junho 17, 2016

“Fallout 4” (2015)

A melhor definição que encontrei para dar conta da experiência desenvolvida por “Fallout 4” foi, “intoxicante”, referida por Peter Brown. O mundo de jogo, os personagens, as quests, o storytelling interativo, tudo está desenhado e integrado no sentido de gerar uma das experiências mais imersivas que podemos encontrar nos videojogos. Peca por ir pouco além de "Fallout 3", no entanto consegue manter todos os seus atributos e gerar toda uma nova experiência capaz de nos fazer esquecer o nosso próprio mundo.




Começando pelo menos bom, e já tendo frisado a pouca transgressão face a “Fallout 3”, não posso deixar de apontar o dedo ao desenho de personagens, medíocre e inaceitável para um jogo AAA. Apesar do bom desenho 2d, é manifestamente insuficiente para as necessidades 3d, com má animação, fraca expressão corporal e facial, fraca interação, e acima de tudo os shaders, muito muito fracos, quase ao nível da computação gráfica dos final dos anos 1990, início de 2000. Fica a dúvida se foi propositado, este nível menos articulado do design de personagens, para se assemelhar ao mundo futurista-retro, ou se foi uma opção de produção, investir mais na componente narrativa e menos no esplendor visual.

Estranhamente muitos destes problemas não se replicam no ambiente virtual que consegue criar vários momentos de pura beleza visual, e aqui também indo para além de “Fallout 3”, nomeadamente no uso da cor, no detalhe do mundo e suas alterações atmosféricas. Temos áreas opressivas, carregadas de escuridão, nuvens ou chuva, mas temos momentos de sol aberto em que a natureza se dá, brilha com um fundo de céu azul  e dá gosto estar ali. Por outro lado, ora estamos no meio das ruínas e escombros dos restos deixados pela humanidade, ora encontramos restos muito bem mantidos, com seu sempre típico toque de design americano dos anos 1940, que dão conta de vidas normais, na praia, nos carros, nas salas de estar.

Mas se existe área em que "Fallout 4" se excede é em toda a camada de interação, no design de jogo e agência. A jogabilidade funciona em três grandes modos — exploração e criação; batalha e ação; e história — permitindo-se que o jogador defina qual dos modos é mais relevante para si. Desde logo a escolha do nível de dificuldade contribui para a  definição destas três abordagens — com o fácil dirigido à história e o difícil às batalhas — mas aquilo que vamos preferindo fazer no jogo acaba por ser aquilo que mais contribui para definir o modo, ou seja, o jogo não se impõe mas dá-se ao jogador.

No campo da “exploração e criação” temos o deambular por um mapa enorme, repleto não só de edifícios que se podem visitar por dentro, mas também as colónias que podemos ajudar a criar e a manter, para o que precisamos de coleccionar itens que otimizem não só os nossos recursos tecnológicos, mas também os das nossas colónias. Uma componente de jogo dirigida a quem gosta de jogos que apelem à criatividade, vontade de construir, e experimentar novas ideias.

Diria que o menos conseguido é o de ação, porque sendo um jogo de ação-aventura continua a manter muita da sua rigidez proveniente da base RPG, embora menos que o seu predecessor. Ou seja, apesar de termos um leque de armas imenso, e de podermos desenvolver muitas ações no reforço bélico, assim como termos de passar grande parte do jogo em lutas territoriais, as sequências de batalhas parecem sempre algo inarticuladas, falta uma base de stealth capaz de elevar as estratégias, embora com  a vantagem de serem dotadas de enorme agência, já que o jogador vai tendo grande liberdade no delinear das suas próprias estratégias de ação.

Por outro lado, o melhor de "Fallout 4" dá-se no modo história, nomeadamente, e porque tal como com as batalhas, permite atingir níveis de agência bastante elevados, não precisando sequer de nos colocar face a dilemas ou escolhas limite para nos fazer sentir parte do mundo, abrindo mão de muito controlo narrativo para garantir um verdadeiro sentimento de participação na construção do mundo-história.

