dezembro 27, 2013

Os melhores textos de 2013

Este ano resolvi fazer uma filtragem dos 15 textos mais vistos em função da sua relevância para mim, em termos de produção de pensamento. Ou seja, mantive a ordem dos mais vistos, mas eliminei os textos que me pareceram menos relevantes. A razão principal é que por vezes certos textos adquirem demasiada visibilidade, não pelo seu valor, mas pelas palavras-chave que os motores de busca “gostam” de indexar. No final podem encontrar também links para todos os criadores que entrevistei este ano aqui.


Deixo-vos estes textos de 2013 com votos de um excelente 2014.

1 - Indústrias criativas num mar de iliteracia, é possível?, Novembro 2013

2 - Porque é inovador, "The Last of Us"?, Setembro 2013

3 - "Eu tornava os jogos obrigatórios", Janeiro 2013

4 - Universidade e emprego, nas áreas criativas, Fevereiro 2013

5 - Criar o próprio emprego, sim ou não?, Junho 2013

6 - "Pensar, depressa e devagar", Maio 2013

7 - A exploração dos criativos digitais, Março, 2013

8 - Criatividade colaborativa contra o bullying, Março 2013

9 - Viés do storytelling contemporâneo, Janeiro 2013

10 - O lado negro da moral, Fevereiro 2013

11 - Do humanismo ao mercantilismo. Arte, desporto e universidades, Junho 2013

12 - Educação e criatividade, Maio 2013

13 - Educação é água, Maio 2013

14 - A felicidade segundo o budista Matthieu Ricard, Março 2013

15 - "Shadow of the Colossus", perfeição do balanceamento de emoções, Abril 2013


Entrevistados em 2013

Bruno Telésforo, artista VFX
Luís Belerique, artista 3d
Luís Oliveira Santos, realizador documentários
Mario Costa, realizador videoclips
Nuno Plati, ilustrador Marvel

dezembro 26, 2013

Além dos Múltiplos Finais

“Beyond: Two Souls” (2013) é um videojogo de David Cage e isso fica bem evidente pelo modo como a fusão entre história e jogo é trabalhada, nomeadamente pelo uso de longas cutscenes e múltiplos finais, assim como pelo uso de ambientes e personagens melodramáticos à lá Hollywood. No campo temático, a morte volta a estar presente, mas desta vez a reflexão é sobre o que está para além desta. Interrogações despoletadas pela perda de alguém muito próximo de Cage que não encontrando respostas na religião resolveu escrever um videojogo para verbalizar aquilo que sentia.



Cage pretendia que nos questionássemos sobre a morte, sobre o além, mas para o fazer optou por evocar o fantástico. A morte que era também um tema forte em "Heavy Rain" (2010), era vista mais como consequência, ou seja analisada a partir das emoções e sentimentos de quem fica ("o pai que perdeu o filho"). Aqui a morte é o motivo principal, não interessando tanto as suas consequência sobre os vivos, sendo visualizada através de um canal de acesso proporcionado pelo paranormal. Nesse sentido, quando comparado com "Heavy Rain" perde em capacidade de nos demover emocionalmente, já que se afasta do reduto da objetividade, evocando abstrações e premissas com as quais podemos não estar de acordo e assim falhar a ligação empática. Para agravar a abordagem por via do paranormal, o tratamento dado ao conceito de morte não é propriamente muito elaborado, já que as posições apresentadas são bastante simplistas, trabalhando ideias do senso comum sobre a morte e o chamado além.

Apesar do tratamento dado ao tema não estar dentro do meu comprimento de onda, o trabalho da equipa da Quantic Dream é soberbo no que toca ao desenvolvimento de toda a experiência de interação e storytelling. Cage passou a última a década a trabalhar esta mescla, e tem melhorado de jogo para jogo. Beyond apresenta nesse campo uma evolução significativa, porque simplificada, e muito mais próxima das ações narrativas que em qualquer jogo seu anterior. Deixámos de ter de cumprir repetições de cores no ecrã (uso da interface do jogo “Simon Says” em “Fahrenheit”, 2005), assim como deixámos de tentar imitar as ações visuais no analógico que tornavam a nossa ação complexa e mais centrada sobre si própria do que sobre o que decorria no espaço diegético (em “Heavy Rain", 2010).

