E ao sexto volume senti a força do romance irromper por entre todo aquele manto constituído por camadas e camadas de análise e auto-análise. Proust surpreende-nos, mas se me surpreendi com a reviravolta no enredo, mais ainda me surpreendi, por só agora me ter apercebido de um traço central em toda a escrita da ‘
Recherche’, a tentativa deliberada para evitar a emoção estética. Proust cita por duas vezes Descartes ao longo da obra, mas só aqui me dei conta do quão contaminado por ele estava Proust, buscando aqui claramente realizar um trabalho de análise da vida, cingindo-se apenas, e só (pelo menos assim o desejava ele), à razão.
Ou seja, seguindo a crença no dualismo cartesiano, Proust trabalha com enorme profundidade a descrição de cada ação, evento e novo facto, evitando por todos os meios contaminar as suas descrições com sentimento, acreditando que a razão é a base da consciência, do conhecimento. Isto tornou-se-me mais claro aqui, porque ao fim de todos estes volumes a reviravolta que acontece é forte, intensa, mas Proust apesar de dar conta dela, fá-lo sem se dar aos sentires do seu personagem que facilmente poderiam resvalar para uma emocionalidade excruciante. Toda a emocionalidade é analisada e descrita num detalhe tal, tornando-se em si explicação, desprovida de sensação. Claro que tudo isto é impossível, não é possível escrever de forma apenas racional, porque enquanto seres humanos, somos incapazes de racionalizar sem emoção (Damásio).
Deste modo o que acaba por acontecer em Proust, é que ele nos arrebata sim, mas pela forma brilhante como escreve e analisa, e menos, ou mesmo nada, pela forma como recria experiências emocionais. As experiências emocionais estão lá, mas ele não as recria para que nós as experiencemos, ele abre todo um acesso especial à experiência profundamente racional. Proust procurava assim a elevação discursiva, ele sabia que era fácil agarrar o leitor pela emocionalidade, pela força do enredo, pelas suas reviravoltas amorosas, mas não era isso que o movia, ele estava mais interessado em dar a conhecer o mundo nas suas essências constituintes, porque muito provavelmente acreditava estar aí o cerne da consciência, da nossa capacidade para apreender o mundo.
Entrando na questão da consciência, neste volume Proust trabalha uma nova abordagem desta, defendendo a existência de diversos 'Eu's, consoante o momento, a memória, ou a resposta necessária à realidade. Fez-me lembrar os “subselves” do recente livro “
Rational Animal” de Kenrick e Griskevicius, que defendem, tal como Proust aqui defende, que somos várias pessoas diferentes, e assumimos identidades distintas em função das necessidades do real circundante. A este mesmo ponto vem agora ligar-se um outro conceito muito importante para Proust, o “hábito”, como o fundamento social que suporta, tal concha protectora, cada um dos nossos Eus. Pois em função de cada necessidade social, automaticamente reportamos ao hábito, e desse ao Eu que necessitamos para reagir.
“Assim decorria na nossa sala de jantar, à luz do candeeiro que tanto as estimula, uma daquelas conversas a que a sabedoria, não a das nações, mas a das famílias, apoderando-se de um acontecimento qualquer - morte, noivado, herança, ruína - e colocando-o sob a lente de aumentar da memória, confere todo o seu relevo, um relevo que dissocia, recua e situa em perspectiva em diversos pontos do espaço do tempo aquilo que, para os que não viveram, parece amalgamado numa mesma superfície: os nomes dos falecidos, os sucessivos endereços, as origens da fortuna e as suas alterações, as mutações de propriedade. Esta sabedoria é inspirada pela Musa que convém ignorar durante tanto tempo quanto possível se quisermos conservar alguma frescura de impressões (..) a Musa que recolheu tudo o que as musas mais elevadas da Filosofia e da Arte rejeitaram, tudo o que não está assente em verdade, tudo que é apenas contigente mas igualmente revela outras leis: a História!” p. 264
Este é o volume mais pequeno, todos os outros aquando do lançamento foram editados em 2 ou 3 volumes (15), este foi o único que foi lançado num único apenas. Tem a particularidade, tal como o anterior, de ter saído depois da morte de Proust, e não ter tido a sua revisão final, o que por vezes se nota, embora se sinta mais no volume anterior. Como livro, a primeira e a última parte são novamente as mais intensas, embora pela primeira vez Proust não deixe um gancho final. Não sinto que faça falta, estamos no penúltimo volume, e o texto que encerra o livro, está claramente a apontar para o encerramento da narrativa, de modo que a ânsia por passar ao volume seguinte é mais forte que nunca, queremos saber o que ainda nos reserva um volume inteiro, uma vez que o climax parece ter já surgido aqui, e os Lados, de Guermantes e de Swann, foram completamente unidos.
[Marcel Proust, (1925), “Em Busca do Tempo Perdido - Volume VI - A Fugitiva”, Relógio D'Água, ISBN 9727088023, trad. Pedro Tamen, 2004, p. 288]
Ler também
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume I
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume II
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume III
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume IV
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume V
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VI
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VII