agosto 15, 2016

Peixoto com Proust e Joyce

O nº31 da Biblioteca de Bolso, de Inês Bernardo e José Mário Silva, traz-nos José Luís Peixoto numa conversa descontraída sobre Bukowski, Eggers e Proust. Se continuo a gostar imenso da maneira de estar de Peixoto, a sua humildade perante o mundo, voltei a identificar-me mais uma vez com o seu sentir, desta vez no que toca a Proust e Joyce. Deixo a entrevista, e alguns comentário a excertos.






Comentários a excertos da entrevista:

JLP: “Não gosto de falar dos livros que li”

Entendo e sigo, embora possa parecer que não, nomeadamente pela conta do Goodreads e pelo blog, mas considero diferente escrever sobre o que se leu de simplesmente colecionar livros lidos para se dizer que se leu. Falo sobre os livros, ou melhor escrevo sobre eles com o propósito de escrever, não me ficar apenas pela leitura, e também com o propósito de aprimorar as minhas capacidades de análise narratológicas — história, estrutura e estética — sendo relevante para o trabalho que realizo profissionalmente.

JLP: “Proust tem momentos de puro êxtase literário”

Totalmente de acordo, é indescritível o que se sente a ler Proust, vertiginoso, capaz de nos elevar ao panteão e aí nos suspender a respiração por breves trechos.

JLP: “Li duas vezes, uma na colecção Europa-América, outra na tradução de Pedro Tamen (..) Tamen se não fosse o poeta que já era, teria ficado para sempre reconhecido por este trabalho.”

Não li a versão EA, e não conto ler já que hoje não é preciso, se tivesse lido quando ele leu não teria tido alternativa, mas não posso deixar de concordar com o que diz a propósito de Tamen, porque li trechos de outras versões, nomeadamente brasileiras e do original, e sinto que Tamen colocou a sua tradução num patamar muito próximo do original, capaz de nos fazer esquecer na maior parte do tempo que estamos sequer perante uma tradução e que Proust na verdade falaria português.

JLP: “Uma coisa que os livros deixam na memória é, certas fases na vida — ‘quando se leu aquele livro’ — porque efetivamente para mim ler o ‘Em Busca do Tempo Perdido’ na edição Europa-América ou depois na tradução de Pedro Tamen, foram duas experiências completamente diferentes, quase podiam ser dois livros diferentes.”

Sem dúvida, a extensão, o tempo de leitura e toda a sua beleza, marca-nos. Ainda só passou um ano, mas sinto que não esquecerei a fase em que o li, e talvez por isso, apesar de o desejar tanto reler, esperarei mais algum tempo para poder separar os sentires das duas leituras.

JLP: “Há livros que nunca li, por exemplo o Ulisses de James Joyce, já comecei a ler várias vezes… hoje sinto que é um livro que nunca vou ler, não sei… vivo bem com isso, às vezes não é preciso lê-los, sinceramente (..)”

Também eu várias vezes tentei, e por uma vez, recentemente, cheguei até meio da obra mas inesperadamente acabei por novamente desistir. Depois disso tenho olhado para ele tantas vezes, mas não mais lá voltei, e ao ouvir Peixoto hoje, dei-me conta que talvez tenha razão, talvez nunca o vá ler, e talvez não seja mesmo preciso. Sim custa-me deixar para trás um livro que é fundamental na história da literatura, mas cada vez mais me convenço que a sua relevância não se deve à experiência que cria ao leitor, mas antes à obra produzida, ao seu virtuosismo modernista. Acredito que mais do que a sua leitura, o que “Ulisses” nos pede é o seu reconhecimento, e aí concordando com Peixoto, não é preciso lê-lo, mas conhecê-lo, compreender a sua génese, forma e objetivo.

agosto 13, 2016

"Middlemarch" (1872)

Middlemarch” é considerada uma das obras maiores do cânone britânico, indicado muitas vezes como o representante máximo do período victoriano (corrente definida pelo reinado da Rainha Victoria, do Reino Unido, 1837-1901). George Eliot surge em qualquer discussão sobre este período, sendo incontornável, mas a acompanhá-la surgem também as irmãs Brontë, Charles Dickens, Lewis Carroll, Thomas Hardy ou Oscar Wilde, todos com direito a presença no panteão britânico, a Abadia de Westminster, o que dá bem conta da relevância deste período na história das letras britânicas.