Em Beyond, Cage conseguiu encontrar formas simples, como por exemplo através da câmara lenta consegue conduzir-nos a realizar ações sem qualquer suporte visual informativo no ecrã. Por outro lado, o fato de um dos personagens ter uma condição fantástica e fantasmagórica, com ausência de peso, ajudou a construir toda uma interface muito mais próxima das convenções de jogo, embora sempre com um tratamento muito “realista” conferido pelo constante tremer da câmara e alguma latência na resposta às nossas ações.

Posto tudo isto, interessa-me agora analisar em maior detalhe o tratamento realizado sobre o storytelling interactivo. Se nos jogos anteriores Cage se baseou muito nos múltiplos personagens fragmentando a perspectiva mas ampliando a abordagem da mesma, aqui deixou tudo isso para trás. Talvez Cage tenha receado adicionar confusão ao facto de já termos de controlar dois personagens durante quase todo o jogo (Jodie e o seu “amigo imaginário” Aiden), mas na verdade o que acaba por fazer é tornar muito mais forte a nossa ligação com  a personagem de Jodie, já que Aiden nunca é suficientemente caracterizado para ganhar autonomia face a Jodie, tirando o final do jogo.

Mas se no caso dos personagens jogáveis a opção assentou na focagem e concentração num único protagonista, fortalecendo a nossa ligação, já no caso do fechamento da narrativa, Cage optou por manter os tradicionais múltiplos finais. Muito sinceramente, por mais que procure compreender o que se pretende com o desenho de vários finais, não consigo atribuir-lhes lógica nem mais valia. Tenho cada vez mais a certeza de que estes apenas acontecem porque tecnologicamente é possível, e porque o público tem essa expectativa. De resto, nada nesta obsessão pelos múltiplos finais faz sentido. A começar pelo próprio David Cage quando diz,
“Play it once and then don’t replay it. You can if you want, but I think the best way to experience the game is really to make choices and then never know what would have happened if you’d made a different choice. Because life is like this, and Beyond is the life of Jodie Holmes.” [link]
Percebo e concordo, mas se é assim que quer que joguemos, porquê criar os múltiplos finais. Isto é um videojogo, e se é possível tecnologicamente criar múltiplos finais, assim como aceder a eles, não é expectável nem lógico, pedir às pessoas que experienciem apenas um final. A curiosidade é a alma do ser humano, é impossível jogar um jogo destes e não querer saber como acabaria a história se tivesse tomado outra decisão. Aliás basta refletir um mínimo sobre isto para perceber que é exatamente esta mesma curiosidade que faz com que as Sequelas e Prequelas tenham tanto sucesso. As pessoas querem saber, porque faz parte da lógica do storytelling. Enquanto contadores de histórias passamos todo o tempo a convencer as pessoas de que aqueles personagens são importantes, desenhamos formas de gerar empatia, e no final pedimos-lhe que esqueçam!? Cage diz ainda,
“For me, it’s more interesting to have players defining the life of Jodie – this is your version of the life of Jodie. And you can talk to other people and see their versions, and compare what you did, what you missed, what you saw, but never know what would have happened if… I think that’s the beauty of the thing.” [link]
Isto é um paradoxo. Pedem-me que construa a personagem, mas depois pedem-me que a limite, que a castre na sua amplitude. Se é minha, quero saber tudo o que ela pode ou poderia fazer. Julgo que é aqui que está o grande erro de toda esta abordagem aos múltiplos finais. É de uma ingenuidade descomunal acreditar que se pode dar um bombom a uma criança e depois se pode pedir de volta a meio. Não faz o menor sentido, porque a Jodie não é criada por mim, é uma criação de Cage, que eu quero conhecer, quero saber mais. Não quero ser eu a construí-la, a dar-lhe vida, eu quero apenas participar da sua vida, inteirar-me do que ela é capaz, ajudá-la, acompanhá-la, ser co-responsável pelas suas ações mas não quero ser eu quem decide por ela. A Jodie é uma pessoa, tem uma personalidade, tem uma identidade, a Jodie não sou eu. Apenas me identifico e empatizo com ela, sinto com ela e sinto por ela, mas não me sinto ela.

