A tradução de Fernanda Pinto Rodrigues para a Dom Quixote está soberba, ainda assim dos excertos que li em inglês, posso dizer que Roth é ainda mais entusiasmante no original.
Coleman Silk atingiu o pico da carreira, Reitor de uma universidade americana, a sua queda é o tema central da tragédia, focando-se Roth sobre aqueles que o vão acompanhar nessa descida, o amigo escritor Zuckerman (espécie de alter-ego de Roth), e o confronto entre o seu passado pré-universidade, o presente e o futuro. Este é o cenário de fundo que vai permitir a Roth explorar os mais intrincados comportamentos humanos, do poder ao racismo, da amizade à família, do amor ao ódio. Tudo isto pode ser visto no filme homónimo realizado por Robert Benton, que conta com nada menos do que Anthony Hopkins e Nicole Kidman, mas que apesar de nos poder dar a conhecer a história em toda a sua evidência, e sendo um bom filme, fica imensamente distante do livro.
Não se trata apenas do detalhe ou da diferença entre os diferentes média, a diferença aqui é evidenciada pela mestria de Roth no manejo da escrita. O modo como trabalhou o enredo, numa estrutura encapsulada e não-linear, para a qual criou personagens, não apenas soberbos e interessantes, mas que descreve de um modo profuso, intenso e extremamente íntimo. Com a não-linearidade a fazer brotar constantes descobertas, à medida que vamos lendo, e vamos compreendendo mais sobre cada um dos personagens. Roth não usa a deslinearização apenas como artifício para a participação do leitor, mas antes para enriquecer o que nos vai contando, de modo a levar-nos cada vez mais ao fundo de cada um dos envolvidos. A cada novo descamar do enredo, percebemos que não apenas saltamos no tempo, para frente ou para trás, mas que Roth como que abre um vortex por meio do qual nos leva a conhecer o interior do sentir de mais um daqueles personagens.
“Durante quarenta anos fez o que era necessário fazer. Andou atarefado, e a natureza, que é a besta, mudou-se para uma caixa. Agora essa caixa está aberta. Ser reitor, ser pai, ser marido, ser intelectual, professor, ler livros, dar lições, corrigir textos, dar notas, tudo isso acabou. Evidentemente que já não é a vigorosa besta lúbrica que foi. Mas o que resta da besta, o que resta dessa coisa natural, é com isso que ele está agora em contacto, com o que resta. E sente-se feliz por isso, sente-se grato por estar em contacto com o que resta. Sente-se mais do que feliz: sente-se emocionado, e já está ligado, profundamente ligado a ela, por causa dessa emoção. Não é de família que se trata, a biologia já não lhe serve para nada. Não é família, não é responsabilidade, não é dever, não é dinheiro, não é uma filosofia partilhada ou o amor à literatura, não são grandes discussões de ideias. Não, o que o liga a ela é a emoção. Amanhã descobrem-lhe um cancro e acabou-se. Mas hoje, agora, tem essa emoção.” (excerto de "A Mancha Humana")
"(..) nós deixamos uma mancha, deixamos um rasto, deixamos a nossa marca. Impureza, crueldade, mau trato, erro, excremento, sémen. Não há outra maneira de estar aqui. Não tem nada a ver com desobediência. Nem com graça, ou salvação, ou redenção. Está em todos. Sopro interior. Inerente. Determinante. A mancha que existe antes da sua marca. Sem o sinal de que está lá. A mancha que é tão intrínseca que não precisa de uma marca. A mancha que precede a desobediência, que engloba a desobediência e confunde toda e qualquer explicação e compreensão. É por isso que toda a purificação é uma anedota. É uma anedota básica, ainda por cima. A fantasia da pureza é aterradora. É demencial." (excerto de "A Mancha Humana")De algumas análises que li, nomeadamente na comparação da alegada “Trilogia Americana” de Roth, na qual a “Pastoral Americana” (1997) seria o primeiro volume, “Casei-me com um Comunista” (1998), o segundo, e “A Mancha Humana” (2000) o terceiro, parece ser consensual, apesar da “Pastoral” ter ganho o Pulitzer, que a “Mancha” é o pináculo, não apenas da trilogia, mas da obra de Roth. Provavelmente por ser aqui que vai mais longe na análise das pessoas, centrando-se nos efeitos das convenções sociais que as amarram e domesticam, e menos nas componentes políticas de cada um dos momentos representados.
Por outro lado, e ao contrário do que por vezes já disse aqui no blog, a quantidade de trabalho criado por Roth não lhe foi saindo como repetição, mais do mesmo, mas antes como aprimoramento da sua mestria, com esta a evoluir continuamente ao longo da sua carreira. Roth tinha 70 anos quando escreveu a “Mancha” e isso nota-se, muito do que aqui se diz, não era possível de ser pensado por alguém com 30 ou 40 anos, é preciso experiência de vida, viver, sofrer, acertar e errar. A sua escrita foi assim tornando-se mais intensa, entrosada, e íntima, sendo responsável por muito daquilo em que se transforma a experiência das suas tragédias narradas.
Para fechar, quero deixar um excerto de uma passagem, na qual Roth usa uma referência a um andamento de Mahler, que descreve de modo belíssimo, e aproveitando a particularidade multimédia do blog deixo a música, esperando assim proporcionar um momento especial a quem desejar realizar a leitura enquanto ouve:
Mahler, Symphony No 3, por Claudio Abbado
“O percurso a pé para o cemitério, a três quarteirões de distância, foi em grande parte memorável pelo facto de, aparentemente, não ter acontecido. Num momento estávamos paralisados pela infinita vulnerabilidade do adágio de Mahler, por aquela simplicidade que não é artifício, que não é uma estratégia, que quase parece desenrolar-se com o ritmo acumulado da vida e com toda a relutância da vida em terminar… num momento estávamos paralisados por aquela rara justaposição de grandiosidade e intimidade que começa na serena, cantante e contida intensidade das cordas e depois sobe, em vagas, pelo pesado falso final que conduz ao verdadeiro, ao prolongado, ao magnífico final… num momento estávamos paralisados pelo crescendo, pela subida, pela culminância e pela acalmia de uma orgia elegíaca que se espraia, espraia, a um ritmo determinado que nunca muda, recuando para logo voltar como uma dor ou um anseio que não desaparecem… num momento estávamos, levados pela insistência crescente de Mahler…” excerto de "A Mancha Humana"