setembro 15, 2016

Mais uma vez Gondry

Os The White Stripes lançaram novo álbum e Michel Gondry resolveu fazer-lhes uma surpresa criando, e oferecendo-lhes, um vídeo, que apesar de simples, demonstra o mais puro engenho criativo do artista. O teledisco chama-se "City of Lights".



O vídeo impressiona pelo modo como Gondry conseguiu explorar um meio de criação visual, à partida estático, e transformá-lo num meio dinâmico. Consegue-o graças à densidade de vapor de água que está dentro da zona do chuveiro, que produz a um ritmo constante água em estado gasoso suficiente para ir preenchendo os espaços de vidro entretanto limpos pelos dedos de Gondry, para assim poder continuar a renovar "a tela" de desenho, e poder desenhar seguindo a narrativa e ritmo da canção.

"City Lights" (2016) de Michel Gondry, música de The White Stripes

setembro 12, 2016

No ciclo infinito da interatividade

Depois de se ter estreado no Tribeca Film Festival 2014, onde ganhou o Future of Storytelling 2014 – Grand Prize, é finalmente possível experienciar na web, um dos filmes mais estimulantes do cinema interativo dos anos recentes, “Possibilia” (2014) de Daniel Kwan e Daniel Scheinert, ou simplesmente Daniels.





Possibilia” apresenta uma premissa comum, diria mesmo já saturada, que passa por explorar as diferentes possibilidades à volta de um casal que se está a separar. Já vimos isto no drama interativo “Façade” (2005), mas vimos também no cinema com “Sliding Doors” (1998), e imensas vezes na literatura. Quando a interatividade está presente, o primeiro impulso passa por colocar o espetador no controlo, implicá-lo no decorrer dos eventos, obrigar a tomar partido, mas “Possibilia”, apesar de se valer da interatividade, não segue a cartilha “Choose Your Own Adventure” e não permite verdadeiramente que o interator participe, no sentido de tomar decisões sobre o futuro daqueles personagens.

“Possibilia” pega num tema gasto e nas fórmulas até aqui usadas pelos designers de interação narrativa, e como que joga tudo pela janela fora. O mundo de possibilidades que uma potencial separação pode conter, é aqui, e graças à multilinearidade permitida pela interatividade, apresentada como totalmente real. Na nossa frente, aos poucos, vão surgindo cada uma dessas possibilidades, até podermos seguir em simultâneo 16 fluxos, podendo saltar entre eles à nossa vontade. O mais interessante é que algo que à partida seria banal, uma mera possibilidade tecnológica, ganha enorme significado no contexto da história que se conta.

A fragmentação em fluxos filmícos é o reflexo da fragmentação daquele casal, das múltiplas realidades que atravessam as suas cabeças, e de um mundo que se desmorona. A história perde o foco porque aqueles personagens perderam o foco, tudo fica confuso, tal como confusos se sentem os personagens. Mas não se trata apenas de apresentar os diferentes fluxos possíveis, no detalhe podemos ver como esses vão incrementando o texto com os efeitos desses "mundos possíveis", e como depois tudo entra em regressão. Ou seja, a forma interativa fílmica reflete aqui de forma impressionante, mais ainda pela enorme dinâmica cinematográfica e da direção de atores conseguida, o que se quer exprimir, tornando a obra num objeto artístico integralmente coeso.

Como se não bastasse, o facto de o filme poder ser visto em ciclo infinito, ganha não só a história que parece de repente voltar a receber uma réstia de esperança, como reflete no seu sentido mais essencial a arte da interatividade, já que o ciclo ao não se findar, eterniza a necessária relação cíclica entre obra e interator.