Neste sentido, a Jodie deve tomar as suas decisões, deve principalmente decidir como termina a sua história, e não eu ("Beyond" tem pelo menos 10 finais marcadamente distintos, e com pequenas variações pode ultrapassar os 20). Faz sentido eu decidir se o meu personagem morre ou vive no final de um videojogo? Eu quero viver uma história, não quero contar uma história.


Apesar das objecções e problemas levantados, "Beyond: Two Souls" é um videojogo com vários momentos inesquecíveis tanto no campo emocional como estético, e por isso é um dos meus videojogos de 2013.

dezembro 23, 2013

Se quer escrever, leia, leia muito...

“On Writing: A Memoir of the Craft” (2000) de Stephen King é um livro sobre a arte de escrever, escrito por um dos mais importantes contadores de histórias da atualidade. Não é o típico livro técnico sobre a arte, é mais uma espécie de diário de memórias, carregado de pequenas histórias, através das quais King vai dando corpo às suas ideias sobre a arte de escrever. Ao longo do livro ficamos a conhecer melhor Stephen King enquanto pessoa, e aprendemos bastante sobre os processos criativos que o ajudam a escrever. Para quem gosta de escrever, é de leitura obrigatória.
I'm a slow reader, but I usually get through seventy or eighty books a year, most fiction. I don't read in order to study the craft; I read because I like to read”.

O primeiro grande conselho de King, é sobre a leitura. King começa por dizer que devemos ler sempre, se temos tempos mortos ou estamos à espera de algo, devemos aproveitar o tempo. O facto do formato de livro ser altamente portátil torna-o num objecto fácil de consumir. Para além da leitura é preciso escrever muito, todos os dias, pelo menos mil palavras, entre ambas, dedicar 4 a 6 horas diárias. Em tom de brincadeira King diz que os únicos dias do ano em que não escreve, é no 4 de Julho, dia de Natal, e o seu aniversário. Como nos diz, “Amateurs sit and wait for inspiration, the rest of us just get up and go to work.”

Para King não existem atalhos, técnicas, modelos menos ainda truques, “you can learn only by doing”. E na verdade não podia estar mais de acordo com ele, porque isto é o que acontece em qualquer área criativa. Uma das passagens do livro deixou-me ali estacado, a pensar naquilo que eu próprio vou ouvindo de pessoas que querem criar, desde o 3d aos videojogos, passando pela escrita de livros. Impressiona como as pessoas se iludem, constroem cenários bizarros nas suas cabeças, e acreditam que algum tipo de comando divino criará através delas as obras mais maravilhosas deste mundo. 
“You have to read widely, constantly refining (and redefining) your own work as you do so. It’s hard for me to believe that people who read very little (or not at all in some cases) should presume to write and expect people to like what they have written, but I know it’s true. If I had a nickel for every person who ever told me he/she wanted to become a writer but “didn’t have time to read,” I could buy myself a pretty good steak dinner. Can I be blunt on this subject? If you don’t have the time to read, you don’t have the time (or the tools) to write. Simple as that.
Reading is the creative center of a writer’s life. I take a book with me everywhere I go, and find there are all sorts of opportunities to dip in … Reading at meals is considered rude in polite society, but if you expect to succeed as a writer, rudeness should be the second-to-least of your concerns. The least of all should be polite society and what it expects. If you intend to write as truthfully as you can, your days as a member of polite society are numbered anyway.” 
Interessante também ouvir King explicar o processo da escrita, e a sua capacidade de comunicação. O modo como ele ilustra a ideia comunicativa entre o autor e o receptor, num ato de telepatia, é brilhante, e porque no fundo, 
“Writing isn't about making money, getting famous, getting dates, getting laid, or making friends. In the end, it's about enriching the lives of those who will read your work, and enriching your own life, as well. It's about getting up, getting well, and getting over. Getting happy, okay? Getting happy.” 
O livro não chega às 300 páginas, lê-se muito rapidamente porque a escrita, sendo do próprio King, é extremamente fluída, as histórias que nos vai contando abrem-nos a avidez por mais e mais, não se consegue parar de ler.

dezembro 20, 2013

O que jogámos em 2013

Este ano decidi publicar a minha lista de melhores jogos de 2013 na Eurogamer Portugal. Por isso deixo aqui os links de todos os jogos que joguei, terminei e analisei, e ainda os que estou a jogar. De entre estes escolhi os melhores de 2013, e desse modo o Top 10 Virtual Illusion pode ser visto na Eurogamer.