A relevância do trabalho de George Eliot reveste-se na abordagem realizada, na sua clara fuga ao romanesco pré-victoriano de Jane Austen, procurando construir algo mais íntimo, baseado no modo como as mulheres viviam esses tempos, como sentiam, e menos naquilo que a sociedade esperava dessas mulheres. Neste sentido o trabalho de Eliot é central porque abre caminhos pouco trilhados, permitindo às mulheres da sociedade reverem-se enquanto seres humanos, e não enquanto marionetas às ordens de regras sociais.

Digo pouco trilhados, porque Eliot não foi a primeira a fazê-lo, e nem considero que tenha sido quem melhor o fez. Antes tivemos as irmãs Brontë que tinham começado este caminho, dando-nos uma das obras mais relevantes deste período, Jane Eyre” (1847), capaz de afirmar a relevância da força interior da mulher, demonstrando que a mulher era muito mais do que a capa de bom-comportamento que a sociedade, nomeadamente masculina, lhe desejava reservar.

Ainda assim Eliot destaca-se porque não se socorre de heróis nem dramas, apresenta-se com um verdadeiro sentido de missão, diria quase académico, em busca de respostas para o subtítulo, tantas vezes esquecido, “Um Estudo da Vida Provincial”. Eliot queria dar conta da vida à sua volta, mas da vida vivida, e não da sonhada ou desejada, e talvez por isso mesmo a sua obra surja mais massuda, de difícil leitura, por ausência de estratégias narrativas que envolvam e motivem o leitor. Isto é tanto mais evidente nos primeiros quatro quintos do texto, em que Eliot vai descrevendo o mundo e os seus personagens, secundarizando os eventos que laboram o enredo, para se concentrar na apresentação e credibilização do universo por si criado. Deste modo, é exigido ao leitor um esforço inicial, grande, para uma recompensa final que ainda que intensa, seja muito breve.

Eliot passa a maioria da obra a descrever os universos que circundam os casamentos de Dorotea e Lydgate assim como de Mary e Fred, reservando para o final a entrada em força de Bulstrode e Ladislaw para unir tudo e assim contar uma verdadeira história, com conflito, progressão e objetivo. Mas talvez seja por esta insistência inicial em apresentar a vida, o mais próximo do que ela é, sem se focar em conflitos dramáticos mas antes no geral, que Eliot tenha conseguido passar a sua maior mensagem, de que o real não é fruto de vontade nossa mas de um conjunto de variáveis orgânicas que não podemos prever, nem impedir. Que por mais regras que criemos e imponhamos, o curso dos eventos encarregar-se-á de trilhar caminhos inesperados e incontroláveis. Tendo em conta este objeto, ou visão, muitos, nomeadamente ingleses, pretendem que Eliot seja o Tolstoi britânico, dando-lhe mesma a primazia. Não posso concordar, apesar de aceitar o paralelo, Tolstoi vai não só muito mais ao fundo desta visão do mundo, como acaso orgânico, como o faz entrelaçando muito melhor o contar de histórias, a criação dramática, com a filosofia, mais concretamente em Guerra e Paz” (1863-8).
“o bem crescente do Mundo depende em parte de actos não históricos; se as coisas não vão tão mal para nós como seria possível, metade devemo—lo àqueles que viveram fielmente uma vida anónima e repousam em túmulos que ninguém visita.” (p.564) 
A escrita de Eliot é muito boa, com uma prosa por vezes quase poética, e é isso que faz com que a leitura se torne menos pesada, mas precisava de ter procedido a mais algumas revisões do texto no sentido de encurtar a enorme introdução (4/5 do texto), ou então estender os eventos do último quinto aos restantes, para garantir um maior apoio ao esforço do leitor, e assim conseguir também tornar a sua visão mais clara.


Edição lida: “A vida era assim em Middlemarch” (1872), de George Eliot, tradução Mário Domingues, Portugália

agosto 10, 2016

"Correcções" (2001)

Li primeiro “Liberdade” (2010) e o impacto foi tremendo, ao começar “Correcções” (2001) já sabia ao que vinha, ainda assim não deixei de me surpreender, parar e contemplar ao longo da leitura. Temos um padrão temático, a família média contemporânea e as interdependências com a sociedade, assim como um padrão estético, torrentes descritivas complexamente enredadas e surpreendentemente fluídas.