"Possibilia" (2014) de Daniel Kwan e Daniel Scheinert

Os Daniels deram várias entrevistas desde então, dessas repesquei a dada à Dissolve, e extraí algumas das ideias mais relevantes explicitadas por Daniel Kwan:


Como convencer os outros da relevância da narrativa interativa?
“‘What if something like Game Of Thrones had an interactive element?’ Obviously, that’s the most marketable thing ever, but impossible to actually execute, because no one knows what that is.”
“Honestly, the pitching process for any of these things is impossible. No one understands it, no matter how we do it. You could do a traditional treatment written out with all the images, the producers won’t get it. You can send them a map of the storyline, they wont get it. Nothing gets to them until they actually play with it.

O mais interessante é que mesmo pessoas como George Lucas, que já estiveram na frente de companhias de videojogos, continuam a não aceitar o medium, tendo mesmo dito aos criadores deste filme: “What you guys do is a circus. What I do is poetry.”


O que se pretendia com "Possibilia”?
“Possibilia” (..) specifically, our goal was to make sure it was not videogame-y. Your actions don’t create a reaction or consequence."
“A lot of people got hung up on the lack of consequences with “Possibilia,” because it’s a clean, perfect loop that has no resolution. It’s more about exploration. The narrative, and its thematic elements, are tied into what’s happening with interactive, because of this idea that “Possibilia” is kind of this weird, fruitless cycle. We try so hard, we explore everything, we go down all these different paths, we’re constantly wondering if we’re watching the best version, we’re constantly wondering if we should be looking at everything else. Much like in any relationship, you’re constantly wondering, “Am I in the best relationship I could be? Could I go out and be somewhere else with someone else?”
“It’s not completely hopeless, obviously, because it starts all over again. There’s this little glimmer of hope, and a desire to explore more, as well. I think how the interactive is going to work, as far as how videogame-y it’s going to be, depends on the story, and what you’re trying to mirror thematically. The form should never be divorced from the theme.”
“I think interactive films are the worst when you have 10 different endings, because every time you tell a story, you’re just tricking your brain into believing you have something real to empathize with. The moment you give me more than one ending, you’re diluting that, you’re actually breaking the trick, ruining the illusion.”

setembro 11, 2016

"Oxenfree" (2016)

"Oxenfree" oferece uma história interativa extremamente intrincada e ao mesmo tempo fluída, gerando assim uma das experiências de narrativas interativas mais ricas dos últimos tempos. Não que a história seja excepcional, encaixa dentro dos parâmetros médios do género Young Adult, mas a sua estrutura não-linear e o design de interação que nos permite o acesso a essa estrutura, excedem muito daquilo que já conhecíamos.





Oxenfree” conta a sua história por meio de diálogos, escolhas de diálogo, puzzles visuais e sonoros, tudo ambientado num sidescroller 2.5D. A principal referência no campo da história vai para “Poltergeist” (1982 & remake 2015), com a televisão a ser substituída pelo rádio, e a família por um grupo de adolescentes tipicamente americanos à procura de afirmação. Como jogo, a referência mais evidente vai para “Superbrothers: Sword & Sworcery EP” (2011), pelo tom do desenho de ambiente de jogo, já do lado da narrativa interativa a inspiração advém via “The Walking Dead” (2012), como referem os próprios criadores.

Com uma navegação que vai pouco além das cenas que vemos completas em cada momento no ecrã, e um mundo semi-aberto reduzido, tudo se foca na trama, nomeadamente na sua comunicação por meio de diálogos entre cada um dos 5 personagens e é aí que o brilho do jogo se acentua. O número de linhas de diálogo é verdadeiramente estonteante, sendo que podemos intervir por meio de quase todas elas, o que acaba tornando ainda mais alucinante imaginar toda a gestão de narrativa que se operou no design do jogo. Mas não é apenas a quantidade, é também o fluxo, ou seja a velocidade a que vão sendo debitadas, cambiando entre personagens, sendo dado tempos-limite ao jogador para fazer as escolhas, o que exige do jogador uma atenção constante aos diálogos e a quem está a falar em cada momento, para não se perder, mas que por isso mesmo acaba por funcionar como o foco principal de jogo, conseguindo praticamente secundarizar as componentes mais típicas de jogo (ex. puzzles).