Por muitos defeitos que possamos apontar a “Fallout 4” a sua elevação no campo da narrativa interativa, a capacidade para nos questionar e fazer refletir, muito depois de abandonar o jogo, sobre o mundo que ajudámos a criar, sobre as opções que tomámos, como teria sido se tivéssemos agido de modo distinto, é absolutamente brilhante. Temos um mundo ambiente habitado por imensas pequenas comunidades que acabam fazendo parte de um conjunto de quatro grandes grupos ou fações, com as suas próprias ideologias, sendo nós obrigados a passar por quase todas, conhecendo-as por dentro, até que somos obrigados a decidir onde nos queremos situar.

O jogo requer reflexão, que tipo de abordagem defendemos para um mundo a tentar renascer, que ideologia de comunidade nos fala, sendo que a escolha não se limita a seguir em frente, mas implica tomada de decisões territoriais para que a fação escolhida possa manter-se, implicando algumas decisões terminais sobre alguns dos amigos que entretanto criámos noutras fações. As comunidades em "Fallout 4" são autênticas redes de relações, e as nossas ações sobre estas produzem impactos ricos de significado, carregados subtilezas que nos obrigam a refletir sobre o que fazemos e porque o fazemos.

Jogar como personagem feminina é mais relevante do que a aparência, assumimos o papel de mãe, e não de pai, de um dos personagens principais, mudando radicalmente o nosso posicionamento em muitos dos diálogos, tornando a nossa opção relevante ao longo de todo o jogo.

“Fallout 4” obriga-nos a rever aquilo que somos, a questionar as nossas atitudes, valores e crenças. Ainda que por vezes nos force a determinadas atitudes, percebemos que elas são fruto de decisões nossas, tomadas previamente. Raramente "Fallout 4" nos coloca frente a decisões a preto e branco, temos sempre vários níveis de aproximação às decisões finais, várias sub-níveis de escapatória das tendências de decisão que vamos seguindo e que nos permitem antecipar o que se poderá passar, mas como na vida real essas decisões não são simples nem um fim em si mesmas, já que acabam por acarretar consigo sempre novas dependências, novos problemas, novos carmas.

junho 10, 2016

“The Order: 1886” (2015)

Quando a arte visual não chega. “The Order” é provavelmente o jogo com melhor composição visual, nomeadamente de enquadramento, que joguei até hoje, com belos cenários, bons personagens, e até uma história interessante, mas fica-se por aí. A história fica enredada nas cinemáticas, sobrando para o jogo o mero galgar de terreno em vagas de “esconde e atira”.
O fundo temático recorre aos cavaleiros da távola redonda e aos seus códigos de honra numa luta contra o mal, com a novidade de seguir as tendências atuais dos videojogos com os "híbridos", uma espécie de lobisomem/zombie. O cenário é trabalhado com base em lógicas steampunk que lhe garantem um apelo interessante na forma como fusionam a ciência e a arte, nomeadamente no uso de um Tesla, inventor de gadgets à lá 007!

Os problemas acabam por emergir no desenho da agência no jogo, ficando nós sem perceber que direção se pretendia para o jogo, já que parecendo mais um filme interativo no início, acaba por debandar para uma imitação inferior de “Tomb Raider” ou "Uncharted". Não existe coerência, tal como acontece com o movimento do nosso personagem que vai continuamente variando — rápido e furtivo, lento e tenso, quase normal, etc. — tornando a nossa relação com ele, por esta espécie de ausência de controlo, distante, o que acaba por ditar ausência de uma verdadeira conexão entre o que fazemos e aquilo que nos é mostrado.