Franzen segue uma linha narrativa já explorada por outros autores americanos contemporâneos — David Foster Wallace, Don Delillo ou no cinema Jim Jarmusch, Hal Hartley ou Todd Solondz — que assentam o seu trabalho nos personagens, secundarizando o enredo, gerando o fio condutor a partir das pregas de cada uma das múltiplas histórias emanadas de cada personagem, necessitando assim de ir ao fundo de cada um, de os elaborar em profundidade e abrangência por forma a garantir elos de conexão.
“Well, I didn't really think in terms of plot. Does this book even have a plot? I thought more in terms of the story-character nexus. With each of the major characters and each of the large sections, I was striving for the classical unities of place, time, and action. I was trying to find simple problems, simple situations—man tries to prove to his wife that he's not depressed; fun-loving woman goes on luxury cruise with intermittently demented husband—and then inhabit them as fully as possible.” Franzen em entrevista à New Yorker, em 2001
O universo de Franzen é profundamente realista, e por isso não admira o nosso constante embate contra o espelho, conseguindo desta forma gerar simultaneamente reflexão e satisfação. No Goodreads podem ler-se várias críticas às pessoas de cada personagem como cheias de defeitos, incapazes de criar empatia com o leitor, mas Franzen não pretende romancear, está antes interessado em recriar e interpretar o mundo à sua volta, e nesse mundo não existem seres perfeitos, tal como não existem grandes linhas de história, apenas pessoas que vivem e fazem o melhor que podem em cada dia que passa. Inevitavelmente, e apesar do humor do autor ir salpicando de sátira, a viagem é profundamente melancólica, como não poderia deixar de ser sempre que nos pomos a pensar sobre as questões da condição humana, os “como's”, os “porquê's” e “para quê's”.

A chave de “Correcções” está em cada um dos leitores, posso dar-vos a minha mas abre apenas caminho para um dos imensos mundos possíveis construídos pelo confronto entre o texto e as experiências de vida de cada leitor. Subrepticiamente ao longo de todo o livro vão surgindo indícios que dão conta da necessidade de nos afirmarmos pelo que somos, de enfrentar o mundo de cabeça erguida e aceitar o que este nos propõe, sem medos nem estratégias de fuga (ex. drogas), de modo que as correções surgem naquilo que vamos fazendo ao longo da vida para corrigir o caminho, para não sair da forma que define aquilo que somos. É um trabalho contínuo que exige esforço, feito de avanços e recuos, de escolhas e decisões, esquecimentos e regressos ao passado, uma vontade interior que nos impele a seguir uma linha e a não divergir dela, corrigindo-a sempre que se desvia. A grande questão que Franzen deixa em aberto para nós é o porquê dessa necessidade, existem algumas tentativas de resposta, mas essas deixo-as para os leitores de Franzen.

Se o livro fosse apenas isto já seria muito bom, mas é mais, porque existe toda uma experiência estética que dificilmente se encontra na comum literatura e que obriga a revisitar os clássicos para se poder encontrar tamanho fôlego artístico. Desde logo por todo um trabalho de pesquisa que é feito em redor da criação de cada personagem, psicologicamente mas também em termos sociais com as implicações dos seus empregos, profissões, amigos e família. Franzen constrói literalmente um mundo a partir de ideias, capaz de se erguer nas nossas mentes como algo de próximo e facilmente reconhecível.

Por outro lado a densidade com que labora as ramificações de cada personagem, decorrendo do conteúdo, surge por via de um tipo de descrição verdadeiramente literária, e não cinemática como se foi tornando moda nos últimos anos. Ou seja, mais importante do que dar a ver é dar a sentir. Franzen não limita o seu discurso ao visível, trabalha como merecedores da mesma atenção o audível, assim como o gosto e o cheiro, e claro o palpável e mais complexo ainda o impalpável. Na sua leitura sentimos por vezes o bloqueio de não conseguir visualizar o que se vai descrevendo porque não é suposto ser visível mas sentido, e talvez seja em parte por isto que a leitura de Franzen é tão particular, tão capaz na sua expressividade.

julho 31, 2016

"Dragon Age: Inquisition" (2014)

Joguei apenas duas horas do primeiro tomo da série, "Dragon Age: Origins" (2009), que não me entusiasmaram, daí que não tenha tentado sequer jogar o segundo, "Dragon Age II" (2011), contudo depois de várias vezes me ter sido sugerido, acabei por aceder e começar a jogar o terceiro volume, “Dragon Age: Inquisition” (2014). Chegado ao fim da main quest, quero dizer que não é magnífico, raramente nos impacta, mas existe algo no seu desenho que nos atrai e mantém interessados, levando-nos a regressar sempre com vontade de continuar a progredir, de certa forma posso dizer que é um jogo dotado de excelente design, mas com uma narrativa fraca, uma escrita pouco inspirada.





