setembro 13, 2013

Em defesa das Guildas

Este texto surge no seguimento da leitura de The Craftsman” de Richard Sennett. As Guildas surgem na Idade Média alta (século XI) e vão durar até à Revolução Industrial. Em Portugal ficaram conhecidas como Mesteirais ou Mesteres (de mestres). As Guildas eram organizações que ligavam os criadores de cada arte ou profissão, por um juramento de entreajuda e de defesa mútua. Uma espécie de confraria, associação profissional, ou aquilo que hoje podemos designar de Ordem (Ordem dos Arquitetos, etc.).

The Sampling Officials (1662) de Rembrandt. Retrato dos oficiais de uma guilda de desenho de roupas de Amsterdão.

As guildas tinham vários objectivos, mas essencialmente garantiam a estabilidade da arte. Para isso definiam regras para a relação entre Mestre e Aprendiz, tal como a duração da aprendizagem, o seu custo, NDAs, e as provas a prestar no final. As provas finais consistiam na criação da chamada Obra-Prima, ou seja no melhor que estes conseguiam desenvolver após os 5 anos de aprendizagem, e que era depois avaliado pelos oficiais da guilda. Esta avaliação tinha efeitos para o aprendiz, assim como para o mestre. Esta relação de proximidade, estabelecida ao longo do tempo, permitia que o conhecimento acumulado de modo tácito pelo mestre, pelo saber-fazer, fosse passado através do exemplo e da imitação. Por outro lado, as guildas impediam que quem não lhes pertencesse pudesse praticar a arte. Deste modo garantiam que fazia sentido investir anos na relação com um Mestre, para depois conseguir o seu próprio meio de subsistência.

Carta de Ligação entre Mestre e Aprendiz, regulamentada pela guilda “The Goldsmiths’ Company”, criada em 1300 e ainda existente hoje em UK.

A duração da aprendizagem
A média de 5 anos instituída desde a Idade Média, responde à questão que recentemente foi levantada por vários estudos (Ericsson, 1993), e que tem sido amplamente citado por vários autores, como Gladwell, Colvin, e Sennett. Ou seja, para se poder pertencer a uma guilda, precisávamos de passar 5 anos no nível de Aprendiz, já estávamos a falar das 10 mil horas. No final destes anos, o Aprendiz passava à condição de Assalariado, podendo exigir dinheiro ao dia, pelo seu trabalho, para tal tinha de partir em busca de trabalho por outras cidades. Precisaria de realizar trabalho consecutivo durante mais 3 anos, dando provas no terreno, da sua arte, que eram avaliadas pelos oficiais da guilda, para poder então assumir o lugar de Mestre, ou seja abrir o seu próprio estabelecimento, e passar a ensinar outros.

O nascimento da universidade europeia
Ao mesmo tempo que surgem as Guildas, vão também surgir as Universidades, que mais não eram do que Guildas Escolásticas (Bolonha 1088, Coimbra 1288). As guildas escolásticas tinham como objectivo, alargar o pensamento crítico. Baseavam-se na análise conceptual em profundidade de ideias, construindo-se numa base de racionalidade dialéctica. O seu fundamento ficou conhecido como o Trivium - gramática, retórica, e lógica – ao qual se juntaria mais tarde o Quadrivium - a aritmética, a geometria, a música, e a astronomia – perfazendo assim as 7 artes base da Universidade Medieval.

As Sete Artes da Universidade Medieval (Ilustração do manuscrito Hortus Deliciarum de Herrad von Landsberg, do século XII)

Como guilda, a Universidade adotaria a mesma duração das demais. O primeiro grau de Bacharelo seria atribuído após provas públicas, ao fim de 5 anos, e permitia praticar cada uma das áreas escolásticas – Teologia, Direito e Medicina. Para se poder tornar num mestre, e ensinar na Universidade, era preciso fazer mais 3 anos, e assim obter o grau de Mestre.

O declínio das guildas
As guildas entraram em declínio em 1700, com o surgimento da revolução industrial. O conhecimento detido pelos artesãos foi traduzido para processos mecânicos, que eram depois realizados por máquinas de modo repetitivo e contínuo. Assim deixava de ser necessário a um ser humano, investir 5 anos a aprender uma arte, para além de que se podia produzir muito maiores quantidades.

Nos anos 1970 o mesmo aconteceria com o surgimento da computação. O conhecimento começava a ser traduzido para sinais digitais, com grandes capacidades de computação, o que permitia que muitas artes que ainda não tinham sido afectadas pela mecânica, fossem afectadas pela computação.

Atualmente atravessamos uma nova fase de revolução, com a robótica, automação em conjunto com a IA, a atingir níveis de processamento e de precisão muito superiores ao que tínhamos no passado. (ex: e-David)

Porque deveríamos preservar o espírito das Guildas?

1 - Porque, apesar da mecânica, da computação e da robótica, continuamos a precisar de ter pessoas altamente qualificadas, com grandes níveis de competência. A diferença entre uma sociedade desenvolvida, e uma subdesenvolvida, está exactamente na quantidade de competências detidas pela sua população.
A Alemanha foi o único país que não aboliu as guildas com o advento da Revolução Industrial. Talvez não seja por acaso que a Alemanha seja o país que manteve até hoje o sistema escolar mais entrosado com o sistema produtivo. Já aqui falei amplamente dos seus ganhos, nomeadamente da qualidade dos seus produtos, reconhecida mundialmente. Ainda recentemente estive a trabalhar em Moçambique, e pude verificar in loco, que o maior problema da sociedade, é a falta de competências. Por isso continua a ser tão verdade, o ditado, “não dês peixe, ensina antes a pescar”.

2 - Porque apesar de termos sido capazes de proceder ao registo de muito conhecimento tácito, continua a faltar-nos muito daquilo que está implícito nesse conhecimento. Começámos por registar o conhecimento sob linguagem escrita, e vimos quão difícil era fazê-lo (ver as 4 receitas de 4 chefs, em Sennett). É verdade que o surgimento da linguagem audiovisual no final do século XIX, resolveu muitos dos problemas da linguagem escrita. E não menos verdade, que o surgimento da linguagem de interactividade resolveu muitos dos problemas da linguagem audiovisual. Mas nada disto pode substituir a relação Humano-Humano.

3 - Porque nas profissões criadas depois do desaparecimento das guildas, como por exemplo quase todas as Indústrias Criativas baseadas em Tecnologias de Comunicação (Design, Animação, Programação, etc.) as pessoas têm sido exploradas e desprezadas pela sociedade. A ausência de uma forma de comungar os mesmos valores, seja Guilda, Ordem, Aliança, Confraria, conduz o sujeito individual à condição de descartável da sociedade (ver os problemas atuais dos profissionais de criação de VFX). É assim necessário, não apenas algum tipo de instituição que regule o trabalho, mas mais do que isso que regule a aprendizagem, os fundamentos base, assim como os modos de acesso à profissão.

Claro que existem problemas. Uma guilda, tal como um sindicato, procura além do melhor para a profissão, o melhor para os seus praticantes, e nem sempre isso coincide com o melhor para a sociedade como um todo. Basta relembrar o episódio dos Ludditas que destruíam durante a noite as máquinas da revolução industrial, porque queriam impedir o avanço tecnológico e a modernização dos hábitos. E em Portugal, quantos se têm levantado contra os poderes das várias Ordens existentes, acusando-as essencialmente de corporativismo.

Mas não é por acaso que chamamos pontos de Revolução aos vários momentos de mudança na nossa história, porque as transformações são dolorosas. Aquilo que está neste momento a acontecer com a Robótica, que já rouba empregos à mão de obra mais barata do globo, é uma revolução que já começou. A Organização Mundial do Trabalho, fala numa escassez de 200 milhões de empregos. Esta crise que Portugal atravessa, não é uma crise criada por políticos portugueses (apenas), é antes fruto dos impactos de mudanças mundiais, que atingem primeiro, e mais violentamente, os menos bem preparados.

