julho 20, 2015

"Alien: Isolation" (2014)

Desisti no sexto nível, apesar de representar uma experiência muito interessante, nomeadamente na recuperação do ambiente do primeiro “Alien” (1979), acaba por ser, ora repetitivo, ora demasiado tenso. O videojogo faz um belíssimo trabalho de simulação de uma estação espacial abandonada, dominada pela presença de um xenomorfo, sendo que os problemas não advêm do jogo, mas do próprio universo simulatório. Os designers quiseram colocar-nos verdadeiramente na pele da filha de Ripley, e conseguem-no por várias vezes, mas a um custo emocional tremendamente elevado. Provavelmente falta ficção, de modo a atenuar a intensidade da simulação, que é aquilo que o cinema, ou as imagens/esculturas de HR Giger, nos dão. Perde-se capacidade para contemplar o belo do grotesco ao sermos cilindrados pelo medo, restando-nos apenas a atenção contínua, sempre engajados na resposta ao próximo evento.




O mais interessante de tudo isto, em termos de análise do design, é que o grande problema do jogo acaba por advir do elemento que mais contribui para a inovação do mesmo, a inteligência artificial (IA). Como vem sendo notado, esta geração está demarcar-se da anterior não pelos gráficos, mas pela IA. Deste modo o que temos em “Alien: Isolation” é o primeiro xenomorfo com IA capaz de lhe garantir autonomia, quase a 100%. Assim sendo, o jogador é como que atirado aos leões quando chega a Sevastopol. A filha de Ripley está por sua conta, e nós com ela, pois temos de enfrentar um ser indestrutível, com sentidos auditivos e visuais imensamente apurados, capaz de nos matar em 2 segundos, e ao mínimo deslize. Morremos muito, muito mesmo, mas não é daí que advém o drama, este surge nos momentos anteriores, na escuridão, no medo que se apodera de nós e nos questiona, segundo a segundo: “posso mexer-me?”; “o sensor estará a funcionar bem?”; “a escotilha será segura?”; “a porta não se fecha atrás de mim?”; “não adianta correr?”; “o sensor parou mas continuo a sentir que ele está ali fora?”.



De cada vez que encontramos um "telefone de emergência" (pontos de gravação dentro do jogo), sentimos mesmo que estamos a ser socorridos, servindo de pequena vitória que nos dá prazer, e mais algum elã para continuar. Mas voltando à ficção, a sua falta acaba por se denotar na própria jogabilidade que é destituída de objetivos que nos retirem a atenção do xenomorfo. Na estação espacial pouco ou nada podemos fazer, para além de jogar ao gato e rato, abrir portas, ligar a electricidade, procurar códigos nos terminais para abrir mais portas. Os andróides que poderiam ter servido o efeito de desviar o nosso foco, pelo menos por momentos, são quase tão horripilantes como o próprio xenomorfo, de modo que estamos totalmente sós, e rodeados de inimigos. A lembrar-me um dos maiores problemas que apontava aos videojogos há uma década atrás, a existência quase exclusiva de inimigos, sendo que a ausência de amigos impede que ocorra empatia, e por sua vez um envolvimento aprazível com o artefacto.



Em termos visuais os cenários são detalhados, do melhor que o jogo tem para nos oferecer, mas pecam por falta de interatividade, ou seja, tanto detalhe tanto objeto e praticamente todos de nada servem, a única coisa com que podemos interagir em abundância são os armários para nos escondermos! Por outro lado, o xenomorfo, não está mal concebido, mas vê-lo movimentar-se é um tanto cómico, como já acontecia nos filmes com Predator. Julgo que o problema deriva da tendência recente de apresentar o xenomorfo em pé, que acaba por lhe dar um ar humanoide, perdendo o lado ofensivo da posição tradicional de agachado.

Para fechar não deixa de ser interessante analisar algumas das análises que foram feitas ao jogo, e verificar como as impressões se dividem, entre aqueles que não gostaram do excesso de emoção afunilada, e aqueles que adoraram exatamente por toda essa emoção. Pode-se defender que é um jogo de "stealth", ou que é um "survival horror", é verdade, ainda assim, e compreendendo ambos os géneros aqui em conjunto, sinto que mais se poderia ter feito para agradar a um público mais diversificado. Como está, serve apenas a quem adora sentir fortes batimentos cardíacos e jorros de adrenalina, e eu já não pertenço a essa franja da audiência.

julho 18, 2015

“Morte em Veneza” (1912)

Adoro Thomas Mann, mas esta obra, que vinha sobejamente bem recomendada, apesar de muito interessante, não me tocou. “Morte em Veneza” (1912) é um pequeno conto escrito por Mann, exactamente a meio caminho entre o seu primeiro livro “Buddenbrooks” (1901) e a sua obra-prima “Montanha Mágica” (1924). Deste modo podemos encontrar uma escrita notável, mas ainda assim longe do que nos viria a oferecer mais tarde.


