julho 17, 2016

Design de "Downwell"

Mark Brown apresenta mais uma masterclass de game design na sua série Game Maker's Toolkit, fazendo uma brilhante análise do design do ainda mais brilhante “Downwell” de Ojiro Fumoto, um dos jogos sensação de 2015.



A good idea is something that does not solve just one single problem, but rather can solve multiple problems at once”   Shigeru Miyamoto
Este conceito de Miyamoto serve de mote à análise para demonstrar como é que que Fumoto consegue a partir de tão pouco fazer tanto, ou seja, a essência do bom design. Aquilo que parece deve sê-lo, mas pode ser mais do que apenas aquilo que parece, e basta para tal imaginação e muita lógica.

Brown escalpeliza em detalhe o design, estruturando a análise a partir dos seus componentes centrais, ou mais imediatamente visíveis — gunboots, inimigos, aterragem, gemas, sub-salas, armas, saúde, estilos, e estética — para demonstrar como cada um deles serve várias camadas do design, trabalhando as dimensões de tempo, movimento e interdependência.

“Downwell” teve muito boa recepção pelo facto de ser um pequeno jogo indie mobile, feito por uma pessoa apenas, mas essencialmente pela sua enorme capacidade de produzir  enormes doses de flow nos jogadores, algo que se deve totalmente ao brilho do design. Interessante perceber que Fumoto não era estudante de design quando se lançou na criação de videojogos mas de artes, em particular de canto na Universidade de Tokyo!

"Downwell's Dual Purpose Design" (2016) Game Maker's Toolkit

julho 16, 2016

"Hipopotamy" (M/18)

Começo por advertir os mais sensíveis, nomeadamente à violência sexual, para passarem ao lado do filme, embora considere que o seu visionamento possa servir a reflexão sobre o tema. Apesar de criticado e até apupado, o filme acabaria por ganhar dezenas de prémios incluindo o Grande Prémio do Ottawa International Animation Festival 2014.




Hipopotamy” é uma daquelas obras que dificilmente aqui traria dado o modelo de choque usado para trabalhar o tema em questão, mas se o faço é porque não só apresenta uma elevada qualidade formal, mas também porque essa mesma qualidade acaba por nos obrigar a todo um diferente posicionamento face ao tópico e ao que no fundo nos é apresentado.

Ou seja, o filme trata de forma sintética a violação sexual associada ao domínio de espécie, chegando a incluir o infanticídio, posicionando-se a partir da condição biológica. Neste sentido, pela frontalidade e assunção do condicionalismo humano acaba por retumbar num aparente niilismo, e é isso que mais choca. Por outro lado, o modo como o tema é trabalhado em termos visuais, de movimento e musical cria em nós um estado de tão grande atenção e foco, que torna impossível ficar apenas por essa camada da aparência. A força estética da animação obriga-nos a trabalhar, obriga-nos a procurar sentido, a dar significado, impede-nos de nos resignar como aparentemente o filme nos parece pedir, e é aí que acaba por residir talvez o grande segredo da sua força, originalidade, e no fundo acaba tornando o filme numa obra maior.

Para chegar a este ponto contribuem vários fatores, desde logo o realizador, Piotr Dumala, autor da adaptação para animação de “Crime e Castigo” (2000) de Dostoyevsky, que desenvolve todo um cenário e conjunto de ações de tom minimal, no qual explora os temas sem vulgaridade, criando algo mais próximo de um bailado do que de um mero relato. Este bailado acaba sendo fortemente enfatizado por toda a composição musical, operática, de Alexander Balanescu, o mentor do célebre Balanescu Quartet que têm trabalhado com Michael Nyman e Philip Glass.

"Hipopotamy" (2014) de Piotr Dumala

Fecho voltando ao que disse no início, não é uma obra fácil  apesar de toda a sua beleza, mas é uma obra que não nos deixa indiferentes, capaz de mexer com o nosso interior, de nos obrigar a reagir e a rever muito daquilo que somos enquanto frutos da herança biológica mas também cultural e social.

julho 11, 2016

Da quebra de regras no cinema

Depois de ainda ontem aqui ter trazido uma das primeiras curtas de Spielberg a propósito do seu valor pedagógico, hoje trago um documental também de caráter pedagógico, que procura elencar uma lista de dez exemplos cinematográficos que quebraram as convenções fílmicas.