Mas esta revolução, tal como as outras estabilizará, e dará lugar a novos momentos de abundância. E cada um de nós encontrará novas formas de se tornar útil, e necessário. Neste sentido, defendo as guildas, como uma necessidade, mas guildas capazes de evoluírem, e de se adaptarem à evolução do conhecimento humano.

setembro 12, 2013

"The Craftsman", ou O Artesão

Esta é uma obra prima sobre a filosofia da educação. Sennett vai além do conhecimento atual sobre a criatividade, a arte, o jogo, o valor da educação e do conhecimento tácito. Este livro é um manifesto, cheio de conhecimento, conhecimento pragmático aqui teorizado pela primeira vez.

"A mão é a janela para a nossa mente." Immanuel Kant

1. Análise Geral 

O mantra que guia Richard Sennett em “The Craftsman” é simples, e resume-se à constatação de que "fazer, é pensar". Sennett passa a maior parte do livro a demonstrar exatamente isto, como é que fazendo, nos transformamos, evoluímos. Um dos exemplos mais arriscados, mas mais interessantes, é dado com Wittgenstein, que segundo Sennett mudaria a sua abordagem filosófica do mundo, depois de se ter envolvido na arquitetura da casa da sua irmã. Mas o livro está carregado destes exemplos, que se esforçam por iluminar como a "mão" tem poder sobre a "mente". Como a mão, não é apenas uma ferramenta ao serviço da superioridade do intelecto, mas antes trabalham num conjunto, criando uma dialética que permite à pessoa evoluir e transformar-se. Sennett apresenta-nos aqui uma espécie de neo-iluminismo no qual a mente não é mais o centro, e cita Kant “The hand is the window on to the mind”.

O livro em si, não é fácil de seguir, começa de forma muito apetitosa, revelando factos e atividades sobre os modos de transmissão de conhecimento desde a Idade Média. Depois o miolo do livro está carregado de discussões que se enredam, sem um propósito claramente definido, pelo menos para o leitor. Sennett atira em várias direcções desde a política à psicologia, passando pela história de arte. É no final, após as várias digressões, que Sennett entra de novo no espírito, e discute em profundidade, a Mão, a Preensão, a Percepção e as Competências.

Sennett segue as pisadas de Morris e Ruskin, na defesa dos valores do artesanato, nas competências e saberes do artesão, enaltecendo os seus impactos sobre o ser humano, a comunidade e a sociedade. Mas diferentemente, não dirige a sua raiva para com a máquina, a revolução industrial do séc. XIX, mas antes para a sociedade como um todo, que não tem sabido, ideologicamente, respeitar o trabalho manual. Criaram-se na sociedade métricas que hierarquizaram os sujeitos segundo coeficientes de intelectualidade. São as letras e a ciência que hoje mais se valorizam, enquanto o saber-fazer, fazer com as próprias mãos, é protelado para segundo plano, visto como algo de somenos, irrelevante.

Esta é uma discussão que trespassa todo o trabalho de Sennett, aluno de Hannah Arendt, responsável pelo tratado “A Condição Humana” (1958), no qual se eleva o estatuto do ser racional à condição de realização última do ser humano. Sennett faz aqui apologia do contrário, defendendo o “Animal Laborans” contra o que é defendido pela sua professora, acusando-a de ter contribuído para a criação de um discurso que subjugou a cultura do fazer, e a atirou para as franjas.
“Every good craftsman conducts a dialogue between concrete practices and thinking; this dialogue evolves into sustaining habits, and these habits establish a rhythm between problem solving and problem finding. The relation between hand and head appears in domains seemingly as different as bricklaying, cooking, designing a playground, or playing the cello…” (p. 9) For good craftsmen, routines are not static; they evolve, the craftsmen improve…” (p.266) This study has sought to rescue Animal laborans from the contempt with which Hannah Arendt treated him. The working human animal can be enriched by the skills and dignified by the spirit of craftsmanship.” (p.286)
Como diz Sennett é muito mais fácil conseguir donativos para Universidades de topo, do que para escolas vocacionais. A vocação é vista como uma antítese do iluminismo, do caminho "sagrado" da formação do ser. Porque, supostamente pré-existe, não precisa de ser construída. Um erro, um erro que só muito recentemente começou a ser corrigido. Um erro que se veio sobrepor ao conhecimento adquirido no passado através das Guildas (ver texto: Em Defesa das Guildas). Daí que as escolas vocacionais sejam absolutamente vitais, mas não só.
“[Weber] called the sustaining narrative a “vocation”. Weber’s German word for a vocation, Beruf, contains two resonances: the gradual accumulation of knowledge and skills and the ever-stronger conviction that one was meant to do this one particular thing in one’s life.”
Mas não são apenas as escolas do secundário. A Universidade ao ter-se alargado em termos de matérias, não pode continuar a pretender chegar a todos os assuntos da mesma forma. Sennett exemplifica com o curso de Medicina. Depois de 5 anos de estudos teóricos, nenhum médico, o é ainda, sem pelo menos 2 anos de prática sob orientação de um "mestre". O mesmo acontece na Advogacia e na Arquitectura. Não por acaso, que nestes domínios do saber não baste deter uma Licenciatura, mas seja necessário pertencer a uma Ordem, que não é mais do que uma Guilda.

O que eu me questiono, é porque é que isto não acontece com mais nenhum curso superior!!! Nas Artes, na Comunicação, no Design, na Informática... Serão estes cursos superiores, ou serão menos relevantes para a sociedade, ao ponto de não ser importante que quem ali se forme apresente verdadeiras competências? Porque é disso que se trata nas restantes licenciaturas. Algumas teorias vêm defendendo que a Universidade não deve preparar a pessoa para o fazer, mas antes para o pensar. Concordo com a ideia de que o essencial da base de um curso universitário deve ser o de preparar um sujeito para a autonomia, para "aprender a aprender". Mas não concordo que seja suficiente. Ainda que o conhecimento que o mercado hoje necessita, seja diferente daquele que vai precisar amanhã, o sujeito que atravessou 15 anos de estudo tem de saber fazer, não pode no final de tantos anos apenas saber aprender, porque corre o risco de cair num limbo de indefinição de si próprio. O saber-fazer, como Sennett nos diz aqui, trabalha exatamente esta componente, a construção do Eu, porque mais do que as competências do pensar, as competências do fazer formam-nos.

Claro que aqui joga-se um problema de fundo sobre o que deve ser uma Universidade. Mas no século XXI e após tantas modificações ocorridas no cenário da Universidade, mais do que nunca, esta tem de ser o centro de formação dos cidadãos, e não apenas de académicos.

Debato-me com este problema todos os anos nas cadeiras que lecciono, que compreendem uma fusão entre teoria e prática acentuada, por isso mesmo, as minhas cadeiras são denominadas de “Ateliers”. O problema é que o contacto em atelier com o docente, é demasiado reduzido. Não posso dizer que um semestre seja pouco tempo, mas é-o, quando falamos de 3 ou 4 horas semanais ao longo de 15 semanas. Estamos a falar de 45 horas, ou seja de uma semana intensiva de prática, nada mais. Além disso, numa relação de 1 para 20 (e já me devo regozijar) torna impossível qualquer aprendizagem por exemplo e imitação.

