha experiência pessoal da leitura do livro, que prefiro preservar.

outubro 14, 2016

A manipulação do anonimato

Ainda não li Elena Ferrante, conto começar a ler a tetralogia apenas em janeiro do próximo ano, contudo não posso deixar de comentar o cansaço que sinto com toda esta defesa do anonimato da autora [1, 2, 3]. Percebo o que as pessoas querem dizer, mas estamos a incorrer num endeusamento de algo que verdadeiramente não queremos, e não estou com isto a defender a investigação do jornalista italiano.


Um texto não existe no vácuo, é sempre criado num tempo, espaço e por um ser humano. Essas são condições essenciais para poder estudar esse texto, para o poder compreender na sua plenitude, podendo inicialmente não o ser para dele usufruir, mas se quisermos chegar ao seu âmago, delas precisaremos. Sem qualquer uma destas variáveis presentes, podemos sempre tentar adivinhar por meio da obra, mas não a podemos verdadeiramente contextualizar, suportar, edificar, enquanto criação humana.

Se considero isto hoje importante, mais será no futuro, quando tivermos nas livrarias/cinemas, livros e filmes criados por máquinas. Para quem defende que a obra de Ferrante é o que importa, que não interessa absolutamente nada saber quem a criou, não está a dizer toda a verdade, porque na sua cabeça criou já uma identidade para essa autora, criou um imaginário que responde ao perfil de quem escreveu, onde e quando. Podem até defender que lhes chega, aceito, mas estão simplesmente a viver uma ilusão, uma ficção dentro de outra ficção.

O que pergunto, e porque de arte se trata, não mero entretenimento em que a autoria está por norma ausente, onde fica a verdade? Quem fala ali, quem é a pessoa que escreve, o que se passou com ela, o que viveu, o que sofreu, o que a fez/faz feliz? Como posso na verdade identificar-me com ela? As ideias não existem sem contexto, as histórias de vida não existem sem um autor que tenha vivido o mundo.

Defender, como parece Ferrante defender, que precisa do anonimato para criar com autenticidade, não é nada de novo, a literatura deve ser a arte com mais pseudónimos à procura de manter os seus autores anónimos. Até pode ser uma recusa da fama louvável, mas quantos criadores a recusaram e souberam viver sem necessitar destes subterfúgios! Se alguém quer verdadeiramente ser anónimo, não cria obras de arte, que só se realizam em atos de comunicação. A arte cria-se pela partilha, e a partilha não se faz no vazio, precisa de sujeitos, do lado criador e do lado recetor.

Vou mais longe, o anonimato é, nestes casos, profundamente manipulador, já que coloca em desvantagem quem está do lado da receção. O autor usa o desconhecimento no recetor para o conduzir, para construir na sua cabeça um ideal do autor, que nunca se poderá confirmar, porque nunca lhe será dita a verdade, atirando por terra todos os valores de lealdade e transparência que se esperam de quem a nós se dirige.

Não defendo que se invada a privacidade, que se vasculhem contas, mas também não aceito que se diga que é irrelevante saber quem é Elena Ferrante.

outubro 09, 2016

“Somewhere Down The Line” (2014)

Mais uma animação premiada que se pode finalmente ver online na íntegra. “Somewhere Down The Line” foi dirigida por Julian Regnard em 2014, e de entre vários prémios, arrecadou o prémio de Melhor Curta de Animação no 37th Clermont-Ferrand International Short Film Festival em 2015. A obra destaca-se pela qualidade da ilustração e tratamento da história.




Na ilustração temos um trabalho que por vezes roça a textura do óleo, com uma riqueza de camadas e cores que nos agarra o olhar e mantém seduzidos. Por outro lado, a composição de cor ao longo da animação acompanha com grande proximidade o que se vai narrando conferindo uma enorme coesão ao todo.

No campo da história, temos algo já bastante visto, a obra sobre o amadurecimento, ou a passagem pela vida, mas o que funciona muito bem é o modo como o tema é trabalhado em termos de originalidade, recorrendo à estrada e fundamentalmente ao objeto carro, para trabalhar a metaforização das principais ideias.

No campo da animação em si, temos um trabalho algo rígido, mas que acaba por servir imensamente bem os objetivos emocionais da obra. Tendo em conta tratar-se de um trabalho profissional, seria expectável maior detalhe, nomeadamente a animação dos diálogos, embora aqui se possa compreender como opção estética.