As convenções são essenciais na criação da linguagem de qualquer arte já que são o edifício expressivo da arte, o meio através do qual qualquer criador pode operar o sistema de signos e criar sentidos. Por outro lado qualquer grande artista tem sempre como grande motivação ir além dessas convenções, subvertê-las, quebrá-las, e criar novas formas de expressão. Daí que não surpreenda que as dez obras aqui apresentadas sejam praticamente todas grandes filmes da história do cinema. Cada uma à sua maneira ficou na história por ter apresentado algo novo, por nos ter desafiado, ter conseguido criar o novo e ser aceite.

Entre as convenções quebradas aqui analisadas temos — 4ª parede, montagem, 180º, visualização, fusão de géneros, morte de protagonista, narrativa anti-estrutura, vida sem edição, surrealismo, e pensamentos em imagens. Para isto os criadores do documental recorreram a obras como: Dogville; Breathless; Tokyo Story; Enter the Void; From Dusk till Down; Psycho; Last Year at Marienbad; Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles; The Discreet Charm of the Bourgeoisie; e The Mirror.

"Top 10 Favorite Rule Breaking Films" (2016) de Cinefix

São 15 minutos repletos de conhecimento que abrem uma pequena janela sobre a essência daquilo que constitui a arte cinematográfica.

julho 09, 2016

“Amblin” (1968)

Já o vi há alguns anos, e anda na rede há quase uma década, trago-o só agora porque enquanto via um pequeno documental sobre a evolução do cinema de Spielberg revi imagens e lembrei-me de ter gostado deste primeiro trabalho de Spielberg em 35mm. Não sendo nenhuma obra-prima, dá conta do talento latente que Spielberg vinha desenvolvendo com experimentos mais caseiros como “Firelight” (1964).




Amblin” tem 26 minutos, algo longo para curta, nomeadamente uma primeira filmada em 35mm e com um orçamento de apenas 15 mil dólares, mas seria este o filme a abrir as portas de Hollywood a Spielberg, nomeadamente a servir de nome a sua futura produtora que hoje se socorre também da imagem do filme “E.T. the Extra-Terrestrial” (1982) para logotipo.

O seu valor hoje serve mais o âmbito pedagógico do que o entretenimento, ou seja “Amblin” é um filme altamente recomendável a estudantes de cinema e audiovisual em geral, interessados em começar a criar as suas primeiras obras. Os principais pontos a destacar são o facto de termos apenas duas personagens, não termos diálogo, não termos som direto, fazer uso de câmara simples sem gruas ou qualquer outra tecnologia complexa, ou seja, temos a essência do audiovisual totalmente ao serviço do contar de história.

Spielberg demonstra neste curto filme como sempre se preocupou mais como os humanos na tela, com a construção da empatia e a geração de experiências ricas para os espectadores, e que apesar de ser reconhecido como um mago do espetáculo, a sua força enquanto autor tem estado mais ligada à capacidade de construir e dar a experienciar histórias com que qualquer ser humano se consegue conectar.

Amblin” (1968) de Steven Spielberg

“Na Minha Morte” (1930)

"Na minha morte enterrem-me na minha terra natal do Mississipi", este é o motivo central de que deriva toda a ação, conduzindo-nos numa travessia dura e austera junto dos filhos e marido. Faulkner é aqui Faulkner, com um registo próximo de “O Som e a Fúria” (1929), evoluindo o experimentalismo, nomeadamente pelo minimalismo que desenvolve a partir de uma forma particular de contar histórias e que se serve de relatos entrecortados de vários narradores (15), o que obriga o leitor a construir o todo a partir dos interstícios que ligam os discursos de cada um desses narradores.


Em termos pessoais, por várias vezes viajei até às minhas memórias de “Silent Souls” (2010) de Aleksey Fedorchenko, um filme em que o marido atravessa um território vasto da Rússia para cremar a sua mulher num rio, seguindo as tradições de um povo quase desaparecido. Já no campo da austeridade e do vazio dos cenários não me consegui desligar das deambulações entre terras que decorrem ao longo das 7 horas de “Santantango” (1994) de Bela Tarr.