Sennet exemplifica como a arte de saber fazer melhora o sujeito, o torna autónomo,
  • através da negociação entre autoridade e autonomia, enquanto no processo de aprendizagem (no workshop do mestre)
  • através da construção de simbiose com a acção e objecto, trabalhando com as forças do objecto, usando a menor força e a melhor acção, antecipando o que fazer (exemplos detalhados no livro: construção de túneis por baixo do rio Thames; chefs de cozinha no corte; o vidreiro que antecipa o estado seguinte do vidro quente)
  • através do brincar, porque “in play, is the origin of the dialogue the craftsman conducts with materials (..) a school for learning to increase complexity.” (p.272)
Porque na verdade, apesar de termos sido capazes de proceder ao registo de muito do conhecimento tácito, continua a faltar-nos muito daquilo que está implícito nesse conhecimento. Começámos por registar o conhecimento sob linguagem escrita, e vimos quão difícil era fazê-lo. Sennett dedica um capítulo inteiro a este problema, “Expressive Instructions” (pp179-193), que é para mim um dos pontos mais altos do livro, capaz de exemplificar os problemas reais do conhecimento tácito, e da sua dificuldade de transmissão e apreensão. Como diz Sennett, é preciso "mostrar, não contar".
“Language struggles with depicting physical action, and nowhere is this struggle more evident than in language that tells us what to do. In the workshop or laboratory, the spoken word seems more effective than written instructions. Whenever a procedure becomes difficult, you can immediately ask someone else about it, discussing back and forth, whereas when reading a printed page you can discuss with yourself what you read but you cannot get another’s feedback. Yet simply privileging the speaking voice, face-to-face, is an incomplete solution. You both have to be in the same spot; learning becomes local. Display translates into a craft command frequently given young writers: ‘‘Show, don’t tell!’’ In developing a novel this means avoiding such declarations as ‘‘She was depressed,’’ writing instead something like ‘‘She moved slowly to the coffee pot, the cup heavy in her hand.’’ Now we are shown what depression is. The physical display conveys more than the label. Show, don’t tell occurs in workshops when the master demonstrates proper procedure through action; his or her display becomes the guide.” (p.179)
Neste capítulo um dos pontos mais altos na exemplificação dos problemas reais do conhecimento tácito, e da sua dificuldade de transmissão e apreensão, surge com as 4 receitas escritas por 4 chef's diferentes. Cada um dos chef's tenta explicar como se preparar o famoso prato francês “Poulet à la d’Albufera”, uma receita que implica desossar a galinha e depois levá-la ao forno. Sennett classifica cada uma das descrições da seguinte forma

1 – “Denotação Morta”, Chef Richard Olney (p.182)
Excerto descrição: “Sever the attachment of each shoulder blade at the wing joint and, holding it firmly between the thumb and forefinger of the left hand, pull it out of the flesh with the other hand...”

Análise de Sennett da receita: “Olney tells rather than shows. If the reader already knows how to bone, this description might be a useful review; for the neophyte it is no guide (..) The language itself harbors a particular cause for this looming disaster. Each verb in Olney’s instruction issues a command: sever, pull, loosen. These verbs name acts rather than explain the process of acting; this is why they tell rather than show. For instance, when Olney counsels, "Force the flesh loose from the breastbone, working along the crest", he cannot convey the dangers of tearing the chicken’s flesh just below the bone crest. In their sheer number and density the verbs cast an illusory spell; in reality, the verbs are at once specific and in- operative. The problem they represent is dead denotation.”

2 – “Ilustração por Simpatia”, Chef Julia Child (p.184)
A receita segundo Sennett: “Stretching over four printed pages, her recipe divides into six detailed steps (..) In each stage she expresses forebodings. For instance, she imagines the neophyte picking up the knife and counsels: "Always angle the cutting edge of knife against bone and not against flesh".”

Análise de Sennett da receita: “Child’s recipe reads quite differently than Olney’s precise direction because her story is structured around empathy for the cook; she focuses on the human protagonist rather than on the bird. The resulting language is indeed full of analogies, but these analogies are loose rather than exact, and for a reason. Cutting a chicken’s sinew is technically like cutting a piece of string, but it doesn’t feel quite the same. This is an instructional moment for her reader; ‘‘like’’ but not ‘‘exactly like’’ focuses the brain and the hand on the act of sinew cutting in it- self. There’s also an emotional point to loose analogies; the suggestion that a new gesture or act is roughly like something you have done before aims specifically to inspire confidence.”

3 - "Cena Narrativa", Chef Elizabeth David (p.187)
A receita segundo Sennett: “David describes the making of Poulet à la Berrichonne as though it were a tale from Ovid, the transforming journey from a tough old hen flopped on the butcher’s cutting board to the tender poached dish nestling inside its cushion of parsleyed rice (..) The long recipe works as a once-read procedure: it is an orienting short story one would read before cooking; one might then go to work without referring again to the book. It’s a safe bet that even now not one in a thousand of David’s readers had ever visited the province of Berry, where her recipe originates. But like her mentor the travel writer Norman Douglas, David believed you need to imagine first and fore- most what it’s like to be somewhere else in order to do the sorts of things people do there.”

Análise de Sennett da receita: “This is the scene narrative, in which "where" sets the scene for "how". If you have the estimable privilege of a Middle Eastern uncle (..), you will immediately understand the instructional point of the scene narrative. Words of advice are introduced with the phrase, "Let me tell you a story". The uncle wants to grab your attention, get you outside of yourself, rivet you in an arresting scene. (..)
Effective scene narratives are not perfect encapsulations of a point (..) the more he [your uncle] wants to drive home an indelible message, the less direct will be the connection between the scene he sets and the moral; you’ll work that out for yourself once the frame is set. This is the provocative function of any parable. (..)
In her defense it could be said that David’s purpose is to jolt the reader into thinking gastronomically. Gastronomy is a narrative, with a beginning (raw ingredients), a middle (their combination and cooking), and an end (eating).”

4 - "Instrução através de Metáforas", Chef Madame Benshaw (p. 189)
Receita completa: “Your dead child. Prepare him for new life. Fill him with the earth. Be careful! He should not overeat. Put on his golden coat. You bathe him. Warm him but be careful! A child dies from too much sun. Put on his jewels. This is my recipe.”

Análise de Sennett da receita: “This is a recipe conceived entirely in metaphors. ‘‘Your dead child’’ stands for a chicken straight from the butcher, but making this simple substitution takes away the gravity Madame Benshaw evidently wishes to convey about slaughtered animals; in classic Persian cuisine, animals have an inner being, an anima, no less than human beings. Certainly the command ‘‘Prepare him for new life’’ is a charged image...
Each of her metaphors is a tool to contemplate consciously and intensely the processes involved in stuffing, browning, or setting the oven. The meta- phors do not prompt us to retrace and reverse, step by step, the manner in which a repeated action has already become tacit knowledge. Instead, they add symbolic value; boning, cooking, and stuffing create together a new metaphor of reincarnation. They do so for a point: they clarify the essential objective the cook should strive for at each stage of the work.”

A grande questão que se nos colocam estas receitas, estas verbalizações do acto de fazer, é que a sua aprendizagem não é fácil de transmitir. Não basta apenas a informação, como já tinha aqui discutido antes, mas é necessária uma prática repetida, para que a informação se transforme finalmente em conhecimento, e depois em competência.

O livro de Sennett é de extrema relevância, porque o ser humano não é feito apenas de intelecto. Sem competência técnica, como é que se externaliza esse intelecto? Preocupa-me imenso todo este plano do ensino e aprendizagem, mais ainda quando ouço interesses defender uma universidade baseada no ensino à distância e para milhares de alunos em simultâneo. Porque se queremos que as pessoas internalizem processos, assumam a identidade da profissão, transformem essa profissão e a desenvolvam, não basta passar informação, é preciso mais do que isso. É preciso o contacto humano, a interacção humana, a imitação, a repetição, e o tempo. A criatividade não brota do nada, a formatação é necessária, porque é através dela que surge a educação, um nível de auto-controlo dos instintos. E é desse auto-controlo que surge o conhecimento de si, e do saber. É desse auto-controlo que surge a capacidade para ver além, e ser capaz de criativamente subverter processos. Mas tudo isto demora tempo, e o tempo é algo que a nossa sociedade cada vez menos preza. A propósito de tudo isto falei no texto sobre as Guildas da idade média.


2. Excertos
Tendo em conta a riqueza enorme do livro, deixo mais alguns excertos que sintetizam o que de mais importante, para mim, é dito por Sennett neste livro.