“Somewhere Down The Line” (2014) de Julian Regnard

outubro 08, 2016

“Os Buddenbrook” (1901)

Mann é um dos representantes literários da grande erudição e riqueza lexical — a par com Proust, Pessoa e Nabokov — capaz de comunicar o que tem para dizer de forma não apenas imensamente acessível, mas ao mesmo tempo envolvente e sedutora. A elevação do seu registo, apesar de complexo nunca se enreda em palavreado desnecessário ou meramente exibicionista. A construção do texto, por mais trabalhada que surja, parece nunca dizer de mais, nem de menos, como se tocasse sempre o acorde harmonicamente correto, permitindo-nos seguir o desenrolar da narrativa sem notar qualquer dissonância entre forma e conteúdo.


Os Buddenbrook” é antes de mais a primeira obra de Mann, publicada com apenas 25 anos, mas iniciada com 22 anos, o que só por si é verdadeiramente impressionante. Custa a perceber como é que alguém, tão novo, consegue o registo de elevação acima identificado, mas também como é que consegue o grau de amadurecimento para chegar às análises sociais e psicológicas apresentadas. Lobo Antunes estava claramente errado, quando criticou o prémio Leya 2014 dado a "O Meu Irmão" de Afonso Reis Cabral, com apenas 24 anos. São idades tenras para se criar com fôlego, mais ainda em literatura, mas as excepções existem, e Mann foi único. Não é por acaso, que apesar do Nobel (1929) lhe ter sido atribuído já depois de publicado “A Montanha Mágica” (1924), que o texto da Academia Sueca faça menção explícita ao seu primeiro livro, dizendo que o prémio lhe era atribuído, “principalmente pelo seu grande romance “Os Buddenbrook”, que conquistou crescente reconhecimento como um das obras clássicas da literatura contemporânea”.
"E o resto do dia obedecia a um ritmo livre e despreocupado, seguindo o rumo de uma vida maravilhosa dedicada ao ócio e ao bem-estar, sem sobressaltos nem preocupações: de manhã, enquanto lá em cima a banda executava o seu programa matinal, Hanno permanecia à beira-mar, deitado ou sentado aos pés da cadeira de praia, entretido, no seu jeito sonhador e distraído, com a areia fina e pura, os olhos, sem esforço ou dificuldade, vagueando e perdendo-se na imensidão verde e azul, os ouvidos envoltos num doce rumor que se desprendia, com liberdade e desembaraço, das ondas infinitas, uma brisa poderosa, fresca, selvagem, portadora de um perfume divino, apta a aturdir, a inebriar suave e subtilmente os sentidos, produzindo um mudo e aprazível esbatimento da noção do tempo, do espaço e de todas as fronteiras…" (p.528)
“Os Buddenbrook” é como poderão saber das sinopses, um épico familiar, seguindo uma influência de final do século XIX, à semelhança do nosso “Os Maias” (1888). Mann por sua vez, mais do que concentrar-se sobre as relações de amor, concentra-se especificamente sobre as relações que unem a família — avô, pai, irmãos, e laços de casamento — analisando a sucessão geracional, começando pelo auge do bem estar e terminando na perda de tudo. A obra é muitas vezes definida simplesmente pela história de decadência da família Buddenbrook, uma decadência que ultrapassou as fronteiras da literatura, e serve hoje áreas como a história e a economia, para identificar o que ficou conhecido por “efeito Buddenbrook”, ou seja, o facto de que a riqueza acumulada através dos negócios tende a declinar ao longo de um período de três gerações.

Mann procura alguma neutralidade no modo como apresenta a família e sociedade que a envolve, não tomando partido pela religião ou política, deixando no entanto emergir aquilo que em sua opinião marca as nossas vidas, opondo o materialismo ao espiritualismo, nomeadamente a oposição entre a vida burguesa (Thomas, pai e avô) e a vida de artista (o irmão Christian, e o filho Hanno). A primeira com as suas regras e rituais que obrigam a casamentos combinados em função do bem de toda a família, ao respeito das normas e complacência com o funcionar da sociedade. A segunda que a nada obedece, a ninguém segue, e tudo rechaça, baseada na frugalidade material, buscando apenas a imaterialidade das ideias. O momento que marca esta clivagem acontece quando Hanno toma contato com o diário da família, uma espécie de jornal-diário das várias gerações de Buddenbrook, e resolve deixar ali o seu testemunho, é algo tão simples mas tão poderosamente significante que nos arrepia e obriga à reflexão e aprofundamento do choque entre estas duas visões do mundo.

