“Por Quem os Sinos Dobram” (1940) é um bom livro, nada de admirar sendo o seu criador um dos mais famosos escritores de sempre, mas é apenas isso. É um livro que faz tudo muito bem, diria mesmo na perfeição, mas que nunca surpreende, nunca verdadeiramente chega debaixo da nossa pele. “Por Quem os Sinos Dobram” retrata uma missão miliciana durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939).
Ao ler o texto, considerado um dos maiores de Hemingway, tendo mesmo recebido o voto favorável e unânime de todo o comité do Pulitzer, não lhe tendo sido atribuído apenas por birra do presidente do mesmo por o considerar ofensivo (!), senti um conjunto de sensações que reconheci das minhas experiências com o cinema clássico de Hollywood (anos 1940-50). São obras que usam os meios (imagens ou palavras) de uma forma irrepreensível, capazes de contar histórias com a perfeição de relógios suíços, mas que por mais realistas que se apresentem, surgem camufladas por uma enorme capa de artificialidade que impede a crueza do real de verdadeiramente emergir. Os autores têm o cuidado de nos manter suficientemente à distância, para que nos sintamos em porto seguro, assistindo ao drama de bem perto mas sem perigo de mazelas.
Por outro lado, entrando no estilo da escrita de Hemingway, do texto muito directo, seco, sem enfatização, apesar de ser suficientemente forte para me envolver no ambiente, para me fazer sentir perto dos personagens e da ação, raramente me aproxima das pessoas, do humano. Sinto a falta da dramatização, os personagens não vivem sem esta, que é quem os ergue de entre o enredo, bem sei que é ela que os torna mais heróis, vilões, arquétipos, e assim menos naturais, mas isto é ficção, é realidade ficcionada, não é relato noticioso do real. Compreende-se o estilo, a influência da veia jornalística de Hemingway, compreende-se também que tenha gerado sensação na altura, pela diferença, mas hoje sinto-o ultrapassado.
É estranho, bem sei, dizer primeiro que soa a artificial e logo a seguir acusar de demasiado natural, mas é exatamente por isso que o naturalismo sucumbiu ao realismo. Ao querermos ser naturais de forma tão completa na produção artística, perdemos a capacidade mais relevante da arte que assenta na enfatização do detalhe que constrói o real.
setembro 07, 2016
setembro 06, 2016
“Firewatch" (2016), o anti-catártico
“Firewatch” não é o jogo que tinha idealizado, mas talvez por isso mesmo me tenha surpreendido tão intensamente. “Firewatch” demonstra, como tem vindo a demonstrar uma boa parte dos videojogos narrativos recentes, que o meio dos videojogos tem ainda muito caminho a desbravar no campo do storytelling, e que vai bem, muito bem até.
Comecei por adorar o prelúdio em que se mistura ficção interativa com walking simulator, ou seja em que nos é dado a conhecer o personagem, nomeadamente a construção de uma relação, e sua vida no passado, por meio de diálogos textuais, intercalados com o presente e a nossa chegada à floresta. É algo simples, minimal, mas muito bem ritmado, com uma abordagem e perspectiva imensamente adultas, ao nível do melhor que se faz em literatura. Acredito que exatamente por ser tão conseguido, me tenha gerado tanta surpresa o que veio depois a ser o jogo em si, com uma mudança de tom tão distinta, mas que acaba justificando-se plenamente, e que espero conseguir explicar neste texto sem detalhar a história.
Assim, em face de uma perda dramática apresentada no prelúdio, somos apresentados a um ambiente de solidão, no meio de uma vasta floresta, mas dominado por um tom humorístico, por vezes negro, num sentido de clara fuga à realidade. Na verdade é a isso mesmo que o jogo almeja, ou melhor, é essa uma das razões que usa para explicar porque existem pessoas capazes de se desligarem das suas vidas por 3 meses, e isolarem-se no meio de uma floresta no alto de uma torre, sem cortinas, televisão, telemóveis, nem mesmo chuveiros.
Nós somos Henry, e passaremos 3 meses isolados numa torre de vigia de incêndios, apenas em contacto via rádio portátil, ou walkie-talkie, com Delilah, a colega da torre mais próxima. Ao longo desse tempo acabaremos por conhecer melhor ambos, e construir entre estes uma relação. Tal como no prelúdio, a gestão narrativa é muito conseguida, fazendo-nos acreditar na existência de ambos os personagens, desejando-lhes o melhor.
Neste sentido “Firewatch” acaba abrindo mais uma forma de explorar os walking simulators, ou seja, se “Gone Home” (2013) contava a sua história por meio do ambiente, “Firewatch” conta a sua história por meio de diálogos em off, que apesar de se aproximar do narrador em off, muito bem explorado em “The Stanley Parable” (2014), funciona diferentemente porque permite acesso a todo um manancial de técnicas da ficção interativa para nos induzir um sentido participatório mais intenso, e é aqui que acaba por residir a essência de todo jogo.
Ou seja, tendo em conta toda a história, percebemos que o objetivo de ir para o meio da floresta por tantos meses é a solidão, mas é também uma forma de lidar com um drama interno, acreditando que por meio da introspeção se realizará uma espécie de cura. Contudo sabemos bem que a cura não surge do isolamento, isso é uma ilusão que a depressão desenvolve em nós, já que o isolamento só afunda ainda mais, ainda que seja requerido em certos momentos para lidar connosco mesmos. Neste sentido, “Firewatch” praticamente obriga-nos a lidar com o outro, ainda que apenas por via rádio, mas obriga-nos a despertar para o real que nos circunda, impedindo a entrada no mundo da divagação e alheamento. E por isso o diálogo em off, e o tom menos sério do mesmo, e até mesmo a ação detetivesca e conspiratória, assumem tão grande relevância, sendo subtilmente tão nevrálgicos.
Admito que inicialmente não percebi isto. Inicialmente não gostei de me obrigarem ao diálogo, menos ainda da conspiração à lá "área 51", por estarem a brincar com os “meus” sentimentos, eu pretendia explorar toda aquela natureza bela, senti-la no isolamento do som da natureza, mas o jogo impediu-me, como quem impede o bêbedo de aceder a mais álcool. Poderia parecer uma ultra-interpretação esta leitura que faço, mas se olharmos ao twist narrativo final, para quem já jogou, se pensar no que se passou com Ned e porquê, verá como funciona em total contraponto com a aquilo que se permite a Henry, para evitar que Henry se transforme em Ned. Este twist, apresentado em muitas análises como anti-catártico, é-o porque a isso se objetiva em termos emocionais, ou seja, busca-se a construção de um conhecimento sobre o personagem que implica reflexão e não o mero murro emocional, aristotélico, diria mesmo que “Firewatch” consegue desta forma ser um dos jogos mais brechtianos que tivemos até agora em termos emocionais.
Em síntese, “Firewatch” apresenta uma das melhores histórias jogáveis dos últimos anos, não pelo fantástico que é a sua apresentação, mas antes o contrário, pela forma sublime com faz passar a essência da sua mensagem, fugindo totalmente ao in-your-face hollywoodiano, obrigando-nos a pensar não apenas no que é dito e mostrado, mas por tudo o que isso nos obriga a sentir e refletir, construindo à posteriori um sentido do todo.
