setembro 18, 2017

"Heavy Rain" analisado em artigo

Foi por estes dias publicado um artigo em que vinha trabalhando há algum tempo, relativo ao design de narrativa no videojogo "Heavy Rain". Apesar de ser um jogo de 2010, as questões de análise académica não estão tão preocupadas com o quando, se é o grito acabado de publicar, mas mais efetivamente com o que faz, como e porquê. As obras não envelhecem todas da mesma forma, e "Heavy Rain" continuará a ser um caso de estudo por muito tempo dentro do meio dos videojogos.



Neste caso foquei-me num dos pontos que mais chamou a minha atenção quando o joguei e que tem que ver com o modo como o jogo trabalha a emocionalidade do jogador, em particular a melancolia e tristeza. O que mais me impressionou na altura foi verificar o quão se aproximava de propostas que eu próprio vinha propondo ao longo da década anterior (entre 2003 e 2007) em várias conferências e artigos. Desse modo, neste artigo o que procurei fazer foi verificar o quão de perto seguiu o design de narrativa de "Heavy Rain" dessas minhas propostas da década anterior. Neste sentido, e apesar de não o poder provar, nem sequer estar interessado nisso, o que me impressionou foi verificar a proximidade das opções dos designers do jogo das minhas propostas. É bom verificar que temos razão, mas mais importante que isso, "Heavy Rain" funciona como um demonstrador da eficácia das propostas de design que apresentei.

Se a questão do vínculo entre personagens e sua quebra será facilmente reconhecida por qualquer pessoa que se preocupe com o design emocional narrativo, o mais entusiasmante é mesmo o design de interatividade passiva, ou seja do modo como o videojogo precisa de se comportar após provocar uma situação de tristeza para que o jogador possa chegar a sentir essa tristeza, já que o maior problema dos videojogos era exatamente não saber lidar com esses momentos do ponto de vista interativo. Para compreender tudo isto convido-vos a ler o artigo.




O artigo foi publicado pela revista científica Journal of Science and Technology of the Arts editada pelo Jorge Cardoso, tendo sido incluído num número especial dedicado à Narrative and Audiovisual Creation, que teve como editores convidados a Maria Guilhermina Castro, o Jorge Palinhos, o Daniel Ribas e o Carlos Sena Caires, sendo produzida pela Universidade Católica Portuguesa. É uma revista indexada, mas mais do que isso é uma revista focada nas discussões que atravessam a arte e a tecnologia, para além de ser publicada em modo aberto.

Para ler o artigo, basta aceder ao JSTA e descarregar o PDF.

setembro 16, 2017

Timelapse no Mar em Movimento

É longo, 10 minutos, mas vai arrancar-vos do lugar, questionar-vos pela força da beleza do que mostra, assim como pela perspectiva distinta que vos dará do planeta que habitamos. Em 10 minutos, verão atravessar na vossa frente, 30 dias condensados em 80 mil imagens capturadas a partir de um cargueiro, na sua passagem do Oceano Índico ao Oceano Pacífico.




O que mais me impressionou foi a formação das nuvens e o contraste entre o céu estrelado estático e o movimento do planeta. Já vi imensos filmes de timelapse, este ganha pela vida que o movimento do barco imprime à construção do lapse, que nos permite ver e compreender dinâmicas do planeta que normalmente assumimos como imóveis.

"30 Days Timelapse at Sea" (2017) de JeffHK

setembro 10, 2017

Mass Effect: Andromeda (2017)

A trilogia Mass Effect (2007-2012) é um dos maiores legados culturais dos videojogos, pela força da sua história mas acima de tudo pela inovação operada através da singularidade do meio, a interatividade narrativa. Se o cinema nos deu algumas das maiores epopeias da ficção científica, a literatura e a banda desenhada não lhe ficaram atrás, mas nenhum destes meios podia ter oferecido aquilo que apenas está ao alcance das artes narrativas interativas, agência, ou a responsabilização do recetor pelo desenrolar do imaginário ficcional. Por tudo isto, criar um quarto videojogo foi sempre um grande risco, a Bioware, ao contrário da Valve, resolveu arriscar. O resultado é um trabalho menor, ainda que tecnicamente mais evoluído.


O tema de “Mass Effect: Andromeda” (ME:A) não traz nada de novo, antes aproveita um dos imaginários mais presentes na atualidade da ficção-científica como trampolim para os seus desenvolvimentos. Num espaço tão curto de anos foram várias as obras a socorrer-se da ideia de largada de grandes naves carregadas de seres-humanos criogenados em busca dos chamados “Golden Worlds”, ou seja planetas semelhantes à Terra, em que possamos refazer a vida enquanto espécie humana.


No cinema, tivemos um romance FC com “Passengers” (2016) de Morten Tyldum, poucos anos antes tínhamos tido um dos mais eficazes filmes de FC desta recente geração, “Interstellar” (2014) de Christopher Nolan, e até a própria série Alien se socorreu do tema para este seu último tomo, “Alien: Covenant” (2017) de Ridley Scott. Na literatura tivemos também uma trilogia, “The Wayward Pines” (2012-2014) de Blake Crouch, entretanto convertida numa série de televisão homónima, de imenso sucesso. Este imaginário não é alheio à realidade que nos circunda: a superpopulação e consequente drenagem de recursos do planeta; as alterações climáticas e a potencial destruição do ecossistema que possibilita a vida na Terra; a visão apocalíptica providenciada pelos receios dos avanços da inteligência artificial ou a recuperação dos receios do nuclear; ou ainda, os avanços na compreensão da física quântica e as teorias dos mundos possíveis e paralelos, que nos colocam a sonhar com alternativas ao planeta.