Podia ter sido um filme, mas seria fraco, já que a história é em si mesma um pouco mais do mesmo. Por outro lado a integração de um conjunto de mecânicas — stealth, cover system, looting, ledge-grabbing, quick events — surgem como meros obstáculos à progressão narrativa. Não é uma questão rítmica, a história até tem bom desenrolar, a jogabilidade é que nunca ganha espaço nem presença, nunca se chega a afirmar.

Uma decepção, depois de ter esperado tanto tempo, de ter lido muita coisa má, mas ter lido imensa gente defender o jogo contra essa avalanche negativa, esperava um bocadinho mais. Por outro lado adorei os cenários, a iluminação (com as suas sombras, brilhos e reflexos), a ilustração, as vestes, os personagens também muito interessantes, tanto nas suas histórias como acima de tudo na animação, mas acima de tudo as composições de cada enquadramento, essas sim, verdadeiramente supremas.

junho 06, 2016

Contar histórias em 360º

Pearl” é uma animação criada por Patrick Osborne para o formato 360º, dotada de belas história, ilustração e animação, capaz de rentabilizar na perfeição a inovação introduzida pela perspetiva 360º, embora não demonstre per se como é que o formato poderá vir a tornar-se um standard no futuro.




Osborne parte da simples premissa de que o 360º, apesar de abrir em todas as direções, congela o eixo do ponto de vista, impossibilitando o seu movimento, e ainda bem. Poder ver em todas as direções é já pesado em termos cognitivos para o espectador, se pudéssemos ainda variar o eixo do ponto de vista, a experiência tornaria-se simplesmente insustentável já que perderíamos a ação desempenhada para suportar o contar de história.

Deste modo a experiência criada acaba funcionando muito bem, exatamente porque o autor soube encontrar um ponto de vista capaz de garantir a variedade de espaço (ver making of), isto porque o ponto se vai movendo, sem qualquer ação da nossa parte, fruto do objeto em que se encontra inserido (o carro). Contudo, por várias vezes damos por nós a tentar virar rapidamente em ambas as direcções para conseguir acompanhar o que estará supostamente a acontecer, e esse acaba por ser o maior problema da abordagem 360º ao contar de histórias.

Apesar destes reparos negativos, esta abordagem tem uma mais valia indubitável que se pode ver emergir aquando de uma segunda ou terceira visualizações, mas a grande questão é se é esse será o objetivo desta, ou outras obras?

"Pearl" (2016) de Patrick Osborne

junho 04, 2016

Fragmento e detalhe no title design de Filipe Carvalho

Filipe Carvalho é uma das referências internacionais no mundo do title design (design de genéricos) e esteve recentemente no Semi Permanent 2016 em Sydney, para o qual criou também o genérico promocional do evento que podemos ver abaixo, agora disponibilizado pelo Art of Title.






O seu mais recente trabalho está nas salas de cinema e serve a abertura e fecho de “Alice Through the Looking Glass” (2016). Se quiserem mais, podem seguir o seu trabalho a partir do seu site Random Thought Pattern. É verdade que o Filipe não se dedica apenas ao title design como poderão ver na página, e também como se pode ver desde já neste filme para a Semi Permanent, o seu trabalho distribui-se por todas as áreas relacionadas com a imagem em movimento, desde a realização à edição, passando pela cinematografia, produção e inevitavelmente o design.

Este filme é paradigmático de toda essa versatilidade de Filipe Carvalho, e por isso é também tão relevante na análise do seu percurso já que dá conta do amadurecimento, da capacidade de conduzir o todo da experiência plástica audiovisual para o conceito visionado. Sendo o title design, tal como grande parte do motion design, uma espécie de arte de fusão, pela apropriação de conceitos e objetos, sua colagem e mistura, é-o sem parecer um mero compilar de elementos, e é talvez por isso mesmo que se tem destacado tanto, e ganho tanta importância nos últimos anos.