Como RPG que é, assumimos o papel de Inquisidor, o governante de um mundo de fantasia, numa qualquer linha temporal alternativa à nossa. Os personagens e cenários assumem alguns traços medievais, mas misturados com algum renascentismo europeu, e por vezes até alguma arquitectura industrial. Em termos de ambientes, temos bons mundos, credíveis e belos, o pior da arte visual surge nas animações dos personagens, fracas quando comparadas com a atual geração de consolas.

A jogabilidade, ou interpretação do nosso papel, é suficientemente detalhada, permitindo-nos definir praticamente tudo aquilo que somos, desde a fisionomia ao perfil, podendo ao longo do jogo continuar a tomar decisões que vão contribuindo para definir e afinar o nosso perfil. Existe sempre muito para fazer, imenso para nos manter ocupados e interessados, e a progressão é não só contínua como efetiva, isto é imensamente visível ao nível dos combates, nomeadamente como vamos aprendendo a usar os sistemas de armas, armaduras, poções e do trabalho em equipa.

No campo da história temos a governação de um mundo e claro, um messias, salvador de um povo contra uma força poderosa do mal. O engodo é comum, e não é por este que me incomodo, o que se perde aqui, e comparando com “The Witcher 3”, é o aprofundamento dos personagens, que não passam de meros peões do enredo. O nosso personagem, o inquisidor é oco, mas todos os que à sua volta gravitam também o são. Falta-lhes dimensão humana, emocional e dramática, capaz de nos tocar de nos demover, de criar bases empáticas. Foram dezenas de horas com aqueles personagens, e chegado ao final, continuo a senti-los como estranhos. Cheguei a pensar que o problema seria meu, por declaradamente não gostar de fantasia, mas não é só isso (e não é completamente verdade já que adorei “The Witcher 3”), é mesmo uma falha de guião, da escrita dos personagens e seus diálogos, com uma aposta muito mais dirigida ao jogo que à história, esquecendo que um isco de enredo e uma boa base de jogo, não chegam para nos fazer apaixonar por um jogo que supostamente nos deve fazer afundar num universo ficcional.

Em síntese, temos uma obra mecanicamente equilibrada, coerente e consistente, mas falta-lhe garra, falta-lhe algo que a distinga dos restantes jogos, que marque a sua posição, e nos marque emocionalmente.

Carlos Paredes a revolucionar em 3D

Um projeto de animação de fim de curso, da famosa escola francesa Supinfocom, apresenta-nos como protagonista, um personagem decalcado de Carlos Paredes. Em lado algum é dito o seu nome, a equipa de animação é francesa, mas a equipa responsável pela música original é constituída quase só por portugueses, ou lusodescentes (Philippe de Sousa, Sousa Santos, Nuno Estevens, Romain Debrie), e a música é cantada em perfeito português europeu, o que facilmente nos conduz ao compositor nacional. Como se não bastasse, o filme desenvolve-se à volta de uma sociedade ditatorial, o que inevitavelmente nos recorda a vida de Paredes e sua luta contra o Estado Novo.




O filme apresenta assim um guitarrista cantor, que por meio da sua arte consegue persuadir o público a revoltar-se contra o estado das coisas, e tão bem o consegue fazer que logo se vê envolvido numa tentativa de rapto para o obrigarem a reproduzir o mesmo efeito a partir das forças opositoras.

Carlos Paredes

A animação é boa, aliás como é apanágio dos alunos da Supinfocom, mas o mais interessante é mesmo a multiculturalidade envolvida, nomeadamente entre franceses e portugueses, e que como se pode ver nesta curta acaba funcionando na ampliação das possibilidades narrativas. Claro que a mim, e a todos os portugueses, diz ainda mais por tratar-se de um artista e herói nacional, e de um período da nossa história que não devemos esquecer.

"Centopeia" (2014) de Clement Rouil, Leonie Després, Bertrand Piot, Yoann Drulhe, Alexis Caillet, Jerôme Regef


Atualização: 31 Jul 2016, 15:47 
Depois de partilhar o texto, o Leonel Morgado disse-me que a música não é original mas é antes uma composição e letra de Luis Goes intitulada "Homem só, meu irmão" do álbum "Canções do Mar e da Vida" (1969).