Aliás, não fica claro até que ponto Mann não tende para a culpabilização dessa componente artística pelo fim da família. Digo que não fica claro, porque existem outras variáveis em campo, nomeadamente o ponto em que o senador Thomas Buddenbrook se deixa levar pela leitura de “O Mundo como Vontade e Representação” (1819) de Schopenhauer. Mas essencialmente, e como acaba discutindo recentemente Riemen em "Nobreza de Espírito" (2008), baseado em Mann, existe algo que não é propriamente de neutralidade, mas antes de busca de uma certa integralidade humana, de essência humanista, que apoquenta Mann e que o conduz à aceitação da divergência da norma, da subversão artística, reconhecendo-a como própria do humano, mas que apesar disso deve ocorrer por meio de um paradigma de elevação, de respeito pelos demais, acima tudo de diálogo construtivo.

Dito tudo isto, pergunto, como se pergunta a responsável pela belíssima tradução no posfácio, Gilda Lopes Encarnação, porquê ler “Os Buddenbrook” mais de 100 anos depois? A realidade retratada é-nos distante, em nacionalidade e mesmo mecanismos sociais ou negociais. Julgo que a resposta está exatamente na forma, na beleza da obra, no brilhantismo do seu criador, na recompensa pela boa progressão da narrativa, e que não poucas vezes nos surpreende, mesmo sendo tão regrada. Mas essencialmente porque ler duas páginas de Mann, mesmo que pouco avance na história, é como insuflar ar em estado puro, faz-nos sentir vivos, ajuda-nos a compreender a força e relevância da arte literária, verdadeiramente estruturante para o modo como pensamos e nos edificamos enquanto seres conscientes.

outubro 07, 2016

A glória de Unity, e sem programação

Demorou alguns anos, mas podemos agora dizer que 2016 ficará como o ano de coroação do Unity enquanto ferramenta de desenvolvimento de videojogos. Isto é relevante pelo modo como democratiza o processo de criação de videojogos, mas não se fica por aqui, alguns dos jogos que marcam este ano, não só recorreram ao Unity, como recorreram ao seu plugin Playmaker.




Se olharmos à lista dos 2016 Unity Award encontramos nela: Firewatch (Campo Santo); Inside (Playdead); Superhot (Super Hot Team); Virginia (Variable State); Oxenfree (Night School Studio). Tudo jogos criados por pequenos estúdios, que apesar disso foram distribuídos em multiplataforma e conseguiram enorme sucesso, junto da crítica e público internacional.

Todos aqueles que já trabalham, ou procuram iniciar-se, no Unity sabem que as linguagens de referência são o C# e o UnityScript (que usa uma sintaxe semelhante ao Javascript). O C# já tinha sido eleito pelo XNA, tendo aí começado a sua introdução na comunidade de desenvolvimento de videojogos, com o surgimento do Unity e o suporte da mesma, foi-se tornando na linguagem de partida para quem trabalha na produção de conteúdos multimédia, nomeadamente pequenas equipas de criação de jogos.

E é aqui que surge um novo dado ainda mais interessante, o Playmaker. Um plugin criado em 2011 que permite desenvolver toda a componente de authoring multimédia, dentro do Unity, sem recurso a qualquer programação. O Playmaker permite dar instruções, criar acessos interativos, gerar comunicação entre objetos, tal como se de uma linguagem de programação se tratasse, mas apenas por meio de caixas interconectadas na forma de fluxograma, pura programação visual. E o mais impressionante é que o consegue juntando dois atributos que nestes casos dificilmente navegam juntos, facilidade e flexibilidade, a prová-lo temos dois dos jogos acima elencados, que foram desenvolvidos com recurso ao Playmaker: Inside (Playdead) e Virginia (Variable State).

O uso do Unity com o Playmaker recorda-nos inevitavelmente o defunto Virtools, uma ferramenta que gerou imensa expectativa, mas que nunca conseguiu afirmar-se, tendo contudo apontado o caminho. Depois disso o Flash ainda tentou criar um modo 3d, e outras ferramentas foram surgindo aqui e ali. Diga-se que o Unity não está completamente isolado neste campo, desde o fim do Flash e o surgimento em força do HTML5, foram muitas as ferramentas a surgir no mercado com vontade de ocupar o lugar deixado em aberto pela Adobe. Contudo o desenvolvimento em HTML5 e WebGL obriga a entrar no mundo menos estável e demasiado aberto do Javascript, tornando-o menos apetecível para quem trabalha com plataformas de authoring, que normalmente busca ambientes delimitados e facilmente reconhecíveis, no sentido de eliminar as preocupações com a tecnologia para se poder concentrar nos conteúdos.