Podemos ver como, ao longo destes 2 minutos, são trazidos à liça, a narração de Tom Waits, o texto de Charles Bukowski, as imagens de Toros Kose, a música de Tiago Benzinho, tudo (excepto a música) é servido em fragmentos, recortes, partes incompletas, desconectas, e como Filipe Carvalho reconstrói nexo, narrativiza. E não estamos a falar de mera samplagem audiovisual porque tudo é envolvido por um conjunto de novas imagens criadas pelo próprio Filipe (ver making of).

"Semi Permanent 2016 Opening Titles" de Filipe Carvalho

Se a música nos parece ser a pauta que lima os desfasamentos, e mesmo reconhecendo a sua enorme mais valia, é a partir do trabalho de composição visual que o sentido emerge, pela sua produção de valor estético. O modo como se trabalha a fragmentação e o detalhe de todos os elementos, nomeadamente a tríade — movimento, espaço e conceitos — acaba sendo a responsável por garantir a expressividade e identidade de todo o texto audiovisual.

maio 28, 2016

“Retrato do Artista Quando Jovem” (1916)

Faz 100 anos a primeira obra de Joyce. Nesta, o conteúdo relata aquilo que o título aponta, um jovem à procura da sua identidade e afirmação pessoal, por outro lado e enquanto relato autobiográfico, torna-se parte integrante dessa mesma autobiografia. Ou seja, o livro dá conta da vontade de Joyce de se emancipar, libertar das rédeas societais para criar arte, o que consegue através desta primeira obra, que mais não é do que a primeira pedra dessa grande fuga às regras instituídas, que se iria acentuar com “Ulisses" (1922), e descolar totalmente com “Finnegans Wake” (1939).


Não sendo um livro fácil de ler, como grande parte das obras modernistas, que se distanciam do realismo e refugiam no não-linear, acaba por ser um livro muito interessante nomeadamente pela forma como usa o discurso indireto livre, não assumindo ainda de modo explícito uma lógica de fluxo de consciência, antes realizando uma aproximação a um discurso pensado.

O livro atravessa fundamentalmente três grandes restrições culturais sentidas pelo autor — o peso da educação católica, a pequenez da sua cidade natal (Dublin), e a obsessão com a rivalidade com Inglaterra — para assim dar conta do modo como alguém tem de lutar para se erguer acima dos condicionalismos ao pensar. Porque só se é artista quando se é capaz de criar pensamento próprio, quando se consegue a partir do meio envolvente traçar um caminho pessoal. É isso que este livro representa, mais do que ser uma autobiografia da juventude de Joyce, é ele próprio um legado dessa vontade experimental artística que abriu a possibilidade à criação de obras literárias profundamente inovadoras, como seriam os seus seguintes textos.
“Quando a alma de um homem nasce neste país, lançam-lhe logo redes, para a impedir de voar. Fala-me de nacionalidade, de língua, de religião; eu vou tentar voar para lá dessas redes”
Mas ser inovador a nível artístico não tem qualquer relação com a criação do belo, já que o fundamento é racional. Esse é talvez o maior problema de toda a obra de Joyce, e outros artistas, quando se deixam toldar pela sua obsessão artística, esquecendo que as obras se dirigem a um receptor. Aqui estou a falar já de toda a carreira de Joyce, já que este “Retrato do Artista Quando Jovem”, marcando apenas o início da abordagem estética do autor, apresenta ainda muito daquilo que podemos considerar de beleza na escrita. Contudo são vários os momentos em que o autor afunda o discurso e se afasta de nós, claro que nada que se aproxime do limiar atingido com “Finnegans Wake”.

Dito isto, é um livro para ser lido pelo seu valor literário, a abordagem artística de Joyce, e neste caso o modo como se desenvolveu, e menos pelo simples prazer de leitura. É um texto que interessará a quem já atingiu a fase de perda de encantamento pelos clássicos e precisa de algo que vá para além das simples descrições e interpretações do real, algo capaz de criar as suas próprias realidades. Convém mesmo ter lido grande parte desses clássicos para deter bagagem capaz de co-construir a realidade que os livros de Joyce exigem, de outro modo poderá ficar a ideia de que o livro tem pouco para dizer.