Mann parece ter querido fazer desta história um momento de pausa e reflexão sobre o seu trabalho artístico, enquanto escritor, daí que se tenha dedicado a dissecar um episódio passado consigo próprio numa visita a Veneza (mais tarde confirmado pela própria esposa). Para o fazer vai chamar à discussão a mitologia grega, e assim tentar desconstruir os seus desejos, as suas obsessões. Desta discussão emergem momentos imensamente belos, nomeadamente na discussão do belo, mas que vão sendo entrecortados com momentos de menor interesse, sendo que o tamanho da obra acaba por não permitir o aprofundamento e adensamento que seria de esperar deste tema.

Não podemos deixar de assumir a data em que foi escrito, ainda assim o que mais me incomodou foi o tratamento dado por Mann à homosexualidade, se assumirmos a interpretação da cidade de Veneza como metáfora do jovem belo. Assim, temos constantes descrições do mau cheiro das águas da cidade, que apesar de verdadeiras são no final elevadas à condição de epidemia e mortais, dando conta de um conflito, provavelmente sentido interiormente por Mann. Ou seja, como que para afagar dentro de si o desejo, Mann opta por enlamear a relação, opondo a atração pelo belo à aversão pelo mesmo sexo, rotulando a potencial relação como doentia, e com um único fim expectável, a morte.

julho 15, 2015

"O Monte dos Vendavais" (1847)

Mais um clássico, e mais um título que me acompanhava há décadas. Vi vários filmes, não todos (William Wyler, 1939; Robert Fuest, 1970; Jacques Rivette, 1985; Peter Kosminsky, 1992; Andrea Arnold, 2011), mas nunca tinha tentado ler o livro. Se por um lado as imagens que guardava do cinema eram de um monte entre brumas, roupas escuras e rasgadas cobrindo caras sisudas, por outro o imaginário não visual, dizia-me tratar-se de uma mera história de amor, tal Romeu e Julieta. Apesar de todos estes elementos de fundo, posso dizer que estava totalmente impreparado para a aspereza e dureza do que encontrei nas linhas escritas por Emily Brontë.

Título original: "Wuthering Heights"

Tendo em conta a importância adquirida pela obra ao longo de mais de 150 anos, não quis limitar-me a despejar alguns argumentos sobre o que senti ao ler, mas quis também perceber o que moveu tantos antes de mim a apaixonarem-se por esta, críticos e leitores. Queria comparar impressões, sentires, perspectivas. Queria também compreender um pouco sobre o lado histórico-estético, embora não me tenha debruçado muito sobre tal, pois implicaria um maior investimento de tempo que não tenho de momento.

Assim começaria por dizer que continuo indeciso sobre a minha experiência geral da obra. Não entre ser boa ou má, mas entre ser muito boa ou excelente. A razão desta indecisão diz, por um lado, respeito ao conteúdo, ao tratamento dado ao universo criado pela autora, por outro ao meu desconhecimento do quão revolucionária foi a forma dada ao romance na altura em que saiu. Ou seja, a brutalidade, que serve o tom gótico, não me agrada, é-me distante, reconheço contudo que o lado formal da escrita e composição é forte o suficiente para menosprezar esse meu gosto pessoal. Mas também tenho de reconhecer que este é um posicionamento mais racional do que emocional, e por isso sinto ainda alguma indecisão.

Decepcionei-me com a leitura das críticas que saíram aquando da publicação da obra, em 1847, porque limitadas em termos de análise, quase exclusivamente centradas sobre os aspectos da história, louvando a inovação apenas pela imaginação do lado negro do romance. É verdade que é diferente, e foi inovadora, se a colocarmos lado a lado com a obra de Jane Austen (1775 – 1817), é vertiginoso aquilo que as separa. Temos aqui um imaginário completamente novo, um misto muito forte entre romantismo e realismo, com fortes traços de fantástico, mas que assume toda uma caracterização psicológica, com vários níveis de significado, que a coloca também muito distante de "Frankenstein" (1831) de Mary Shelley. Em Brontë o feio e o negro do ser humano é muito forte, tão forte que chega a tornar-se belo para muitos, embora eu não tenha conseguido chegar a tanto.