2.1 Competências e o Artesão 

2.1.1 Repetição e o logro da Inspiração (p.37..)
"Skill is a trained practice (..) The lure of inspiration lies in part in the conviction that raw talent can take the place of training. We should be suspicious of claims for innate, untrained talent. ‘‘I could write a good novel if only I had the time’’ or ‘‘if only I could pull myself together’’ is usually a narcissist’s fantasy. Going over an action again and again, by contrast, enables self-criticism. Modern education fears repetitive learning as mind-numbing. Afraid of boring children, avid to present ever-different stimulation, the enlightened teacher may avoid routine—but thus deprives children of the experience of studying their own ingrained practice and modulating it from within.Skill development depends on how repetition is organized. This is why in music, as in sports, the length of a practice session must be carefully judged: the number of times one repeats a piece can be no more than the individual’s attention span at a given stage. As skill expands, the capacity to sustain repetition increases. In music this is the so-called Isaac Stern rule, the great violinist declaring that the better your technique, the longer you can rehearse without becoming bored. There are ‘‘Eureka!’’ moments that turn the lock in a practice that has jammed, but they are embedded in routine."

2.1.2 Qualidade das competências (p.50)
"Embedding stands for a process essential to all skills, the conversion of information and practices into tacit knowledge. If a person had to think about each and every movement of waking up, she or he would take an hour to get out of bed. When we speak of doing something "instinctively", we are often referring to behavior we have so routinized that we don’t have to think about it. In learning a skill, we develop a complicated repertoire of such procedures. In the higher stages of skill, there is a constant interplay between tacit knowledge and self-conscious awareness, the tacit knowledge serving as an anchor, the explicit aware- ness serving as critique and corrective. Craft quality emerges from this higher stage, in judgments made on tacit habits and suppositions."

2.1.3 Artesãos e emoção (p.20)
"All craftsmanship is founded on skill developed to a high degree. By one commonly used measure, about ten thousand hours of experience are required to produce a master carpenter or musician. Various studies show that as skill progresses, it becomes more problem-attuned, like the lab technician worrying about procedure, whereas people with primitive levels of skill struggle more exclusively on getting things to work. At its higher reaches, technique is no longer a mechanical activity; people can feel fully and think deeply what they are doing once they do it well. It is at the level of mastery, I will show, that ethical problems of craft appear
The emotional rewards craftsmanship holds out for attaining skill are twofold: people are anchored in tangible reality, and they can take pride in their work. But society has stood in the way of these rewards in the past and continues to do so today. At different moments in Western history practical activity has been demeaned, divorced from supposedly higher pursuits. Technical skill has been removed from imagination, tangible reality doubted by religion, pride in one’s work treated as a luxury. If the craftsman is special because he or she is an engaged human being, still the craftsman’s aspirations and trials hold up a mirror to these larger issues past and present."

2.2 O Artesão transforma-se no Artista (p.65)
“Probably the most common question people ask about craft is how it differs from art. In terms of numbers this is a narrow question; professional artists form a mere speck of the population, whereas craftsmanship extends to all sorts of labors. In terms of practice, there is no art without craft; the idea for a painting is not a painting. The line between craft and art may seem to separate technique and expression, but as the poet James Merrill once told me, ‘‘If this line does exist, the poet himself shouldn’t draw it; he should focus only on making the poem happen.’’
The contrast still informs our thinking: art seems to draw attention to work that is unique or at least distinctive, whereas craft names a more anonymous, collective, and continued practice.
The two are distinguished, first, by agency: art has one guiding or dominant agent, craft has a collective agent. They are, next, distinguished by time: the sudden versus the slow. Last, they are indeed distinguished by autonomy, but surprisingly so: the lone, original artist may have had less autonomy, be more dependent on uncomprehending or willful power, and so be more vulnerable, than were the body of craftsmen.”
 2.3 A Mão (p.150)
“The Intelligent Hand” - “Frederick Wood Jones (1942) wrote, ‘It is not the hand that is perfect, but the whole nervous mechanism by which movements of the hand are evoked, coordinated, and controlled’’ which has enabled Homo sapiens to develop.
One of the myths that surround technique is that people who develop it to a high level must have unusual bodies to begin with. As concerns the hand, this is not quite true. For instance, the ability to move one’s fingers very rapidly is lodged in all human bodies, in the pyramidal tract in the brain. All hands can be stretched out through training so that the thumb forms a right angle to the first finger.
The fingers can engage in proactive, probing touch without conscious in- tent, as when the fingers search for some particular spot on an object that stimulates the brain to start thinking; this is called ‘‘localized’’ touch.”
2.3.1 Preensão (p.157)
“The technical name for movements in which the body anticipates and acts in advance of sense data is prehension. Prehension gives a particular cast to mental understanding as well as physical action: you don’t wait to think until all information is in hand, you anticipate the meaning.
Thomas Hobbes sent the young Cavendishes into a darkened room into which he’d placed all sorts of unfamiliar objects. After they’d groped about, he asked them to leave the room and describe to him what they ‘‘saw’’ with their hands. He noted that the children used sharper, more precise language than the words they used when they could see in a lit space. He explained this in part as a matter of them ‘‘grasping for sense’’ in the dark, a stimulus that served them to speak well later, in the light, when the immediate sensations had ‘‘decayed.’’
This is therefore also the moment when error becomes clear to the musician. As a performer, at my fingertips I experience error—error that I will seek to correct. I have a standard for what should be, but my truthfulness resides in the simple recognition that I make mistakes. Sometimes in discussions of science this recognition is reduced to the cliché of ‘‘learning from one’s mistakes.’’ Musical technique shows that the matter is not so simple. I have to be willing to commit error, to play wrong notes, in order eventually to get them right. 
In making music, the backward relationship between fingertip and palm has a curious consequence: it provides a solid foundation for developing physical security. Practicing that attends to momentary error at the fingertips actually increases confidence: once the musician can do something correctly more than once, he or she is no longer terrorized by that error. In turn, by making something happen more than once, we have an object to ponder; variations in that conjuring act permit exploration of sameness and difference; practicing becomes a narrative rather than mere digital repetition; hard-won movements be- come ever more deeply ingrained in the body; the player inches forward to greater skill.”

2.3.2 Mão e Olho (p.172)
“The Rhythm of Concentration (..) In learning to make a Barolo goblet, O’Connor passed through stages that resemble those we’ve explored among musicians and cooks. She had to ‘‘untape’’ habits she’d learnt in blowing simpler pieces in order to explore why she was failing, discovering, for instance, that the easy way that had become her habit meant that she scooped too little molten glass at the tip. She had to develop a better awareness of her body in relation to the viscous liquid, as though there were continuity between flesh and glass.
Barolo goblet
Now she was better positioned to make use of the triad of the ‘‘intelligent hand’’—coordination of hand, eye, and brain (..) But she still had to learn how to lengthen her concentration. (..) This stretch-out occurred in two phases. First, she lost awareness of her body making contact with the hot glass and became all-absorbed in the physical material as the end in itself: ‘‘My awareness of the blowpipe’s weight in my palm receded and in its stead advanced the sensation of the ledge’s edge at the blowpipe’s mid-point followed by the weight of the gathering glass on the blowpipe’s tip, and finally the gather towards a goblet.’’
The philosopher Maurice Merleau-Ponty describes what she experienced as ‘‘being as a thing”. The philosopher Michael Polanyi calls it ‘‘focal awareness’’ and recurs to the act of hammering a nail: ‘‘When we bring down the hammer we do not feel that its handle has struck our palm but that its head has struck the nail. . . . I have a subsidiary awareness of the feeling in the palm of my hand which is merged into my focal awareness of my driving in the nail.’’
If I may put this yet another way, we are now absorbed in something, no longer self-aware, even of our bodily self. We have be- come the thing on which we are working.
We might think, as did Adam Smith describing industrial labor, of routine as mindless, that a person doing something over and over goes missing mentally; we might equate routine and boredom. For people who develop sophisticated hand skills, it’s nothing like this. Doing something over and over is stimulating when organized as looking ahead. The substance of the routine may change, metamorphose, improve, but the emotional payoff is one’s experience of doing it again. There’s nothing strange about this experience. We all know it; it is rhythm. Built into the contractions of the human heart, the skilled craftsman has extended rhythm to the hand and the eye.
Rhythm has two components: stress on a beat and tempo, the speed of an action. In music, changing the tempo of a piece is a means of looking forward and anticipating. The markings ritardando and accelerando oblige the musician to prepare a change; these large shifts in tempo keep him or her alert. The same is true of rhythm in miniature.”

