agosto 29, 2011

Tiago Silva vence prémio internacional de Pintura Digital

No ano passado em Outubro de 2010 foi anunciado o concurso Share One Planet’ Wild Animals CG Art Elites Invitational Competition organizado pelo Wild Animals Cultural Project Fund em parceria com a CGSociety a ImagineFX entre outras, com o objectivo de:
“The Organizers hope the platform of ‘Share One Planet’ can be built for encouraging artists to create meaningful and inspiring CG works to raise attention of the plight of those wild animals that are a part of the one planet.”

 Poster do concurso concebido por Andrew Jones

Demorou quase um ano até se conhecer os vencedores do concurso que foram agora anunciados. Estiveram a concurso 233 trabalhos, criados por 173 artistas vindos de 38 países. O júri do concurso foi constituído por Mark Snowswell da CGSociety, uma das mais importantes comunidades internacionais de arte e comunicação de CG; Arnie Fenner e Cathy Fenner, directores da revista Spectrum Fantastic Art, Lu Shengzhang presidente da Academia de Animação e Arte Digital da Universidade de Comunicação da China, e artistas como Terryl Whitlatch, James Gurney, Xi Zhinong. O concursos foi entretanto dividido em 7 categorias: Portrait, Herd, Mother’s love, Prey and Predator, Harmony, Swan Lake e Digital Sculpture.

Blissful Place de Tiago da Silva, vencedor na categoria Mother's Love

Os sete trabalhos selecionados são de grande qualidade, talvez um dos que menos gosto seja The Moment de Samantha Hogg. Mas não teria problema nenhum em dizer que Blissful Place de Tiago da Silva é um dos melhores do lote, se não o melhor mesmo, talvez o único que se lhe compare seja Shared Between Us de Liam Peters. Para Arnie e Cathy Fenner o trabalho de Tiago Silva resume-se como: A wonderful representation of the lush green world of the jungle.

Todos os vencedores podem ser vistos na página da Share One Planet. E aconselho ainda vivamente uma ida à página na deviantArt do Tiago Silva para ver outros trabalhos também de excelente qualidade.

agosto 28, 2011

How we Decide (2009)

Jonah Lehrer é Contributing Editor na Wired, na Scientific American Mind e no Radio Lab da NPR. Já escreveu para The New Yorker, Nature, Seed, The Washington Post e The Boston Globe. E finalmente é autor do fantástico livro Proust Was a Neuroscientist (2007) que nos diz que os artistas já tinham previsto muitas das ideias que a ciência acabou por vir a demonstrar.


O seu mais recente livro, How we Decide (2009), apresenta a qualidade das revistas/jornais acima referenciadas, e para quem leu o seu primeiro livro, voltará a encontrar a beleza da prosa, da simplicidade, e da enorme capacidade de comunicação de Lehrer. Da minha leitura existem várias coisas que me apetece aqui focar. Existem várias folhas do meu livro marcadas, outras sublinhadas, outras apontadas em ficheiros txt, doc ou com entradas no meu blog. Foi um livro que demorei a ler, porque ia apontando muita coisa. O livro como disse é de digestão fácil, o problema é que nos faz pensar muito sobre o mundo que nos rodeia e como tal acabamos por demorar-nos sobre o mesmo.

Em termos de conteúdo, o que este livro nos traz é uma reafirmação do trabalho levado a cabo por Damásio e publicado em 1994, e que viria a mudar para sempre o modo como olhamos para o ser humano em termos científicos. Deixámos para trás Platão e Descartes, deixámos para trás o Racional, o Intelectual, o Consciente, e hoje sabemos que se somos a espécie mais avançada à face do planeta, é porque fazemos uso das nossas emoções, porque tomamos muitas decisões fazendo uso da nossa não-consciência, ou do Cérebro Insconsciente como lhe chama Lehrer.
"It's not how the brain works. For the first time in human history, we can look inside our brain and see how we think. It turns out that we weren't engineered to be rational or logical or even particularly deliberate. Instead, our mind holds a messy network of different areas, many of which are involved with the production of emotion. Whenever we make a decision, the brain is awash in feeling, driven by its inexplicable passions. Even when we try to be reasonable and restrained, these emotional impulses secretly influence our judgment."  Lehrer em Entrevista