Comecei por adorar o prelúdio em que se mistura ficção interativa com walking simulator, ou seja em que nos é dado a conhecer o personagem, nomeadamente a construção de uma relação, e sua vida no passado, por meio de diálogos textuais, intercalados com o presente e a nossa chegada à floresta. É algo simples, minimal, mas muito bem ritmado, com uma abordagem e perspectiva imensamente adultas, ao nível do melhor que se faz em literatura. Acredito que exatamente por ser tão conseguido, me tenha gerado tanta surpresa o que veio depois a ser o jogo em si, com uma mudança de tom tão distinta, mas que acaba justificando-se plenamente, e que espero conseguir explicar neste texto sem detalhar a história.
Assim, em face de uma perda dramática apresentada no prelúdio, somos apresentados a um ambiente de solidão, no meio de uma vasta floresta, mas dominado por um tom humorístico, por vezes negro, num sentido de clara fuga à realidade. Na verdade é a isso mesmo que o jogo almeja, ou melhor, é essa uma das razões que usa para explicar porque existem pessoas capazes de se desligarem das suas vidas por 3 meses, e isolarem-se no meio de uma floresta no alto de uma torre, sem cortinas, televisão, telemóveis, nem mesmo chuveiros.
Nós somos Henry, e passaremos 3 meses isolados numa torre de vigia de incêndios, apenas em contacto via rádio portátil, ou walkie-talkie, com Delilah, a colega da torre mais próxima. Ao longo desse tempo acabaremos por conhecer melhor ambos, e construir entre estes uma relação. Tal como no prelúdio, a gestão narrativa é muito conseguida, fazendo-nos acreditar na existência de ambos os personagens, desejando-lhes o melhor.
Neste sentido “Firewatch” acaba abrindo mais uma forma de explorar os walking simulators, ou seja, se “Gone Home” (2013) contava a sua história por meio do ambiente, “Firewatch” conta a sua história por meio de diálogos em off, que apesar de se aproximar do narrador em off, muito bem explorado em “The Stanley Parable” (2014), funciona diferentemente porque permite acesso a todo um manancial de técnicas da ficção interativa para nos induzir um sentido participatório mais intenso, e é aqui que acaba por residir a essência de todo jogo.
Ou seja, tendo em conta toda a história, percebemos que o objetivo de ir para o meio da floresta por tantos meses é a solidão, mas é também uma forma de lidar com um drama interno, acreditando que por meio da introspeção se realizará uma espécie de cura. Contudo sabemos bem que a cura não surge do isolamento, isso é uma ilusão que a depressão desenvolve em nós, já que o isolamento só afunda ainda mais, ainda que seja requerido em certos momentos para lidar connosco mesmos. Neste sentido, “Firewatch” praticamente obriga-nos a lidar com o outro, ainda que apenas por via rádio, mas obriga-nos a despertar para o real que nos circunda, impedindo a entrada no mundo da divagação e alheamento. E por isso o diálogo em off, e o tom menos sério do mesmo, e até mesmo a ação detetivesca e conspiratória, assumem tão grande relevância, sendo subtilmente tão nevrálgicos.
Admito que inicialmente não percebi isto. Inicialmente não gostei de me obrigarem ao diálogo, menos ainda da conspiração à lá "área 51", por estarem a brincar com os “meus” sentimentos, eu pretendia explorar toda aquela natureza bela, senti-la no isolamento do som da natureza, mas o jogo impediu-me, como quem impede o bêbedo de aceder a mais álcool. Poderia parecer uma ultra-interpretação esta leitura que faço, mas se olharmos ao twist narrativo final, para quem já jogou, se pensar no que se passou com Ned e porquê, verá como funciona em total contraponto com a aquilo que se permite a Henry, para evitar que Henry se transforme em Ned. Este twist, apresentado em muitas análises como anti-catártico, é-o porque a isso se objetiva em termos emocionais, ou seja, busca-se a construção de um conhecimento sobre o personagem que implica reflexão e não o mero murro emocional, aristotélico, diria mesmo que “Firewatch” consegue desta forma ser um dos jogos mais brechtianos que tivemos até agora em termos emocionais.
Em síntese, “Firewatch” apresenta uma das melhores histórias jogáveis dos últimos anos, não pelo fantástico que é a sua apresentação, mas antes o contrário, pela forma sublime com faz passar a essência da sua mensagem, fugindo totalmente ao in-your-face hollywoodiano, obrigando-nos a pensar não apenas no que é dito e mostrado, mas por tudo o que isso nos obriga a sentir e refletir, construindo à posteriori um sentido do todo.
setembro 05, 2016
O belo debaixo de gelo
Johanna Nordblad detém o recorde de mergulho em profundidade debaixo de gelo, 50 metros. Ian Derry tem fotografado de grandes celebridades a publicidade de topo, incluindo fotografias para alguns dos cartazes da série "Game of Thrones". Derry descobriu Nordblad através da sua irmã, que é também fotógrafa. Da colaboração entre Johanna e Ian surgiu um dos mais poderosos trabalhos vídeo deste ano, "Johanna Under The Ice" (2016).
O filme seduz pela cinematografia absolutamente majestática, pelo minimalismo na forma, cor e movimento. Seduz porque a ação se passa num lugar inóspito, inalcançável para muitos de nós, e por isso mesmo cativante por mostrar o desconhecido. Mas o filme não é apenas um conjunto de imagens num lugar remoto, existe um trabalho minimalista de storytelling que dá o toque final, derrubando os mais céticos, capaz de gerar um forte laço de empatia para com a pessoa que surge no ecrã, e assim estabelecer uma ponte emocional que eleva a experiência à transcendência.
O filme seduz pela cinematografia absolutamente majestática, pelo minimalismo na forma, cor e movimento. Seduz porque a ação se passa num lugar inóspito, inalcançável para muitos de nós, e por isso mesmo cativante por mostrar o desconhecido. Mas o filme não é apenas um conjunto de imagens num lugar remoto, existe um trabalho minimalista de storytelling que dá o toque final, derrubando os mais céticos, capaz de gerar um forte laço de empatia para com a pessoa que surge no ecrã, e assim estabelecer uma ponte emocional que eleva a experiência à transcendência.
"Johanna Under The Ice" (2016) de Ian Derry
setembro 04, 2016
"Livro do Desassossego” (1982)
É magistralmente difícil definir a experiência de ler "Livro do Desassossego”, tanto quanto a intensidade do que se sente enquanto se lê, já que ao ler nos separamos de nós e nos juntamos ao autor, para com ele sentir e compreender, assumindo a nossa inabilidade de o explicar, menos ainda definir. Só o próprio Fernando Pessoa compreendeu a envergadura daquilo a que se propôs, tendo para tal construído um segundo eu, Bernardo Soares, para por seu intermédio se poder olhar a Si de fora, e assim escavar e desconstruir a Alma. E por isso a definição da experiência desta leitura só podia ser dada pelo próprio Pessoa ao dizer-nos: "Quero que a leitura deste livro vos deixe a impressão de terdes atravessado um pesadelo voluptuoso.”
“Quem sou eu?” é o motor do texto, ou centenas de textos, que compõe “Livro do Desassossego”, sinto contudo que o autor na sua ânsia por responder à questão, se manifesta como uma espécie de metafísico esteta, alguém com um sentido analítico de investigador, dotado de uma curiosidade científica profunda, capaz de o conduzir por entre os caminhos mais recônditos da sua busca, e por outro lado, alguém com um sentido artístico entranhado, mais interessado na busca, nos caminhos, processos e componentes, e menos nas suas explicações, sem preocupações de formular categorias, definições ou respostas. Se Pessoa me recorda, repetidas vezes, Descartes, sempre que abandona a abstração metafísica e concretiza, afasta-se deste para assumir o seu traço próprio de artista inquisidor. Era a forma que lhe interessava, não a sua definição.