Esta minha incapacidade para ver o belo no negro, acaba por dar conta também do modo como nunca aceitei esta história como um romance de amor limite, na lógica de um Romeu e Julieta, como muitos a veem. A minha leitura de “O Monte dos Vendavais” leva-me mais até à discussão da essência do ser humano, da sua condição e dos efeitos do tempo sobre essa condição. O amor até pode ser aqui motor, mas é em certa medida apenas um meio para atingir o que se pretende. Ao contrário de algumas análises que dão conta de uma ausência de moral no livro, cingindo-se a demonstrar a força do amor, eu vejo aqui a moral, em todo seu esplendor, na força da expressão humana e na sua capacidade de redenção. Aliás, considero este aspecto tão saliente, ao ponto de acreditar que Brontë desenhou toda a obra para aí chegar, contribuindo assim para uma inovação radical da estética do romance. (Dou conta disso no próximo parágrafo, mas terei de abrir um pouco o jogo sobre a história, fica o aviso para quem ainda não leu.)

A história começa com três crianças, e termina com três adultos, filhos dessas crianças. Uma das crianças tendo sido vítima de discriminação e agressão psicológica por parte das outras duas, acaba por desaparecer, para ressurgir mais tarde recomposta, mas desejosa de vingança, não apenas sobre os seus agressores, mas também sobre os sucessores destes. Tendo dominado por completo os seus agressores, e famílias, o vingador cai em si dando-se conta do vazio de toda a sua acção. A história termina tal como começou, ainda que os sobreviventes sejam os filhos, mas o círculo completa-se, como se no monte, o Monte dos Vendavais, o vento, ou melhor o tempo, tudo tivesse levado.

Ou seja, o mais genial da obra de Brontë acaba por se dar no modo como ela interconecta a história e o discurso, em que o linear dá lugar ao circular, explicando o sentimento que alguns sentiram com a falta de fechamento moral, pela ausência de um fim de linha de eventos. Brontë não se limita a contar uma história, cria, manipulando toda a estrutura conhecida do romance, moldando-a em favor dos seus objectivos expressivos.

Do meu lado, chegado ao final da discussão vertida neste texto, vejo as minhas dúvidas erradicadas, e assumo a minha admiração por Emily Brontë.

julho 07, 2015

"Video Games Around the World" (2015)

Recebi por estes dias a minha cópia do livro "Video Games Around the World" (MIT Press), enquanto autor de um capítulo, do livro editado pelo eminente Mark J.P. Wolf, um dos verdadeiros pioneiros dos estudos académicos dos videojogos. Este livro é inteiramente dedicado à história dos videojogos em vários países, contando com 40 ensaios, que abrangem todos os continentes, incluindo a Antártida. São 656 páginas que nos dão uma perspectiva global, sobre o modo como os videojogos surgiram e marcaram uma nova fase da cultura humana.

"Video Games Around the World" (2015) MIT Press

O capítulo que fiz para este livro não traz nada de novo a quem já leu "Videojogos em Portugal – História, Tecnologia e Arte" (2013), uma vez que o capítulo foi enviado para Mark J.P. Wolf em 2012, quando tinha acabado de fechar o livro. Nesse sentido, acaba sendo um ensaio de síntese de todo o livro, realizado com a gentil autorização da FCA Editora.

Contudo, isso não invalida que o resto do livro não seja imensamente interessante, contando com capítulos escritos por autores de renome como Frans Mayra (Finlândia), Lynn Alves (Brasil), Gonzalo Frasca (Uruguay), Mark J.P. Wolf (EUA), Joost Raessens (Holanda), Souvik Mukherjee (India), Michael Libe (Alemanha), Alexis Blanchet (França), Alexander Federov (Russia), e ainda um prefácio de Toru Iwatani.

julho 05, 2015

"To Kill a Mockingbird" (1960)

Em português, “Mataram a Cotovia”, um clássico da literatura escrito em 1960, por Harper Lee, colega de infância de Truman Capote, sendo este o seu único livro publicado até à data. Espera-se este mês, ao fim de 55 anos, o seu segundo romance.

"To Kill a Mockingbird" (1960) Harper Lee

Todo o clássico encerra mais do que aquilo que nos é dado a sorver à sua superfície, seja na história que nos conta, seja no modo como usa o texto para nos contar, embora o clássico, para o ser, precise de se distinguir em toda a sua plenitude, e este é um desses clássicos.

