Um rasgo de inteligência em estado puro, é o que posso dizer sobre a leitura das palavras de David Deutsch em “
The Beginning of Infinity: Explanations that Transform the World”. A ciência, ou melhor, o pensamento científico elevado ao cume da experiência humana, explanado de uma forma simples e acessível e ao mesmo tempo capaz de ir ao fundo de tudo aquilo que somos enquanto seres humanos, mais, de tudo aquilo que poderemos vir a ser. É um livro com uma mensagem poderosamente otimista, capaz de evocar e incitar o melhor que existe no ser humano. Um livro ao nível de “
Cosmos” de Carl Sagan, não só atual mas muito mais ambicioso, sem contudo perder nada do sonho que tornou Sagan tão fascinante. Deutsch é um prodígio da consciência humana.
“This is Earth. Not the eternal and only home of mankind, but only a starting point of an infinite adventure. All you need do is make the decision [to end your static society]. It is yours to make (..) [With that decision] came the end, the final end of Eternity — And the beginning of Infinity.” Isaac Asimov, "The End of Eternity" (1955)
O primeiro grande impacto, de entre vários que se sucederam, que senti na leitura deste livro foi quando percebi que me tinha deixado convencer por Deutsch que a colonização da Lua e de outros planetas no espaço é algo pleno de sentido. Apesar de consumir, e adorar, ficção científica, estas ideias sempre me pareceram um tanto descabidas, nomeadamente por toda a complexidade envolvida nas necessidades de oxigénio de todo o modelo de vida surgido na Terra, assim como a ausência de propósito claro. Contudo, quando entramos na cabeça de Deutsch, e nos deixamos guiar pela sua visão de vanguarda do mundo que teremos na nossa frente, tudo isso parece não só plausível, como absolutamente natural.
A base de partida para tudo, segundo Deutsch, surge com o Iluminismo (séc. XVIII), a terceira revolução do conhecimento, depois da Grécia Antiga e da Renascença italiana. Apesar de Deutsch defender que estes dois períodos anteriores se deixaram extinguir, acredito que no entanto e graças à existência de registos à data de cada um, os seus efeitos fizeram sentir-se sobre o Iluminismo, ao ponto de não acreditar na sua existência sem esses prévios movimentos. O que distinguiu este movimento de tudo o que veio antes, foi segundo Deutsch, “
a way of pursuing knowledge with a tradition of criticism and seeking good explanations instead of reliance on authority”. Deste modo defende que o impacto do avanço, em termos da racionalização do mundo, obtido com o Iluminismo perdura até hoje, dando conta do conceito central de todo o livro: o começo do infinito. Porque o infinito é aquilo que nos espera através do desenvolvimento do conhecimento.
“The ability to create and use explanatory knowledge gives people a power to transform nature which is ultimately not limited by parochial factors, as all other adaptations are, but only by universal laws. This is the cosmic significance of explanatory knowledge – and hence of people, whom I shall henceforward define as entities that can create explanatory knowledge.”
Mas para que este conceito verdadeiramente funcione, ou melhor, para que se possa produzir a crença na ideia de que estamos no início de um infinito, precisamos de uma componente que por vezes não abundam na nossa espécie, mas que Deutsch transpira por todos os poros com esta sua visão do mundo, e que é o Otimismo. Para Deutsch o fundamento da relevância do conhecimento assenta na sua capacidade para resolver problemas, sendo para ele a resolução de problemas o fundamento de tudo, e aquilo que nos pode levar ao infinito, ou seja a algo que não poderemos nunca imaginar no presente, resultando num mantra otimista:
"Problems are inevitable; problems can be solved."
Mas se nós podemos resolver problemas, não é apenas por termos um cérebro e sermos dotados de inteligência, isso têm todos os restante animais, aquilo que marca esta capacidade e daí toda a relevância do Iluminismo, é o Método Científico, e por usa vez o Universalismo. O que quer isto dizer?