Até aqui, só tinha encontrado tamanha intensidade literária aos pés de Proust.
“Quem sou eu?” é o motor do texto, ou centenas de textos, que compõe “Livro do Desassossego”, sinto contudo que o autor na sua ânsia por responder à questão, se manifesta como uma espécie de metafísico esteta, alguém com um sentido analítico de investigador, dotado de uma curiosidade científica profunda, capaz de o conduzir por entre os caminhos mais recônditos da sua busca, e por outro lado, alguém com um sentido artístico entranhado, mais interessado na busca, nos caminhos, processos e componentes, e menos nas suas explicações, sem preocupações de formular categorias, definições ou respostas. Se Pessoa me recorda, repetidas vezes, Descartes, sempre que abandona a abstração metafísica e concretiza, afasta-se deste para assumir o seu traço próprio de artista inquisidor. Era a forma que lhe interessava, não a sua definição.
“Triste noção tem da realidade quem a limita ao orgânico, e não põe a ideia de uma alma dentro das estatuetas e dos lavores. Onde há forma há alma.” (416)
“Dominamos outrora o mar físico, criando a civilização universal; dominaremos agora o mar psíquico, a emoção, a mãe temperamento, criando a civilização intelectual.” (438)
“Os classificadores de coisas, que são aqueles homens de ciência cuja ciência é só classificar, ignoram, em geral, que o classificável é infinito e tanto se não pode classificar. Mas o em que vai meu pasmo é que ignorem a existência de classificáveis incógnitos, coisas da alma e da consciência que estão nos interstícios do conhecimento.” (378)Toda a obra se percorre de um tom melancólico, porque é de “desassossego” que se fala, outro tom seria inadequado, contudo contagiado por um sentir maior, que vai além da tristeza e da dor, que apresenta o viver como apesar de angustiante totalmente inebriante porque potenciador do ato contínuo criativo.
“É debruçado ao parapeito, gozando do dia, sobre o volume vário da cidade inteira, só um pensamento me enche a alma — a vontade íntima de morrer, de acabar, de não ver mais luz sobre cidade alguma, de não pensar, de não sentir, de deixar atrás, como um papel de embrulho, o curso do sol e dos dias, de despir, como um traje pesado, à beira do grande leito, o esforço involuntário de ser.” (397)
“Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são.
Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.” (451)
“A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação.Do meu lado, e em jeito de explicação do espanto e admiração, descodifico esta obra em dois elementos-chave: a prosa e o tema. No campo da prosa, Pessoa está acima de qualquer adjetivação, o modo como trabalha a língua portuguesa é absolutamente ímpar, elevando-a a níveis insondáveis, capaz de nos transportar por entre as palavras fazendo-nos sentir a leveza e a impalpabilidade do que nos quer dizer. No tema, o trabalhar metafísico na tentativa de compreender aquilo que somos, Pessoa tem momentos de tanta elevação que quase parece levar-nos a sentir o toque direto sobre a alma, como se ela se pudesse apresentar ali, naquelas letras, palavras, ideias, como se Pessoa fosse Soares, e ambos fossem um, e se fundissem no texto, fossem alma vertida nas folhas, no papel.
O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exatamente o que eu senti. E como este outrem é, por hipótese de arte, não esta ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti.” (260)
setembro 02, 2016
“Assassin's Creed Syndicate” (2015)
É o sexto tomo da série Assassin's Creed (AC), que por razões do flop ocorrido com o seu antecessor, “Assassin's Creed Unity” (2014), vinha obrigado a dar mostras de que a série não seria votada ao esquecimento. Syndicate conseguiu grande apoio da crítica, mas não se pode dizer o mesmo do público que, apesar de reconhecer as melhorias, sente estar apenas a obter mais do mesmo. Do meu lado, e por ter adorado Unity, não tinha qualquer ânsia de jogar Syndicate, contudo ainda bem que o fiz, já que o prazer que foi passear por Paris foi totalmente replicado com o passeio por Londres. Em síntese, Syndicate melhorou a jogabilidade, melhorou a sensação de ambiente vivo, incluiu duas personagens ricas, incluindo uma feminina, mas ficou-se quanto à história, nem mesmo os personagens históricos — Charles Dickens, Charles Darwin, Karl Marx ou Rainha Victória — salvam a fragilidade do guião.
Em termos da assinatura da série, a reconstituição virtual histórica da cidade, temos do melhor que esta última geração de consolas nos pode dar. A cidade de Londres está uma delícia, com todo controlo atmosférico — sol, chuva, nuvens — a funcionar em pleno, criando momentos de puro êxtase visual ao longo de todo o jogo. Poder fazer um leap-of-faith a partir do pináculo do Big Ben é verdadeiramente impactante, tal como poder aceder a áreas que no mundo real podemos apenas ver à distância, ou detrás de grades.
Esta componente foi ainda mais engrandecida graças à introdução de duas mecânicas — a condução de carruagens e o gancho de corda — que nos permitem passear por toda Londres de forma muito mais rápida, quase sem necessidade de recorrer aos portais fast travel, o que por outro lado garante um maior envolvimento da nossa parte com o ambiente, tornando o mundo de jogo mais orgânico, já que vamos encontrando as missões, e as side quests, à medida que vamos atravessando a cidade.
Na jogabilidade existe um incremento nos sistemas de colecta que permitem aumentar as recompensas pelo progresso no jogo. O mais relevante surge pela divisão dos bairros de Londres em áreas dominadas por templários que temos de ir eliminando para podermos garantir a segurança dos bairros. Apesar de se perceber o seu sentido quantitativo, acaba funcionando em termos qualitativos uma vez que se justifica totalmente no que toca à vida da cidade. Ou seja, é gratificante eliminar os templários totalmente de um bairro, e depois passar lá a seguir a perceber que as pessoas que lá estão, estão do nosso lado, e não contra nós, está longe de ser um mero colecionar de pontos ou jóias.
O menos da jogabilidade já não é novo, e assenta nas lutas. Percebendo a necessidade de ir evoluindo e ganhando experiência, na maior parte do tempo damos conosco em lutas em que não sabemos o que realmente estamos a fazer, não fosse o stealth, os puzzles e as coletas, e estaríamos nas missões apenas à espera dos pontos seguintes da história. Desta vez nem a evolução e compra de armas mais pesadas me fez sentir confortável nas lutas. Temos um jogo imensamente fluído, com personagens que literalmente voam verticalmente, que nos permitem atravessar quilómetros por meio de estruturas imensamente complexas, sem qualquer problema, mas quando deparamos com um inimigo, ou o matamos logo sem pré-aviso, ou entramos na luta e esperamos que termine após carregar estupidamente em botões ao acaso.
No campo da história é onde a Ubisoft nos perde totalmente, algo que é também já recorrente. No tomo anterior tivemos a Revolução Francesa, agora a Revolução Industrial, e nada disto é suficiente para criar verdadeiro drama, para nos agarrar e prender aos desejos dos personagens?! Diga-se que Evie e Jacob são fantásticos em termos de caracterização, mas em tudo o resto são meras marionetas da história, que é totalmente oca. Uma pena, muita pena, e só desejo que um dia os responsáveis da Ubisoft acordem e contratem alguém que realmente saiba escrever para os seus quadros. É inaceitável que com todo o talento aqui presente não se tenha investido a sério em escritores, sendo nós obrigados a assistir a uma história que se arrasta até ao final menos climático que alguma vez joguei, tornando tudo ainda mais ridículo ao evocar Charles Dickens.