Isto levanta-me um problema, porque se fazer referência a Carlos Paredes no caso da criação do personagem à sua imagem não me coloca reservas autoriais, embora ficasse bem a referência, no caso da música é diferente, não ficava só bem, como legalmente era obrigatório.

julho 24, 2016

A longevidade do risco artístico

Lars Von Trier tem agora 60 anos, no entanto anda há mais de 30 anos a surpreender-nos, e se os seus filmes vão sendo sempre objeto de profundas análises e louvores, o que me surpreende verdadeiramente é mesmo a longevidade da sua carreira, nomeadamente por tudo aquilo que arrisca a cada nova obra.



Se quiserem passear através destes 30 anos, se quiserem voltar a sentir o brilho, a melancolia, mas também muita da alegria que foi experienciar estas obras nos primeiros visionamentos, não posso recomendar mais, o vídeo-ensaio em que Lewis Bond procura desconstruir o cinema de Lars Von Trier.

"Lars Von Trier - Deconstructing Cinema" (2016) de Lewis Bond

Fazer um doutoramento?

A arte serve um propósito muito claro que por vezes parecemos olvidar e que assenta na expressão pessoal. É isso que dá à arte toda a sua a vida, autenticidade, e interesse para os demais. No acesso a uma obra, o que se procura saber é, o que contém ela, que nos diz ou pretende dizer, e porque o faz. Ora é exatamente isto que temos em “Carnets de These”, um relato de uma experiência pessoal transformada numa sequência gráfica capaz de abrir um canal de comunicação entre autor e recetor.




"Quando uma jovem professora do ensino secundário deixa tudo para se lançar, eufórica, na realização de uma tese de doutoramento, está longe de imaginar o caminho da cruz que a espera."

Do lado da autora, a obra tem um propósito muito claro, funcionar como catarse, libertação da mágoa de uma experiência dolorosa. Do lado do leitor, temos a identificação por parte de académicos e de quem o tentou, ou tenta, ser. Quem por lá passou reconhece passo a passo, mas talvez o público mais importante, em minha opinião, sejam todos aqueles que olham com algum encantamento para a academia, deixando-se seduzir por esta, ou pelas imagens criadas sobre esta.

Como em todas as profissões, mundos ou culturas, existem momentos, pessoas e elementos, bons e maus, nalguns universos de trabalho os piores aspetos são evidentes e não requerem enfatização, noutros, como o mundo académico, isto é uma necessidade fundamental, não só porque se trata de um meio bastante fechado, com regras muito próprias, mas porque as poucas vezes que tem sido discutido em público, é-o a partir de um ponto de vista externo, o que só tem servido para gerar ainda maior misticismo à volta da profissão.

Não ajudam os Indiana Jones, nem os Robert Langdon’s de Dan Brown, assim como ajuda ainda menos as histórias dos professores e alunas de Philip Roth, mas no campo mais documental o contributo de obras sobre Einstein, Turing ou John Nash ficam ainda mais aquém. Mostra-se apenas um ponto-de-vista que sendo por isso já enviesado, é ainda por cima fortemente artificializado, embelezado, praticamente “photoshopado”. É verdade que o entretenimento não é arte, não procura a expressão interior dos autores, apenas e só a massagem dos recetores, mas com o passar dos anos e das obras vai-se criando na sociedade uma ideia errónea, e que vai servindo para atrair quem apenas conhece este mundo por essas vias.

Professor "Indiana Jones" em "Raiders of the Lost Ark" (1981)

Investigador Alan Turing em "The Imitation Game" (2014)

“Carnets de Thèse” funciona assim em contraciclo destas obras, desde logo porque é feita a partir do interior da própria vida académica, de alguém que largou tudo para investir três anos na construção de uma tese de doutoramento, sobre Kafka, e no final em vez de uma tese acaba a criar esta banda desenhada, que não fala sobre o seu motivo de tese, mas fala sobre o seu processo de construção dessa tese. São muitas as questões aqui levantadas, e algumas as respostas dadas. Pode existir, aqui e ali, algum exagero até porque o discurso se pretende dotado de alguma comicidade, mas na generalidade não está longe da realidade, em termos de orientadores, secretárias, família, namorados, políticos, no fundo caracteriza imensamente bem todo o desprezo humano e científico que envolve o processo, que acaba sendo penoso, e até doloroso.

Apesar de focado sobre o caminho e processo, a crítica não se limita a essa passagem e vai ainda no sentido de questionar o seu propósito, ou melhor, a sua valia para a sociedade, o reconhecimento, nomeadamente no momento de rentabilizar o esforço em termos de empregabilidade, uma realidade tantas vezes escamoteada, desculpada, atirada para debaixo do tapete, e que aqui é sarcasticamente bem apresentada pela defesa de "valores mais altos, da academia acima de todos os males, academia é ciência e nada de tão puro pode ser mau".