Animação de nostalgia

Player Two” (2016) é uma animação criada por Zachary Antell como trabalho de fim de curso na Universidade de Syracuse, EUA, que se destaca pela abordagem nostálgico-emocional e ainda pelo bom trabalho de rotoscopia. A demonstrar que com apenas 21 anos é possível criar obras conceptuais e profundamente empáticas.




A ideia de partida é bem definida pelo título, o jogador dois, que serve de metáfora para irmão mais novo, que tudo aprendeu imitando o irmão mais velho, o jogador um. O filme trabalha a relação dos irmãos através dos videojogos, demonstrando como as relações se constroem, intensificam, até que a natural evolução familiar as conduz à quase extinção. Quase, porque restam sempre as experiências vividas, os momentos marcantes nunca alguma vez olvidáveis, as quais as emoções nostálgicas se encarregam de nos relembrar amiúde. Não sendo uma obra que busque o aprofundamento do significado social, é capaz de tocar todos os que passaram por este tipo de experiência.
“I chose the subject matter of video games after a small debate with my parents where I realized they never truly understood how video games affected my life; my introduction to music, to animation, and eventually filmmaking. I wanted to convey the sense of imagination and scope old single player games like Ocarina of Time surrounded children.” Zachary Antell in Short of the Week
No campo da animação, a rotoscopia desenvolvida com base em vídeo e depois trabalhada com texturas de papel e desenho semi-infantilizado contribui intensamente para a produção do sentimento de nostalgia, de memórias difusas, experiências do passado de que nos vamos relembrando indefinididamente, mas com sentimento. Não estamos perante um trabalho de demonstração técnica, mas antes de técnica focada na mensagem, da animação ao serviço da expressão. No caso de se interessarem pela produção de animação vale a pena ver o pequeno making of.

“Player Two” (2016) de Zachary Antell 

maio 22, 2016

“Humans Are Underrated" (2015)

Depois de um livro que tinha gostado bastante, “Talent is Overrated” (2008), Colvin acaba desiludindo fortemente com esta espécie de sucessor, “Humans Are Underrated”. Apesar de seguir o mesmo estilo gladwelliano que tinha seguido antes, arrisca demasiado e espalha-se completamente, ou então, o facto de eu estar muito mais por dentro desta matéria, permitiu-me perceber o quanto esta fórmula de escrita pseudo-científica pode fazer mais mal do que bem à divulgação científica.

Todo o livro assenta num conjunto de generalizações destiladas a partir de meia-dúzia de estudos, escolhidos apenas por suportarem as ideias do que se pretende veicular, uma fórmula iniciada por Malcolm Gladwell (daí o “gladwelliano”). São imensos os estudos — de sociologia, psicologia, psicologia social, economia, etc. — usados de forma isolada, sem contexto nem qualquer outro suporte, para se especular sobre o futuro, cometendo assim não apenas o erro da generalização dos pequenos estudos mas ainda exponenciando todo esse erro por meio da extrapolação realizada no tempo.

Colvin, seguindo a linha que tinha desenhado no seu livro anterior, tenta encontrar nos humanos, não aquilo que os separa das máquinas, mas aquilo que os pode vir a separar. Pelo meio decide assumir um recorte sem explicar porquê, que as máquinas nunca poderão vir a ser semelhantes a nós, e que por isso não precisa de se preocupar com essa questão. Verdade que facilita o seu próprio trabalho, especular apenas sobre máquinas que não se podem confundir com os humanos, contudo fica-se com uma interrogação entrecortada, e sem nexo.