2.5. O Workshop Filosófico (p. 286)
Pragmatismo – O artesanato da experiência
"Craftsmanship finds a philosophical home within pragmatism (..) Philosophically, pragmatism has argued that to work well people need freedom from means-ends relationships. Underlying this philosophical conviction is a concept that, I think, unifies all of pragmatism. This is experience, a fuzzier word in English than in German, which divides it in two, Erlebnis and Erfahrung. The first names an event or relationship that makes an emotional inner impress, the second an event, action, or relationship that turns one outward and requires skill rather than sensitivity (..) craftwork, as presented in this book, emphasizes the realm of Erfahrung. Craftwork focuses on objects in themselves and on im- personal practices; craftwork depends on curiosity, it tempers obsession; craftwork turns the craftsman outward. Within the philosophical workshop of pragmatism, I want to argue for this stress more largely: the value of experience understood as a craft.
What does the "craft of experience" imply? We would focus on form and procedure—that is, on techniques of experience (..) the craft of making physical things provides insight into the techniques of experience that can shape our dealings with others (..) I recognize that the reader may balk at thinking of experience in terms of technique. But who we are arises directly from what our bodies can do. Social consequences are built into the structure and the functioning of the human body, as in the workings of the human hand. I argue no more and no less than that the capacities our bodies have to shape physical things are the same capacities we draw on in social relations."

setembro 11, 2013

electricidade e o mito Frankenstein

Enquanto via o filme Frankenweenie (2012) de Tim Burton, dei-me conta pela primeira vez que a única coisa que estava em jogo no processo de dar vida ao Frankenstein era a eletricidade. Daí que me tenha questionado sobre as razões para o sucesso de uma premissa tão simples. Depois acabei por tombar sobre um texto que discutia os tempos do surgimento da eletricidade. Foi aí que descobri que em 1803 Giovanni Aldini, sobrinho de Luigi Galvani (daí o termo "galvanismo"), terá aplicado electricidade sobre corpos de assassinos, gerando reações musculares, descrevendo-as assim, como momentos de “pré-resussuscitação”.

Ilustração dos experimentos de Aldini com cadávers. Nas notas de George Foster ficou registado que “the jaw began to quiver, the adjoining muscles were horribly contorted, and the left eye actually opened … The action even of those muscles furthest distant from the points of contact with the arc was so much increased as almost to give an appearance of re-animation … vitality might, perhaps, have been restored, if many circumstances had not rendered it impossible.” (citado in Mary Shelley: Her Life, Her Fiction, Her Monsters)

Neste contexto, uma história como Frankenstein faz todo o sentido surgir em 1818. E é muito interessante viajar a esses tempos e imaginar, o encanto e magia que a electricidade terá representado para os nossos antepassados, ao ponto de poderem começar a sonhar com a ressurreição. Ideia que acaba por ser muito mais central em Frankenweenie do que em Frankenstein.

setembro 10, 2013

Google, o braço direito do governo americano?

Estive quase para desistir de “The New Digital Age” (2013) logo após a leitura da introdução. Dei uma segunda hipótese e li o primeiro capítulo, mas mesmo aí a minha vontade de deixar de ler não se desvaneceu. Um texto carregado de especulações banais, baseadas em banalidades da atualidade, um texto que pretende prever o futuro, e nos fala quase sempre do agora e do futuro imediato, cinco ou dez anos, completamente incapaz de ver além dos muros do real atual. Um livro que fala da vida humana, e dos seus condicionamentos, como trivialidades.

"Ruined online reputations might not lead to physical violence by the perpetrator, but a young woman facing such accusations could find herself branded with a digital scarlet letter that, thanks to the unfortunate but hard-to-prevent reality of data permanence, she’d never be able to escape. And that public shame could lead one of her family members to kill her."
Porque não parei então? A razão é simples, por causa dos autores. Não pelo conhecimento que detêm, que o livro dá bem conta, mas antes pelo poder que detêm. Logo ao abrir o livro, damos de caras com esse poder, quando vemos quem assina as mais elogiosas recomendações ao livro - Henry Kissinger, Bill Clinton, Tony Blair, Madeleine Albright, Michael Hayden, ex-diretor da CIA. Pouco depois de encomendar o livro, veio a público o projeto PRISM, revelado por Edward Snowden. A Google, e estes dois senhores estão no centro de todo este problema, por isso é importante perceber para onde nos querem levar, ainda que tenhamos de ler nas entrelinhas daquilo que escrevem.
"Identity will be the most valuable commodity for citizens in the future, and it will exist primarily online. Online experience will start with birth, or even earlier. Periods of people’s lives will be frozen in time, and easily surfaced for all to see. In response, companies will have to create new tools for control of information, such as lists that would enable people to manage who sees their data."
Ao longo de todo o livro, não existe a mais pequena referência ao PRISM, nem a qualquer outro projeto, ou programa, que possa apresentar qualquer similaridade com este. O livro começa com a banalidade das previsões futuras sobre as tecnologias da comunicação, e avança para algo que não podia ser pior, o terrorismo, os terroristas, os maus e os bons. Cheguei a questionar-me se estava a ler um livro escrito por dois responsáveis de uma das empresas de tecnologias de comunicação mais poderosas do planeta, ou se um livro do governo americano. Ou ainda, um livro escrito por estagiários que fazem o seu melhor, através da visão simplista, e tão formatada, que ainda detêm do mundo. A narrativa é tão decalcada, que parece quase existir apenas um mundo, e nada mais, tão simples, tão claro e tão esquematizável, que os autores parecem dizer, “como todos não conseguem ver o mundo como nós?”.
“By 2025, the majority of the world’s population will, in one generation, have gone from having virtually no access to unfiltered information to accessing all of the world’s information through a device that fits in the palm of the hand.”
"the printing press, the landline, the radio, the television, and the fax machine all represent technological revolutions, but all required intermediaries (..) [the digital  revolution] is the first that will make it possible for almost everybody to own, develop and disseminate real-time content without having to rely on intermediaries."
Aceder a “toda” a informação?!! Disseminar informação sem intermediários?!! Mas... é de ficar sem palavras com tanta barbaridade junta. Aceder a toda a informação, talvez se refiram ao PRISM, porque não vejo como se pode afirmar tão assertivamente coisas destas. Quanto aos intermediários, estes senhores esquecem que são eles próprios neste momento os intermediários, ou será que por proferirem o mantra “do no evil”, serão transparentes?!!
“the promise of exponential growth unleashes possibilities in graphics and virtual reality that will make the online experience as real as real life, or perhaps even better.”