O método científico assenta em lógica muito simples sustentada por apenas uma ideia, a replicabilidade, ou repetição. Se um evento se repete podemos extrair uma regra, e quanto mais aprofundamos a aplicação do método e a busca pela repetição mais nos distanciamos do particular e mais nos aproximamos do universal. Ou seja, as teorias que criamos sobre o real que nos envolve não são aplicadas a casos particulares, localizados, mas são antes abstractas, independentes do particular, capazes de elaborar uma linguagem que explica o passado e pode explicar o futuro. Nesse sentido, torna-se fácil acreditar que podemos resolver problemas no futuro, desde que tenhamos identificado as regras universais que regem a realidade — ex. o caso das Leis de Newton — e assim acreditar que continuaremos a desenvolver-nos, e a expandir-nos no universo em direção ao infinito.
O que esta abordagem do mundo — método científico — nos trouxe foi não apenas uma forma para calcular o funcionamento e compreender como funciona, mas ao mesmo tempo uma enorme capacidade para fazer, transformar e construir — ex. revolução industrial. Facilmente se pode ver o salto ocorrido neste período e que assenta completamente neste método, que por sua vez não parou, tendo desde então produzido outros saltos como a recente revolução da informação. Esta abordagem permite partir da particularidade, especulando hipóteses, procurando a sua demonstração ou refutação, e assim chegar à generalização, que por sua vez nos permite ganhar terreno no controlo do real à natureza.
“From the least parochial perspectives available to us, people are the most significant entities in the cosmic scheme of things. They are not ‘supported’ by their environments, but support themselves by creating knowledge. Once they have suitable knowledge (essentially, the knowledge of the Enlightenment), they are capable of sparking unlimited further progress.”
Uma das questões mais instigantes desta abordagem de Deutsch assenta numa conceptualização do mundo em contra-ciclo com o momento atual que a nossa civilização atravessa, cansada da inspiração em teorias económicas que nos trouxeram até ao momento de grande crise por acreditarem exatamente nessa expansão infinita de recursos, recuperando assim um outro economista, Malthus, que defendeu no século XVIII a necessidade de controlo populacional por prever a incapacidade do planeta em dar repostas ao excesso de população. É do enorme otimismo de Deutsch que surge essa visão, essa ausência de medo do futuro, uma força interior imensamente crente no poder do conhecimento, nomeadamente na sua capacidade para constantemente resolver os problemas que se nos colocarão pelo real.
“Like every other destruction of optimism, whether in a whole civilisation or in a single individual, these must have been unspeakable catastrophes for those who had dared to expect progress. But we should feel more than sympathy for those people. We should take it personally. For if any of those earlier experiments in optimism had succeeded, our species would be exploring the stars by now, and you and I would be immortal.”
Com esta abordagem, como digo em contra-ciclo com muitas das ideologias do mundo atual, torna-se inevitável Deutsch entrar em conflito com teorias e teóricos de reconhecido valor, questionando-os, mas obrigando-nos a nós também a reagir, a analisar, estudar, e aprofundar as ideias apresentadas, procurando os caminhos em que acreditamos. Diga-se que Deutsch é brilhante no modo como explana, simples e direto, apresenta uma argumentação imensamente lógica, e ao mesmo tempo dirigida a instintos de que somos dotados enquanto espécie motivada intrinsecamente.
“It is a mistake to conceive of choice and decision-making as a process of selecting from existing options according to a fixed formula. That omits the most important element of decision-making, namely the creation of new options (..) an unproblematic state is a state without creative thought. Its other name is death.”
1. O problema do empirismo
Deutsch abre o livro atacando desde logo todo um conjunto de teorizações com toda uma carga aparentemente científica, nomeadamente o empirismo, procurando assim dar conta de uma abordagem do mundo que não se resigna à ciência, menos ainda ao observável, mas que é capaz de laborar sobre o experienciável com a razão. Daí que
toda a conceptualização de Deutsch seja imbuída de ciência e filosofia.
“Empiricism is inadequate because scientific theories explain the seen in terms of the unseen and the unseen, you have to admit, doesn’t come to us through the senses.”