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Ao longo de todo o livro somos levados por um discurso contaminado por estudos desenvolvidos no campo das neurociências, somos levados pelo cérebro adentro. É-nos explicado como funcionam as nossas emoções, como funciona o nosso centro de controlo racional, o córtex pré-frontal. Somos atingidos por neurónios e muita dopamina. O livro abre com várias demonstrações do poder da dopamina sobre o modo como esta nos ajuda a lidar com a complexidade do mundo. Sendo este neurotransmissor responsável por nos transmitir sensações de recompensa, ele é também responsável por desenvolver dentro do nosso cérebro previsões do que vai acontecer.
Seja um filme que estamos a ver e começamos a desenhar mentalmente como vai terminar - quem será o culpado - seja uma jogada de futebol que parte do meio campo até junto da baliza - mas o nosso guarda-redes defende -. A dopamina impulsiona-nos a encontrar padrões sobre o que estamos a ver, e leva-nos a prever como se deverão desenrolar as coisas dentro de cada padrão. A previsão confirmada, liberta grandes doses de dopamina que nos deixa muito satisfeitos, o seu contrário corta a libertação da dopamina que já estava em curso, e deixa-nos frustrados e em baixo.


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A Dopamina sendo responsável pela gratificação, é também responsável por evitar que entremos em frustração, daí que ela nos obrigue a executar a análise de padrões e a busca de possível sucesso. Por isso desenvolvemos em nós um sentimento muito emocional que é caracterizado pelo conceito de Aversão à Perda (falei disto a propósito dos videojogos). Sempre que perdemos e a dopamina não é libertada, ficamos mal, como tal ao longo da nossa aprendizagem vamos aprendendo a evitar qualquer atividade que possa contribuir para a nossa perda.
Até aqui tudo bem, o problema é que com a evolução da nossa espécie, e com a compreensão destes mecanismos, fomos desenvolvendo mecanismos para ludibriar a dopamina, ou melhor ludibriar as barreira criadas por ela. Dois dos mecanismos mais eficazes nesse logro são o Cartão de Crédito e mais recentemente, o maior responsável pela crise atual internacional, os créditos à habitação americanos, Sub-Prime.
O nosso cérebro parece ter dificuldade em registar perdas futuras, lida melhor com o presente, com o imediato. Aliás o neuro-economista George Loewenstein da Carnegie Mellon diz que os "cartões de crédito… anestesiam o nosso cérebro em relação à dor do pagamento".


No fundo o que acontece é que lidamos com a informação em níveis distintos dentro do nosso cérebro, como demonstram os estudos. Um perda imediata, ativa determinadas áreas do nosso cérebro, que fazem disparar de imediato os alertas. Uma perda futura, leva a que o nosso cérebro desenvolva todo um raciocínio sobre esse futuro, criando uma grande abstração em redor da perda, minimizando essa perda.
“Paying with plastic fundamentally changes the way we spend money, altering the calculus of our financial decisions… When you buy something with cash, the purchase involves an actual loss — your wallet is literally lighter. Credit cards, however, make the transaction abstract.”
No caso do sub-prime nos EUA, foi exatamente isto que aconteceu. Vender casas a pessoas sem posses, acenando com dois anos iniciais de pagamentos muito abaixo da prestação real, e depois quando chega a prestação real passados os dois anos é que as pessoas entram em choque, a dopamina dispara e percebem que não podem pagar.


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Aliás isto vem no sentido de um outro conceito desenvolvido no livro, que tem que ver com a racionalização em demasia, e as limitações do nosso raciocínio. Lehrer explica-nos que o nosso Cortex Pré-frontal é muito bom a decidir mas apenas quando a decisão envolve um número reduzido de variáveis. E aqui voltamos à velha teoria psicológica, sempre presente, de que a nossa memória de curto prazo, consegue apenas reter entre 7 a 9 elementos máximo. Ora o que acontece quando temos de comprar um Carro, uma Casa, ou qualquer outro objeto complexo, este possui demasiadas variáveis para analisar, e deste modo acabamos por sucumbir à racionalidade da análise das variáveis, muitas vezes toldando aquilo que realmente seria importante para nós. Demonstrando claramente o alcance do Racional, e indo de encontro à teorização de Damásio, sobre a necessidade do uso da emoção pela razão.