“On the world stage, the most significant impact of the spread of communication technologies will be the way they help reallocate the concentration of power away from states and institutions and transfer it to individuals.”
Impressiona-me como foi possível escrever um livro desta forma, onde estavam os editores? Como se podem afirmar coisas sobre o futuro, ainda que imediato, como se de certezas se tratassem. Mas pior ainda, como se podem afirmar certezas num parágrafo, para na página, ou capítulo, seguintes, de imediato se contradizerem. Aonde pára a coerência discursiva? Ou isto são apenas umas ideias soltas atiradas para umas folhas em branco? É o que mais me parece. Ideias interessantes, que vamos discutindo com os amigos, mas que tratam assuntos complexos, com divergentes perspectivas, e que hoje podemos defender de um lado, e amanhã do outro. Mas se isso funciona no discurso oral, em construção contínua, não funciona num livro, ou não deveria funcionar. Um livro deveria traduzir um discurso reflectido, meditado, maturado, estruturado, e não uma monte de ideias engraçadas. Morozov explica muito bem como terá sido escrito o livro,
“In the simplicity of its composition, Schmidt and Cohen’s book has a strongly formulaic —perhaps I should say algorithmic— character. The algorithm, or thought process, goes like this. First, pick a non-controversial statement about something that matters in the real world —the kind of stuff that keeps members of the Council on Foreign Relations awake at their luncheons. Second, append to it the word “virtual” in order to make it look more daring and cutting edge. (If “virtual” gets tiresome, you can alternate it with “digital.”) Third, make a wild speculation—ideally something that is completely disconnected from what is already known today. Schmidt and Cohen’s allegedly unprecedented new reality, in other words, remains entirely parasitic on, and derivative of, the old reality.”
Mas fica tudo muito claro quando se percebe quem são verdadeiramente as pessoas por detrás deste livro, de onde vieram, como se encontraram, e o que é realmente pretendem com este livro.
“We two first met in the fall of 2009, under circumstances that made it easy to form a bond quickly. We were in Baghdad, engaging with Iraqis around the critical question of how technology can be used to help rebuild a society.”

“Eric confirmed his feeling that the technology industry had many more problems to solve, and customers to serve, than anyone realized. In the months following our trip, it became clear to us that there is a canyon dividing people who understand technology and people charged with addressing the world’s toughest geopolitical issues, and no one has built a bridge. Yet the potential for collaboration between the tech industry, the public sector and civil society is enormous.”
Cá está o que eles se propõem fazer com este livro, estabelecer a ligação entre os produtores de tecnologia e os clientes da política. Não é por acaso que um dos autores, Jared Cohen, o atual diretor da Google Ideas, foi o consultor de Condoleezza Rice para as questões das relações internacionais com o Médio Oriente, e é ainda consultor do Centro Nacional de Contraterrorismo dos EUA. Isso explica, porque razão a palavra “Iraque” aparece no livro mais de meia centena de vezes, assim como se podem encontrar abundantemente as palavras – “Paquistão”, “Afganistão”, “Irão”, “Israel”, “Somália”, “Terrorismo”, “Al-Qaeda”, “Assange”, “China”, “Coreia do Norte”. Mas, o que é a Google afinal!?

Um livro escrito pelo Chairman da Google, Eric Schmidt, e pelo diretor da Google Ideas, Jared Cohen, com o nome “The New Digital Age”, não deveria ser um livro sobre o futuro das tecnologias digitais? Não deveria ser um livro sobre o futuro da conectividade? Não deveria ser um livro sobre as inovações de fundo das tecnologias de comunicação? Ainda que pudesse, e devesse, falar dos seus impactos sociais e potenciais alterações antropológicas, e porque não até psicológicas nos campos emocional e cognitivo, porque é que haveria de se concentrar sobre o terrorismo, e apenas na sua leitura política (americana)?!

Porque dos sete capítulos, apenas os primeiros dois se dedicam aos impactos gerais na sociedade. São dedicados cinco capítulos completos à discussão do impacto das tecnologias da comunicação ao nível da política global, americana. Ou seja, mais de três quartos do livro são passados a discutir ideias soltas, sem rumo, sem estrutura organizativa, veiculadas apenas pela narrativa vigente da supremacia da política americana, alegadamente democrática, e de imposição de uma alegada democracia, pela força, ao resto do mundo!!! No final somos servidos com o antídoto que todos os problemas resolverá,
 "The best thing anyone can do to improve the quality of life around the world is to drive connectivity and technological opportunity. When given the access, the people will do the rest. They already know what they need and what they want to build."
Se ainda assim não estiverem convencidos do quão rasteiro este livro é, aconselho vivamente a leitura da extensa análise realizada por Morozov, que começa de modo irónico, brincando com a incongruência e infantilidade da escrita do livro, para depois atacar em maior profundidade os erros ao nível do uso da tecnologia em contextos de geopolítica. E se ainda tiverem paciência leiam a resposta de Assange aos autores.

setembro 09, 2013

somos feitos de histórias

Aproveito para deixar aqui algumas notas sobre duas interessantíssimas TED Talks sobre as histórias, e o cinema que conta histórias. Tudo fica dito pelas palavras do título da comunicação de Shekhar Kapur, "Nós somos as histórias que contamos…", reafirmado por Beeban Kidron, "há indícios de que o ser humano de todas as idades e de todas as culturas cria a sua identidade em alguma forma narrativa."


O que fica aqui explícito é que o mais importante para o ser humano são as histórias, e não o meio. Não interessa se acedem aos mundos das histórias através da literatura, do cinema ou dos videojogos, interessa apenas que lhe acedam. Que sintam as "contradições" que nos apresentam, e sigam em busca das "harmonias do mundo", para utilizar as palavras de Shekhar Kapur.

Porque o poder da narrativa, das histórias que nos contam, está na sua capacidade para instigar o questionamento. Como vai dizendo Beeban Kidron, mentora do projecto FILMCLUB em Inglaterra que levou o cinema às escolas, obtendo resultados estrondosos, com as crianças a elevarem a sua auto-estima, a sua motivação para ir a escola, e principalmente aguçar a sua curiosidade.
"Quem estava certo, quem estava errado? O que fariam sob as mesmas condições? A história foi bem contada? Havia uma mensagem escondida? Como é que o mundo mudou? Como poderia ser diferente? Um tsunami de perguntas sairam da boca de crianças que o mundo pensava não estarem interessadas. As próprias não sabiam que se importavam. Conforme escreviam e debatiam, em vez de verem os filmes como artefactos começaram a ver-se a si próprias." Kidron
Kidron fala sobre algo com que nos debatemos desde os anos 50 do século passado, o valor do cinema face à literatura. Algo que os videojogos só agora começaram a trilhar.
"Se honramos a leitura, porque não honrar visualizar com a mesma paixão? Considerem "O Mundo a Seus Pés" tão valioso quanto Jane Austen. Concordem que "A Malta do Bairro", assim como Tennyson, oferece uma paisagem emocional e uma compreensão enriquecida que se complementam. São ambos um objecto de arte memorável, ambos, um tijolo na construção de quem somos." Kidron
Porque a essência é a história, é esta que activa a nossa mente, desencadeia o processamento mental, e nos ajuda a descobrir-nos a nós mesmos de cada vez que acedemos a uma nova história,
"Quando estas pessoas chegam a casa, após a visualização de "Janela Indiscreta" e olham com atenção para o prédio ao lado, têm as ferramentas necessárias para questionarem quem, para além deles, está ali e qual é a sua história." Kidron

Beeban Kidron, A Maravilha partilhada do Cinema (2012)

setembro 06, 2013

e-David, detalhe e reflexão

e-David é mais um robô artista, mas tem uma diferença para com os seus antecessores, a qualidade técnica do resultado final. O detalhe e a execução do traço pode confundir e levar os menos atentos a acreditar que se trata de um trabalho realizado por um ser humano. A acrescentar à técnica, o robô vai ainda mais longe no "pensar" o trabalho que está a executar. Este é o caminho da IA, levar o robô a “questionar-se” sobre as tarefas que realiza.


O robô tem como objectivo criar uma imagem que lhe é dada, e à medida que vai processando o  desenho, vai fotografando o mesmo e comparando-o com a imagem final pretendida. Nas pinceladas seguintes, procede às correções do que ficou menos conseguido, e assim sucessivamente até atingir o melhor resultado final possível. No fundo trata-se de um processo de análise e contra-análise, um diálogo interno entre o robô e o papel.