No geral, é uma boa experiência, principalmente por nos permitir reviver uma das cidades mais emblemáticas do globo, que apesar de se apresentar como era há 150 anos tem ainda muita semelhança com os dias de hoje. Um mundo de jogo repleto de ação e possibilidades que garantem mais do que uma experiência narrativa, uma experiência imensamente lúdica.
Em termos da assinatura da série, a reconstituição virtual histórica da cidade, temos do melhor que esta última geração de consolas nos pode dar. A cidade de Londres está uma delícia, com todo controlo atmosférico — sol, chuva, nuvens — a funcionar em pleno, criando momentos de puro êxtase visual ao longo de todo o jogo. Poder fazer um leap-of-faith a partir do pináculo do Big Ben é verdadeiramente impactante, tal como poder aceder a áreas que no mundo real podemos apenas ver à distância, ou detrás de grades.
Esta componente foi ainda mais engrandecida graças à introdução de duas mecânicas — a condução de carruagens e o gancho de corda — que nos permitem passear por toda Londres de forma muito mais rápida, quase sem necessidade de recorrer aos portais fast travel, o que por outro lado garante um maior envolvimento da nossa parte com o ambiente, tornando o mundo de jogo mais orgânico, já que vamos encontrando as missões, e as side quests, à medida que vamos atravessando a cidade.
Na jogabilidade existe um incremento nos sistemas de colecta que permitem aumentar as recompensas pelo progresso no jogo. O mais relevante surge pela divisão dos bairros de Londres em áreas dominadas por templários que temos de ir eliminando para podermos garantir a segurança dos bairros. Apesar de se perceber o seu sentido quantitativo, acaba funcionando em termos qualitativos uma vez que se justifica totalmente no que toca à vida da cidade. Ou seja, é gratificante eliminar os templários totalmente de um bairro, e depois passar lá a seguir a perceber que as pessoas que lá estão, estão do nosso lado, e não contra nós, está longe de ser um mero colecionar de pontos ou jóias.
O menos da jogabilidade já não é novo, e assenta nas lutas. Percebendo a necessidade de ir evoluindo e ganhando experiência, na maior parte do tempo damos conosco em lutas em que não sabemos o que realmente estamos a fazer, não fosse o stealth, os puzzles e as coletas, e estaríamos nas missões apenas à espera dos pontos seguintes da história. Desta vez nem a evolução e compra de armas mais pesadas me fez sentir confortável nas lutas. Temos um jogo imensamente fluído, com personagens que literalmente voam verticalmente, que nos permitem atravessar quilómetros por meio de estruturas imensamente complexas, sem qualquer problema, mas quando deparamos com um inimigo, ou o matamos logo sem pré-aviso, ou entramos na luta e esperamos que termine após carregar estupidamente em botões ao acaso.
No campo da história é onde a Ubisoft nos perde totalmente, algo que é também já recorrente. No tomo anterior tivemos a Revolução Francesa, agora a Revolução Industrial, e nada disto é suficiente para criar verdadeiro drama, para nos agarrar e prender aos desejos dos personagens?! Diga-se que Evie e Jacob são fantásticos em termos de caracterização, mas em tudo o resto são meras marionetas da história, que é totalmente oca. Uma pena, muita pena, e só desejo que um dia os responsáveis da Ubisoft acordem e contratem alguém que realmente saiba escrever para os seus quadros. É inaceitável que com todo o talento aqui presente não se tenha investido a sério em escritores, sendo nós obrigados a assistir a uma história que se arrasta até ao final menos climático que alguma vez joguei, tornando tudo ainda mais ridículo ao evocar Charles Dickens.
No geral, é uma boa experiência, principalmente por nos permitir reviver uma das cidades mais emblemáticas do globo, que apesar de se apresentar como era há 150 anos tem ainda muita semelhança com os dias de hoje. Um mundo de jogo repleto de ação e possibilidades que garantem mais do que uma experiência narrativa, uma experiência imensamente lúdica.
setembro 01, 2016
“Viagens de Gulliver” (1726)
Gulliver pode não ser a maior obra de arte literária, mas é uma das obras literárias de maior impacto narrativo na nossa civilização recente. Não existe meio expressivo — cinema, rádio, banda desenhada, teatro, etc. — que não tenha visto surgir a sua versão de "Viagens de Gulliver", sendo que desde que foi publicado, há quase 300 anos, não deixou de ser reapresentado a cada nova geração. Gulliver é fruto do mais nobre que a imaginação humana nos pode dar, o puro ato de fantasia, em todo o seu esplendor criativo.
Se “Viagens de Gulliver” surge quase como resposta à viagem de “Robinson Crusoe”, publicado na década anterior, é à veia satírica de Jonathan Swift que devemos a capacidade para ir além do mundo conhecido, para especular sobre realidades alternativas, umas mais fantásticas outras mais científicas, e assim congeminar novos mundos, novos personagens/pessoas e novos costumes, lançando a primeira pedra de um género que se mantém até hoje, o da Ficção Científica (FC). Swift precedeu em mais de um século, o chamado pai da FC, Jules Verme, e em dois, George Orwell, que nesta edição prefacia a obra.
Acredito que a inovação desta obra surja arrastada pela sátira, um género que tem necessidade de entrelaçar ficcional e real por forma a garantir os seus efeitos, conduzindo Swift a inovar muito provavelmente sem o desejar, antecipando assim todo o género literário de FC. Gulliver está longe de se apresentar como mero relato fantasioso, ou fantástico, não é de todo um conto de fadas, mágicos ou esotérico, a relação entre o plausível e o potencialmente possível é uma constante, é puro trabalho de especulação ficcional que temos aqui. Desde um mundo de pessoas pequenas (Lilliput) a um de gigantes (Brobdingnag), em que se confrontam as distinções físicas pelas suas propriedades anatómicas e perceptivas, passando por uma ilha voadora, na qual vivem pessoas abstraídas da realidade mundana, encerradas no estudo da matemática e música (Laputa), chegando a um dos raros momentos em que Swift parece resvalar, na visita à ilha de Glubbdubdrib, com Gulliver a ser introduzido num universo de magia e ocultismo, podendo conversar com espíritos célebres defuntos, acaba no entanto a invocar reis e rainhas para descobrir segredos da História, indo mesmo ao ponto de invocar e discutir ideias de algumas das figuras mais relevantes da ciência, de Descartes (1596 a 1650) a Sócrates (-470 a -399).
Se “Viagens de Gulliver” surge quase como resposta à viagem de “Robinson Crusoe”, publicado na década anterior, é à veia satírica de Jonathan Swift que devemos a capacidade para ir além do mundo conhecido, para especular sobre realidades alternativas, umas mais fantásticas outras mais científicas, e assim congeminar novos mundos, novos personagens/pessoas e novos costumes, lançando a primeira pedra de um género que se mantém até hoje, o da Ficção Científica (FC). Swift precedeu em mais de um século, o chamado pai da FC, Jules Verme, e em dois, George Orwell, que nesta edição prefacia a obra.