Videojogos jogados em 2013
[x - insuficiente; xx - a desfrutar; xxx - bom; xxxx - muito bom; xxxxx - obra prima] 

xxxxx Brothers: A Tale of Two Sons (2013)
xxxxx The Last of Us (2013)
xxxxx Gone Home (2013)
xxxxx Papers, Please (2013)
xxxxx The Stanley Parable (2013) [terminado em 2014]
xxxxx Rayman Origins (2011)
xxxxx Red Dead Redemption (2010)
xxxxx Shadow of Colossus (2005)

xxxx Beyond: Two Souls (2013)
xxxx BioShock Infinite (2013)  [terminado em 2014]
xxxx Rayman Legends (2013) [terminado em 2014]
xxxx Rain (2013)
xxxx Luxuria Superbia (2013)
xxxx Proteus (2013)
xxxx Year Walk (2013)
xxxx Tomb Raider (2013)
xxxx Remember Me (2013)
xxxx The Plan (2013)
xxxx Type:Rider (2013)
xxxx The Novelist (2013) (análise brevemente)
xxxx Guacamelee! (2013)
xxxx The Room (2012)
xxxx Catherine (2011)
xxxx Portal 2 (2011)
xxxx Another World: 20th Anniversary (2011)

xxx The Cave (2013)
xxx Bounty Monkey (2013)
xxx Badland (2013)
xxx Disney Infinity (2013)
xxx Fangz (2013)
xxx Fetch (2013)
xxx Stealth Inc: A Clone in the Dark (2013)
xxx Hundreds (2013)
xxx Bad Piggies (2012)
xxx Trine 2 (2011)
xxx Child of Eden (2011)
xxx LittleBigPlanet 2 (2011)

xx The Activision Decathlon (2013)
xx Gravity Forge (2013)
xx Little Inferno (2012)
xx Spec Ops: The Line (2012)
xx The Adventures of Tintin: The Game (2011)


Ainda a jogar...
DEVICE 6 (2013)
Inspector Zé e Robot Palhaço... (2013)
Ridiculous Fishing (2013)


Melhores de 2000 a 2012
Melhores Videojogos 2011
Melhores Videojogos 2012
Melhores da Década 2000-2009

dezembro 18, 2013

Museu Smithsonian adquire videojogos, e chama-lhes "Media Arts"

Há exatamente um ano o MoMA adquiriu 14 videojogos para a sua colecção permanente. Em Agosto deste ano adquiriu mais sete do total de 40 que estão previstos ser adquiridos. Ontem ficámos a saber que o Smithsonian American Art Museum adquiriu dois videojogos para a sua colecção permanente.

Smithsonian American Art Museum 

Se no MoMA os videojogos foram adicionados à secção de Design, e muita tinta se fez correr sobre o facto de os videjogos estarem no MoMA como design e não como arte, o Smithsonian não teve dúvidas quanto à sua afirmação estética, colocando-os na secção de Media Arts. Assim Jenova Chen e Ed Fries passam a figurar ao lado de nomes como Bill Viola, Cory Arcangel, Chris Burden, John Baldessari, Nam June Paik entre muitos outros. O museu disse assim que,
"These acquisitions represent an ongoing commitment to the study and preservation of video games as an artistic medium. The museum is acquiring works that explore and articulate the unique boundaries of video games as an art form, and plans to acquire additional video games in the future, working with artists, developers, and programmers to represent this new creative practice." [link]
Os jogos adquiridos foram "Flower" (2007) de Jenova Chen e "Halo 2600" (2010) de Ed Fries, e as suas páginas no museu já podem ser visitadas clicando aqui nos títulos. Elizabeth Broun directora do Smithsonian American Art Museum disse ainda,
“The best video games are a great expression of art and culture in our democracy, I am excited that this new medium is now a permanent part of our collections alongside other forms of video, electronic and code-based art.”
Não posso deixar de louvar esta atitude do museu, e dar os parabéns pelas primeiras escolhas. Flower é um culminar de muitos anos de investimento em novas direcções no game desgin por parte de Jenova Chen. É verdade que Journey, que saiu em 2012, é mais completo dentro do canône de videojogo, mas Flower é mais singular porque mais experimental. Flower coloca-nos no lugar de algo intangível, o vento, e faz-nos sentir algo que até aqui só podíamos imaginar, e algo que só um medium interactivo pode dar a experienciar. Não é por acaso que a Sony lançou Flower novamente agora com a PS4, o seu lado de experienciação é verdadeiramente apaixonante. 