Tudo isto funciona muito bem graças ao modo como foi concebida a interação com o mundo de jogo que segue de perto “Superbrothers: Sword & Sworcery EP” em termos de side-scrolling, e que permite a manutenção de todos os personagens em cena ao mesmo tempo e assim garante um acesso constante e imediato ao jogador a todos os diálogos. Por vezes sente-se que seria bom poder estar mais próximo dos personagens para os poder “sentir” mais, no entanto, apesar de apresentados à distância, a sua riqueza visual é tanta que conseguem exprimir linguagem corporal, claro que fortemente sugerida pelas vozes dos atores que são também muito boas. Por sua vez a atribuição das escolhas de diálogos a botões individuais facilita imenso todo o processo, já que automatização da ação física serve na redução da carga cognitiva, permitindo a concentração total no diálogo e nas escolhas.

Para fechar, é um jogo desenhado com o verdadeiro espírito narrativo, com uma enorme vontade de colocar o jogador no centro da história, oferecendo para tal um acesso direto por via dos diálogos. Toda a arte e jogo trabalham para garantir que este acesso funciona sem obstáculos nem atrasos, e o jogador acaba por tudo esquecer para passar a viver entre as conversas de todos aqueles personagens, querendo saber sempre cada vez mais o que lhes vai na cabeça em cada momento. A riqueza dos diálogos e o enorme número de acessos aos mesmos, garante um grau de rejogabilidade bem acima do expectável.

Videojogo criado pela Night School Studio, totalmente desenvolvido em Unity.

"Grandes Esperanças" (1861)

O que mais impressiona é a humanidade dos personagens, apesar de embrulhado por um aparentemente banal enredo de aventuras e amores impossíveis, à medida que vamos entrando no livro vamos percebendo como todo o detalhe tem fundamento, tudo se desenha em várias camadas de sentido, e os personagens que pareciam apenas motivar a progressão da história são bem mais do que isso, são veículos ideológicos que Dickens usa para desconstruir o mundo e dar a compreender a realidade.


Se dúvidas houvesse, bastaria dizer que não há “happy ending” para dar conta da presença de marca autoral, da vontade de expressar um sentir sobre a áspera realidade. Dickens usa a sua arte de contar histórias para traçar uma análise crítica de vários temas, da família à amizade, da orfandade ao amor, acentuando fortemente as emoções de culpa e vergonha, sem nunca explorar o sentimentalismo junto do leitor.  Por outro lado, todo o cerne do texto está permeado pela questão financeira, base do contraste de classes sociais, dando amplo espaço a Dickens para digladiar ideologias e tecer a crítica ao modelo capitalista que progredia com a Revolução Industrial nesse tempo.

Interessante como seguindo esta base relacional tripartida — família, amor e dinheiro — Dickens constrói o fundamento do título, "Grandes Esperanças", consubstanciando-o nas três vertentes, não deixando de garantir o sentido particular em cada uma dessas dimensões mas forçando-as numa confluência interpretativa no sentido de elevar as "esperanças" a motor da volição humana, sustentando assim a sua ideia fundamental da defesa do progressismo por oposição ao conservadorismo.

A decadência da estagnação, uma das metáforas mais elaboradas do livro. 

Para primeiro livro de Dickens, fiquei bem impressionado com a sua escrita elaborada e poética, mas ao mesmo tempo com a enorme facilidade com que simplifica o complexo. Os personagens surgem como objetos narrativos simples, muito empáticos, verdadeiros livros abertos, mas ao mesmo dotados de enormes complexidades motivadas pela constante contradição humana, que os leitores reconhecem em sede do seu íntimo e raramente tornado público.
“De fato, o frescor de sua beleza se havia desvanecido, mas uma indescritível majestade e um indescritível encantamento permaneciam. Esses seus atributos eu já vira antes; o que eu jamais vira era aquela luz suavizada e melancólica nos olhos outrora orgulhosos; o que jamais sentira antes era o toque simpático da mão outrora insensível.”
Assim, apesar de se poder ler como jornada de amadurecimento e relato de aventuras, não se oferece a tal com suficiente atratividade, já que Dickens não explora o fantasioso, mantendo as peripécias algo contidas, como que delimitadas pela sua sede de realismo. A leitura obriga a alguma predisposição à reflexividade, correndo o risco de se passar ao lado do essencial e que garantiu ao texto o lugar de clássico incontornável.

