“The Storytelling Animal: How Stories Make Us Human” (2012) é um livro de Jonathan Gottschall que procura apresentar uma teorização do ato de contar histórias (
storytelling) a partir de uma abordagem evolucionária. Gottschall traça a partir da universalidade da presença das histórias na espécie humana, alguns factores que contribuíram, e continuam a contribuir, para a sua centralidade nas nossas vidas. Apesar de ser um bom livro, que traz algumas ideias interessantes e algumas deduções inovadoras, não deixa de apresentar alguns problemas que procurarei aqui discutir.
A minha maior objecção ao livro está na abordagem absolutista seguida por Gottschall na busca por uma única resposta à função primordial das histórias, questionando tudo aquilo que sabemos. Colocando em causa, muitas vezes sem qualquer razão para tal, apenas porque precisa de preparar o caminho para a resposta que tem em mente. Esta problemática acontece essencialmente porque Gottschall não delimita o conceito de história, cometendo um dos maiores erros que se pode cometer numa pretensa análise científica de um objecto/conceito, a ausência de delimitação do objecto. Gottschall trabalha assim ao longo de todo o livro, o conceito de história, como se ele pudesse ser sinónimo de: Ficção, Cognição, Teoria da Mente ou Simulação Mental. Deste modo, a encruzilhada a que chega é pior do que um enredo não-linear, com múltiplos finais.
Para agravar este problema, Gottschall trabalha toda a sua problemática a partir de um único modelo de histórias, o dos contos de fadas, seguido por Hollywood. A razão porque o faz, é porque segundo ele, as alterações a esse modelo de contar histórias, realizadas por Proust ou Joyce na Literatura, e posso acrescentar por exemplo Jarmusch no Cinema, interessará apenas aos “
English professors, no one much wants to read them”. Isto é de uma boçalidade, sem sentido. Uma incapacidade de compreender a evolução da formação do gosto. Sim, nascemos desenhados para nos questionar sem parar, sobre “o que vai acontecer a seguir”, a isso chamamos curiosidade. Mas ela é apenas rudimentar à nascença, à medida que crescemos, e consumimos histórias, a nossa percepção e cognição vai-se alterando, porque cada vez mais educada. O mais ridículo, é que a meio do livro Gotschall até define a importância das histórias, embora limite isso à ficção,
“The constant firing of our neurons in response to fictional [sic] stimuli strengthens and refines the neural pathways that lead to skillful navigation of life’s problems. From this point of view, we are attracted to fiction [sic] not because of an evolutionary glitch, but because fiction [sic] is, on the whole, good for us. This is because human life, especially social life, is intensely complicated and the stakes are high. Fiction [sic] allows our brains to practice reacting to the kinds of challenges that are, and always were, most crucial to our success as a species.” (p.124)
É isto que podemos encontrar em Brian Boyd em “
On the Origin of Stories: Evolution, Cognition, and Fiction” (2009), as histórias são o brincar virtual, um brincar em potência. Aquilo que nos prepara para a vida adulta, mas continua sempre connosco depois de deixarmos de brincar fisicamente. Mas Gottschall insatisfeito, quis ir mais longe, e determinar que as histórias, são mais do que isto, que
“Story enculturates the youth. It defines the people. It tells us what is laudable and what is contemptible. It subtly and constantly encourages us to be decent instead of decadent” (p.237)
Um argumento sem qualquer sustentação. A história não tem moral, a história é um modo de organização de informação. Se essa informação é moralmente correcta ou incorrecta, não é relevante para a estrutura. Se as histórias tivessem como função essencial humana a moralidade, não existiriam histórias sem moral, nem contra moral, e assim os filmes de Goebbels nunca teriam existido.
Estas ideias acabam por surgir a Gottschall a partir de outras ideias que vai defendendo ao longo do livro, como o facto das histórias servirem de pouco em termos biológicos já que apenas servem de entretenimento e evasão. Ou seja cometendo a gafe de equivaler as histórias a ficção, esquecendo que toda a não-ficção continua a servir-se do modelo de história. Algo que bem se vê no exemplo hipótese que estabelece entre a tribo prática e a tribo contadora de histórias. Ali só cabem as histórias de evasão, esquecendo toda a restante forma de passar conhecimento entre gerações. Esquecendo, que se a nossa espécie progrediu foi apenas porque foi capaz de transmitir e acumular conhecimento de geração para geração, e o modo como essa transmissão aconteceu foi totalmente fundamentado no contar de histórias.
Gottschall enreda-se numa circularidade, na busca pelo fundamento biológico, do qual acaba por não conseguir sair, dizendo a certo ponto mesmo:
“It suggests that the human mind was shaped for story, so that it could be shaped by story”. O que dizer disto? Pela teimosia absolutista de encontrar o fundamento funcional, acaba a defender o acaso evolutivo! O que incomoda, porque o brincar mental, com ideias organizadas em modo história, não é um acaso, foi aquilo que permitiu a esta tribo sobreviver num ambiente hostil, ser selecionada pela natureza, por causa da sua capacidade de verbalizar ideias, e passá-las de geração em geração.
As histórias não surgiram porque sim, nem porque as pessoas queriam um cinema privado na sua mente. Assim como as histórias não são tábuas de mandamentos, que dizem aos seres humanos como se devem comportar. As histórias são bocados de conhecimento, que cada um de nós possui sobre algo que experienciou, e que cada um de nós transmite, de forma mais ou menos abrilhantada, ao próximo, através de uma estrutura que convencionámos apelidar de história. Essa é no fundo a essência da arte, transmitir algo que conhecemos, recontado da realidade ou inventado por nós, ainda que sempre baseado em vestígios de realidade, ao próximo.
No último capítulo Gottschall procura responder ao futuro do storytelling, dizendo que este não desaparecerá, assim como nunca houve tanto como existe hoje, apesar de muitos reclamarem que as pessoas não leem, ou que a poesia desapareceu. O que dizer do sucesso de Harry Potter, ou Game of Thrones, ou Dan Brown, entre muitos outros! Ou das dezenas de séries de TV, dos milhares de novos filmes por ano! Na poesia, como diz Gottschall, o que dizer da canção, do rap! Concordo, só não concordo quando concretiza as suas ideias de futuro.
Gottschall agarra-se aos videojogos, em particular aos MMORPG, e às suas encarnações anteriores, Live Action RPG (LARP), para avançar para um suposto novo mundo de histórias no qual todos contamos a nossa própria história, encarnando personagens, improvisando, e fazendo-de-conta. Aqui mais uma vez mistura coisas distintas, o improviso, o fazer-de-conta, e a ação efetiva. Esquece que as histórias são diferentes do Brincar, e são diferentes do Jogar. Que não são algo menor, que todas estas componentes são necessárias e que até podemos cruzar as mesmas para criar abordagens mais completas e ricas. Mas isso não quer dizer que o futuro será apenas e só esta fusão, uma fusão que no fundo foi aquela que deu origem à tribo que contava histórias.
Para fechar, é um livro interessante, que se lê muito rapidamente, e permite ficar a conhecer alguns conceitos mais alargados sobre a ciência das histórias, mas deve ser lido com alguma parcimónia, já que no que toca a conceitos, existe aqui muita coisa colocada no mesmo prato da balança, que em termos científicos não é aceitável, e pode causar alguma confusão.