Começando pela ideia que Harper Lee desejava expressar, a história criada para a fazer passar. O livro é pequeno, mas é o suficiente para entrançar e tratar múltiplos temas, não apenas complexos, como imensamente pesados, tais como o racismo, o incesto, a violação e o alcoolismo por um lado, e no seu contra-peso, a inocência e a dignidade. Todos estes temas são tratados de forma imensamente subtil, por vezes quase nos deixando na dúvida, se ela está mesmo a dizer, o que está a dizer. Tudo assuntos que toda a criança precisa de esgrimir consigo própria, e que qualquer adulto tem dificuldade em abordar e tratar, e também porque não basta falar, é preciso exemplificar, e é preciso ir trabalhando no tempo. Ter um livro que o faz desta forma, tão subtil mas ao mesmo tempo tão directa, numa linguagem das próprias crianças e por meio de uma história que as envolve, conseguindo assim desenvolver o interesse na compreensão dos porquês, é algo que só a arte pode oferecer, e por isso mesmo não admira que a obra seja de leitura obrigatória nas escolas anglo-saxónicas há décadas. Sinto que nos falta, em português, algo a este nível, não porque não se possa ler esta obra por cá, mas para além de distar no tempo, dista também geograficamente, decorrendo num lugar pitoresco do sul dos EUA, envolvendo toda uma cultura muito particular.

Sobre a forma, ou o modo como Lee conta a sua história, podemos começar por dizer desde logo que os vários episódios do seu relato, apesar de se apartarem no tempo e espaço, estão tão bem cozidos que em momento algum sentimos a transição entres eles. Lee constrói uma malha de eventos tão clara e credível, com personagens tão sólidos e empáticos, que nos vão atraindo para junto de si, fazendo com que cada evento não seja um momento, mas antes façam parte de um fluxo de realidade, para o qual fomos totalmente transportámos. Claro que tudo isto é imensamente suportado pela característica mais saliente da obra, a voz do narrador, que é servida sempre na primeira-pessoa, por uma mesma pessoa, mas em idades distintas, desde menina (6 anos) até à idade adulta. A menina vivendo o presente que se relata, fala com a linguagem da sua idade, e assume os olhos da inocência, a adulta, que recorda o passado, perscruta as diferentes camadas de significado de cada um desses eventos, desvelando-lhes as múltiplas e complexas intenções humanas. E é deste choque entre as diferentes capacidades de interpretação, fruto das diferentes idades, que emergem os momentos mais belos do livro, tornando a obra num clássico obrigatório.

julho 04, 2015

Contemplando o nosso "Coda"

Coda” (2014) retrata em poucos minutos o fim, seguindo a origem semântica do meio musical, o filme apresenta os últimos acontecimentos seguidos de um recapitular de algumas composições, neste caso da vida, ou seja de memórias. É um tema muito visto, mas que nos continua a impressionar, sempre que bem feito, e o realizador Alan Holly não nos decepciona. No final dos 9 minutos ficamos ali especados, a olhar para o ecrã a negro, contemplando o interior de nós mesmos.




Quando os livros ou filmes (raramente acontece, ainda, com os videojogos) me tocam particularmente o íntimo, fico com poucas palavras para me expressar, estas parecem não querer sair, a mente vagueia interiormente, delicia-se no re-experienciar do objecto, mas parece não encontrar termos ou ideias capazes de espelhar tudo aquilo que o artefacto provoca. Precisaria de deixar assentar as ideias, e talvez mais tarde, depois de reposto o equilíbrio interno, as palavras voltassem a brotar. No entanto, o imenso prazer sentido impele-me a partilhar a experiência com alguma urgência, acabando por não conseguir esperar por esse momento.