Podemos desejar acreditar em tudo isto, mas não devemos nunca esquecer que a academia é um mundo de trabalho, não é um lugar imaginário protegido das agruras do quotidiano, pior ainda, que não é habitado por heróis ou messias mas por seres humanos como todos nós. Como tal, se tem muitas coisas boas, não deixa de ter muitas más, e que o caminho que se faz depende de cada um, do seu empenho, mas por vezes, talvez mais, das incertezas e da sorte, que decorrem de escolhas feitas pelo indivíduo, mas muito dos gostos subjetivos daqueles que o rodeiam, assim como ainda de estar no sítio certo no momento certo.

Neste caso, apesar da verdadeira Tiphaine Rivière não ter chegado ao fim da sua tese, fico imensamente contente de ver e ler este seu trabalho, fruto do blog que começou na sua caminhada e que acaba compensando totalmente a ausência de uma tese, não apenas pela acutilância e profundidade analítica do seu processo, mas também pelo enorme sucesso que já conheceu, com traduções para espanhol, italiano e inglês (sai em Novembro), a demonstrar que as pessoas se reconhecem nestas caricaturas.

julho 19, 2016

"Uncharted 4", zénite da arte e tecnologia

A Naughty Dog é hoje, de entre as grandes empresas de videojogos a mais relevante, não só porque nos tinha dado dois dos mais significativos jogos da história do meio — "The Last of Us" (2013) e "Uncharted 2" (2009) — mas, e em virtude destes, porque reúne uma das equipas de desenvolvimento mais talentosa do planeta, capaz de dar conta do melhor que os videojogos têm para oferecer nos seus distintos domínios — tecnologia, design e arte. Ao contrário da Ubisoft soube crescer sem dispersão, nomeadamente soube acarinhar o enorme talento que foi construindo e adquirindo, transformando-se num selo de qualidade, tornando obrigatório qualquer obra que venha a colocar no mercado nos próximos anos.




Como referi, nesta série em concreto, “Uncharted 2” é uma referência, e sabendo nós como as séries são parcas em progressão de excelência, soa estranho dizer que “Uncharted 4”, depois de um terceiro tomo bom mas apenas isso, supera. Existem algumas potenciais razões para explicar esta questão, desde logo aquelas que já usei para explicar porque muitos dos segundos videojogos são melhores, mas não só, neste caso em particular existe um processo interno à própria empresa, que produziu variações nas equipas responsáveis pela série e que ajudam a explicar o ocorrido.

Falo nomeadamente da dupla Bruce Straley e Neil Druckmann, o coração daquele que continuo a considerar o melhor jogo do meio, “The Last of Us”. Podemos muito rapidamente verificar que ambos fizeram parte da equipa de “Uncharted 2”, Straley na direção juntamente com Amy Hennig, e Druckmann no design com Richard Lemarchand, mas nenhum dos dois fez parte de “Uncharted 3”, porque nessa altura a Naughty Dog resolveu criar duas equipas para poder produzir em paralelo “The Last of Us”, juntando assim pela primeira vez Straley e Druckmann. Ou seja, analisado este historial, poderíamos dizer que “Uncharted 4” é uma espécie de sequela de “The Last of Us”, em termos de construção sobre conhecimento de equipa acumulado de uma primeira experiência, seguindo toda a lógica de design evolutivo dos segundos jogos de que falava acima. Apesar de soar estranho, dizer que “Uncharted 4” é uma sequela de “The Last of Us”, porque não o é em termos narrativos, julgo que a grande maioria das pessoas que jogou ambos, sentiu muitas pontes na experiência, nomeadamente estética e de flow.

Tendo dito tudo isto, quase que me poderia limitar a dar conta da história de "Uncharted 4" e terminar por aqui, já que muito do que haveria para dizer eu já o teria dito sobre "The Last of Us", o que não está longe da verdade, ainda assim, considero que “Uncharted 4” apresenta particularidades de que vale a pena falar, enfatizar e mesmo louvar. Por isso darei conta aqui apenas das componentes que mais se distanciam de “The Last of Us” e dos anteriores “Uncharted”.