2. As incapacidades dos neurónios espelho
A sua segunda grande crítica, tenho de admitir que me custou e lhe levanto várias objeções, já que coloca em questão uma das teorias que tenho usado ao longo da última década para explicar a aprendizagem e emocionalidade humanas, e nomeadamente todo o funcionamento do nosso sistema empático, tem que ver com os neurónios espelho. Deutsch disserta sobre as diferenças entre os animais e os seres humanos, entre o modo como o papagaio aprende uma língua e um ser humano, não refutando a existência deste mecanismo de espelho e imitação nos humanos, mas referindo que ele é apenas uma parte de todo um sistema mais complexo. O racional é simplesmente:
“Rather than imitating behaviour, a human being tries to explain it – to understand the ideas that caused it – which is a special case of the general human objective of explaining the world. When we succeed in explaining someone’s behaviour, and we approve of the underlying intention, we may subsequently behave ‘like’ that person in the relevant sense. But if we disapprove, we might behave unlike that person. Since creating explanations is second nature (or, rather, first nature) to us, we can easily misconstrue the process of acquiring a meme as ‘imitating what we see’. Using our explanations, we ‘see’ right through the behaviour to the meaning. Parrots copy distinctive sounds; apes copy purposeful movements of a certain limited class. But humans do not especially copy any behaviour. They use conjecture, criticism and experiment to create good explanations of the meaning of things – other people’s behaviour, their own, and that of the world in general. That is what creativity does.”
Apesar de poder seguir Deutsch, não consigo deixar de levantar aqui várias questões. Aceito que aquilo que nos move é a constante explanação, porque somos obcecados pela padronização do real, mas nestes processos de imitação nem sempre conseguimos chegar à explanação, aliás é exatamente isso que define o conhecimento tácito, aquele que não conseguimos explanar. Ora, quando por exemplo aprendo ténis, a única forma de melhorar é repetir, mas também ver repetidamente como os outros jogam, raramente consigo explanar o que os outros fazem, mas o facto de ver muitas vezes os outros fazerem permite-me melhorar o modo como eu próprio jogo. Isto não acontece porque consigo explicar os movimentos, mas antes porque os imito. Claro, e aqui seguindo Deutsch, nesse processo de imitação que realizo acabo muitas vezes por introduzir uma parte de mim, e desse modo construo não apenas uma imitação direta mas uma imitação transformada pela minha criatividade individual que por vezes surte práticas novas e melhores que são depois imitadas por outros. Julgo que a grande questão sobre a imitação é que ela realmente não pode responder por comportamentos complexos, ou melhor, dotados de várias camadas intrincadas de ações lógicas sem a devida racionalização, mas isso nem sempre é necessário no campo da empatia num primeiro nível de simples contágio, ou da simples imitação de movimento corporal.
3. O belo da simetria
Outro dos mitos que Deutsch tenta derrubar neste livro é a assunção de que o belo admirado pelos humanos assenta numa base simples de relações simétricas, de cor e contraste. Para tal disserta sobre o caso das flores e contrapõe-as nestas categorias às aranhas. Assim Deutsch apresenta uma visão do belo enquanto algo profundamente objetivo e universal, ainda que aceite o belo paroquial, específico a cada espécie. No caso do belo universal, no qual se enquadram as flores, existe uma base de conhecimento universal que regula o belo, tal qual existem leis de física que regulam a gravidade.
“It reaches all the way from the flower genome, with its problem of competitive pollination, to human minds which appreciate the resulting flowers as art. Not great art – human artists are far better, as is to be expected. But with the hard-to-fake appearance of design for beauty (..) “So human artists are trying to signal across the same scale of gap between humans as the flowers and insects are between species. They can use some species-specific criteria; but they can also reach towards objective beauty. Exactly the same is true of all our other knowledge.”
O autor acaba por depois definir dois tipos de arte humana, a aplicada e a pura, em que a aplicada serve para comunicar com os restantes membros da espécie, enquanto a pura existe apenas para si própria, procurando elevar os standards artísticos, de forma totalmente análoga à investigação científica. Não poderia estar mais de acordo, aliás tem sido exactamente com base nesta distinção que tenho proposto
diferenciar o Entretenimento da Arte.