O mesmo acontece na relação com a arte, sendo muito diferente a relação que se estabelece com um quadro ou um filme, quando sentimos essa obra, ou quando nos é pedido para explicar porque gostamos dessa obra. Nos estudos realizados por Timothy Wilson da Universidade da Virginia, ficou demonstrado que as pessoas quando escolhem um quadro por instinto, sentem-se mais satisfeitas com ele passado alguns meses, do que aquelas pessoas a quem se pede que explique a razão da sua escolha antes de levarem o quadro para casa. A racionalização da escolha de algo complexo como uma obra de arte, tolda o nosso córtex pré-frontal, e impossibilita-nos de ver com clareza emocional aquilo que realmente gostamos.

Black on Maroon, de Mark Rothko, 1959

O problema disto é que vivemos numa sociedade, que dita, quanto mais informação melhor. E Lehrer dá exemplos como o dos médicos que se socorriam de MRIs (imagens do interior do corpo criadas por  ressonância magnética) para analisar problemas de coluna, cometendo mais erros de cálculo do que aqueles que apenas analisavam os problemas por Raio-X. Ou seja no MRI conseguiam ver na perfeição a coluna, vendo todos os defeitos, deixando de se concentrar no essencial para se concentrar na enorme quantidade de problemas visíveis no MRI. Aliás isto foi demonstrado e levou mesmo a que a Associação de Médicos Americana começasse a recomendar que não se fizessem MRIs à coluna nas consultas iniciais, e que estes se limitassem ao Raio-X.

Outros casos falados no livro são os corretores da bolsa, e a quantidade de variáveis com que têm de lidar, ou os orientadores de carreira, que recebem portefólios tão pormenorizados das pessoas, que acabam por emitir pareceres sem qualquer utilidade. Aliás esta mesma ideia foi já discutida em Blink de Malcolm Gladwell.

Para resolver esta problemática, Lehrer sugere-nos que para tomar decisões com grande número de variáveis, o melhor a fazer é: “Take your time, to allow the unconscious brain to digest the overwhelming information”. Porque como ele diz nas suas conclusões finais, nós sabemos mais do que aquilo que pensamos saber. E a melhor forma de libertar todo esse conhecimento é permitir que o Não-Consciente tome decisões também. Mas atenção isto só é válido para quando existe experiência acumulada que só pode ser fruto do investimento de muito tempo e prática. Aliás mais uma vez em sintonia com Gladwell, agora no seu livro Outliers, quando este refere, que para nos tornarmos verdadeiros experts em algo, precisamos de um investimento médio de 10,000 horas. O interessante em Lehrer, é dizer que este conhecimento está dentro de nós, e que não é possível sintetiza-lo no imediato e de forma racional, porque este está espalhado por zonas do nosso cérebro ao qual o nosso Cortex Pre-frontal não consegue aceder, porque acederá apenas a um numero limitado de zonas para tomar decisões, as tais 7 a 9 possibilidades.


04
Dois apontamentos finais, um sobre a distinção entre o - Conscious Brain (Racional) – Unconscious Brain (Emocional) e outro sobre a arte do Learn by Doing.

04.1
Lehrer diz-nos que nos estudos realizados é necessário utilizar pequenos artifícios para “enganar” os sujeitos, ou seja, para os fazer tomar atitudes Conscientes, ou atitudes Inconscientes. Num desses estudos ele refere o seguinte

“… a person would be forced to make a decision using the unconscious brain, by relying on his or her emotions. (Conscious attentions had been focused on solving the word puzzle).” P.233

Isto abre a porta para várias discussões sobre o modo como as emoções são processadas diferentemente durante a experiência de um Videojogo e durante a experiência de um livro ou filme. Deixo o apontamento, e qualquer dia voltarei a ele.

04.2
O segundo apontamento tem que ver com as estatísticas da aviação. Os riscos de acidentes de aviação cometidos por erros dos pilotos desceu drasticamente após a introdução dos simuladores de voo (P.253) nos anos de 1990. Anteriormente à existência desta tecnologia, os pilotos aprendiam por recursos tradicionais de educação, em que os pilotos mais velhos davam seminários. Assim em vez de memorizar as lições dadas pelos pilotos mais velhos, o simulador passou a permitir que os pilotos iniciassem de imediato o treino do Cérebro Emocional. Este treino permite assim uma capacidade de resposta emocional em voo, ao passo que o conhecimento memorizado orbriga sempre a uma reposta racional, muito mais lenta e limitada como já vimos acima.


Para além disto, os pilotos eram levados ao extremo nos simuladores, levados a cometer erros, para que percebessem, mas mais do que isso, para reterem informação emocional do erro e saberem como reagir quando estivessem a pilotar realmente um avião.