Tecnologia
Em termos tecnológicos, "Uncharted 4" vai além de qualquer um dos jogos anteriores, não só porque estamos a falar do primeiro jogo da Naughty Dog desenvolvido de raiz para a PS4, assim como todas as tecnologias de computação gráfica progrediram entre os anteriores e este, mas também porque a equipa de desenvolvimento ao trabalhar mais tempo junta, criou maior experiência e domínio elevando assim aquilo que consegue obter da tecnologia. Isto pode ser visto na excelente análise realizada pela Digital Foundry que rotula o jogo como "o melhor alguma vez testado por eles em consolas", uma afirmação que não me impressiona de todo.

Arte
Mas é claro que para que a tecnologia possa ser levada a este ponto não chega a engenharia, e foi por isso mesmo que intitulei este texto como o zénite da tecnologia mas também da arte, porque só ela poderia demonstrar aquilo de que a tecnologia é verdadeiramente capaz. “Uncharted 4” resulta neste sentido, em termos do almejo de quem trabalha os mundos multidisciplinares entre arte e tecnologia, numa das maiores conquistas, não só pela grandiosidade da obra criada, mas especialmente por demonstrar cabalmente que a tecnologia sem arte não existe, assim como a arte sem a tecnologia não progride. A quantidade de detalhe artístico, potenciado pela tecnologia, presente neste jogo é absolutamente impressionante, e algum deste é discutido no artigo da Foundry, mas eu gostaria de deixar aqui um pequeno vídeo que realiza uma demonstração com excertos de partes do jogo que mostra muito desse trabalho, nomeadamente no campo da ilustração e animação interativas. Foram imensas as vezes que parei no jogo para apreciar, para literalmente contemplar o mundo virtual de "Uncharted 4", para admirar e sentir o efeito total da surpresa e admiração por todo o talento humano que contribuiu para a sua criação.



Design
Dos cinco componentes que resolvi aqui destacar — Tecnologia, Arte, Design, Direção e História —, este é talvez o menos revolucionário, e isso foi também uma marca de “The Last of Us”, o que aqui temos é inovação de tipo incremental, que não tem nada de mal, e que no fundo eu próprio venho defendendo ao longo da última década. Porquê? Porque se trata de um blockbuster, porque é um investimento colossal que não se pode dar ao luxo de revolucionar no design. Mas também porque é uma obra, que tal como "The Last of Us", estava mais preocupada em criar uma experiência nos jogadores, do que em chamar a atenção sobre si. “Uncharted 4” é arte, mas é arte-entretenimento, é uma obra produzida com um fim concreto, produzir experiências nos jogadores, não é arte no mesmo sentido de um jogo indie, à procura de novos modelos expressivos, capazes de transformar o meio em si.


Apesar disto, o talento por detrás do design da obra demonstra um domínio absolutamente estonteante da técnica, assim como um conhecimento muito apurado do que ela pode fazer pela experiência de jogo. Deste modo o design de "Uncharted 4", pode não apresentar inovação expressiva, mas apresenta uma tal coerência, uma integração de todos os componentes que laboram para o design da obra como um todo, capaz de produzir no jogador em poucos segundos de contato com o jogo um alheamento do seu meio circundante. A tecnologia, a arte, e a história são centrais, mas é o design que une tudo isto num só objeto, que o torna uno, coerente e integrado, um verdadeiro todo, que faz o jogador sentir-se acolhido no seio do jogo, sentir-se parte do mundo virtual e interativo, e desejo de ali continuar, ou rapidamente ali regressar novamente.

Direção (narrativa e storytelling)
Quanto terminei o jogo escrevi no facebook, “Não me consigo lembrar da última vez que vi aventura e profundidade misturadas tão bem, graças ao impressionante trabalho de storytelling”. Aproveito essa frase, para elaborar sobre o que experienciei, já que essa impressão de fim de jogo tornou-se, passados dois dias de distanciamento da experiência, ainda mais verdade.

Como disse acima, o design é responsável por tudo integrar, mas em jogos profundamente narrativos e complexos como “Uncharted 4”, não chega, existe uma camada acima, que fica a cargo da direção de jogo, e que é no fundo responsável pela leitura da obra, por garantir os signos e significados, ou seja por garantir que a história que se quer contar chega aos jogadores, por entre tantos outros elementos que gritam por atenção. Ou seja, a direção balanceia o todo em busca da experiência global, mas essa experiência deve obedecer a uma ideia que se quer transmitir, normalmente uma história que se quer contar. “Uncharted 4” é exímio nisso, ou melhor a dupla Straley e Druckmann são exímios nesta arte, na capacidade de ir além do design, e criar uma verdadeira direção que garante que o todo trabalha para uma visão.