Faulkner, como muitos outros escritores, apesar de todo o sucesso não pôde dedicar-se em exclusivo à escrita, mesmo depois de “O Som e a Fúria”. “Na Minha Morte” foi escrito enquanto fazia o turno da noite numa estação de energia da Universidade do Mississipi, entre a meia-noite e as quatro da manhã, ao longo de seis semanas, Faulkner diria ainda que tal como escreveu assim ficou, sem qualquer edição. Admire-se a proeza, mas o facto de se tratar de uma obra experimental torna mais fácil não se sentir tentado voltar atrás mexer e remexer até ficar perfeito, além de que Faulkner precisava do dinheiro dos editores para viver.

Em termos comparativos, não posso colocar este texto ao nível de “O Som e a Fúria”, não pela dimensão mas pela imensidão de mundo, de variação emocional e estética conseguida nessa sua obra-prima. O que não faz deste menos, é um belíssimo texto, uma viagem forte que se impregna em nós, mas que deve ser visto mais como experimento, uma tentativa de elevar o seu labor a novas dimensões literárias, sofrendo, para mim, de alguma incompletude.

julho 03, 2016

“A Cartuxa de Parma” (1839)

52, é o número de dias que levou Stendhal a escrever “A Cartuxa de Parma”, um total de 10 páginas diárias que dão bem conta da capacidade, quase infinita, de recursos conceptuais e cognitivos do autor para lhe fornecer um fluxo ininterrupto de ideias. Falo nomeadamente da capacidade de visualizar sequências num detalhe suficiente para as descrever, não apenas nas suas ações, efeitos e reações mas também no detalhe dos seus cenários, interiores e exteriores, mais ainda no imaginar, ou personificar, dos seus personagens atribuindo-lhes vidas completas — passado, presente e expetativas futuras. Absolutamente impressionante.


O livro poderia ter-se tornado relevante apenas como marca do virtuosismo do autor, contudo tem mais do que isso para nos dar, longe da excelência de “O Vermelho e o Negro” (1830), segue-o de muito perto como thriller romanesco, envolvido por aspetos históricos reais, entre os quais a batalha de Waterloo, na qual Stendhal participou e que serviria de descritivo a Tolstoi. Provavelmente o melhor surge mesmo na abordagem que faz da intriga política e como a suporta muitíssimo bem na psicologia da condição humana.

Muitos consideram o livro ainda fundamental pelo modo como se afasta do romantismo, dando-nos a sorver puro realismo, o que fez com que o livro tivesse de esperar quase meio-século para ser aceite. Apesar de reconhecer esse feito, considero que ele surge mais da necessidade descritiva, do que propriamente de uma vontade artística, ou seja do curto tempo e do modo torrencial como foi criado. Aliás, muito do que aqui temos, em termos realistas, está já presente em “O Vermelho e o Negro”, se bem que nesse caso, por ter sido uma obra mais trabalhada, com boa edição, o realismo não é tão cru.

A Cartuxa de Parma” é um livro que se lê sem necessidade de grande bagagem, lê-se rápido pela linguagem direta e muito acessível, e começando de forma algo desfocado acaba por a meio do livro revelar toda a sua força de enredo e agarrar a curiosidade do leitor. Dito isto, não o consigo catalogar como clássico obrigatório, apesar de lhe reconhecer imensos atributos, do reconhecimento que outros autores lhe têm — Balzac, Italo Calvino ou Lobo Antunes — porque Stendhal foi mais alto antes, nomeadamente no desenho e caracterização psicológica de personagens, daí que aproveite para voltar a recomendar vivamente a leitura de “Vermelho e Negro”.

julho 01, 2016

"O Cérebro" (2015)

“O Cosmos do Nosso Interior”, assim se poderia chamar “The Brain: The Story of You” (2015), porque assume proximidade com a série “Cosmos”, desde logo por surgir como série (6 episódios), seguindo-se como livro, e ainda por contar com um cientista que, à semelhança de Carl Sagan, é também um brilhante comunicador. Não fosse tudo isto suficiente, acaba por ser ainda mais relevante o facto de se dedicar a dissecar um mundo de factos e conhecimentos que nos permite ganhar noção daquilo que somos, mas agora a partir do nosso interior, da matéria orgânica que permite a criação de vida conceptual.

“In a cubic centimeter of brain tissue there are as many connections as stars in the Milky Way Galaxy. Our thoughts, our hopes, and our dreams are contained in these three pounds of wet biological material.”

Assumido este figurino percebe-se que “The Brain: The Story of You” não é um livro académico no seu sentido formal mas um livro de comunicação de ciência. Ou seja, não é expectável que David Eagleman entre no detalhe, que vá além do state-of-the-art, mas antes e tal como Sagan, seja capaz de apresentar as melhores metáforas para a compreensão do modo como o nosso cérebro, e nós, funciona.