Este é mais um assunto que me interessa particularmente pelo modo como se cruza no uso dos videojogos em sala de aula. Ou seja, estes dados dos pilotos, demonstram claramente o que temos vindo a dizer de que muito mais importante que ouvir, ler ou ver, é experienciar, decidir, repetir, repetir, errar, e errar, repetir e acertar. E isto é aquilo que nos vem dizendo Paul Gee fazendo uso das teorias da cognição situada.

agosto 24, 2011

Kells: cinema, arte, ilustração e videojogos

"The Secret of Kells" (2009) é uma obra-prima no campo da animação. Com todo um universo visual muito próprio, e uma forma de contar a história em consonância, funciona como um sopro de diferença no meio das grandes produções de animação internacionais. Kells é um produção Irlandesa independente com suporte de equipas de animação e efeitos visuais de países como a França, Bélgica, Hungria e Brasil.


Não ganhou os Oscars em 2010, e em Annecy em 2009 ficou-se pelo Audience Award, no entanto não lhe faltam grandes prémios no currículo. Em 2010 o Oscar foi para Up (2009) da Pixar. Realmente Up é também um dos melhores filmes de sempre da Pixar, no entanto olhando para a filmografia daquilo que a Pixar já produziu Up não é tão diferente como isso. Em face da restante concorrência desse ano - Coraline, Fantastic Mr. Fox e The Princess and the Frog - julgo que a atribuição foi dada com pouca consciência. Aliás o mesmo aconteceu em Annecy em que o prémio foi ex-aequo para Coraline e Mary and Max. Digo isto porque The Secret of Kells é sem dúvida a única obra deste lote que se apresenta num tom inovador, ao nível da arte, ilustração, e animação. Ainda que suportada por uma obra anterior (um livro gráfico) consegue criar todo um universo próprio, muito diferente das concepções atuais.


No campo da ilustração é um deslumbre olhar para o filme, cena a cena, ambiente a ambiente, atmosfera a atmosfera. Somos transportados por entre diferentes mundos que forma um todo coerente e misterioso. A própria animação destes quadros é pouco convencional, não se centra demasiado em tornar a montagem invisível, mas sim em gerar dinâmica visual, faz lembrar algumas séries de animação menos mainstream. Mas o que achei ainda mais interessante é que a estrutura narrativa, podia facilmente ter sido adaptada de um videojogo e não de um livro. Aliás esta não é uma discussão nova, já em tempos a tive esta discussão com colegas de Storytelling Interactivo a propósito das lendas inglesas, uma das quais foi recentemente adaptada para cinema, Beowulf (2007). A forma como estas lendas se caracterizam no formato de aventura, da quest. O messias que vem para salvar, a ultrapassagem de obstáculos, o encontrar de novas forças, o aparecimento de magias e mistérios, e o salvar de uma comunidade. Tudo isto trespassou para o universo dos videojogos, e voltou a consagrar-se como um modelo de narrativa nobre. Em The Secret of Kells é também isso que se sente, essa estrutura formada por uma lógica de progressão, em que os personagens são importantes mas não são centrais, fazem antes parte de um enredo maior, de um colectivo que trabalha para um fim, neste caso salvar "o livro".


The Secret of Kells conta uma história enfabulada de um livro real, The Book of Kells. O livro de Kells é um daqueles livros produzidos na idade média por monges escribas nos mosteiros da Irlanda, Escócia e Inglaterra. Este livro em concreto está cheio de arte e ilustração de uma qualidade impressionante. Terá sido produzido ao longo de três séculos daí que não admire a quantidade de labor, detalhe e qualidade que o livro apresenta.


The Secret of Kells pega na história do livro e na sua arte e cria um filme de animação que nos transporta por entre ambos os mundos, o histórico da produção e preservação e o da criação e estética do mesmo, formando um conjunto brilhante.


agosto 22, 2011

"What Technology Wants?" de Kevin Kelly

Kevin Kelly foi editor da Whole Earth Catalog, editor fundador da Whole Earth Review, ajudou a criar a primeira comunidade virtual The WELL, e depois disso fundou e editou a revista Wired durante os seus primeiros 7 anos. Kelly não é um académico, esteve apenas um ano na Universidade de Rhode Island e desistiu, mas isso não faz dele um pensador menor, antes pelo contrário. Aliás na sua casa nos EUA, sem TV, sem PDA ou smartphone, sem computador portátil, recebe todos os dias novos produtos tecnológicos de empresas de todo o mundo para que possam ser analisados e referidos por ele numa qualquer intervenção, ou no seu blog.


