Apesar do tratamento dado ao tema não estar dentro do meu comprimento de onda, o trabalho da equipa da Quantic Dream é soberbo no que toca ao desenvolvimento de toda a experiência de interação e storytelling. Cage passou a última a década a trabalhar esta mescla, e tem melhorado de jogo para jogo. Beyond apresenta nesse campo uma evolução significativa, porque simplificada, e muito mais próxima das ações narrativas que em qualquer jogo seu anterior. Deixámos de ter de cumprir repetições de cores no ecrã (uso da interface do jogo “Simon Says” em “Fahrenheit”, 2005), assim como deixámos de tentar imitar as ações visuais no analógico que tornavam a nossa ação complexa e mais centrada sobre si própria do que sobre o que decorria no espaço diegético (em “Heavy Rain", 2010).
Em Beyond, Cage conseguiu encontrar formas simples, como por exemplo através da câmara lenta consegue conduzir-nos a realizar ações sem qualquer suporte visual informativo no ecrã. Por outro lado, o fato de um dos personagens ter uma condição fantástica e fantasmagórica, com ausência de peso, ajudou a construir toda uma interface muito mais próxima das convenções de jogo, embora sempre com um tratamento muito “realista” conferido pelo constante tremer da câmara e alguma latência na resposta às nossas ações.
Posto tudo isto, interessa-me agora analisar em maior detalhe o tratamento realizado sobre o storytelling interactivo. Se nos jogos anteriores Cage se baseou muito nos múltiplos personagens fragmentando a perspectiva mas ampliando a abordagem da mesma, aqui deixou tudo isso para trás. Talvez Cage tenha receado adicionar confusão ao facto de já termos de controlar dois personagens durante quase todo o jogo (Jodie e o seu “amigo imaginário” Aiden), mas na verdade o que acaba por fazer é tornar muito mais forte a nossa ligação com a personagem de Jodie, já que Aiden nunca é suficientemente caracterizado para ganhar autonomia face a Jodie, tirando o final do jogo.
Mas se no caso dos personagens jogáveis a opção assentou na focagem e concentração num único protagonista, fortalecendo a nossa ligação, já no caso do fechamento da narrativa, Cage optou por manter os tradicionais múltiplos finais. Muito sinceramente, por mais que procure compreender o que se pretende com o desenho de vários finais, não consigo atribuir-lhes lógica nem mais valia. Tenho cada vez mais a certeza de que estes apenas acontecem porque tecnologicamente é possível, e porque o público tem essa expectativa. De resto, nada nesta obsessão pelos múltiplos finais faz sentido. A começar pelo próprio David Cage quando diz,
“Play it once and then don’t replay it. You can if you want, but I think the best way to experience the game is really to make choices and then never know what would have happened if you’d made a different choice. Because life is like this, and Beyond is the life of Jodie Holmes.” [link]Percebo e concordo, mas se é assim que quer que joguemos, porquê criar os múltiplos finais. Isto é um videojogo, e se é possível tecnologicamente criar múltiplos finais, assim como aceder a eles, não é expectável nem lógico, pedir às pessoas que experienciem apenas um final. A curiosidade é a alma do ser humano, é impossível jogar um jogo destes e não querer saber como acabaria a história se tivesse tomado outra decisão. Aliás basta refletir um mínimo sobre isto para perceber que é exatamente esta mesma curiosidade que faz com que as Sequelas e Prequelas tenham tanto sucesso. As pessoas querem saber, porque faz parte da lógica do storytelling. Enquanto contadores de histórias passamos todo o tempo a convencer as pessoas de que aqueles personagens são importantes, desenhamos formas de gerar empatia, e no final pedimos-lhe que esqueçam!? Cage diz ainda,
“For me, it’s more interesting to have players defining the life of Jodie – this is your version of the life of Jodie. And you can talk to other people and see their versions, and compare what you did, what you missed, what you saw, but never know what would have happened if… I think that’s the beauty of the thing.” [link]Isto é um paradoxo. Pedem-me que construa a personagem, mas depois pedem-me que a limite, que a castre na sua amplitude. Se é minha, quero saber tudo o que ela pode ou poderia fazer. Julgo que é aqui que está o grande erro de toda esta abordagem aos múltiplos finais. É de uma ingenuidade descomunal acreditar que se pode dar um bombom a uma criança e depois se pode pedir de volta a meio. Não faz o menor sentido, porque a Jodie não é criada por mim, é uma criação de Cage, que eu quero conhecer, quero saber mais. Não quero ser eu a construí-la, a dar-lhe vida, eu quero apenas participar da sua vida, inteirar-me do que ela é capaz, ajudá-la, acompanhá-la, ser co-responsável pelas suas ações mas não quero ser eu quem decide por ela. A Jodie é uma pessoa, tem uma personalidade, tem uma identidade, a Jodie não sou eu. Apenas me identifico e empatizo com ela, sinto com ela e sinto por ela, mas não me sinto ela.
Neste sentido, a Jodie deve tomar as suas decisões, deve principalmente decidir como termina a sua história, e não eu ("Beyond" tem pelo menos 10 finais marcadamente distintos, e com pequenas variações pode ultrapassar os 20). Faz sentido eu decidir se o meu personagem morre ou vive no final de um videojogo? Eu quero viver uma história, não quero contar uma história.
Apesar das objecções e problemas levantados, "Beyond: Two Souls" é um videojogo com vários momentos inesquecíveis tanto no campo emocional como estético, e por isso é um dos meus videojogos de 2013.