Ou seja, Straley e Druckmann pegam no melhor da linguagem audiovisual, desde os primórdios do cinema aos dias de hoje — principalmente cinematografia, colocação em cena e direção de atores — ao que juntam o melhor da linguagem interativa em termos de interação com representação, da aventura gráfica de Robinett aos walking simulators de hoje — principalmente a terceira-pessoa, o espaço virtual, e a interação por objetivos — e constroem um artefacto capaz de contar uma história a partir do melhor que a comunicação audiovisual interativa nos pode oferecer. Sempre que entramos no videojogo sentimos as amarras com a realidade a diminuir e o mundo ficcional envolver-nos, o design de jogo é tão bem entrançado com o design da narrativa, que a clássica divisão entre a resolução de problemas e o contar de histórias está praticamente ausente aqui.

História
Para terminar, não posso deixar de falar daquele que é tema principal de qualquer obra narrativa, ou seja, o que se diz, o que se conta. Para tal devemos partir de um dado concreto definido pela Naughty Dog, de que este tomo 4, seria o último, algo que é de certa maneira bem evidente ao longo de todo o jogo. O protagonista surge como alguém dotado de uma história, com três tomos passados, nunca os esquecendo para nos relembrar que é passado, e que chegou o momento de deixar para trás esse mesmo passado. Assim, o facto do protagonista, o arquétipo herói, surgir como resignado ao real, cansado da fantasia que dava corpo a aventuras em mero modo de repetição, coloca “Uncharted 4” desde logo noutro patamar, alheio ao blockbuster tipo.

Mas “Uncharted 4” vai ainda mais longe, não se limita a refletir criticamente sobre as histórias de aventuras, por meio da idade e vida do protagonista, da parecença com o target mais hard-core dos videojogos (jogadores com cerca de 35 anos), reflete e obriga a refletir o próprio jogador, sobre a sua própria vida, sobre os seus sonhos, fantasias e a contrapô-los ao real. Leva-nos de volta à infância e confronta-nos com a idade adulta, questionando-nos sobre aquilo que fomos e aquilo que somos. Seremos nós Nate, ou ainda estaremos presos à utopia de Sam?

Straley e Druckmann reescrevem totalmente “A Ilha do Tesouro” (1883), apresentando-a como uma efemeridade, necessária nas nossas vidas, mas com um tempo de vida finito. Quase me atreveria a dizer que “Uncharted 4” ao pé de “Piratas da Caraíbas” (2003), parece uma autêntica obra de autor, dotada de reflexão, ideias e visão. Não se está aqui meramente à procura de produzir uma experiência de escapismo, mas também de um retorno para o jogador que marque a diferença entre um antes e um depois da experiência.



É tudo isto e muito mais, é uma grande obra que pode ser comparada a par com a literatura e o cinema sem desmerecer em qualquer dimensão. É um digno zénite da junção entre arte e tecnologia, mas é também a demonstração das enormes capacidades artísticas, enquanto linguagem expressiva, de um meio.

julho 17, 2016

Design de "Downwell"

Mark Brown apresenta mais uma masterclass de game design na sua série Game Maker's Toolkit, fazendo uma brilhante análise do design do ainda mais brilhante “Downwell” de Ojiro Fumoto, um dos jogos sensação de 2015.



A good idea is something that does not solve just one single problem, but rather can solve multiple problems at once”   Shigeru Miyamoto
Este conceito de Miyamoto serve de mote à análise para demonstrar como é que que Fumoto consegue a partir de tão pouco fazer tanto, ou seja, a essência do bom design. Aquilo que parece deve sê-lo, mas pode ser mais do que apenas aquilo que parece, e basta para tal imaginação e muita lógica.

Brown escalpeliza em detalhe o design, estruturando a análise a partir dos seus componentes centrais, ou mais imediatamente visíveis — gunboots, inimigos, aterragem, gemas, sub-salas, armas, saúde, estilos, e estética — para demonstrar como cada um deles serve várias camadas do design, trabalhando as dimensões de tempo, movimento e interdependência.

“Downwell” teve muito boa recepção pelo facto de ser um pequeno jogo indie mobile, feito por uma pessoa apenas, mas essencialmente pela sua enorme capacidade de produzir  enormes doses de flow nos jogadores, algo que se deve totalmente ao brilho do design. Interessante perceber que Fumoto não era estudante de design quando se lançou na criação de videojogos mas de artes, em particular de canto na Universidade de Tokyo!

"Downwell's Dual Purpose Design" (2016) Game Maker's Toolkit