What Technology Wants é o seu segundo livro, o primeiro data de 1994, Out of Control: The New Biology of Machines, Social Systems, and the Economic World. Da minha leitura retive quatro pontos que me parecem valer a pena refletir mais em profundidade e levar para outras leituras e outras interjeições. Kelly é um pensador capaz de colocar em discussão várias perspetivas distintas da ciência, de interrogá-las e extrair delas novas análises, e novas conclusões. O seu livro não é um livro clássico no sentido académico da referenciação exaustiva, mas nem por isso se sente que os dados apresentados não estejam sustentados por estudos de referência, recentes e de reconhecida qualidade.


1 - O que é que a Tecnologia Quer?
Kelly diz-nos que a tecnologia é tudo aquilo que criamos, é todo um sistema cultural que que se pode definir como “technium”, ou seja, “uma ideia de um sistema de criação auto-suportada" (p.12). E é aqui que está o cerne do livro, no auto-suporte da tecnologia, que fundamenta a ideia do que a Tecnologia Quer ou Precisa. Nesse sentido Kelly diz-nos que a tecnologia quer aquilo para que a desenhámos, aquilo para o qual a direcionámos, mas para além disso tem desejos próprios.
A tecnologia quer hierarquizar-se, tal como os grandes e interligados sistemas. Quer o que qualquer sistema vivo quer: perpetuar-se a si própria, manter-se. E à medida que vai crescendo estes desejos internos vão ganhando força e complexidade. Ainda assim Kelly diz-nos que estes não são desejos conscientes, estes funcionam mais como uma compulsão para algo.
Este é um dos pontos mais controversos do livro, no sentido em que se debate contra uma perspectiva científica do acaso, apostando numa ideia criacionista, do “design inteligente”. Do meu lado não sinto que Kelly esteja apostado nessa batalha, apesar da referência a Deus aparecer no livro. Julgo que o que Kelly nos quer dizer é que a tecnologia se define como um sistema complexo, e que dessa complexidade resulta um conjunto de forças que empurram e sistematizam a evolução da mesma.


2 - O Impacto da linguagem
Kelly baseado em vários autores (Richard Klein, Ian Tattersall, William Calvin, Daniel Dennett) diz-nos que a primeira grande tecnologia inventada pelo ser humano foi a Linguagem.
“The creation of language was the first singularity for humans. It changed everything (..) A new idea can be spread quickly if someone can explain it and communicate it to others before they have to discover it themselves."
O impacto desta tecnologia sobre a espécie foi tremendo, no diagrama abaixo podemos ver a explosão populacional ocorrida há 50 mil anos quando a linguagem apareceu na nossa espécie.


Mas o poder da linguagem não se refletiu apenas sobre a comunicação entre pessoas, foi mais fundo do que isso, alterou o modo como vemos e como pensamos o mundo.
“Language is a trick that allows the mind to question itself; a magic mirror that reveals to the mind what the mind thinks (..) If our minds can't tell stories, we can't consciously create; we can only create by accident. Until we tame the mind with an organization tool capable of communicating to itself, we have stray thoughts without a narrative.”
Mark Pagel numa recente TED Talk, How Language Transformed Humanity, explica uma possível lógica para o aparecimento da linguagem entre nós, baseado na “aprendizagem social”, na chamada habilidade para aprender copiando o outro, imitando o outro, refere a necessidade de um modo estandardizado de troca de informação. Para mim parece-me algo simplista, ainda que possa ter algum reflexo de realidade. Mas na verdade acredito que a linguagem tenha aparecido mais como um reflexo da necessidade de comunicar sentires, do que de comunicar ideias materiais.
Finalmente Kelly diz-nos que sem tecnologia, duraríamos pouco mais de alguns meses.
“Technology has domesticated us. As fast as we remake our tools, we remake ourselves. We are coevolving with our technology, and so we have become deeply dependent on it. If all technology every last knife and spear were to be removed from this planet, our species would not last more than a few months. We are now symbiotic with technology.”