4. Contexto sem efeito sobre o progresso humano
Esta crítica é também bastante forte, e é talvez a mais referenciada por quem não gostou do livro ou da abordagem proposta, já que parte da crítica a um livro anterior imensamente reconhecido, e podemos mesmo dizer que no mesmo nível de importância deste para compreensão da nossa espécie, falo de
“Guns, Germs, and Steel” de Jared Diamond. Ora Deutsch por desenvolver uma abordagem assente no progresso pelo conhecimento, defende que as barreiras colocadas à evolução humana nunca foram construídas pelo contexto, geográfico ou outro, mas apenas e só pela nossa incapacidade em cada momento de construir conhecimento que pudesse lidar com as dificuldades colocadas por esse contexto.
Em certa medida sigo Deutsch, até porque em pleno século XXI podemos ver como a sua visão lógica faz sentido. Hoje podemos praticar sky no Dubai, assim como no nordeste brasileiro é possível plantar vários tipos de culturas anteriormente impossíveis, graças à produção de sementes geneticamente modificadas que se adaptam à agressividade dos climas tropicais. Por outro lado o trabalho de Diamond não deixa de ser relevante, porque explica como tudo se processou ao longo destes anos. Aquilo que separa de Diamond e Deutsch é mais uma questão de ovo e galinha, saber se foi o contexto a condicionar a criação humana, ou a criação humana a condicionar o contexto.
5. Alterações climáticas
Última crítica e talvez a mais forte, assim como talvez também aquela que faz mais sentido, não apenas por todo o seu discurso, mas por ser profundamente lógica. Na sua defesa por um infinito de transformações do real geradas a partir da nossa infinita capacidade para criar novo conhecimento, Deutsch vem apresentar a sua incredulidade para com as visões do real que assentam em lógicas de sustentabilidade, e que proclamam a necessidade de reduzir as emissões de CO2, de abandonar os carros, o consumo excessivo, etc. Para o autor, estas abordagens ditas sustentáveis são perigosas no sentido em que podem comprometer a evolução humana, criando ciclos infindáveis de reprodução de ideias erróneas, que da estagnação podem conduzir à extinção. A lógica do progresso humano assenta na sua expansão em direção ao infinito, o que só se suporta num comportamento contrário à redução da ação humana.
“The world is currently buzzing with plans to force reductions in gas emissions at almost any cost. But it ought to be buzzing much more with plans to reduce the temperature, or for how to thrive at a higher temperature. And not at all costs, but efficiently and cheaply. Some such plans exist – for instance to remove carbon dioxide from the atmosphere by a variety of methods; and to generate clouds over the oceans to reflect sunlight; and to encourage aquatic organisms to absorb more carbon dioxide. But at the moment these are very minor research efforts. Neither supercomputers nor international treaties nor vast sums are devoted to them. They are not central to the human effort to face this problem, or problems like it. This is dangerous.”
Apesar de politicamente incorrecto não posso deixar de seguir Deutsch, é algo que me tem acompanhado ao longo dos últimos anos, por mais que eu queira defender a preservação do planeta, e quero, não consigo deixar de ver estas abordagens de regresso ao passado nas nossas vidas, como um simples meter a cabeça debaixo de areia, como nostalgia totalmente despegada do presente e futuro.
Para fechar esta resenha que vai longa quero apenas dizer que “The Beginning of Infinity” é um livro que precisa de ser lido com a mente aberta. Por vezes um pouco mais denso, nomeadamente nas questões sobre física quântica e mundos possíveis, bastando ainda assim apenas alguma atenção e concentração para se chegar às ideias e compreender o que se discute. É um livro que nos abre um mundo de explanações sobre o mundo que habitamos, que nos leva a descortinar e questionar muito do real que assumimos como imutável e intransponível, que nos conduz da assunção de mera insignificância num universo de galáxias quase-infinitas à posição de seres dotados de capacidade de explanação e ação, estas sim infinitas.