Edição: Penguin/Companhia de Letras, trad. Paulo Henriques Britto, 2012

setembro 09, 2016

Mundo Novo das Memórias

Li "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley nos anos 1990, tendo perdurado em mim fortes memórias que me permitiam recordar a obra como maior, pela sua qualidade e visão. No entanto, depois de ter voltado ao seu universo, por ter visto o filme homónimo de Burt Brinckerhoff (1980), e ter relido alguns capítulos do livro, concluo que as minhas memórias eram melhores que a realidade.

Livro de 1932 e filme de 1980

"Admirável Mundo Novo" é um livro interessante que se sustenta no valor histórico, tendo surgido antes de "Mil novecentos e oitenta e quatro" (1949) de George Orwell, ainda que depois de "Nós" (1921) de Yevgeny Zamyatin. A escrita não é muito atrativa e o enredo é um tanto ingénuo, segurando o nosso interesse mais pelo modo como vai apresentando a vida do "mundo novo" e contrapondo os seus valores aos nossos.

Filmes de síntese capazes de incorporar o espetador na trama durante o seu visionamento, levando-o a sentir como se fosse verdadeiramente o personagem na tela.

Por outro lado, a abordagem pela sátira acaba por ser contraproducente, no sentido em que evidencia fortemente uma das suas maiores fragilidades, os personagens. Na ânsia por colar os mesmos a figuras políticas da altura, e de lhes tecer críticas, acaba por criar personagens sem identidade, volúveis e inverossímeis, com os quais temos dificuldade em nos relacionar. Se não surge a densidade de um Winston ("Mil novecentos e oitenta e quatro") com quem empatizar, os restantes parecem apenas fazer parte do cenário, nunca funcionando como efetivo contrapoder.

Diria que o melhor, e aquilo que continua a fazer o texto sobreviver ao tempo, além do aspeto histórico, assenta na ideia, na sua vanguarda especulativa, nomeadamente na clarividência em relação ao futuro da ciência e dos media, o que tem mantido a obra como boa referência de estudo e reflexão académica.

O filme, apesar de datado, funciona bastante bem em termos de fidelidade de adaptação, mais porque sendo telefilme permitiu-se uma extensão de três horas, garantido assim tempo para o desenrolar dos detalhes enunciados no livro. Por outro lado, o facto de ser um telefilme, torna o acesso ao mesmo mais difícil, tendo apenas conseguido ver o mesmo por meio de uma velha cópia VHS.

setembro 07, 2016

“Por Quem os Sinos Dobram” (1940)

“Por Quem os Sinos Dobram” (1940) é um bom livro, nada de admirar sendo o seu criador um dos mais famosos escritores de sempre, mas é apenas isso. É um livro que faz tudo muito bem, diria mesmo na perfeição, mas que nunca surpreende, nunca verdadeiramente chega debaixo da nossa pele. “Por Quem os Sinos Dobram” retrata uma missão miliciana durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939).


Ao ler o texto, considerado um dos maiores de Hemingway, tendo mesmo recebido o voto favorável e unânime de todo o comité do Pulitzer, não lhe tendo sido atribuído apenas por birra do presidente do mesmo por o considerar ofensivo (!), senti um conjunto de sensações que reconheci das minhas experiências com o cinema clássico de Hollywood (anos 1940-50). São obras que usam os meios (imagens ou palavras) de uma forma irrepreensível, capazes de contar histórias com a perfeição de relógios suíços, mas que por mais realistas que se apresentem, surgem camufladas por uma enorme capa de artificialidade que impede a crueza do real de verdadeiramente emergir. Os autores têm o cuidado de nos manter suficientemente à distância, para que nos sintamos em porto seguro, assistindo ao drama de bem perto mas sem perigo de mazelas.