Neste sentido, talvez seja a escolha da metáfora computacional a maior crítica que tenho ao livro, embora Eagleman apresente várias outras metáforas, como a dos "flocos de neve", e se redima no final. É verdade que em termos de comunicação é a melhor abordagem, já que é o sistema complexo mais próximo das pessoas, e mais presente na atualidade, mas por vezes sinto-o demasiado preso à metáfora, incapaz de se desligar e ir além. No final quando se lança na explicação dos possíveis futuros que no esperam, então Eagleman assume que todo este posicionamento é apenas uma hipótese, a chamada “computational hypothesis of the brain”. Assumindo que como tal pode simplesmente falhar no momento em que depois de desenvolvida a primeira simulação do cérebro, o objeto do projeto europeu “Human Brain Project”, se perceba a impossibilidade de criar a simulação de uma mente sem a presença de um corpo orgânico.

Se apresento esta crítica é por ser cada vez mais evidente esta distanciação, que apesar de ir sendo reconhecida e discutida continua sendo enunciada e defendida sem a devida reflexão. Este problema aconteceu antes, quando defendemos o cérebro como sistemas maquínicos de rodas dentadas, depois como sistema elétrico, ou ainda como sistema comunicacional do tipo do telégrafo. O cérebro, à semelhança do cosmos, é complexo, imensamente difícil de compreender, de abarcar o todo através da limitação da nossa compreensão, e por isso necessitamos constantemente de recorrer a metáforas para baixar o nível de complexidade e assim podermos conceber, ainda que abstractamente, os seus objetos, elementos, forças, no fundo a sua base funcional.

Assumida a crítica, que não pretende retirar força ao livro, nem ao trabalho de Eagleman, quero deixar alguns dos pontos altos do livro que valem a pena, apesar de não serem novos, estão muito bem apresentados e suportados, e valem por si só a leitura do livro. Falo dos pontos sobre a Ilusão e a Socialidade do Eu. No primeiro Eagleman assume o posicionamento que já vem de Platão, mas é bastante mais incisivo, direto, suportado com muita investigação empírica, conseguindo-nos demover do nosso conforto. No segundo ponto dá conta daquilo que faz de nós seres humanos, assumindo a base da construção do cérebro, do Eu, na relação com os outros, afirmando mesmo que não existe um Eu sem um Outro.

A Ilusão do Cérebro
“How does the biological wetware of the brain give rise to our experience: the sight of emerald green, the taste of cinnamon, the smell of wet soil? What if I told you that the world around you, with its rich colors, textures, sounds, and scents is an illusion, a show put on for you by your brain? If you could perceive reality as it really is, you would be shocked by its colorless, odorless, tasteless silence. Outside your brain, there is just energy and matter. Over millions of years of evolution the human brain has become adept at turning this energy and matter into a rich sensory experience of being in the world. How?”
“Your brain serves up a narrative – and each of us believes whatever narrative it tells. Whether you’re falling for a visual illusion, or believing the dream you happen to be trapped in, or experiencing letters in color, or accepting a delusion as true during an episode of schizophrenia, we each accept our realities however our brains script them. Despite the feeling that we’re directly experiencing the world out there, our reality is ultimately built in the dark, in a foreign language of electrochemical signals. The activity churning across vast neural networks gets turned into your story of this, your private experience of the world”

A Dor Social

“In the early weeks and months of solitary confinement you’re reduced to an animal like state. I mean, you are an animal in a cage, and the majority of your hours are spent pacing. And the animal-like state eventually transforms into a more plant-like state: your mind starts to slow down and your thoughts become repetitive. Your brain turns on itself and becomes the source of your worst pain and your worst torture. I’d relive every moment of my life, and eventually you run out of memories. You’ve told them all to yourself so many times. And it doesn’t take that long.” Palavras de Sarah Shourd, presa no Irão em 2009, colocada em prisão solitária, com a excepção de dois períodos de 30 minutos diários, durante 410 dias.

junho 25, 2016

"Life is Strange" (2015)

“Life is Strange” é um videojogo, mas podia facilmente ter sido um filme, ou mesmo um livro, no que aos assuntos tratados concerne. Por outro lado, e apesar de tratar uma história de adolescentes, vai muito para além do que temos visto em muito daquilo que se passou a designar pelo género Young Adult, nomeadamente no tratamento psicológico dos seus personagens, mas também porque sendo uma história interativa, obriga a tomadas de decisão que obrigam a graus de reflexão que garantem enormes ganhos de consciência de si. Tudo isto ficou ainda ontem bem evidente com os prémios atribuídos pela organização Games for Change, nas categorias de Melhor Jogo e Maior Impacto.