Aqui a explicação da evolução dos passos realizados por e-David para conseguir recriar a imagem que lhe é dada. Mais informação no paper "Feedback-guided Stroke Placement for a Painting Machine" (2012)

É verdade que este robô não é autor da imagem, ele apenas a executa. Mas o que está aqui em questão, pelo menos numa abordagem artística, é um processo de robótica, e não um questionamento filosófico. Ou seja da automatização de um processo que requer competências muito detalhadas por parte de um ser humano. O robô não será o pintor dos nossos sonhos do futuro, mas poderá bem ser o pintor da cópia do Van Gogh que quisermos ostentar na nossa sala.

Claro que isto levanta numa segunda análise questões filosóficas do foro social, nomeadamente no campo do trabalho. Se um robô pode atingir este tipo de performance, o que nos reserva o futuro, em termos de competências? O que poderemos nós, humanos, desenvolver como competências que nos mantenham úteis e necessários à sociedade? Ou será tempo de começar a pensar a sociedade segundo outros modelos?

No vídeo podem ver o robô em acção, a minuciosidade da execução...

setembro 05, 2013

Wonderland | A Short Form Doc on Creative Commerce (2013)

O documentário, Wonderland (2013) de Terry Rayment e Hunter Richards, fala-nos dos diferentes sentires do criador no momento de criar um artefacto pessoal versus um produto comercial. Artistas, designers e criativos falam de dinheiro, de liberdade, de restrições, de ambições, dos egos, dos clientes e  de como se balanceia tudo isso no dia-a-dia.

"You can't predict the end result, and that's part of the process, the beauty in it."… "Trying to plan in the future, will not work… you've to live in the now… focus on doing things, not on the the end results… we have to focus on each step…"… "the goal is always to get better…"… 
Há umas semanas tive oportunidade de escrever um texto para a Eurogamer, sobre este assunto, a propósito de um texto de Adam Saltsman, em que este desabafa sobre os seus dilemas criativos na escolha dos próximos jogos a desenvolver. Dei ao texto um título bem ilustrativo Bipolaridade Criativa.

Diagrama a partir da classificação de David Lewndowski em Wonderland

Neste documentário, David Lewndowski acaba por no meio da conversa dar uma possível classificação do impacto do dinheiro sobre a liberdade criativa de cada um. Converti a sua definição num eixo visual (diagrama acima), que de forma simples se poderia resumir por: “quanto mais dinheiro mais corrompida é a criatividade de um projecto”. Claro que as exceções existem,
"Sometimes there's total miracles… oh my God, did they just allowed me to create that, and they paid for that. My heart still flexes my creative muscles I can still feel alive when I express myself."

setembro 04, 2013

Portugal e a Google

“A Primeira Aldeia Global – Como Portugal mudou o Mundo” (2008) de Martin Page é um livro adorável, aconselhável a qualquer português, ou a qualquer cidadão do mundo que se sinta português. Page, citando Mário Soares, diz-nos que “A língua é o vínculo, falar português é ser português.”


“A Primeira Aldeia Global” é um livro escrito por um inglês que veio para Portugal viver os seus últimos anos de vida, e por este país se apaixonou. Jornalista do "The Guardian", cobriu várias guerras pelo mundo, atravessou continentes e muitos países. Experimentou in loco muito do que se dizia ter ali chegado através de marinheiros portugueses. Resolveu, nos últimos anos que viveu, já cego, pesquisar e escrever sobre a história de Portugal, sobre os seus feitos, sobre o seu povo e posição geográfica. Page criou um livro que eleva o orgulho português aos mais altos patamares. Dificilmente poderia este livro ter sido escrito por um português, sem ser ridicularizado pelo excesso de vanglória e ostentação. Como inglês disserta sobre a visão que os ingleses faziam de Portugal, como ajudaram a criar mitos como Infante D. Henrique, ou como foram grandes responsáveis pelo fim da monarquia em Portugal, os nossos eternos "amigos de Peniche". Page faz um trabalho de desmontagem de alguns personagens, mitos de hoje, como o Infante D. Henrique, Cristovão Colombo, ou o Marquês de Pombal. E não deixa incólume José Hermano Saraiva, e as suas tentativas de branqueamento do Estado Novo. Ainda assim este livro de Page é mais romance do que livro histórico. Está muito mais preocupado em romancear a história, do que em analisar a sua factualidade. Page apaixonou-se por Portugal, e este seu livro é uma carta de amor escrita como legado ao país, em que decidiu passar os seus últimos anos de vida.

Page recua aos tempos em que a região em que Portugal hoje se situa, era denominada de Lusitânia pelo Império de Roma, e enche o texto de detalhes apaixonantes, como o facto de Julio Cesar ter sido governador da Hispânia Ulterior, e nessa altura se ter dedicado a conquistar a Lusitânia, local de onde extrairia o ouro, nomeadamente no Alentejo, que lhe iria devolver o respeito de Roma e abrir caminho para se tornar no Cônsul da República de Roma. É esta forma de descrever a história, que torna o livro tão estimulante, carregado de detalhe explicado causalmente, ainda que por vezes não seja suportado em evidência científica (ex: a insistência no “Arigato”), mas que dão um sentido, uma lógica ao que aconteceu no passado. Apesar de nos levantarem dúvidas, alguns dos relatos que nos vai fazendo, é verdade que Page recorre a um manancial muito interessante de fontes exteriores a Portugal, capazes de ajudar a complementar muito daquilo que temos lido na história nacional. Escrevendo assim, jornalisticamente, Page ajuda-nos a criar uma ideia narrativa, coerente e consistente, que facilmente entendemos e registamos.

É fascinante toda a discussão que Page faz sobre a presença dos Árabes em território nacional, tudo o que nos trouxeram e que por cá deixaram, em termos de conhecimento, nomeadamente o conhecimento da Grécia antiga que nos chegou por sua via. Assim como todo o sentido fluído com que vai dissertando sobre cada rei de Portugal, os seus feitos, conquistas, os seus contributos para a Europa e o mundo. Mas lendo Page percebemos como Portugal, a seguir a cada grande momento de grande riqueza, teria sempre um grande momento de pobreza. Por isso se hoje vivemos com problemas de rating no crédito internacional, isso não é novidade para nós. Já vivemos o mesmo problema em 1557 (p.177), pouquíssimos anos depois de termos sido o país mais rico do globo. E voltámos a viver o mesmo com o fim do produto proveniente do Brasil, após a sua independência, e que levaria ao colapso em 1926, que levaria ao surgimento de Salazar para implementar uma austeridade brutal, e assim reganhar o respeito dos mercados. Fica a ideia que ao longo de 900 anos de história, vivemos ao sabor da sorte, daquilo que o além-mar nos poderia trazer. Se fomos um Império, como Page e outros atestam (wikipedia), foi mais por conta de tudo o que conseguimos trazer de outras partes do mundo. Apenas com um milhão de habitantes, a geografia do país, ou quem o habitava, nunca conseguimos fazer grande coisa dele.

No livro de Page, tudo nas conquistas além-mar portuguesas são glórias. Não existe uma linha para discutir criticamente o período. Como apontamento sobre isto, deixo apenas esta gravura "Europe supported by Africa and America" (1796) de William Blake.

Page não reflecte criticamente sobre a problemática da riqueza conquistada, Page limita-se a apontar Portugal, e os portugueses como um dos principais povos a trilhar a comunicação internacional. Neste campo Page eleva os Portugueses ao alto, citando e atestando, sobre a amabilidade, abertura, e empatia dos portugueses para com os outros povos. Desde os Árabes inicialmente, aos povos em África, e aos Judeus que viveram na Europa até ao modo como os Portugueses acolhem ainda hoje. Page não o diz, mas este poderá ter sido o elemento central em toda a criação do Império Português, a sua facilidade de comunicação com o outro, o modo como se dava rapidamente, se adaptava a cada lugar diferente, e se deixava ficar criando raízes. Ainda hoje se refere que os portugueses terão sido responsáveis pela criação da raça de mestiços, ao fundir-se desde o início com as outras raças e credos, que ia encontrando, de forma aberta e sem tabus.