Assim, e para evitar apenas colar aqui o filme, sem mais, deixo as palavras do próprio Alan Holly, que trabalha a alguns anos na animação irlandesa, tendo estado envolvido num dos maiores sucessos recentes da animação irlandesa, “The Secret of Kells” (2009), e que se descreve a si próprio da seguinte forma:
I have been working in the Irish animation industry for just about ten years now, in different jobs, animator, writer, background artist, editor and then directing my own projects when possible. I think that growing up I always had a vague notion of wanting to make films. I would always visualise the things I read as animation but I don’t really remember being aware of the idea that writing and directing were ways in which you might achieve that. I never wrote stories growing up, I entered into animation because I liked to drawn and loved art. It was really only in college, while studying animation, when I had to first make a short film, that I realised that writing and directing were what I really wanted to do.” [fonte]
Entretanto e sobre o processo criativo por detrás de "Coda", Alan Holly diz-nos:
The film grew out a lot of very rough sketches. I tend to work pretty rough during the ideas stage, just getting the ideas down as quick as possible in my notebook before I miss them. But I had a pretty good idea of how I wanted different aspects of the film to look. It was very important to me with this film that the story be told in a very visual way, the previous short films I had made had been quite sparse so I wanted this film to be richer in mood as well as visual content. The story dictated it too. Colour is definitely very important for me for mood and for trying to communicate certain feelings. Colour effects us in a very subtle way and then it is also just a great pleasure, something to be enjoyed. The decision to leave out certain detail was in part about placing our focus on the main character but also about leaving those background characters as blank slates, particularly in the second half when they are the memories of events and people. In the first half it is also just to do with the way things feel sometimes and a lot of the time you just don’t fully take in who is around you and this is one of those situations.” [fonte]
Achei particularmente interessante, uma passagem de uma entrevista, na qual Alan Holly nos fala do seu gosto pelos anti-heróis:
I think that something that both myself and Adrien are trying to do is to tell quiet stories, as opposed to more dramatic ones where perhaps we follow the hero. The main characters we are interested in are not heroes, they are just normal people, with normal problems, despite whether they are being portrayed in a more exaggerated or stylised way. I think that most people feel pretty powerless in a lot of aspects of their lives and this is something that people struggle with. People are full of surprises too and you meet a lot of interesting people in your life. Animation provides a nice way of expressing eccentricity and character.” [fonte]
"Coda" ganhou uma enorme quantidade de prémios, entre os quais o Prémio Especial do Júri do Cinanima 2014, e a Melhor Animação no SXSW 2014. Toda a animação foi criada na plataforma TVPaint.

"Coda" (2014) de Alan Holly

julho 02, 2015

Os genéricos de "True Detective"

A Elastik voltou a surpreender com mais um genérico, para a segunda temporada de "True Detective", o que é um feito, já que depois de nos ter surpreendido com o genérico da primeira temporada (rever abaixo), não era fácil ultrapassarem-se a si próprios, mas conseguiram.




Ambos os trabalhos funcionam sobre uma base de mescla entre o recorte fotográfico e a ilustração. No primeiro, a mescla funcionava mais por dissolving e blurring, neste entra-se num registo mais rugoso e texturado, trabalhado numa mescla muito limpa e delineada. Aliás, podemos dizer que se nota aqui alguma influência do design de Carson, ou numa referência mais próxima, Kyle Cooper, mas que se diferencia pelo choque entre os aspectos, fragmentado e limpo. Por outro lado, se o primeiro manifestava grande sobriedade através de uma palete muito pouco saturada, neste a cor torna-se dominante, imprimindo enorme sumptuosidade.

Interessante como as séries de televisão se transformaram, sendo capazes de ombrear, em termos técnicos e estéticos, com o melhor que o cinema nos tem dado, e como continuam a melhorar. Ainda há pouco tempo tinha aqui dado conta de um plano sequência, realizado exatamente para esta série, que não ficava atrás, em nada, daquilo que o cinema tem feito. Há muito que falamos da idade do ouro das séries de televisão, mas inicialmente os seus atributos limitaram-se mais ao storytelling, foi apenas nos anos mais recentes que a estética audiovisual se começou a refinar, e como podemos ver, está cada vez melhor.

True Detective, Season 2, Main Titles (2015)


True Detective, Season 1, Main Titles (2014)

julho 01, 2015

“Middle-earth: Shadow of Mordor” (2014)

Na leitura de várias críticas ao jogo deu para perceber que existia aqui algo novo, resolvi então jogar para tentar descortinar de que era feita a inovação que tinha convencido a crítica. Digo isto porque à partida não seria um jogo que eu jogasse, desde logo porque, e apesar de gostar, não sou fã da saga “Lord of the Rings”; e depois porque jogos de extrema violência, em que se matam orcs aos milhares, não fazem propriamente parte do meu menu predilecto. Todavia, fui positivamente surpreendido, retirando da experiência uma enorme dose de satisfação, tanto lúdica como académica.





Na sua componente lúdica, “Shadow of Mordor” é extremamente gratificante, desde as primeiras horas, até ao final (cerca de 30 horas, com algumas missões secundárias), o sistema de jogo dá-se totalmente ao jogador, construindo um balanceamento da progressão muito equilibrado, com excelentes momentos de puro “flow”, raramente colocando o jogador num estado de incapacidade de reação, ou facilitando em excesso o desafio. É verdade que sentimos por vezes que o jogo se dá muito facilmente, mas isso depende muito do modo como jogamos, se levamos a estratégia a sério, o sistema torna-se "domesticável", mas também o podemos ignorar e assumir um perfil "selvagem", de força-bruta. Ambas permitem gratificação, por um lado o jogo gratifica a inteligência da estratégia, por outro a resiliência e persistência.