“Life is Strange” pode ser visto como uma espécie de consagração final das aventuras gráficas dos anos 1990. Depois da Telltale ter iniciado a nova abordagem do género, nomeadamente com o brilhante guião interativo de “The Walking Dead” (2012), a DontNod elevou a fasquia de produção e apresenta não apenas uma história originalmente criada para o meio, mas todo um trabalho de elevada qualidade nomeadamente em duas grandes categorias: o storytelling interativo e a arte visual. Diga-se que não é fruto do acaso, já que a DontNod tinha-nos presenteado com o interessantíssimo "Remember Me" em 2013.

A essência da história de “Life is Strange” aborda os problemas de final de adolescência colocando os personagens em confronto, nomeadamente psicológico, com problemas que vão desde a amizade e identidade ao bullying, suicídio e gravidez jovem, acentuando-se sobre as nuances que separam o medo e a afirmação, expondo a transformação, o trânsito numa fase crítica da vida, que não só deixa marcas como também acaba por definir aquilo que se virá a ser. Sendo um jogo, uma história interativa, este confronto não é meramente exposto para que se testemunhe, mas antes utilizado para colocar o próprio jogador dentro do confronto, obrigando-o, ao contrário da literatura e do cinema, a confrontar-se consigo mesmo. Este design de storytelling interativo, dos confrontos narrativos com o jogador, é tão eficaz que o utilizei recentemente numa conferência para dar conta da diferença entre modalidades narrativas em diferentes media, usando em particular uma sequência do jogo no qual somos confrontados com a eutanásia.

“Life is Strange” colocou-me pela primeira vez face a um impacto real do modo como a agência narrativa, permitida pela interatividade, altera a nossa percepção da realidade. Acreditando, e defendendo, o direito à eutanásia, no sentido da garantia da liberdade individual, e mesmo no sentindo mais lato de impossibilitar o uso de meios de manutenção artificial de vida, quando confrontado com a questão pelo jogo, estaquei! Todo o envolvimento criado pelo jogo, a empatia com as diferentes personagens, a proximidade e relacionamento criado, colocou-me entre o racional e o emocional. Se por um lado acreditava na teoria que tinha desenvolvido ao longo dos anos, por outro lado, emocional, acabei por não conseguir proceder...

Dos slides da keynote "Videogames and Multimodal Literacy" (2016)

Este breve momento do jogo fez-me perceber que a linguagem dos videojogos se distancia do cinema por muito mais do que a interatividade, que o potencial de agência latente no meio, que o facto de passarmos a agir em vez de testemunhar a realidade, altera radicalmente a nossa experiência narrativa, com consequências para aquilo que somos, ou acreditamos ser. O cinema continua sendo poderoso, não posso deixar de mencionar aquilo que me parece uma referência cinematográfica deste jogo, "Blue is the Warmest Colour" (2013), contudo, tal como a literatura se distancia do cinema, os jogos distanciam-se também bastante do cinema, apesar de ainda assim podermos continuar a considerar ambos como comunicação audiovisual.

Sendo este um dos momentos altos, outros se aproximam, nomeadamente o trabalhar da possibilidade de viajar no tempo para nos colocar em confronto com a dura realidade, que nunca é fruto de uma variável única, mas de um conjunto infinito de possibilidades, impossíveis de controlar, colocando-nos face à inevitabilidade do real como acaso, assumindo a impossibilidade de predeterminar o futuro a partir da impossibilidade de compreender todas as variáveis do passado que realmente dão origem ao presente e futuro.