A proposta essencial de Colvin assenta num conjunto de conceitos chave amplamente discutidos por toda a comunidade científica, e mesmo empresarial, ao longo de toda a última década, ficando nós a pensar qual o objetivo do livro, bastaria um artigo de resenha. Porque para Colvin tudo assenta na Empatia, é ela, e só ela que nos poderá ajudar. Questiono-me o que dizer dos robôs que têm vindo a ser desenvolvidos com estes objetivos e com algum sucesso, na verdade o estabelecimento de laços de empatia com máquinas não é assim tão complexo, e é algo que se vem discutindo desde os anos 1990 com o livro “Media Equation” de Clifford Nass e Byron Reeves.

Depois disso vem a Criatividade e o Storytelling, confessando eu aqui que já não posso mais com toda esta loucura em redor destes dois conceitos. Sim são essenciais, mas se todos já sabemos disso dispensava-se bem o enchimento de páginas e páginas. A última parte volta à empatia, mas agora para discutir a elevação da mulher a sexo forte, pela razão do seu superior poder de empatia, que diga-se não se distingue entre mulher e homem, mas entre testosterona e oxitocina, e Colvin acaba por o admitir. Mas não deixa de ser ingénuo da parte do autor, saltar para a conclusão de que no futuro não precisaremos de mais engenheiros, e as nossas mais valias irão resumir-se aos relacionamentos, quando por muito que as máquinas avancem, elas precisarão sempre de nós para nos compreenderem melhor, e darem-nos aquilo de que precisamos.

E com isto chego ao final do que vale a pena neste livro, das conclusões a que cheguei logo nos primeiros capítulos mas que Colvin apenas toca levemente quase no final, e tem que ver com a nossa relação com a Arte e a Máquina. Refletindo sobre aquilo que nos move enquanto apreciadores de arte, não são as obras, mas os criadores das mesmas. Não quero saber de um desenho num guardanapo até que me digam que foi Picasso que o desenhou, ou que foi um familiar já desaparecido que o concluiu antes de morrer. O que nos interessa na arte é aquilo que o Outro tem para dizer através da mesma, tudo o que enquadra um artefacto assenta na externalização de ideias do seu criador.

Será muito difícil algum dia convencer as pessoas a interessarem-se pelas ideias de uma máquina, sendo ela tão diferente, não tendo as mesmas necessidades que nós (comida, sexo, medo,...) ou não subsistindo o mesmo tempo de vida que nós (a imortalidade). Como diz Colvin, pode até ser interessante a música criada por máquinas mas para usar como música ambiente no shopping ou no elevador, já que nunca iria deslocar-me à Casa da Música para ouvir um concerto composto e interpretado por uma máquina, menos ainda ver um filme, ou ler um livro criados por esta. Em certa medida isto é já o que acontece entre humanos com culturas demasiado distantes, em que a ausência de conhecimento dos códigos culturais nos impede de compreender o que está em questão. No caso da máquina, a alternativa será fazê-la falar como humano, e isso ainda fará pior, pois no momento em que o público perceba que não era um humano o autor do livro ou filme, vai sentir-se totalmente defraudado.

Dito isto, fica evidente a região de exclusão entre máquinas e homens, a qual Colvin peca por trabalhar pouco, apesar de dedicar capítulos inteiros à criatividade e ao storytelling, e que tem que ver com a comunicação humana, aquilo que transmitimos de uns para os outros, e acaba por muitas vezes redundar na produção de obras artísticas, de menor ou maior qualidade, mas por sua vez contendo expressões pessoais de cada um de nós que interessam aos demais, porque nos ajudam a compreender o mundo à nossa volta já que provêm de pessoas com os mesmos problemas que nós.

Filme sobre o poder da interpretação, que dá conta da imposição da expressividade pessoal sobre aquilo que se diz, contaminando tudo o que se diz com o sentir pessoal de cada um.