Flower (2007)

Halo 2600 (2010)

Por outro lado Halo 2600 é também um trabalho brilhante de game design no sentido em que se procura traduzir as complexidades mecânicas e estéticas de um blockbuster, Halo, lançado em 2001 na plataforma XBox para uma plataforma lançada em 1977, Atari 2600. Ou seja, Ed Fries dedicou-se a um trabalho de depuração da essência de Halo, para conseguir reproduzir numa plataforma, imensamente limitada, uma experiência o mais próxima possível do original. Estamos a falar de um trabalho artístico que segue as tendências pós-modernas de apropriação e remix. O que conta aqui não é a experiência sensorial nem de representação como em Flower que nos agarra emocionalmente, mas antes o que esta significa enquanto ideia e conceito e como nos transporta por meio da racionalidade.

dezembro 16, 2013

"Papers, Please", o jogo da culpa

"Papers, Please" (2013) tem sido amplamente referenciado como um jogo com forte carácter emocional, nomeadamente pela sua capacidade de gerar culpa no jogador. Se esse é um dos maiores atributos do jogo, o modo como nos torna conscientes da regulação das nossas vidas pelos sistemas de informação, e da transformação destas em verdadeiros jogos, não é um atributo menor.



"A Dystopian Document Thriller"

Ainda há dias discutia com colegas que a gamificação decorrida nas nossas vidas ao longo das últimas décadas, não era uma consequência dos videojogos como nos diz Brooker, em How Videogames Chnaged the World (2013), mas antes uma consequência dos usos que nós fazemos dos sistemas de informação, e da sua evolução em termos de cálculo e abrangência. Nos últimos anos informatizámos quase todas as nossas acções, e no entanto em vez das nossas vidas se terem tornado mais simples, calmas e relaxadas, aconteceu precisamente o contrário. Vivemos acossados pelos sistemas de informação que nos perseguem em busca de informação para se justificarem a si próprios enquanto sistemas relevantes para as nossas vidas. Já não são as máquinas que nos servem, passámos nós a servir as máquinas.

Ora em "Papers, Please" o que vemos é isso mesmo, o modo como toda uma abstração da realidade assente numa camada de informação regula a vida das pessoas. Todas aquelas pessoas que pretendem atravessar as fronteiras em busca de novas vidas, novos trabalhos, reencontros de amizades e famílias são controladas em função de listas e burocracias de um sistema atolado num enredo de regras. "Papers, Please" dá conta na perfeição do modo como todos estes sistemas de informação servem o controlo, mas mais do que isso, como tudo não passa de um grande jogo, com o detalhe de que aquilo que se joga aqui são as vidas das pessoas.

"Papers, Please" encarna o objecto do jogo como nenhum outro media o poderia fazer, porque nos coloca no lugar do protagonista, colocando as decisões deste nas nossas mãos. Não vemos o que o aduaneiro faz, somos nós quem faz acontecer. Somos nós os responsáveis por deixar passar, ou não deixar passar as pessoas nas fronteiras. As regras são-nos apresentadas, sabemos que existem consequências para as pessoas, mas também existem para nós. Temos uma família para alimentar, aquecer, pagar alojamento e comprar medicamentos. Se não cumprirmos com as regras do nosso trabalho, e não formos eficientes a fazê-lo (não falhar o controlo das pessoas e em tempo útil) não conseguiremos manter a nossa família saudável.