A capacidade e empenho nas viagens além-mar levou a que Portugal se tivesse concentrado no desenvolvimento de tecnologia que lhe permitiria ligar todo o mundo por via marítima. Desde tecnologia de orientação, a tecnologia de navegação, a tecnologia de guerra. Portugal inventou, criou, desenvolveu e implementou todo um arsenal capaz de permitir abrir caminhos desconhecidos, estabelecendo rotas marítimas periódicas que passaram a transportar o conhecimento entre todos os pontos do chamado Império Português. Durante o auge, o português chegou a ser Língua Franca no comércio e navegação. E é exatamente aqui que encalha o meu título para esta resenha.

Portugal foi o Google, em todos os sentidos. Arrisco dizer “todos”. Primeiro porque abriu caminho, onde este não existia. Segundo, porque deu a conhecer o que antes era desconhecido. Terceiro porque se tornou global, rico e poderoso. Quarto, o mais importante para mim, porque conseguiu tudo isto sem verdadeiramente criar nada. Criar, no sentido de produção de cultura, definidor do saber-fazer de um povo, aparte a tecnologia já descrita.

Tal como a Google, Portugal limitou-se a inventar tecnologia para abrir caminhos e dar a conhecer. Ambos, nunca se preocuparam em criar conhecimento e cultura para legar aos seus sucessores. Portugal enriqueceu enquanto dominou os caminhos de acesso às especiarias e ouro, tal como a Google enquanto dominar as pesquisas online. Portugal limitou-se a fazer passar de mãos conhecimento, tendo participado muito pouco ativamente na criação desse conhecimento. Com o que trazia de um lado, podia adquirir tudo o que queria do outro. (Um exemplo disto é bem evidenciado por Saramago, na descrição da construção do Convento de Mafra no seu "Memorial do Convento" (1982)). Tal como a Google, com a abertura dos caminhos da pesquisa, tem gerado somas de dinheiro astronómicas em publicidade, que lhe têm servido para criar mais tecnologias de transmissão. Quando acabar o auge das pesquisas Google, esta acabará por se afundar, como afundou o Império Português logo após a morte de D. Manuel, aquele que ficou conhecido na Europa como o “Rei Merceeiro”.

Page vai citando alguns exemplos de notáveis cabeças e invenções nacionais, mas convenhamos, que em quase mil anos de história, tudo o que é citado pode ser encontrado num único século de vários países da Europa. Só isto por si, pode demonstrar o nosso problema, e talvez explique a nossa forma de estar enquanto cidadãos do mundo, somos provavelmente pouco ambiciosos.

Fica o livro de Page, um livro fluído, sobre uma história fluída, de um povo fluído.

setembro 03, 2013

"Livro" de José Luís Peixoto

Conheço o trabalho do José Luis Peixoto (JLP) desde o seu primeiro romance, “Morreste-me” (2000), que me deixou logo apanhado pelo autor. Foi numa fase em que me dedicava a ler autores mais novos, procurava mundos mais próximos, e não tanto os clássicos que nos falam sob uma forma grandiosa, mas sobre realidades tão distantes no tempo, que dificilmente nos identificamos, ficando muitas vezes apenas pela forma, sem razões para acreditar no conteúdo. Apesar de ter adorado, nunca mais li nada seu, com a vida académica a não-ficção tomou o lugar da ficção, que ficou apenas reservada ao cinema e videojogos. De vez em quando pego num romance.

"Livro" (2010)

Em Agosto passei pela loja, vi os vários livros do JLP enfileirados, fiquei admirado por já ter publicado tanta coisa desde então, mas fiquei contente, pelo respeito que me mereceu desde então. Dos vários, o "Livro" foi o que menos me impressionou quando lhe peguei. Estou um pouco cansado de histórias sobre a emigração, apesar de saber que ainda nos falta muito dizer, muito enfatizar, sobre uma enorme fase da vida de Portugal. Mas depois de lidas as várias sinopses em cada contra-capa acabei por aqui voltar, e é verdade que o título me impressionou. Primeiro pensei, que pretensiosismo, mas respeitando o JLP, quis acreditar que não era de todo o seu estilo, e por isso trouxe-o comigo para casa.

Duas constatações prévias, JLP nasceu no mesmo ano que eu, é um filho de Abril que nunca conheceu o antes. Mais, é filho de emigrantes portugueses partidos para o centro da Europa num tempo em que não era permitido sair do país, que tal como os meus pais voltaram para Portugal para nos dar uma infância nacional, depois da revolução. Do que ele sabe, e eu sei, sobre esses tempos, foi ouvido em discursos diretos em casa, ao longo das nossas adolescências. Vivemos uma ruralidade na infância, sempre comparada com o exterior, que nos impregnou os sentidos do que é viver Portugal. Mais tarde, as cidades nacionais receberam-nos para que pudéssemos continuar os estudos, impulsionados por uma geração de pais que quis o melhor do mundo para os seus filhos, que quis que estes chegassem onde eles não conseguiram, sabendo que o único caminho para dali sair estava nos estudos. Talvez por tudo isto perceba e sinta tão de perto o que está neste livro.

Apesar de sentir o tema do livro de perto, quero dizer que a maior parte da leitura, digamos 4/5 foi feita sem esta sensação, já que se relata o antes. JLP começa em 1948, e nós só nascemos em 1974. Por isso aquilo que o livro constrói como seu universo expressivo, tocará a todos, mesmo quem não tenha tido qualquer experiência de emigração perto. Já que o que torna o livro, uma experiência estética tão poderosa, não é o tema em si, mas o tratamento que lhe é dado por JLP. Não me admirei, nem fiquei surpreso com o seu à vontade descritivo, nem tão pouco com as suas capacidades de gerar metáforas tão "perfurantes", em termos de sentido, ao ponto de nos darem “a ver” através de meros conjuntos de palavras. Porque como disse, já o admirava como escritor, apesar de ter apenas lido um livro seu antes, e várias crónicas em revistas.
"A Adelaide carregava no interruptor e as lâmpadas fluorescentes, depois de piscarem em cambalhotas de luz, acendiam-se uma a uma e faziam crescer um zumbido branco, que permanecia." (p.142)

"A terra respirava. Quando a Adelaide saiu de trás do muro do chafariz, já uma vírgula iniciara o percurso em direcção ao seu útero" (p.202)
O livro vem dividido em duas partes. A primeira parte, o grande bolo do livro (ocupa 200 das 260 páginas) é realista, com um toque saramaguiano, enreda-nos, agarra-nos e não nos larga. Comecei pela manhã, e só parei no final do dia quando cheguei à última página. JLP descreve o rural português de uma tal forma que me fazia questionar, a todo o passo, sobre o nível de detalhe que consegue ali despejar, até parecia que ali tinha vivido, que ali tinha sentido. E na verdade só depois descobri que JLP tinha vivido numa aldeia portuguesa, como filho de emigrantes. Ainda assim, aquilo que descreve são as suas memórias transplantadas para um tempo antes de ter nascido.

Mas não é apenas o detalhe descritivo, o enredo construído sobre uma fragmentação do tempo, muito típica do pós-modernismo que atravessa o storytelling atual, é desenvolto e capaz de gerar momentos de puro "thrill", apesar de não se tratar de um "thriller". Logo a abrir o livro, temos um momento destes, um baque, que nos surpreende, nos intimida, e imediatamente nos agarra ao livro. Ao longo do texto, temos mais dois ou três momentos destes fortes, que servem para nos acordar do fio romanesco da história.

A segunda parte é um salto adentro da forma, um trabalho sobre os fundamentos da literatura. Se o tema é a emigração portuguesa, percebemos a breve trecho que este serviu apenas de motor para algo maior. O "Livro", poderia terminar no final das 200 páginas, e seria um muito bom livro, mas não seria o "Livro". O "Livro" abre-se a nós, e nós a ele, levando-nos para um novo nível de interação entre o texto, o autor e nós os leitores.