É um livro que pode fazer-nos pensar um pouco sobre o assunto, mas pouco. Para dizer o que diz, um artigo na revista Fortune, que é onde costuma escrever, tinha chegado perfeitamente, e na verdade esse artigo já existe, leiam-no em vez do livro ficarão a saber o mesmo.

maio 19, 2016

Do surreal nos Coldplay

A Academia Bezalel surge mais uma vez em destaque no mundo da imagem em movimento, desta vez por meio de um trabalho de um seu ex-aluno, Vania Heymann, que juntamente com Gal Muggia, criaram o teledisco sensação desta década, “Up & Up“ para os Coldplay. Ambos israelitas, Heymann agora baseado em NY, enquanto Muggia continua em Tel Aviv, ambos têm criado trabalhos de relevo internacional em vários domínios do audiovisual, dos telediscos aos spots publicitários.




Heymann começou a dar nas vistas assim que produziu o seu primeiro trabalho na Bezalel, um pequeno filme sobre os problemas da religião, neste caso o ortodoxismo, trabalhando tudo por meio da composição e inserção de um simples vaso de água IKEA (ver vídeo abaixo). Em 2013 foi também o responsável pelo primeiro teledisco autorizado do clássico de Bob Dylan "Like a Rolling Stone" (1965), com a particularidade de ser interativo (experienciar na revista “Rolling Stone”).


Muggia apesar de ter um portfólio de menor impacto, acaba por nos seus trabalhos anteriores dar conta do quanto muitas das ideias que vemos exploradas neste trabalho dos Coldplay lhe pertencerem, veja-se por exemplo 24 Promo ou o fantástico "Was It You?" (ver vídeo abaixo).


Heymann e Muggia descreveram este novo trabalho conjunto, para os Colplay, como “uma pungente montagem surrealista que faz alusão a questões contemporâneas”, definindo assim na perfeição o trabalho. Na generalidade dos telediscos o que está em questão é muito mais a sensorialidade que se consegue gerar, e menos a criação de sentido, de narrativização visual da música, sendo isso neste caso totalmente assumido pelos criadores do trabalho, ganhando assim total liberdade para nos provocar sem limites, nem fronteiras.

O início do videoclipe dá o mote com montagens de contrastes conceptuais muito evidentes que por sua vez se vão subtilizando e obrigando a atenção do espetador, criando a cada nova cena jogos de puzzles visuais, nos quais sabendo de antemão que o contraste existe nos lançam na sua procura, gerando o desejo pela descoberta do detalhe e dos potenciais sentidos escondidos, alimentando o nosso prazer e fruição.

"Up&Up - Coldplay" (2016) de Vania Heymann e Gal Muggia

Em termos técnicos o trabalho é absolutamente soberbo, contribuindo sem dúvida para todo o espanto e sedução que tem criado na rede. Nota-se a cada nova cena que os criadores se divertiram brincando com os bancos de imagens em movimento buscando conexões e contrastes entre o velho e o novo, desenhando jogos entre atividades e ações, plasmando tudo como se de real se tratasse, criando desta forma um novo nível de real, o surreal.

maio 12, 2016

“A Quinta dos Animais” (1945)

No fim desta leitura atravessam-me sentires muito diversos, nomeadamente porque tendo passado os últimos 30 anos a evitar regressar a este universo que tinha conhecido por via do filme homónimo de John Halas no início dos anos 1980, confronto as ideias desses tempos de inocência e ingenuidade com a análise das metáforas e camadas de real que hoje consigo de modo diferente descortinar. Se no passado o título traduzido para português — "O Triunfo dos Porcos" — fez muito sentido, hoje percebo a sua total inadequação, mais ainda tendo em conta a real intenção de Orwell expressa no prefácio original, e por isso louvo a audácia do tradutor, Paulo Faria, em descontinuar essa intitulação.