A abordagem pela estratégia é desenhada por meio de um sistema clássico RPG (de pontos - experiência e dinheiro - e runas), que nos permite ir modelando as competências do nosso personagem, que implica escolhas estratégicas sobre o modo de jogo que pretendemos desenvolver. É verdade que senti alguma falta de "looting", dá prazer as recompensas que se conseguem sempre que se chega a um lugar novo ou que se elimina um personagem difícil, e em parte aqui temos as runas dos capitães, mas a gestão racional que podemos fazer de todos os elementos acaba por ser ela própria bastante mais gratificante, interioriza-se o modelo que acaba funcionando como motivador para nos agarrarmos ao nosso personagem.

Interface do sistema Nemesis

No campo académico, temos o ex-libris do jogo, o sistema Nemesis, que acaba por ter uma enorme relevância na componente narrativa. O Nemesis é um sistema de hierarquização da Inteligência Artificial das forças inimigas, como tal afecta directamente a nossa relação com os agentes do jogo. Ou seja, sempre que morro a hierarquia de comando dos orcs é re-organizada pelo sistema, e quando reencontro personagens com os quais me cruzei anteriormente, eles lembram-se perfeitamente de mim, dirigindo-se a mim com humor e arrogância, e mais do que isso, com fortes traços de personalidade que garantem um sentido dramático ao ambiente de jogo. O sistema que não parece à primeira vista punitivo, em termos de morte, acaba sendo-o já que de cada vez que morremos, por motivo de alterações hierárquicas de comando, vários capitães sobem de escalão, o que quer dizer que na vez seguinte que os encontramos, eles estão ainda mais fortes. Isto acaba por gerar tensão e uma quase necessidade de eliminar cada capitão logo na primeira vez que engajamos combate com ele.

O Nemesis não controla apenas o ranking de força da cadeia de comando, controla também o relacionamento entre os diferentes personagens dessa cadeia. Assim os mais graduados são protegidos por aqueles que estão imediatamente abaixo destes, na ânsia por subirem eles também de posto. Deste modo quando lutamos contra alguns deles, podem existir vários outros que nos atacam por estarem a defender o outro. Estes personagens são assim imbuídos pelo sistema de volição para proteger e eliminar, já que conseguindo-o, subirão na cadeia de comando. Mas mais interessante ainda, é que podemos promover a traição interna na cadeia de comando, e virar o sistema contra si mesmo.

Tudo isto funciona muito bem, mas de modo isolado não seria mais do que um “gimmick”, assim o que “Shadow of Mordor” faz muito bem, é pegar no brilhante Nemesis e aplicá-lo diretamente sobre um mundo em espaço aberto, do tipo "Assassin’s Creed" (AC), gerando todo um mundo-história (ambiente e personagens) completamente abertos e dinâmicos. Já não se trata de passearmos pelo jogo à procura de coisas para fazer, lutas ou sidequests para ganhar experiência/pontos, como fazemos em AC ou GTA, mas agora quando o fazemos, os personagens deste mundo reconhecem-nos, e vêm atrás de nós para se vingarem, se for caso disso. Por outro lado, como o sistema estabelece várias interdependências entre os inimigos, podemos dar por nós a assistir a acções e lutas que emergem de modo procedural, a partir do sistema, que está em constante evolução num espaço aberto. Por exemplo, pode acontecer com um inimigo que temos de eliminar, que por estar preocupado em defender um superior seu, acaba por ser eliminado por um monstro do universo do jogo (Graugs ou Caragors), facilitando-nos o trabalho, mas ao mesmo tempo demonstrando toda a capacidade autononómica deste mundo-história.

Estamos perante um claro avanço no modo como as histórias se combinam com o jogo, no sentido em que não temos apenas um espaço aberto, mas também um conjunto de personagens abertos, o que acaba por providenciar ao jogador todo um mundo-história, recheado de escolha e autonomia. Claro que em termos narrativos isto não seria suficiente para manter o nosso foco, o que obriga à coexistência, tal como acontece em AC ou GTA, de uma linha narrativa linear de missões chave, sobre a qual não temos qualquer participação. O que me leva a concluir que à medida que vamos avançando, no desenvolvimento da linguagem dos videojogos, vamos aperfeiçoando o cruzamento da narrativa e jogo, contudo nota-se que por mais que façamos, continuamos a querer manter por um lado, a componente de jogo bem vincada, e por outro uma narrativa coesa - com princípio meio e fim - para dar um sentido a todas as nossas acções. Julgo que "Shadow of Mordor” faz essa mescla muito bem, mantendo tudo bem evidenciado (jogo, narrativa, e jogo-história, ) mas bem coeso, apontando caminhos a seguir para o uso do proceduralismo na narrativa.