3 – O Poder da Ciência


Kelly vai referir que a Ciência foi o segundo grande momento da evolução tecnológica da nossa espécie. No mapa acima podemos ver como a evolução da população se manteve estável depois do aparecimento da linguagem, mas começou a subir em meados do século 17th, e explodiu por completo no século 18th com a Revolução Industrial.
“By systematically recording the evidence for beliefs and investigating the reasons why things worked and then carefully distributing proven innovations, science quickly became the greatest tool for making new things the world had ever seen. Science was in fact a superior method for a culture to learn. Once you invent science which allows you to quickly invent many things you have a grand lever that can propel you forward very quickly.”

Kelly questiona-se sobre a razão pela qual isto não aconteceu com os Gregos ou os Egípcios anos antes. A sua explicação é muito interessante, porque assenta na maturidade das sociedades, na capacidade destas verem o progresso no tempo, e não no imediato. Ou seja os custos de produção de ciência são muito elevados, requerem muita tentativa e erro, muito investimento até haver real retorno. Para isso é necessário que uns produzam, e outros investiguem. Mas sem meios que facilitem a produção, não nos podíamos dar a luxo de termos muitos a investigar.
“Science requires a certain density of leisured population willing to share and support failures to thrive. That leisure is generated by pre-science inventions such as the plow, grain mills, domesticated power animals, and other techniques that permit a steady surplus of food for large numbers of people. In other words, science needs prosperity and populations.

4 - Aumento ou Diminuição da População
A última questão que me interessa salientar do livro, se bem que existam muitas mais, é o facto de Kelly apontar constantemente a prosperidade, o bem-estar da nossa espécie em função do aumento da nossa população no planeta. Até agora tem sido, quantos mais somos, mais temos conseguido produzir, e mais elevada é a qualidade de vida em geral. Como vimos no ponto anterior, a necessidade de mais população foi uma condição para a germinação de ciência.
Aparte os problemas de sustentabilidade, os números mais recentes mostram que as sociedades mais desenvolvidas têm vindo a evoluir no sentido contrário. Ou seja no declínio populacional dos seus países, Europa, Japão e EUA. Na Europa nascem 1.3 filhos por casal, quando o mínimo para substituir a geração precedente é de 2.1. A questão de Kelly é saber até que ponto estamos ou não dependentes do aumento populacional para progredir, ou não.

“The question is, if rising prosperity hinges on rising population, what happens to deep technological progress if there are centuries of slow population decline?”

Em jeito de fechamento e deixando espaço para que leiam o livro e tirem as vossas conclusões, deixo um mapa de projeção da ONU para os próximos 300 anos. Existem três cenários, vamos ver o que nos espera.


Se precisarem de mais um incentivo para ler o livro, aqui fica a Ted Talk de Kevin Kelly de 2005, aonde ele já traça em linhas gerais aquilo que depois viria a ser este livro.



A melancolia de Grey

Grey (2011) pertence a todo um novo mundo de jogos independentes, mais preocupados com a mensagem, a ideia, a história, do que com a originalidade do gameplay. O gameplay aqui serve o propósito de levar o jogador a participar do mundo do jogo, a tornar-se íntimo da relação entre um rapaz e uma rapariga.


É um jogo pequeno, rápido, sem grandes dificuldades, que vale pela mensagem que passa. É adorável no sentido em que se bate por trabalhar áreas emocionais pouco comuns nos videojogos, como a tristeza e a melancolia.


Grey de Kevin McGrath apresenta-se sob uma capa de simplicidade passada pela ação do menino que percorre o mundo em busca dos objetos perdidos da menina. A cada objeto encontrado o menino tem de o levar de volta. À medida que a menina vai recebendo os objetos o mundo vai-se transformando. É um jogo no qual podemos sentir a progressão narrativa a acontecer, no final faz-se luz sobre toda a simplicidade apresentada.


Aqui abaixo podem ler uma interpretação da história por detrás do jogo. Deixo-a a cinza para que leiam apenas depois de jogarem. Joguem, não leva mais de 15 minutos, e depois voltem aqui para ler e ver se concordam.

**SPOILER de Little Hat**
It seems that the boy you play as is a dead one who exists only in the girl's memories. As first, the world is void of colour in the mind of the girl, who cannot let go because of her sadness. As you give her the things that she like, you give colour to her empty world. Once you help her let go of her sadness, and let go of your death, then she can finally be happy and live her life full of colour; grey no more.