Por outro lado, entrando no estilo da escrita de Hemingway, do texto muito directo, seco, sem enfatização, apesar de ser suficientemente forte para me envolver no ambiente, para me fazer sentir perto dos personagens e da ação, raramente me aproxima das pessoas, do humano. Sinto a falta da dramatização, os personagens não vivem sem esta, que é quem os ergue de entre o enredo, bem sei que é ela que os torna mais heróis, vilões, arquétipos, e assim menos naturais, mas isto é ficção, é realidade ficcionada, não é relato noticioso do real. Compreende-se o estilo, a influência da veia jornalística de Hemingway, compreende-se também que tenha gerado sensação na altura, pela diferença, mas hoje sinto-o ultrapassado.

É estranho, bem sei, dizer primeiro que soa a artificial e logo a seguir acusar de demasiado natural, mas é exatamente por isso que o naturalismo sucumbiu ao realismo. Ao querermos ser naturais de forma tão completa na produção artística, perdemos a capacidade mais relevante da arte que assenta na enfatização do detalhe que constrói o real.

setembro 06, 2016

“Firewatch" (2016), o anti-catártico

Firewatch” não é o jogo que tinha idealizado, mas talvez por isso mesmo me tenha surpreendido tão intensamente. “Firewatch” demonstra, como tem vindo a demonstrar uma boa parte dos videojogos narrativos recentes, que o meio dos videojogos tem ainda muito caminho a desbravar no campo do storytelling, e que vai bem, muito bem até.





Comecei por adorar o prelúdio em que se mistura ficção interativa com walking simulator, ou seja em que nos é dado a conhecer o personagem, nomeadamente a construção de uma relação, e sua vida no passado, por meio de diálogos textuais, intercalados com o presente e a nossa chegada à floresta. É algo simples, minimal, mas muito bem ritmado, com uma abordagem e perspectiva imensamente adultas, ao nível do melhor que se faz em literatura. Acredito que exatamente por ser tão conseguido, me tenha gerado tanta surpresa o que veio depois a ser o jogo em si, com uma mudança de tom tão distinta, mas que acaba justificando-se plenamente, e que espero conseguir explicar neste texto sem detalhar a história.

Assim, em face de uma perda dramática apresentada no prelúdio, somos apresentados a um ambiente de solidão, no meio de uma vasta floresta, mas dominado por um tom humorístico, por vezes negro, num sentido de clara fuga à realidade. Na verdade é a isso mesmo que o jogo almeja, ou melhor, é essa uma das razões que usa para explicar porque existem pessoas capazes de se desligarem das suas vidas por 3 meses, e isolarem-se no meio de uma floresta no alto de uma torre, sem cortinas, televisão, telemóveis, nem mesmo chuveiros.

Nós somos Henry, e passaremos 3 meses isolados numa torre de vigia de incêndios, apenas em contacto via rádio portátil, ou walkie-talkie, com Delilah, a colega da torre mais próxima. Ao longo desse tempo acabaremos por conhecer melhor ambos, e construir entre estes uma relação. Tal como no prelúdio, a gestão narrativa é muito conseguida, fazendo-nos acreditar na existência de ambos os personagens, desejando-lhes o melhor.

Neste sentido “Firewatch” acaba abrindo mais uma forma de explorar os walking simulators, ou seja, se “Gone Home” (2013) contava a sua história por meio do ambiente, “Firewatch” conta a sua história por meio de diálogos em off, que apesar de se aproximar do narrador em off, muito bem explorado em “The Stanley Parable” (2014), funciona diferentemente porque permite acesso a todo um manancial de técnicas da ficção interativa para nos induzir um sentido participatório mais intenso, e é aqui que acaba por residir a essência de todo jogo.