Claro que tudo isto acaba funcionando muito bem porque no seu conjunto “Life is Strange” é uma obra que integra altos níveis de execução técnica, não apenas na escrita como vimos, mas também em toda a sua arte visual. A atenção ao detalhe, o trabalho de iluminação e cor, são absolutamente deliciosos. Os autores conseguiram estabelecer um ponto bem definido entre formalismo e realismo, capaz de garantir um lado mais adolescente pelo toque de ilustração e banda desenhada, e ao mesmo tempo adulto pelo fotorealismo do seu 3d e luz. Tudo é depois magistralmente composto e garantido por enquadramentos verdadeiramente sumptuosos, dignos do melhor que a linguagem cinematográfica nos tem conseguido oferecer em termos audiovisuais.

junho 20, 2016

“Viagem ao Fim da Noite” (1932)

Com uma escrita distinta, inovadora e brilhante, e um contar de histórias genuíno, Céline dá-nos um relato que não sendo existencial, é pessimista, um distilar de pura misantropia. Escrito aos 32, podíamos pensar que se trataria de um relato tardio de crise existencial do autor, já que trata aspetos semi-autobiográficos, mas a leitura de entrevistas dadas em final de vida, dão conta de uma personalidade vincada, com uma visão muito particular da condição humana.


Este lado misantropo de Céline fica bem evidente a meio do livro quando este define o propósito da vida:
"E o pior é pensar como vamos arranjar forças bastantes para continuar a fazer no dia seguinte o que fizemos na véspera e em tantos outros dias já passados, onde encontraremos forças para as diligências imbecis, para mil e um projectos que não conduzem a nada, essas tentativas de vencer a  pesada necessidade, tentativas que abortam sempre e todas destinadas a convencer-nos, uma vez mais, de que o destino é insuperável, que todas as noites temos de cair da muralha com a angústia de ser sempre mais precário, mais sórdido, esse dia seguinte.
Talvez seja a idade que surge, traidora,  e nos ameaça com o pior. Em nós já não temos música suficiente para fazer dançar a vida, ora aí está. Toda a juventude foi morrer no fim do mundo, num silêncio de verdade. Para onde havemos de sair, pergunto eu, se em nós já não há uma suficiente soma de delírio? A verdade é uma agonia sem fim. A verdade deste mundo é a morte. Temos de escolher: mentir ou morrer. Eu  cá nunca pude matar-me."
(p.194)
Algo que se repete ao longo da entrevista à The Paris Review, na altura com 66 anos,  com a confirmação do texto acima a surgir numa questão muito direta:
Entrevistador: "Quando na sua vida foi feliz?"
Céline: "Raios nunca, penso eu."
Na escrita, “Viagem ao Fim da Noite” apresenta-se como uma espécie de discurso oral escrito, parecendo simples mas longe de o ser, capaz de nos oferecer momentos de verdadeiro êxtase literário, permitindo ao mesmo tempo ao autor introduzir mundos de puro grotesco, naturais nalguma oralidade mas sempre distantes da literatura que habitualmente nos protege higienizando as formas descritivas, levando-nos assim a recordar a crueza de Henry Miller. Por outro lado esta oralidade, apesar de muitas vezes direta e na primeira-pessoa, nem sempre é acessível destacando-se por alguns breves rasgos de fluxo de consciência.

No tema, temos o relato de uma grande viagem, uma vida ou várias vidas, através das quais vamos descobrindo o interior do personagem, uma espécie de autobiografia do autor, que vai dando conta da diversidade do mundo, no qual convive uma certa harmonia de falso viver, de mentira na aceitação do quão difícil é o simples ato de respirar. Viajar, um pouco à semelhança da música de António Variações, parece ser a única reposta possível à platitude da vida, uma busca por algo nunca encontrado, ou um alimentar da esperança por esse encontro, por forma a dar resposta à insustentável motivação de viver, já que o credo do amor aqui não entra.
“Como não passamos de recintos com tripas mornas e quase apodrecidas, havemos sempre de ter dificuldades com o sentimento. Estarmos apaixonados não é nada, mantermo-nos os dois juntos é que é difícil. A imundície, essa, não procura resistir nem desenvolver-se. Aqui, neste ponto, somos bem mais infelizes do que a merda; no nosso estado, a fúria de preservação constitui uma tortura incrível.” (p.312)
Reconhecendo a arte do grotesco, continuo a não me rever na mesma, seja na literatura, pintura ou qualquer outra arte, considerando que a mesma se alicerça em muito daquilo que nos edifica verdadeiramente enquanto humanos, vou preferindo, bem sei que de algum modo ilusório, o belo, porque continuo a acreditar na arte como uma, necessária, fuga ao real, como composição e reamostragem desse real capaz de de nos garantir espaços de fuga, momentos de recolha, de reencontro connosco próprios.


Edição: Editora Ulisseia, 2010, 458 páginas