Monstros de tecnologia criativa

"Creativity is just being like stupid enough to not realize you can't do something, and you just go and do it" Gareth Edwars [1]

Estou em choque. Acabo de perceber que o filme que vi ontem à noite, e ao qual atribuí mentalmente 4 em 5, foi feito com apenas 500 mil libras (600 mil euros), dois actores profissionais, num total de 7 pessoas que gravaram tudo percorrendo os locais juntos numa única carrinha. Em cima de tudo isto Gareth Edwards é: Realizador, Argumentista, Director de Fotografia, Designer de Produção e Efeitos Visuais.


Tinha ouvido falar em Monsters (2011) aqui e ali, mas não tinha ligado muito, até que vi que algumas revistas da especialidade também estavam a falar do filme. Não li nada sobre o mesmo, apenas quis perceber porque tinha vindo para a ribalta. Ao ver o filme fiquei entusiasmado com o facto de há muito não ver um filme trabalhar tão bem o poder da sugestão. Aliás vi na semana passada Battle Los Angeles (2011) que tenta fazer o mesmo, e que falta de jeito, para não dizer outra coisa.


O que mais me impressionou foram duas coisas, que agora percebo derivam em parte das condicionantes financeiras, mas funcionam como duas qualidades estéticas que definem todo o filme: a atmosfera visual, e os silêncios. Existe do lado visual um tal cuidado na criação do ambiente que durante todo o filme nunca me deu espaço para pensar que seria um filme de baixo orçamento. A cinematografia ainda que feita à custa de câmaras digitais de valor médio, assume um lugar de destaque, assim como o design da produção e os efeitos visuais. A beleza dos enquadramentos em corte dos motivos trabalham em toda a força para o efeito de sugestão.


O interessante é que todos os efeitos visuais foram feitos por uma única pessoa a partir do seu quarto, o centro das tecnologias criativas do futuro [2]. Gareth Edwards, armado apenas com o seu computador portátil e dois pacotes de software - a colecção da Adobe e o 3d Studio Max. Para além disso, o tempo 8 meses de edição, mais 5 para os efeitos, mas mais importante que isso o know-how. Edwards tem mais de 10 anos de experiência de Efeitos Visuais para documentários da BBC, alguns com orçamentos maiores do que este filme.


Do lado do silêncio, ainda que o guião o possa ter previsto, só é possível porque a dupla de actores, Whitney Able e Scoot McNairy, profissionais mas pouco conhecidos, funcionam em registos altíssimos. A uma determinada altura do filme só consigo olhar para eles, fixo-me neles, na beleza de Whitney Able em meio a tanta sujidade, e na honestidade de Scoot McNairy. Em jeito de road-movie, com um destino apontado, mas que não surge constantemente como um clímax relembrado. O filme deixa-nos viver o momento, o processo, deixa-nos aprender a compreender os monstros, a natureza. De salientar que todos os restantes actores são pessoas que vivem nos locais, não profissionais, e que trabalharam de improviso para o filme.


Monsters demonstra como um tema vulgarizado, das metáforas dos ETs como minorias étnicas, pode ser tratado de forma diferente e oferecido como algo mais do que essa metáfora. Penso em Avatar (2009) e toda a sua tecnologia, as centenas de técnicos especialistas, contra um único técnico generalista em Monsters. E vejo que a mesma narrativa sofre abordagens tão distintas. Monsters fala-nos de dentro de nós, Avatar é só exteriorização. Mesmo District 9 (2009) acaba por sair aqui na frente dos recursos tecnológicos mas atrás, no que toca à coerência visual e humanização da narrativa.


Gareth Edwards fala numa entrevista que um filme de influência para Monsters, foi Gerry (2002) de Gus Van Saint. Realmente ao ler isto fiquei colado, é verdade, pode-se sentir o respirar de Matt Damon e Casey Affleck neste filme, os ritmos, o road-movie sem clímax, o silêncio, muito silêncio. Duas pessoas que deambulam, e nós que deambulamos por entre eles.


[1] Making of a Monster Movie. Inside Indie Filmmaking. On Best Buy
[2] How I Made A Monsters Movie, entrevista de Mark Kermode no quarto de Gareth Edwards

agosto 21, 2011

brilhante melancolia

Another Year é o último filme de Mike Leigh mas fez-me recuar lá atrás, lembrou-me o seu melhor, Naked (1993).