Ver um filme, ainda que de animação, decalcado da metáfora base representada nesta obra de Orwell, com 8/9 anos, pode parecer violento, e foi-o, tanto que a impressão deixada me afastou para sempre do filme, assim como do livro. Nessa altura, recordo-o agora e bem ainda, o que vi e senti teve pouco que ver com política, no seu sentido estrito de luta de classes sociais, mas antes sobre a clivagem entre humanos e animais. Não só o facto de ser ainda muito jovem, mas também de viver numa aldeia rodeado de animais — cães, gatos, porcos, vacas, galinhas, etc. — foram determinantes para esta enfabulação da minha parte, para o que viria ainda a contribuir a visualização de obras como “O Planeta dos Macacos” que consolidariam muitos dos temores que me assolariam durante alguns anos dessa fase da minha vida.

Questiono-me contudo, porque apesar de ter sentido temores similares no visionamento de “O Planeta dos Macacos”, não me afastei, e fui revendo, assim como vi e revi toda a saga, várias vezes neste período de tempo. Acredito que isso se deve ao tom, ou género, que envolveu diferentemente ambos os discursos. “O Planeta dos Macacos” claramente versado no género de ficção-científica, com base em princípios clássicos da jornada do herói, prometendo o reencontro de nós mesmos. Já “A Quinta dos Animais” apesar de se apresentar em animação, assim como obviamente ficcional, era dotado de uma caracterização profundamente realista, capaz de oferecer à metáfora dos animais uma imensa credibilidade, assim como baseado num género muito mais dramático, o da tragédia. Ou seja, apesar das questões de clivagem entre animais e homem serem mais claramente abordadas em “O Planeta dos Macacos”, o tratamento dado ao tema era não só pouco trabalhado socialmente, como era ainda adocicado com bastante otimismo na sua resolução.

Depois deste regresso ao passado, resta-me falar sobre a leitura realizada agora, naturalmente aquela que se aproxima das intenções do escritor por força da maturidade. Orwell tendo combatido na Guerra Civil Espanhola dos anos 1930, e vendo como o socialismo emanado da URSS era ali perpetrado, resolveu no seu regresso a Inglaterra escrever sobre a sua experiência, tendo assim resultado em “A Quinta dos Animais”. Ou seja, temos aqui um texto profundamente político, para o qual a metáfora dos animais serve mais de veículo à mensagem, do que operador de ideias.


Apesar desse objetivo político — das tensões entre o comunismo e o capitalismo — o texto acaba indo mais longe, nomeadamente por via da circularidade narrativa que consegue transportar as ideias para um nível acima da constatação e discussão dos comportamentos humanos e suas leis de regulação, colocando o leitor num lugar privilegiado para compreender que aquilo que está em causa não é meramente uma questão de escolha entre regimes.

No fundo Orwell acaba por nos conduzir à constatação de que a regulação social de grupos humanos tende para a manutenção do autoritarismo e que a única forma de nos libertarmos desse é por via da construção de uma literacia democrática que alavanque a racionalidade dos cidadãos na desmontagem do real à sua volta. No fundo, estamos a falar de Comunicação Humana, da capacidade que todos precisam de deter para operar discursos, para desmontar a manipulação e a propaganda.

Aliás isto torna-se ainda mais evidente na história da publicação do próprio livro em 1945 em Inglaterra, quando foi recusado por várias editores, com a elite inglesa a defender que o livro apesar de bem escrito, não deveria ser publicado por poder ferir suscetibilidades junto do aliado URSS. Assim, apesar da Inglaterra viver num aparente regime democrático, sem leis de imposição de censura, essa era mantida no terreno pelos próprios cidadãos, zelosos de supostos interesses. O que está aqui em causa não é o mero ato de censura, mas antes o seu mais pernicioso efeito, que como vemos nesta fábula, facilmente pode escalar em direcção ao suporte do autoritarismo.
"de momento, fora necessário proceder a um reajustamento das rações (Tagarela usava sempre a palavra ‘reajustamento’, nunca ‘redução’), mas, por comparação com o tempo do Reis, o progresso era enorme." (p.108)
Um pequeno livro tão atual como quando saiu, continuando obrigatório.