E é aqui que a culpa emerge, quando começamos a receber pedidos das pessoas que desesperadas nos pedem para as deixar passar para irem ter com a família, ou para fugirem de raptores, percebemos que se as ajudarmos seremos punidos, nós e a nossa família, mas que se nada fizermos ficaremos com o peso na consciência. Da mesma forma quando percebemos que o dinheiro que estamos a receber não chega para cobrir as despesas, e percebemos que temos de escolher entre manter a casa aquecida, comprar comida, ou medicamentos para um filho doente.

"Papers, Please" é um pequeno jogo não muito complexo tecnicamente, mas muito coerente. Apesar de ter um modo história, esta tem 20 finais possíveis, sendo um dos primeiros jogos que rejoguei várias vezes para testar os diferentes finais. Como jogo-história, é um dos poucos que faz sentido rejogar, já que a cada rejogar podemos mudar as variáveis e alterar por completo a progressão do jogo. Além de que a cada rejogar as nossas jogadas anteriores ganham mais relevo, uma vez que ficamos cada vez mais familiarizados com o tema do jogo, e os seus elementos, o que nos permite acelerar a nossa eficiência, embora isso não nos proteja das duras decisões que possamos ter de tomar.

Criativamente o jogo brilha pela forma como brinca com as nossas emoções e nos obriga a reflectir, e ainda pelo modo como soube potenciar o lado operativo e de agência da comunicação dos videojogos. O jogo não surge do mero exercício de querer fazer um jogo, mas antes de uma reflexão do seu criador, Lucas Pope, um americano a viver no Japão que quis verbalizar alguns dos sentimos que lhe atravessavam a cabeça quando tinha de passar as fronteiras entre ambos os países.

Trailer de Papers, Please (2013)


Mais sobre "Papers, Please"
Vencedores do 16º Independent Games Festival, in Virtual Illusion

dezembro 14, 2013

Como os videojogos mudaram o mundo

Acabei de ver um dos melhores documentários de sempre sobre a cultura dos videojogos, "How Videogames Changed the World" (2013). Dirigido por Charlie Brooker, o guionista de Black Mirror, e produzido pelo Channel 4, no âmbito de uma série do canal sobre vários elementos/eventos/correntes culturais que mudaram o mundo. O documentário tem cerca de uma e hora e quarenta minutos, e atravessa a história dos videojogos de 1972 a 2013.



Ao longo do filme somos presenteados com muitos spots publicitários de cada época dos jogos que vão sendo apresentados, livros e filmes que lhes deram origem ou que eles próprios originaram, muita cultura britânica, de Margaret Thatcher a Clive Sinclair, a guerra entre ZX Spectrum e Commodore comparada com a guerra entre os Blur e os Oasis. Para além dessa camada mais comum de elementos culturais, é fascinante a utilização de conteúdos criados pelos fãs e utilizadores a propósito dos jogos e da cultura que lhes subjaz, assim como filmes do YouTube que permitem abrir uma janela para a intimidade de outras pessoas que tal como nós vibram, sentem e vivem os jogos como nós. Como é dito a certa altura, a televisão nunca quis saber, e cada vez menos quer saber desta cultura, por isso a sua documentação ficou a cargo da própria comunidade online, que se tornou criadora e gestora por direito de tudo o que diz respeito à cultura dos videojogos. De quando em quando podemos ver que um jogo salta as malhas do underground cultural, e invade os outros media, aparece nas notícias, mas na maior parte do tempo, é como se não existisse para o mainstream.

Apesar de tudo isso Brooker traz para o filme quase uma dezena de jornalistas de diferentes media - imprensa, televisão e rádio - e junta-lhes algumas vozes de artistas como Salman Rushdie, Labirinth, Felicia Day ou Rob Florence. Mas é claro que para quem está dentro da cultura o ponto alto das entrevistas, surge sempre que aparece um criador, e não foram poucos os entrevistados, desde Peter Molyneux a Jeff Minter, passando por Tim Schaffer, Neil Druckman, Ron Gilbert, John Romero e ainda Rian Pratcher, Will Wright, Nolan Buschnell e Vince Zampella. É uma delícia ouvir os designers/escritores/directores de muitos dos jogos que fizeram este medium, que lhe deram vida e o transformaram naquilo que ele é hoje.