A ilha de Laputa em “As Viagens de Gulliver”
Acredito que a inovação desta obra surja arrastada pela sátira, um género que tem necessidade de entrelaçar ficcional e real por forma a garantir os seus efeitos, conduzindo Swift a inovar muito provavelmente sem o desejar, antecipando assim todo o género literário de FC. Gulliver está longe de se apresentar como mero relato fantasioso, ou fantástico, não é de todo um conto de fadas, mágicos ou esotérico, a relação entre o plausível e o potencialmente possível é uma constante, é puro trabalho de especulação ficcional que temos aqui. Desde um mundo de pessoas pequenas (Lilliput) a um de gigantes (Brobdingnag), em que se confrontam as distinções físicas pelas suas propriedades anatómicas e perceptivas, passando por uma ilha voadora, na qual vivem pessoas abstraídas da realidade mundana, encerradas no estudo da matemática e música (Laputa), chegando a um dos raros momentos em que Swift parece resvalar, na visita à ilha de Glubbdubdrib, com Gulliver a ser introduzido num universo de magia e ocultismo, podendo conversar com espíritos célebres defuntos, acaba no entanto a invocar reis e rainhas para descobrir segredos da História, indo mesmo ao ponto de invocar e discutir ideias de algumas das figuras mais relevantes da ciência, de Descartes (1596 a 1650) a Sócrates (-470 a -399).
“Por vezes pousavam [moscas] em minha comida, e deixavam nela seus asquerosos excrementos ou ovas, que para mim eram perfeitamente visíveis, embora não para os nativos daquele país, cujos olhos grandes não eram tão aguçados quanto os meus quando se tratava de ver objetos pequenos.”Como texto, Gulliver surge com a aparência de mera reunião de contos, a cada viagem, novas ilhas com novas pessoas que nos permitem aceder a novos modos de compreender a realidade, contudo a sucessão de viagens acaba por desenvolver um impacto final no nosso personagem, fruto do cumulativo de experiências, garantindo assim unidade à história, ao personagem, e no fundo a toda a obra. Swift parece um tanto obstinado na sua sede de crítica à sociedade e aos homens que a compõe, por via da sátira, hoje de difícil interpretação sem acesso a enquadramento histórico*, traçando desse modo um quadro de amadurecimento de ideias, no que toca à percepção daquilo que somos enquanto espécie.
“Perguntou-me ele quais eram as causas ou motivos usuais que levavam um país a ir à guerra contra o outro. Respondi que eram inumeráveis, porém mencionaria apenas umas poucas entre as mais importantes. Por vezes a ambição dos príncipes, que jamais julgam ter terra ou Gente suficiente para governar: por vezes a corrupção dos ministros, que induzem seu senhor a fazer guerra a fim de sufocar ou desviar o clamor dos súditos contra sua má governança. As diferenças de opiniões têm custado muitos milhões de vidas: por exemplo, se a carne é pão, ou o pão é carne; se osSuco de uma certa fruta é sangue ou vinho; se assobiar é um vício ou uma virtude; se é melhor beijar uma tábua ou jogá-la no fogo; qual a melhor cor para uma túnica, preto, branco, vermelho ou cinza; se ela devia ser longa ou curta, estreita ou larga, suja ou limpa, e muitas outras coisas. E não há guerras tão furiosas e sangrentas, nem tão duradouras, quanto as que são ocasionadas por diferenças de opinião, especialmente quando se trata de coisas sem importância.”
Assim, e apesar de apontado como livro de histórias para crianças, sendo-o mais pelo texto simples e muito acessível assim como pelo apelo à imaginação e fantasia das duas primeiras viagens, por sinal as mais conhecidas, é contudo uma obra com várias camadas de significado, que se vão abrindo a cada um em função do que se traz para leitura do mesmo.
* Esta edição da Penguin vem com muito boas notas do prof. Robert DeMaria Jr., a tradução de Paulo Henriques Britto, para a Companhia das Letras, está também muito boa.
agosto 27, 2016
“Fome” (1890), arte e ideologia
Há muito tempo que tencionava ler “Fome”, mas quanto mais fui lendo sobre o livro, mais fui sabendo sobre Knut Hamsun, e isso fez com que fosse protelando a leitura. Li-o agora, depois de ter deixado assentar os meus temores, e já pouco lembrado dos mesmos dei início à leitura que estacou ao fim de cerca de 20 páginas, por me ter recordado da razão porque tinha retardado a leitura, a xenofobia do autor.
Hamsun esteve banido das livrarias norueguesas (não de forma oficial) até há bem pouco tempo, e pelo mundo fora muitos académicos têm-se dedicado a dissecar o autor no sentido de compreender a ambivalência latente entre o legado escrito e o legado político (Zagar, 2009; Blamires, 2006; Krouk, 2011). Para muitos, é doloroso (Ferguson, 1987; Troell, 1996; Kolloen, 2003) suportar a ideia de que alguém tão brilhante no mundo das letras, um artista original e de vanguarda, possa ao mesmo tempo ter defendido um dos regimes, Nazi, que maior atrocidades cometeu contra à espécie humana. Mas a verdade é que os factos estão à vista, não é possível escamotear, não existem sequer atenuantes que possam justificar uma tal atitude, com a agravante do próprio Hamsun sempre ter recusado o arrependimento. Dos imensos factos que se podem inventariar, deixo apenas o obituário escrito por Hamsun para Hitler, após a sua morte:
“Fome” não é uma obra xenófoba, mas o seu protagonista — maníaco-depressivo, elitista e intolerante — sempre à beira de esgotamento nervoso, provocado pela fome, por sua vez provocado pelo seu comportamento, acaba por registar momentos que rasam o xenófobo. Se me veio à mente o passado político do autor, foi porque lia o escárnio de um louco esfomeado contra um coxo que supostamente o perseguia, e logo a seguir contra um anão. Por outro lado, e continuando a leitura, percebe-se como este estima a autoridade, a polícia que tão bem realiza o seu trabalho, ou como este coloca os profissionais liberais — advogados, fotógrafos — acima dos meros empregados ou pobres. Um personagem não diz sempre aquilo que um autor pensa, ele é antes de tudo um objeto de ideias, mas ele também não é desprovido do sentir e pensar do autor, mais ainda, quando como no caso, o livro se baseia em memórias de fases da vida do próprio autor. E é exatamente isto que levanta os meus maiores problemas face à obra, esta ou qualquer outra deste autor.
Porque uma obra não existe sem um autor. Nos casos em que não existe, como as obras criadas por máquinas, a nossa relação com as mesmas praticamente desaparece, pela simples razão de que não existe um interlocutor. Ou seja, a relevância da arte pressupõe que um criador tem algo para dizer. Por outro lado a experiência de uma obra de arte, pressupõe que o criador sente e pensa próximo do seu leitor, por forma a ser capaz de avançar, mostrando o caminho, sobre os redutos que a ambos impedem de ver além. Deste modo, para mim, é impossível separar o artista do político, já que não existe artista sem político, um artista sem ideias é artista nenhum.
Por tudo isto, posso até admirar a sua arte, nomeadamente a beleza da sua prosa, a enorme capacidade para aprofundar o traço psicológico, ao qual Dostoiévski em nada fica atrás, e mesmo a sua tão louvada primeira-pessoa que já se tinha visto com idêntica beleza em Twain. Tenho também de admitir que terá sido imensamente influente na literatura do início do século XX, nomeadamente para autores como Kafka, Mann, Miller ou Hesse. Mas, nada disto me obriga a aceitar o seu legado. Cabe a nós selecionar, filtrar, e escolher aquilo que deve perdurar, e de entre tanta obra criada, e tanto ser humano íntegro, não podemos permitir que uma simples medalha dite um cânone.