Deste modo podemos dizer que até ao momento nada conseguiu chegar ao nível de aprimoramento e amplitude do motor de Unity, que juntamente com o Playmaker acaba por assim criar, talvez, uma das ferramentas mais acessíveis e poderosas de sempre no campo do authoring multimédia.


Mais info:
Tutoriais de Playmaker

outubro 04, 2016

“Far Cry 4” (2014)

Este quarto tomo realiza as delícias de todos os que têm jogado a série, já que faz praticamente tudo muito bem, exceptuando o campo da história como já acontecia antes. Apesar de se passar num local geograficamente distinto, os personagens, ambientes e eventos de “Far Cry 3” e “Far Cry 4” são praticamente idênticos: jovem, americano, caído no meio de um país estranho, extremamente lindo mas intensamente hostil, que ao longo do jogo cresce, passando de jovem frágil e ingénuo a mercenário hábil e possante.





Em termos temáticos senti uma forte dissonância com o jogo, não por ser uma repetição do anterior, mas por me parecer deslocado do século XXI. Tiros, tiros, e mais tiros é algo que o cinema nos deu muito nos anos 1980 e 1990, mas essa fase passou, hoje o cinema mesmo sendo de Hollywood, consegue ser mais elaborado que isso. Os filmes de tiros, tal como a pornografia com história, passou, teve o seu auge e desapareceu com o surgimento dos multiplayers como "Counter Strike" ou "Call of Duty", ou os grandes sites de pornografia especializados em clips de género.

Apesar desta crítica, “Far Cry 4” funciona muito bem enquanto jogo, é imensamente fluído, capaz de criar um sentimento de flow que nos faz esquecer o real, e a todo o momento fora dali nos apela a voltar. O ambiente é fantástico, mas o melhor é mesmo a quantidade de liberdade que a jogabilidade proporciona. Não é apenas uma questão de mundo-aberto, que também ajuda, mas é a imensidão de atividades distintas que podemos realizar (ex. missões secundárias, missões com personagens secundários, ataques a postos de controlo, ataques a fortalezas, torres de propaganda, cartazes, colecionáveis, construção de itens, reconhecimento de território, encontro de espécies, etc.), não apenas quando desejamos, mas ainda mais, como desejamos (ex. carros, motas, motos de água, hovercrafts, camiões, helicópteros, condução de elefantes, lança-chamas, lança-rockets, setas, bombas relógio, iscas de carne e a atração de animais, cocktails molotov, etc ). A jogabilidade de cada atividade está desenhada de modo a proporcionar múltiplas abordagens, podendo nós nas repetições das mesmas, realizar ações totalmente distintas, demorando a esgotar todas as possibilidades. Existe uma parte dessas atividades obrigatórias para o modo história, mas o mundo está repleto de outras atividades e missões que podemos encarar sempre que quisermos, tornando o mundo de jogo num verdadeiro “theme park”, quase inesgotável para quem tem trabalho e família para cuidar.

Para aumentar o sentimento de participação, já de si intenso pela autonomia dada, a história desta vez é interativa, ou seja, apresenta escolhas, e apesar de não ser uma grande história, consegue ainda assim arrancar alguns momentos de reflexão e dilema. O meu maior impacto foi quando tive de escolher entre seguir Amita e Sabal, quando se tratava de destruir ou manter os campos de droga. Se por um lado acredito que seja a opção correcta destruir, por outro lado percebo a questão comercial por detrás de uma indústria que pode ser chave no desenvolvimento de um país pobre, e que pode nem sequer servir apenas as drogas de rua, mas pode servir a indústria farmacêutica. O mesmo acontece na protecção de um templo, em que se coloca em causa os valores ancestrais e tradicionais versus a atualização das crenças e progresso dos valores. Para uma história básica, de sobrevivência e destronar de um ditador de 2ª categoria, pareceram-me escolhas bastante inteligentes, embora não cheguem para salvar a história no seu todo.

De resto assemelha-se bastante a tudo o que já disse quando joguei “Far Cry 3, aliás por isso demorei dois anos para o jogar.