Ou seja, tendo em conta toda a história, percebemos que o objetivo de ir para o meio da floresta por tantos meses é a solidão, mas é também uma forma de lidar com um drama interno, acreditando que por meio da introspeção se realizará uma espécie de cura. Contudo sabemos bem que a cura não surge do isolamento, isso é uma ilusão que a depressão desenvolve em nós, já que o isolamento só afunda ainda mais, ainda que seja requerido em certos momentos para lidar connosco mesmos. Neste sentido, “Firewatch” praticamente obriga-nos a lidar com o outro, ainda que apenas por via rádio, mas obriga-nos a despertar para o real que nos circunda, impedindo a entrada no mundo da divagação e alheamento. E por isso o diálogo em off, e o tom menos sério do mesmo, e até mesmo a ação detetivesca e conspiratória, assumem tão grande relevância, sendo subtilmente tão nevrálgicos.

Admito que inicialmente não percebi isto. Inicialmente não gostei de me obrigarem ao diálogo, menos ainda da conspiração à lá "área 51", por estarem a brincar com os “meus” sentimentos, eu pretendia explorar toda aquela natureza bela, senti-la no isolamento do som da natureza, mas o jogo impediu-me, como quem impede o bêbedo de aceder a mais álcool. Poderia parecer uma ultra-interpretação esta leitura que faço, mas se olharmos ao twist narrativo final, para quem já jogou, se pensar no que se passou com Ned e porquê, verá como funciona em total contraponto com a aquilo que se permite a Henry, para evitar que Henry se transforme em Ned. Este twist, apresentado em muitas análises como anti-catártico, é-o porque a isso se objetiva em termos emocionais, ou seja, busca-se a construção de um conhecimento sobre o personagem que implica reflexão e não o mero murro emocional, aristotélico, diria mesmo que “Firewatch” consegue desta forma ser um dos jogos mais brechtianos que tivemos até agora em termos emocionais.

Em síntese, “Firewatch” apresenta uma das melhores histórias jogáveis dos últimos anos, não pelo fantástico que é a sua apresentação, mas antes o contrário, pela forma sublime com faz passar a essência da sua mensagem, fugindo totalmente ao in-your-face hollywoodiano, obrigando-nos a pensar não apenas no que é dito e mostrado, mas por tudo o que isso nos obriga a sentir e refletir, construindo à posteriori um sentido do todo.

setembro 05, 2016

O belo debaixo de gelo

Johanna Nordblad detém o recorde de mergulho em profundidade debaixo de gelo, 50 metros. Ian Derry tem fotografado de grandes celebridades a publicidade de topo, incluindo fotografias para alguns dos cartazes da série "Game of Thrones". Derry descobriu Nordblad através da sua irmã, que é também fotógrafa. Da colaboração entre Johanna e Ian surgiu um dos mais poderosos trabalhos vídeo deste ano, "Johanna Under The Ice" (2016).




O filme seduz pela cinematografia absolutamente majestática, pelo minimalismo na forma, cor e movimento. Seduz porque a ação se passa num lugar inóspito, inalcançável para muitos de nós, e por isso mesmo cativante por mostrar o desconhecido. Mas o filme não é apenas um conjunto de imagens num lugar remoto, existe um trabalho minimalista de storytelling que dá o toque final, derrubando os mais céticos, capaz de gerar um forte laço de empatia para com a pessoa que surge no ecrã, e assim estabelecer uma ponte emocional que eleva a experiência à transcendência.