Como nota final, outro autor, que recentemente li, e senti um travo inusitado, foi Céline, que por estranho que pareça tem também uma história problemática com o regime Nazi. Aquando da sua leitura e resenha, não dei conta desta sua ligação, julgo que a história no seu caso foi mais benevolente e foi apagando muito desse passado, algo que parece querer começar a acontecer na última década com Hamsun. Contudo, por mais que se branqueie, menorize, ou secundarize, em ambos estes autores sinto algo que me distancia deles, os tópicos dos seus textos estão pejados de uma intolerância que tenho dificuldade em aceitar como mero excentrismo artístico.
Hamsun esteve banido das livrarias norueguesas (não de forma oficial) até há bem pouco tempo, e pelo mundo fora muitos académicos têm-se dedicado a dissecar o autor no sentido de compreender a ambivalência latente entre o legado escrito e o legado político (Zagar, 2009; Blamires, 2006; Krouk, 2011). Para muitos, é doloroso (Ferguson, 1987; Troell, 1996; Kolloen, 2003) suportar a ideia de que alguém tão brilhante no mundo das letras, um artista original e de vanguarda, possa ao mesmo tempo ter defendido um dos regimes, Nazi, que maior atrocidades cometeu contra à espécie humana. Mas a verdade é que os factos estão à vista, não é possível escamotear, não existem sequer atenuantes que possam justificar uma tal atitude, com a agravante do próprio Hamsun sempre ter recusado o arrependimento. Dos imensos factos que se podem inventariar, deixo apenas o obituário escrito por Hamsun para Hitler, após a sua morte:
"Hitler era um guerreiro, um guerreiro da humanidade e um pregador da doutrina da justiça para todas as nações. Ele era um reformador da mais elevada ordem, e o seu destino histórico surgiu por este ter trabalhado num tempo de brutalidade sem exemplo, que no final acabou por o fazer cair. Assim, podem os Europeus de Leste olhar para Adolf Hitler. E nós, os seus seguidores mais próximos, baixar as nossas cabeças à sua morte.” Hamsun, 1945Podemos questionar-nos, como foi possível? Por outro lado, podemos questionar-nos antes, como não haveria de ser possível? No meio do varrimento levado a cabo pelo regime Nazi, alguma profissão terá ficado de fora? É óbvio que não, e no campo das artes outros artistas houve, criadores de obras disseminadoras de ideologia, alguns mais assumidos que Hamsun, como Fritz Hippler, outros menos, como Leni Riefenstahl.
“Fome” não é uma obra xenófoba, mas o seu protagonista — maníaco-depressivo, elitista e intolerante — sempre à beira de esgotamento nervoso, provocado pela fome, por sua vez provocado pelo seu comportamento, acaba por registar momentos que rasam o xenófobo. Se me veio à mente o passado político do autor, foi porque lia o escárnio de um louco esfomeado contra um coxo que supostamente o perseguia, e logo a seguir contra um anão. Por outro lado, e continuando a leitura, percebe-se como este estima a autoridade, a polícia que tão bem realiza o seu trabalho, ou como este coloca os profissionais liberais — advogados, fotógrafos — acima dos meros empregados ou pobres. Um personagem não diz sempre aquilo que um autor pensa, ele é antes de tudo um objeto de ideias, mas ele também não é desprovido do sentir e pensar do autor, mais ainda, quando como no caso, o livro se baseia em memórias de fases da vida do próprio autor. E é exatamente isto que levanta os meus maiores problemas face à obra, esta ou qualquer outra deste autor.
Porque uma obra não existe sem um autor. Nos casos em que não existe, como as obras criadas por máquinas, a nossa relação com as mesmas praticamente desaparece, pela simples razão de que não existe um interlocutor. Ou seja, a relevância da arte pressupõe que um criador tem algo para dizer. Por outro lado a experiência de uma obra de arte, pressupõe que o criador sente e pensa próximo do seu leitor, por forma a ser capaz de avançar, mostrando o caminho, sobre os redutos que a ambos impedem de ver além. Deste modo, para mim, é impossível separar o artista do político, já que não existe artista sem político, um artista sem ideias é artista nenhum.
Por tudo isto, posso até admirar a sua arte, nomeadamente a beleza da sua prosa, a enorme capacidade para aprofundar o traço psicológico, ao qual Dostoiévski em nada fica atrás, e mesmo a sua tão louvada primeira-pessoa que já se tinha visto com idêntica beleza em Twain. Tenho também de admitir que terá sido imensamente influente na literatura do início do século XX, nomeadamente para autores como Kafka, Mann, Miller ou Hesse. Mas, nada disto me obriga a aceitar o seu legado. Cabe a nós selecionar, filtrar, e escolher aquilo que deve perdurar, e de entre tanta obra criada, e tanto ser humano íntegro, não podemos permitir que uma simples medalha dite um cânone.
Como nota final, outro autor, que recentemente li, e senti um travo inusitado, foi Céline, que por estranho que pareça tem também uma história problemática com o regime Nazi. Aquando da sua leitura e resenha, não dei conta desta sua ligação, julgo que a história no seu caso foi mais benevolente e foi apagando muito desse passado, algo que parece querer começar a acontecer na última década com Hamsun. Contudo, por mais que se branqueie, menorize, ou secundarize, em ambos estes autores sinto algo que me distancia deles, os tópicos dos seus textos estão pejados de uma intolerância que tenho dificuldade em aceitar como mero excentrismo artístico.
agosto 25, 2016
“A História de Uma Serva” (1985)
As distopias nunca estiveram tanto na moda, na última década tivemos para todos os gostos, desde o erudito “A Estrada” (2006) de Cormac McCarthy às várias séries juvenis “Os Jogos da Fome” (2008) de Suzanne Collins, “Maze Runner” (2009) de James Dashner, “Divergente” (2011) de Veronica Roth, ou ainda “O Silo” (2012) de Hugh Howey, para não falar dos universos zombie, da banda desenhada “The Walking Dead” (2003) e homónima série (2010) ou videojogos “The Last of Us” (2013), não esquecendo o retorno do culto de “Mad Max” (2015). Não sendo de agora, a lista de histórias criadas, independentemente do meio, principalmente ao longo do último século é deveras impressionante. O fim do mundo, o fim da espécie, ou o fim da vida/costumes como a conhecíamos, são tópicos imensamente atrativos para quem se aventura na escrita de histórias a partir do imaginário, científico ou fantasioso, quanto mais não seja por se darem imensamente bem ao questionamento próprio das boas histórias: “e se?” ou “e depois?”
Como confessa Margaret Atwood, muito do trabalho do escritor assenta no “brincar com hipóteses”, e este livro surgiu-lhe a partir de uma hipótese simples, baseada nos credos de grupos religiosos extremistas: “Se o lugar da mulher é em casa, então o quê? se decidirmos forçar isso, o que se segue?”, embora como ela diz nesta mesma entrevista, o objetivo não tenha sido o da defesa do lugar da mulher, mas antes “um estudo sobre o poder, como ele opera e como ele deforma ou modela as pessoas que vivem dentro desse tipo de regime” Atwood (1986).