Não posso contudo deixar de referir um dos jornalistas que venho seguindo nos últimos anos, Keith Stuart do The Guardian, e que neste filme brilha com várias intervenções de grande relevância, nomeadamente quando quase nos arranca uma lágrima, revelando que o seu filho autista passou a conseguir expressar os seus mundos interiores, a partir do momento em que começou a construir mundos em Minecraft. É um momento emocionante, e que vale a pena ver no trailer abaixo, ou reler nas suas próprias palavras de análise do documentário.

O ritmo do filme é pautado por uma contagem decrescente de um TOP 25 de videojogos, que está longe de ser banal, tanto no resultado, como na forma como é desenhado. O objectivo de Brooker era elencar os 25 jogos mais influentes da história dos videojogos, mas tinha algumas condicionantes, os jogos tinham de seguir uma lógica cronológica, já que o objectivo do filme era contar a história e evolução dos jogos. Por outro lado, podemos ler esta evolução do TOP25 como algo que Brooker já disse numa outra peça, que é o facto dos videojogos serem o único media ainda em evolução, ou seja, que desde que foram criados até agora, ainda não pararam de se transformar. E nesse sentido, posso estar totalmente de acordo com o TOP25 apresentado. De The Last of Us (2013) a Pong (1972) é toda uma viagem impressionante de tecnologia, mas acima de tudo de transformação das capacidades expressivas do medium em si.


Provavelmente nunca nenhum outro medium se transformou tanto como este.

25. Pong (1972)
24. Space Invaders (1978)
23. Pac-Man (1980)
22.Manic Miner (1983)
21. Elite (1984)
20. Super Mario Bros. (1985)
19. Tetris (1989)
18. Monkey Island (1990)
17. Street Fighter II (1992)
16. Doom (1993)
15. Night Trap (1992)
14. Tomb Raider, (1996)
13. PaRappa the Rapper (1996)
12. Starcraft (1998)
11. Sims (2000)
10. Grand Theft Auto III (2001)
9. Shadow of Colossus (2005)
8. World of Warcraft (2004)
7. Wii Sports (2006)
6. Call of Duty 4 (2007)
5. Braid (2008)
4. Angry Birds (2009)
3. Minecraft (2011)
2. The Last of Us (2013)
1. Twitter (2006)
O documentário acaba por terminar de uma forma algo provocativa já que em número um coloca Twitter, mas percebe-se claramente o que Brooker quer dizer com isso. É a constatação última de que os videojogos verdadeiramente mudaram o mundo. Porque hoje ao contrário da vida que tínhamos há 20 anos, somos regulados em função de objetivos muito claros que as nossas redes sociais nos apresentam. Número de likes, número de amigos, número de comentários, posicionamento nos rankings, listagens em tópicos, etc. etc. O mundo real transformou-se à custa do virtual, e se o fez foi porque este usou as estratégias de envolvimento humano criadas ao longo de décadas pelo medium dos videojogos. A gamificação está aqui à nossa frente, a toda a hora, e em qualquer lugar, desde o Twitter, ao Facebook, passando pelo Foursquare ou Instagram, chegando ao GoodReads, entre muitos outros. Todos utilizam uma forma de comunicação que gere e mantém o interesse, o envolvimento das pessoas com as tecnologias, baseada nos videojogos. Os videojogos mudaram o mundo.


Trailer de "How Videogames Changed the World" (2013) 

O filme pode ser visto no site do Channel 4, mas apenas para residentes em UK.

dezembro 12, 2013

2013 no cinema e nos videojogos

Chegou novamente aquela altura do ano em que se dá conta de tudo o que foi feito e criado ao longo do ano. Este ano alguns destes trabalhos estão a chegar mais cedo, claramente para poderem destacar-se da enxurrada de listas que surgem nos últimos dias de Dezembro. Ainda assim, é sempre um enorme prazer ver a montagem, ano após ano, da brilhante editora Gen IP. A forma como ela combina ações, temas, atmosferas, cores, roupas, etc é absolutamente sumptuoso.