"Johanna Under The Ice" (2016) de Ian Derry

setembro 04, 2016

"Livro do Desassossego” (1982)

É magistralmente difícil definir a experiência de ler "Livro do Desassossego”, tanto quanto a intensidade do que se sente enquanto se lê, já que ao ler nos separamos de nós e nos juntamos ao autor, para com ele sentir e compreender, assumindo a nossa inabilidade de o explicar, menos ainda definir. Só o próprio Fernando Pessoa compreendeu a envergadura daquilo a que se propôs, tendo para tal construído um segundo eu, Bernardo Soares, para por seu intermédio se poder olhar a Si de fora, e assim escavar e desconstruir a Alma. E por isso a definição da experiência desta leitura só podia ser dada pelo próprio Pessoa ao dizer-nos: "Quero que a leitura deste livro vos deixe a impressão de terdes atravessado um pesadelo voluptuoso.

Até aqui, só tinha encontrado tamanha intensidade literária aos pés de Proust

“Quem sou eu?” é o motor do texto, ou centenas de textos, que compõe “Livro do Desassossego”, sinto contudo que o autor na sua ânsia por responder à questão, se manifesta como uma espécie de metafísico esteta, alguém com um sentido analítico de investigador, dotado de uma curiosidade científica profunda, capaz de o conduzir por entre os caminhos mais recônditos da sua busca, e por outro lado, alguém com um sentido artístico entranhado, mais interessado na busca, nos caminhos, processos e componentes, e menos nas suas explicações, sem preocupações de formular categorias, definições ou respostas. Se Pessoa me recorda, repetidas vezes, Descartes, sempre que abandona a abstração metafísica e concretiza, afasta-se deste para assumir o seu traço próprio de artista inquisidor. Era a forma que lhe interessava, não a sua definição.
“Triste noção tem da realidade quem a limita ao orgânico, e não põe a ideia de uma alma dentro das estatuetas e dos lavores. Onde há forma há alma.” (416)
“Dominamos outrora o mar físico, criando a civilização universal; dominaremos agora o mar psíquico, a emoção, a mãe temperamento, criando a civilização intelectual.” (438)
“Os classificadores de coisas, que são aqueles homens de ciência cuja ciência é só classificar, ignoram, em geral, que o classificável é infinito e tanto se não pode classificar. Mas o em que vai meu pasmo é que ignorem a existência de classificáveis incógnitos, coisas da alma e da consciência que estão nos interstícios do conhecimento.” (378)
Toda a obra se percorre de um tom melancólico, porque é de “desassossego” que se fala, outro tom seria inadequado, contudo contagiado por um sentir maior, que vai além da tristeza e da dor, que apresenta o viver como apesar de angustiante totalmente inebriante porque potenciador do ato contínuo criativo.
“É debruçado ao parapeito, gozando do dia, sobre o volume vário da cidade inteira, só um pensamento me enche a alma — a vontade íntima de morrer, de acabar, de não ver mais luz sobre cidade alguma, de não pensar, de não sentir, de deixar atrás, como um papel de embrulho, o curso do sol e dos dias, de despir, como um traje pesado, à beira do grande leito, o esforço involuntário de ser.” (397)
“Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são.
Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.” (451)
“A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação.
O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exatamente o que eu senti. 
E como este outrem é, por hipótese de arte, não esta ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti.” (260)
Do meu lado, e em jeito de explicação do espanto e admiração, descodifico esta obra em dois elementos-chave: a prosa e o tema. No campo da prosa, Pessoa está acima de qualquer adjetivação, o modo como trabalha a língua portuguesa é absolutamente ímpar, elevando-a a níveis insondáveis, capaz de nos transportar por entre as palavras fazendo-nos sentir a leveza e a impalpabilidade do que nos quer dizer. No tema, o trabalhar metafísico na tentativa de compreender aquilo que somos, Pessoa tem momentos de tanta elevação que quase parece levar-nos a sentir o toque direto sobre a alma, como se ela se pudesse apresentar ali, naquelas letras, palavras, ideias, como se Pessoa fosse Soares, e ambos fossem um, e se fundissem no texto, fossem alma vertida nas folhas, no papel.