Deste modo, na distopia de Atwood apesar da mulher surgir no centro, como o género a quem tudo se pede e nada se dá em retorno, na verdade isso só assim é, porque o relato é feito por uma serva, já que ao longo de todo o livro podemos perceber como ninguém, mulher ou homem, está live da imposição totalitária do governo. Os homens são vistos como meros animais, sedentos de sexo, que precisam de ser domesticados a qualquer custo, enquanto as mulheres são vistas como meras ferramentas, garante da manutenção da espécie.
As distopias, enquanto conceitos, são interessantes por funcionarem como modelos que nos permitem reequacionar a civilização, já que por norma surgem a partir da necessidade de dar resposta a problemas concretos que impedem a sociedade de funcionar como antes (ex. vírus, água, clima, gestação). Por outro lado acabamos por verificar que os verdadeiros problemas estão em nós, ou seja, o que dá origem à maior parte dos problemas a que assistimos assenta no balanceamento entre o individual e o coletivo. Somos uma espécie mamífera, como tal só conseguimos sobreviver em grupo, por outro lado somos dotados de consciência de nós, o que nos impele à construção de identidade, e por conseguinte à necessidade de espaço individual. Politicamente, e de forma simplista, isto define-se como esquerda e direita, a esquerda preocupada com o coletivo, e a direita com o indivíduo, mas como diz o ditado, “a virtude está no meio”, o que faz desse meio, ou centro, uma utopia, já que para agradar a uns é preciso desagradar a outros, daí que os extremos acabem por vezes a conseguir angariar seguidores e assim a produzir sociedades distópicas.
No cerne de “A História de uma Serva” temos Offred, a quem tudo foi retirado — mãe, marido, filha, emprego, dinheiro — pedindo-se em seguida que tudo dê à espécie — ofereça o corpo para a gestação de bebés de outras famílias, por forma a garantir a continuidade da espécie, que entretanto se viu ameaçada por alterações na natureza. Percebe-se que Atwood procurou trabalhar a ambivalência dos dois pólos — negativo e positivo —, acabando por criar uma personagem ambígua, com quem que se torna difícil empatizar. Por outro lado, o facto de tudo aquilo que esta perdeu ser concreto, mensurável, e aquilo para que ela trabalha ser de certo modo abstrato, existir ainda apenas em potência, torna-se ainda mais complicado compreender porque não reage ela de forma mais efetiva, porque parece aceitar tudo, mais ainda quando ao contrário de outras distopias é uma personagem de transição, ou seja, que conhece bem a sociedade que precedeu aquelas novas regras.
Do meu lado, e mais em concreto, julgo que o problema não surge tanto dessa ambiguidade, que diga-se é característica dos protagonistas de distopias, que têm de lidar com a enormidade da situação, mas antes pela leveza, ou superficialidade de alguns dos seus sentires, como a preocupação com o creme para as mãos, assim como muitos dos comentários que vai fazendo sobre a esposa ou o comandante, que dão conta de uma personagem ligeira, que parece a tempos ser capaz de passar ao lado daquilo que nos pareceria ser à partida um verdadeiro terramoto psicológico.
Apesar destes problemas com a personagem considero-o um livro relevante, nomeadamente por ser capaz de levantar a discussão em redor dos problemas de género, assim como e à semelhança de outras distopias nos fazer lembrar que o totalitarismo pode estar ao virar da esquina, mas também pelo modelo não-linear que a autora escolheu para nos dar acesso ao passado e presente, que funciona muitíssimo bem na manutenção do nosso interesse. Ainda assim, não o colocaria a par de obras como “1984” ou “Admirável Mundo Novo”, ou pelo menos das recordações que mantenho dessas obras, já que foram lidas em idade bem diferente.
Como confessa Margaret Atwood, muito do trabalho do escritor assenta no “brincar com hipóteses”, e este livro surgiu-lhe a partir de uma hipótese simples, baseada nos credos de grupos religiosos extremistas: “Se o lugar da mulher é em casa, então o quê? se decidirmos forçar isso, o que se segue?”, embora como ela diz nesta mesma entrevista, o objetivo não tenha sido o da defesa do lugar da mulher, mas antes “um estudo sobre o poder, como ele opera e como ele deforma ou modela as pessoas que vivem dentro desse tipo de regime” Atwood (1986).
Deste modo, na distopia de Atwood apesar da mulher surgir no centro, como o género a quem tudo se pede e nada se dá em retorno, na verdade isso só assim é, porque o relato é feito por uma serva, já que ao longo de todo o livro podemos perceber como ninguém, mulher ou homem, está live da imposição totalitária do governo. Os homens são vistos como meros animais, sedentos de sexo, que precisam de ser domesticados a qualquer custo, enquanto as mulheres são vistas como meras ferramentas, garante da manutenção da espécie.
As distopias, enquanto conceitos, são interessantes por funcionarem como modelos que nos permitem reequacionar a civilização, já que por norma surgem a partir da necessidade de dar resposta a problemas concretos que impedem a sociedade de funcionar como antes (ex. vírus, água, clima, gestação). Por outro lado acabamos por verificar que os verdadeiros problemas estão em nós, ou seja, o que dá origem à maior parte dos problemas a que assistimos assenta no balanceamento entre o individual e o coletivo. Somos uma espécie mamífera, como tal só conseguimos sobreviver em grupo, por outro lado somos dotados de consciência de nós, o que nos impele à construção de identidade, e por conseguinte à necessidade de espaço individual. Politicamente, e de forma simplista, isto define-se como esquerda e direita, a esquerda preocupada com o coletivo, e a direita com o indivíduo, mas como diz o ditado, “a virtude está no meio”, o que faz desse meio, ou centro, uma utopia, já que para agradar a uns é preciso desagradar a outros, daí que os extremos acabem por vezes a conseguir angariar seguidores e assim a produzir sociedades distópicas.
No cerne de “A História de uma Serva” temos Offred, a quem tudo foi retirado — mãe, marido, filha, emprego, dinheiro — pedindo-se em seguida que tudo dê à espécie — ofereça o corpo para a gestação de bebés de outras famílias, por forma a garantir a continuidade da espécie, que entretanto se viu ameaçada por alterações na natureza. Percebe-se que Atwood procurou trabalhar a ambivalência dos dois pólos — negativo e positivo —, acabando por criar uma personagem ambígua, com quem que se torna difícil empatizar. Por outro lado, o facto de tudo aquilo que esta perdeu ser concreto, mensurável, e aquilo para que ela trabalha ser de certo modo abstrato, existir ainda apenas em potência, torna-se ainda mais complicado compreender porque não reage ela de forma mais efetiva, porque parece aceitar tudo, mais ainda quando ao contrário de outras distopias é uma personagem de transição, ou seja, que conhece bem a sociedade que precedeu aquelas novas regras.
Do meu lado, e mais em concreto, julgo que o problema não surge tanto dessa ambiguidade, que diga-se é característica dos protagonistas de distopias, que têm de lidar com a enormidade da situação, mas antes pela leveza, ou superficialidade de alguns dos seus sentires, como a preocupação com o creme para as mãos, assim como muitos dos comentários que vai fazendo sobre a esposa ou o comandante, que dão conta de uma personagem ligeira, que parece a tempos ser capaz de passar ao lado daquilo que nos pareceria ser à partida um verdadeiro terramoto psicológico.