junho 25, 2015

"Monsieur Proust" (1973)

Depois de ter lido “Em Busca do Tempo Perdido” fui em busca de algo mais, de saber quem era realmente Proust, o quanto se escondia dele por detrás da figura do seu narrador. Existem dezenas de livros sobre Proust, e de análise da sua obra. Muito se escreveu e continua a escrever, desde análises da pintura em Proust, à literatura, filosofia, amores, autoajuda, etc. De todos, os que me parecem reunir maior consenso são as duas biografias, ambas com mais de mil páginas cada, uma do britânico William Carter, e outra do francês Jean-Yves Tadie. A de Tadie parece ser mesmo a mais recomendada, contudo depois de perceber que Tadie tinha seguido religiosamente um outro pequeno livro chamado “Monsieur Proust”, decidi ler primeiro este. “Monsieur Proust” foi escrito por Céleste Albaret, a senhora que tratou de Proust, e viveu com ele, durante os seus últimos 10 anos de vida.


Li o livro em francês, já que não está editado em Portugal, mas senti alguma resistência inicialmente, porque não tinha lido a "Busca" em francês, o que me deixava uma certa amargura. Contudo, não se pode comparar. Este é um livro com uma escrita muito simples, escrito pela própria Céleste, e organizado por Georges Belmont. Ler a "Busca" em francês seria talvez aconselhável, e talvez o faça ainda um dia, mas para primeira vez, deve ser lido na língua que melhor se domina, de outra forma abre-se caminho a deixar o livro a meio.

O livro de Céleste é uma verdadeira jóia biográfica, um relato na primeira-pessoa de alguém que viveu todos os dias, dos últimos 10 anos de vida do escritor, junto do mesmo. Céleste foi trabalhar e viver para casa de Proust, pouco depois de ter sido lançado o primeiro livro, “O Lado de Swann”, em 1913, tendo acompanhado Proust durante todo o tempo em que escreveu os restantes 6 livros. Proust não via Céleste como um seu par, ela não tinha muita formação nem muito interesse em literatura, tendo começado por a encarar primeiro como criada, e depois, simultaneamente, como sua mãe e filha. Deste modo a relação que se estabelece entre ambos foi muito forte, o que naturalmente acaba por criar algum viés na análise dos factos. Céleste é incapaz de dizer algo de mal sobre Proust, tudo o que ele fazia era quase sagrado, e  percebemos várias vezes como ela embeleza o real das suas recordações. Assim esta abordagem, carregada de respeito e sentimento, acaba contribuindo ainda mais, para elevação da imagem do autor semi-divino, que muitas vezes sentimos ao ler a obra de Proust.

Devo dizer que ler “Monsieur Proust” é uma experiência sui generis, porque se entrelaça profundamente com a leitura da “Busca”, do mundo experienciado no romance, e que é aqui suportado por relatos de uma alegada verdade. Este livro serve quase como testamento ao romance, no sentido em que nos dá algumas provas da verdade que Proust afirmava estar à procura no seu livro. Céleste vai descrevendo o que sentia, e relata muitos diálogos tidos com Proust, que nos fazem viajar no tempo, e por vezes quase nos levam a sentir que estamos ali, no apartamento de Proust na Paris de 1920, a vê-lo e a ouvi-lo. O carinho de Celeste para com Proust é aqui fundamental para que o relato surta todo este efeito, a forma como ela nos apresenta Proust, acaba aproximando-se do modo como Proust nos vai apresentando o seu narrador no romance. No final, depois de terminar ambas as leituras, e apesar de aceitar que o mundo do romance é imaginário, ele tem tanto de Proust, que só podemos aceitar que o que Proust almejava para a sua arte, foi inteiramente conseguido.

Fecho com algumas das citações que mais me marcaram na leitura do livro, embora não cite nada da fase final do livro, dos últimos dias e horas de vida do escritor, porque foram uma leitura extremamente intensa, além de acreditar só fazer sentido ser lida, por quem já leu a “Busca”.

Cartas e postais de Proust para Céleste (na foto à direita).



As memórias, sempre as memórias.
Celeste: “Peut-être que, s’il a lutté ainsi contre le temps pour terminer au plus vite, c’était qu’il pressentait la fin de tant de choses qu’il avait aimées et qui n’étaient déjà plus que des ombres de souvenir, alors que, lui-même, il était pressé par la mort.”

Celeste:"Et je pense que, plutôt que faute d’avoir faim, c’était surtout, non seulement qu’il craignait, mais qu’il était sûr d’être déçu. Il aimait mieux le manger en souvenir."