Existem autores com uma capacidade invulgar para tornar em visual ideias mentais, outros para criar acção, outros para pintar e dourar a realidade. A qualidade de Leigh está na forma como observa a condição humana, como desvasta os obstáculos à penetração da câmara, e nos leva ao fundo de cada um dos seus personagens. Ainda que seja uma realidade localizada, sente-se muito a Inglaterra aqui, mesmo assim é um trabalho capaz de falar multiculturalmente. Porque nos fala das emoções, do sentir, do mundo das relações humanas frágeis, doces e amargas.


Muito interessante a forma como Leigh trabalha as empatias entre os personagens, como não existe crítica, ou quando existe é contida, como existe uma compreensão saudável do estado do próximo.

É um claro filme minimalista em termos de plot, porque maximalista em termos de personagens. Personagens humanos, rasgados por defeitos e coisas boas.

Eurogamer: dos hardcore gamers à moral


Aqui fica a referência para os dois artigos que publiquei na Eurogamer este mês de Agosto. O primeiro diz respeito às diferenças entre os hardcore e os casual gamers, em termos emocionais. Fala sobre o modo como estes olham para o jogo e o sentem e o que os impele a continuar a jogar.


No segundo artigo, publicado ontem, falo de novo sobre as questões da violência nos jogos, agora a partir da perspetiva da moral, desmontando os mecanismos que desenvolvem a moral em termos evolucionários. É um texto longo para revista, mas muito curto para explorar as várias vertentes que ainda ficam ali por dizer. De qualquer modo abre o assunto e deixa os links para quem queira saber mais.


agosto 03, 2011

"Sweatshop": Comunicação Pública via Videojogos

Sweatshop (2011) é uma espécie de PSA em formato de videojogo, Flash free-to-play, criado pela Littleloud para o Channel 4 Education. Esta dupla já no ano passado tinha realizado um PSA em formato de web-história interactiva, este ano optou pela linguagem explícita de jogo. É mais um passo importante em direcção à afirmação do potencial dos jogos enquanto meio de expressão. O que está aqui em causa é um jogo que questiona a sociedade, questiona o meio político, e obriga-nos a reflectir sobre a sociedade de consumo em que vivemos, e que nós ajudamos a criar todos os dias.


É muito interessante analisar como é que a mensagem passa diferentemente de um documentário fílmico, ou de um texto. Aqui somos colocados na pele do "explorador". Não estamos apenas a ler ou a ver o problema, fazemos parte dele, e somos chamados a agir. Se queremos ganhar temos de perpetrar as ações, o que nos faz compreender o que está no âmago da exploração de uma maneira que um documentário não consegue fazer. Ou seja percebemos o que leva, instiga, aquelas sweatshops a fazer o que fazem.


Com esta compreensão do processo, não quer dizer que passemos a aceitar, mas antes pelo contrário, passemos a compreender muito melhor o que está por detrás de tudo aquilo. De repente e com apenas um pequeno jogo, é possível explicar à sociedade, que o que cria estes locais, não são forças imaginárias vindas diretamente do inferno, do mal encarnado. Mas antes que é tudo parte de um processo desenvolvido a partir de um sistema aberto e no qual nós temos um papel muito importante.


O jogo possui três áreas ou fábricas, e cada uma possui dez níveis. O interessante é analisar como o aumento de complexidade típica das mecânicas de Tower Defense cresce em sintonia com o tema da exploração de crianças nas fábricas. À medida que o jogo vai avançando e a complexidade se vai estruturando, o discurso do jogo torna-se mais e mais efetivo.


Aliás as próprias mecânicas de Tower Defense, são aqui distorcidas para responder melhor à mensagem que o jogo pretende passar. Enquanto num normal jogo deste género, como Kingdom Rush (2011) a diversidade de equipas é o melhor, aqui em pouco tempo começamos a perceber que o modo para atingir melhores resultados é usar massivamente um dos elementos, as crianças. Por outro lado, se em vez de sintonizarmos o máximo de pontuação no jogo, ativarmos a nossa preocupação com o bem estar dos trabalhadores, seremos levados a definir estratégias que evitem o uso das crianças, mesmo sabendo que elas otimizam a nossa produção. Diria que é uma forma invertida do jogo nos levar a tomar consciência dos nossos atos. Para além de fazer uso de uma lógica de psicologia invertida, diria que com isso ganha o interesse do jogador, pois evita o facilitismo do discurso educacional que é castrador em termos motivacionais.