Apesar destes problemas com a personagem considero-o um livro relevante, nomeadamente por ser capaz de levantar a discussão em redor dos problemas de género, assim como e à semelhança de outras distopias nos fazer lembrar que o totalitarismo pode estar ao virar da esquina, mas também pelo modelo não-linear que a autora escolheu para nos dar acesso ao passado e presente, que funciona muitíssimo bem na manutenção do nosso interesse. Ainda assim, não o colocaria a par de obras como “1984” ou “Admirável Mundo Novo”, ou pelo menos das recordações que mantenho dessas obras, já que foram lidas em idade bem diferente.
agosto 24, 2016
"Rei Lear" (1605)
À terceira peça de Shakespeare, depois de "Hamlet" (1602) e "Macbeth" (1606), padrões começam a emergir e as minha ideias sobre a sua obra começam a ganhar consistência, das quais extraio duas grandes conclusões: uma sobre as qualidades dramáticas, e outra sobre as insuficiências do texto.
Shakespeare é considerado um dos maiores arautos das letras, sendo provavelmente o autor mais estudado nas Faculdades de Letras de todo o mundo. Uma das principais razões para esta adoração prende-se com a profundidade da análise psicológica realizada por Shakespeare sobre os seus personagens, ou seja a profundeza a que leva a dramatização das suas histórias. À distância de mais de 400 anos impressiona tanta clarividência, tanta mestria na desconstrução da natureza humana e sua remontagem enquanto histórias capazes de seduzir qualquer ser humano. A forma como o fez, na escrita, foi à data inovadora, já que Shakespeare não se coibia de criar novos termos para se expressar, mas seria suficiente? Ou seja, será suficiente ler Shakespeare para compreender Shakespeare?
Esta pergunta leva-me à minha segunda constatação sobre Shakespeare, da insuficiência do texto. Ou seja, à leitura da sua terceira peça, e concordando com as qualidades enquadradas acima, não posso deixar de questionar o modo como o texto falha, ou melhor, é insuficiente no garante da expressividade subjacente ao mesmo, funcionando mais como esboço, mero registo de ato cénico, e não obra final, completa. Não digo que a peça que lemos é guião, até porque lhe falta toda moldura descritiva de cenário e palco, mas pouco se destaca desse formato. Neste sentido, falta ao texto não apenas a capacidade para situar espacialmente o ambiente, mas mais importante do que isso, faltam duas componentes essenciais ao drama: a direção de atores e a performance.
Aliás, não raras vezes as resenhas feitas aos textos de Shakespeare incluem análises às diferentes encenações vistas do mesmo, o que reforça o que tento aqui estabelecer, de que quando apenas de frente ao texto, perdemos parte significativa da ideia expressiva do seu autor. É verdade que não podemos mais aceder à ideia total do autor, a encenação e sua performance são artes efémeras não passíveis de registo.
Por outro lado, também é verdade que podemos, enquanto leitores, dar vida à encenação nos bastidores do nosso consciente, embora isso não impeça a distância e fragilidade do texto, desde logo porque não foi com essa ideia que o texto foi criado, e este é o meu ponto fulcral. Ao contrário de Cervantes, Shakespeare não estava a tentar conversar com o leitor, mas antes a tentar impressionar o espectador. O objetivo das suas linhas assentam na maquinação de cenas vivas — visuais, sonoras e atores —, é isso que podemos tentar ver, antecipar ao ler, mas ao fazê-lo damos connosco no isolamento da relação com o texto, ausentes de performers e público.
Dito isto, quero dizer que “Rei Lear”, tal como “Hamlet” e “Macbeth”, impressiona, pelo modo como nos envolve, nos instiga a seguir a história, como nos aproxima e distancia dos diferentes personagens. Não me parece que se ganhe, entrando em atos de pura interpretação simbólica, como os realizados por alguns académicos, incluindo Freud. O texto é claro e fala da chegada a uma idade em que todo o ser humano se questiona sobre as suas faculdades, focando-se sobre os efeitos de legado e sucessão, algo que desde tempos imemoriais tem provocado guerras atrás de guerras, e ainda hoje é capaz de provocar as maiores cisões familiares, desde as que muito têm às que nada têm, denotando mais uma vez a centralidade dos textos de Shakespeare que o tem mantido sempre atual.
"King Lear and the Fool in the Storm" (1851) de William Dyce
Shakespeare é considerado um dos maiores arautos das letras, sendo provavelmente o autor mais estudado nas Faculdades de Letras de todo o mundo. Uma das principais razões para esta adoração prende-se com a profundidade da análise psicológica realizada por Shakespeare sobre os seus personagens, ou seja a profundeza a que leva a dramatização das suas histórias. À distância de mais de 400 anos impressiona tanta clarividência, tanta mestria na desconstrução da natureza humana e sua remontagem enquanto histórias capazes de seduzir qualquer ser humano. A forma como o fez, na escrita, foi à data inovadora, já que Shakespeare não se coibia de criar novos termos para se expressar, mas seria suficiente? Ou seja, será suficiente ler Shakespeare para compreender Shakespeare?
Esta pergunta leva-me à minha segunda constatação sobre Shakespeare, da insuficiência do texto. Ou seja, à leitura da sua terceira peça, e concordando com as qualidades enquadradas acima, não posso deixar de questionar o modo como o texto falha, ou melhor, é insuficiente no garante da expressividade subjacente ao mesmo, funcionando mais como esboço, mero registo de ato cénico, e não obra final, completa. Não digo que a peça que lemos é guião, até porque lhe falta toda moldura descritiva de cenário e palco, mas pouco se destaca desse formato. Neste sentido, falta ao texto não apenas a capacidade para situar espacialmente o ambiente, mas mais importante do que isso, faltam duas componentes essenciais ao drama: a direção de atores e a performance.
Aliás, não raras vezes as resenhas feitas aos textos de Shakespeare incluem análises às diferentes encenações vistas do mesmo, o que reforça o que tento aqui estabelecer, de que quando apenas de frente ao texto, perdemos parte significativa da ideia expressiva do seu autor. É verdade que não podemos mais aceder à ideia total do autor, a encenação e sua performance são artes efémeras não passíveis de registo.
Por outro lado, também é verdade que podemos, enquanto leitores, dar vida à encenação nos bastidores do nosso consciente, embora isso não impeça a distância e fragilidade do texto, desde logo porque não foi com essa ideia que o texto foi criado, e este é o meu ponto fulcral. Ao contrário de Cervantes, Shakespeare não estava a tentar conversar com o leitor, mas antes a tentar impressionar o espectador. O objetivo das suas linhas assentam na maquinação de cenas vivas — visuais, sonoras e atores —, é isso que podemos tentar ver, antecipar ao ler, mas ao fazê-lo damos connosco no isolamento da relação com o texto, ausentes de performers e público.
"Lear and Cordelia in Prison" (1779) de William Blake
Dito isto, quero dizer que “Rei Lear”, tal como “Hamlet” e “Macbeth”, impressiona, pelo modo como nos envolve, nos instiga a seguir a história, como nos aproxima e distancia dos diferentes personagens. Não me parece que se ganhe, entrando em atos de pura interpretação simbólica, como os realizados por alguns académicos, incluindo Freud. O texto é claro e fala da chegada a uma idade em que todo o ser humano se questiona sobre as suas faculdades, focando-se sobre os efeitos de legado e sucessão, algo que desde tempos imemoriais tem provocado guerras atrás de guerras, e ainda hoje é capaz de provocar as maiores cisões familiares, desde as que muito têm às que nada têm, denotando mais uma vez a centralidade dos textos de Shakespeare que o tem mantido sempre atual.
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