Proust: “Les fleurs représentent l’amitié et l’amour qu’on porte aux vivants ; les morts n’en ont que faire. Fleurir les tombes, c’est un usage et je l’observe ; mais croyez-moi, chère Céleste, je n’ai pas la dévotion des cimetières. Ce n’est pas là que je trouve mes chers disparus. Ma dévotion est dans le souvenir.”

Proust: “Parce que, Céleste, les paradis perdus, il n’y a qu’en soi qu’on les retrouve.”
As influências assumidas por si
Celeste: “C’était en 1900 ou 1901, durant les deux ou trois années pendant lesquelles, me disait-il, il avait fait trois des découvertes qui avaient le plus marqué son esprit : l’écrivain anglais Ruskin, les cathédrales — surtout celle d’Amiens avec son ange — et Venise et sa peinture.”
A origem do método de trabalho
Proust: “Mais, Céleste, ce n’est pas un don. C’est d’abord une tournure d’esprit qui se cultive et qui devient une habitude à la longue. Comme il y avait beaucoup d’activités qui m’étaient interdites, je restais plus souvent immobile que les autres, au milieu de la vie et, ne fût-ce que pour me distraire, je les regardais s’agiter, souvent avec envie, ce qui faisait que je les regardais encore mieux. J’ai commencé tout enfant. Du jour où j’ai eu mon asthme, aussi bien aux Champs-Elysées qu’au pré Catelan d’Illiers, dans la maison de mon oncle Amiot, je ne courais pas, je me promenais. A Illiers, je pouvais rester des heures à regarder couler les eaux du Loir, puis à lire ou à écrire dans le petit pavillon avec toute la nature sous les yeux. Quand j’accompagnais mon oncle dans son tilbury, c’était la même chose ; je voyais le paysage se déployer et bouger, les clochers des villages tourner dans la plaine. La vie, les gens, c’est aussi une nature qui se déploie et qui passe ; mais, à force de regarder, d’observer, on finit par s’intéresser aux rapports et, comme les savants, des rapports, avec la réflexion, on en vient à découvrir des lois.”
O espelho emocional
Celeste: “A l’époque, je ne me rendais même pas compte de sa provocation ; je « marchais », comme on dit. C’est après sa mort seulement que j’ai compris. Et je ne m’avancerais pas jusqu’à ce genre je suis persuadée aujourd’hui que ce n’était pas tant mon jugement qu’il voulait. Plutôt ma réaction, je le répète. J’avais le tournant de l’esprit assez moqueur ; spontanément, je lui livrais le fond de mon âme et de mon cœur... pan ! — c’était cela qu’il voulait.”
O reconhecimento do privilégio que providenciou a sua obra
Proust: “Ils [os pais] m’ont gâté jusqu’au bout en me laissant une fortune, avec toute la liberté d’en jouir comme il me plaisait, sans plus avoir à demander rien à personne. Mais même cette liberté n’a jamais pu les remplacer pour moi. Et pourtant elle existe, Céleste, elle existe... Sans elle, je n’aurais jamais pu faire ce que je fais. Et Dieu sait cependant comme Maman pouvait s’ingénier de son vivant pour me la donner déjà !"
Apenas a obra importava, nada mais
“C’étaient toujours des petites montres tout à fait ordinaires — je les payais cinq francs d’alors, je m’en souviens. Il n’en voulait pas d’autres. — Comme cela, disait-il, si je les casse, elles sont bonnes à jeter sans remords. Une montre, pour la faire réparer, il en coûte plus cher que d’en acheter une neuve. (..) Cela faisait partie de sa conception pratique des choses, qui était très personnelle, il faut le reconnaître (..) - Et prenez-moi un modèle tout ce qu’il y a de plus ordinaire... cerclé d’acier, simplement.”
A percepção da qualidade do seu trabalho
Proust: “Voyez-vous, Céleste, je veux que, dans la littérature, mon œuvre représente une cathédrale. Voilà pourquoi ce n’est jamais fini. Même bâtie, il faut toujours l’orner d’une chose ou d’une autre, un vitrail, un chapiteau, une petite chapelle qu’on ouvre, avec sa petite statue dans un coin.”

Proust: “Et quand je serai mort, vous verrez ce que je vous dis : on me lira, oui, le monde entier me lira. Vous assisterez à l’évolution de mon œuvre aux yeux et dans l’esprit du public.”

Proust: “si, comme il est dit dans cet article, Stendhal a mis cent ans pour être connu, Marcel Proust, lui, mettra à peine cinquante ans.”