This video takes 300 of this year's films and distills it into a 7-minute exploration of the ideas we keep coming back to: the purpose of life, the nature of evil, the mystery of death, the power of love, and the inevitability of time.

E para não me ficar pela cinema apenas este ano, deixo aqui um dos mais fantásticos trabalhos do género mas sobre os videojogos. É bastante curto, mas impressionante.

dezembro 11, 2013

Remember Me, história e arte visual

Remember Me é um dos videojogos mais relevantes de 2013 no domínio da arte visual. Se dúvidas houvesse quanto ao quão visionário foi o trabalho feito por Ridley Scott dirigindo Syd Mead (ilustrador), Lawrence Paul (designer) e David Snyder (diretor de arte) em Blade Runner (1982) aqui elas desaparecem. Remember Me não só apresenta uma das melhores histórias de ficção científica dos videojogos, capaz de ombrear com Philip K. Dick e William Gibson, como o faz atualizando todo um imaginário visual criado há mais de 30 anos. Remember Me sintetiza-se assim em dois grandes vetores, a história e a arte visual.



Ou seja, fundamentalmente é um jogo para quem gosta de ficção científica que discute aspectos da memória, registos, modos de acesso e preservação de memórias, assim como todos os problemas decorrentes destas tecnologias. Por outro lado é um rasgo visual de excelência capaz de encantar qualquer apreciador de concept art, ou visualizações do mundo no futuro.

Criado por um novo estúdio, o Dontnod Entertainment, composto por pessoas oriundas da EA, Ubisoft, etc, apresenta-nos um novo mundo, e um possível novo universo ficcional para a área. Fugindo ao cânone do herói masculino, enfrentou dificuldades de financiamento, algo que poderia ter subvertido facilmente com a fuga para o FPS já que o jogo foi desenhado em Unreal. Mas ainda bem que não o fizeram, porque acredito que a história e  jogo funcionam muito melhor com uma personagem feminina. O modo como esta evolui, e vai re-adquirindo as suas memórias, como ela vai compreendendo o que está por detrás de toda a instituição que regula as memórias em todo o mundo é feito, apesar das lutas, de um modo bastante sereno e preocupado com as relações humanas. Visto através de um olhar masculino, dificilmente se poderia elevar a última parte do jogo a um tão alto ponto emocional e de reconhecimento do impacto negativo que todas aquelas tecnologias podem ter sobre a humanidade.

Remember Me não foi propriamente muito bem recebido pela crítica, que não dizendo totalmente mal do jogo, o crucifica pela sua componente gameplay. Concordo que este apresenta problemas, por vezes graves ao nível do design de navegação e manipulação, assim como no excesso de lutas e repetições redundantes. A grande evidência desses problemas é a constante necessidade de apontar o caminho a seguir, a navegação é pouco intuitiva, o excesso de arte acaba por vezes por se intrometer na funcionalidade do design. Por outro lado, a necessidade de agradar a um público mais alargado faz com que o jogo se perca em lutas e mais lutas, para assim alongar a experiência e também criar algumas sensações básicas fortes. De qualquer modo acredito que Remember Me pode vir a tornar-se num jogo de culto com o passar dos anos, veremos. Todos os problemas de gameplay que temos são largamente compensados pela história e estética do jogo.



Muita da imprensa deu destaque para os combos de luta, que eu particularmente não gostei. Obrigar-me a definir o tipo de combos de luta não é propriamente o tipo de interatividade que procuro num jogo. Contudo algo que não só gostei, mas me pareceu verdadeiramente genial em termos de design de interação, foram as sequências de alteração das memórias. Inicialmente parece estranho, mas depois de compreender o sistema, torna-se extremamente envolvente. Ou seja, cada memória é apresentada como um filme em flashback e nós podemos aceder à mesma, como se de uma cassete de imagens se tratasse, em que podemos bobinar e rebobinar, alterando pequenos eventos no seu interior, que por sua vez provocarão alterações no jogo. É uma ideia de design de manipulação brilhante, porque permite um contato muito próximo e detalhado da ideia de memória, assim como atribui muito maior sentido a todo storytelling que envolve o jogo.

Apesar de perder no game design muitos dos seus potenciais jogadores, é um jogo de que nos vamos lembrar daqui a muitos anos ainda.