Apesar do tema não ser novo, o tema é vasto e de potencial praticamente inesgotável, como se vai vendo pelas obras que vão surgindo. Contudo, é preciso não esquecer que um tema não é uma história, é apenas um pano de fundo, e é desde logo aqui que ME:A começa mal. A história, ou conflito escolhido para ser representado, assenta numa luta entre espécies, com vilões e super-vilões, que apesar de esforçado nunca chega a gerar conexão com os jogadores. O cruzamento com alguns dos grandes temas da trilogia até são aflorados, chegando a criar-se pontos que nos agarram, como a descoberta da origem da espécie Angara, mas nunca chegam a ser devidamente explorados, e por isso perdem-se no meio de tudo o resto.


O problema dos nós narrativos relevantes em ME:A é talvez o maior demonstrador da incompetência da obra. O universo representado é enorme e muito detalhado, criando no jogador uma completa dispersão da atenção, que não apenas se perde entre missões mas nunca se chega a realizar. No final do jogo, ou melhor da realização da main quest, que engloba apenas as missões “Priority Ops”, fiquei a pensar o quanto desse falhanço não se deve também a uma má estruturação entre missões obrigatórias e opcionais, nomeadamente lendo várias recomendações online. Para quem jogar de modo tradicional, seguindo a linha de obrigatoriedades criadas pelas missões Priority Ops, tem 16 missões pela frente, mas o que fica de fora, a julgar pelos números, é imensamente maior: “Allies and Relationships”, 33 missões, “Others” 12 missões, “Heleus Assignments” 98 missões, e “Additional Tasks” 61 pequenas missões.

Os mundos abertos são a norma atual nos grandes jogos de ação-aventura RPG, mas são também imensamente complexos por tudo o que necessitam de produzir para serem considerados enquanto tal, e acima de tudo pelo balanceamento entre o que deve ser considerado obrigatório e aquilo que deve ser secundário, ou opcional para que o jogador possa sentir um verdadeiro efeito de liberdade e autonomia durante o jogo. Se todas as missões consideradas relevantes para o jogo forem consideradas obrigatórias, e rodeadas de precedências, fica complicado fazer sentir ao jogador que está num mundo verdadeiramente aberto, que se dá à sua agência. Por outro lado, se não se colocam obstáculos ou freios que guiem o jogador ao longo das missões, o mais certo é a narrativa nunca se chegar a erguer. Por fim, mesmo quando se garante que as missões principais estão alinhadas e elas trabalham para o desenvolvimento de um arco narrativo delineado, é preciso não esquecer que missões menores, nomeadamente de desenvolvimento dos personagens são fundamentais para criar o imaginário, e acima de tudo aproximar o jogador da “vida” do jogo.


Neste sentido, considero que a maior falha de ME:A acaba por estar no subdesenvolvimento dos seus personagens e seus conflitos, ou então no modo inarticulado como foi desenhada a estrutura de missões, a julgar pela existência de uma enorme quantidade de missões secundárias a realizar com os personagens que circundam o protagonista. A main quest está apenas focada num objetivo narrativo, e os personagens servem quase de meros peões. Não há espaço para o desenvolvimento dos personagens, e mesmo as pequenas sequências que nos vão sendo oferecidas, até de conflitos hierárquicos, são sempre a correr, com medo de perder o ritmo do enredo. Interessa apenas chegar ao “golden world” e para tal é preciso ultrapassar os obstáculos, ou seja, os vilões que surgem por todo o lado.


Ao seguir este caminho ME:A acaba por perder o bem mais preciso que tinha sido desenvolvido pela trilogia, as tomadas de decisão narrativas. Ao contrário do que acontece em todos os anteriores três jogos, não existem momentos intensos em que tenhamos de tomar decisões, não que eles não surjam, o problema é que o jogo não desenvolve suficientemente as nossas ligações afectivas com os personagens para garantir impacto. Na verdade, isto não tem que ver apenas com a falha na estrutura das missões, já que ao longo de toda a main quest, nunca chega a existir um conflito, digno do nome, entre personagens. Mesmo quando os superiores estão chateados connosco, ou algum personagem está preocupado com algo, tudo parece seguir um rumo meramente declarativo, pejado de neutralidade, como se nos estivessem a testar, a ver se queremos ou não deixar-nos enredar por aqueles sentimentos.

Isto leva-me a questionar o novo sistema de conversação desenvolvido para este jogo. Se na trilogia tínhamos o modelo — Paragon / Renegade — em parte criticado pela suposta binariedade emocional e moral, agora temos quatro polos — Emocional / Lógico / Profissional / Casual. Em teoria enriquece-se as relações entre os personagens, amplia-se o escopo de tomada de decisão, mas na prática não funcionou. Digo mesmo que funcionou mal, já que raramente, ou nunca se vê ou sente o impacto dessas escolhas, ficando a dúvida se têm verdadeira relevância. Por outro lado, acabam por gerar todo um tipo de questionamento sobre as decisões que retira espaço ao pensar sobre o que verdadeiramente está acontecer no jogo, já que nos focamos mais na forma do que no conteúdo. Não tenho uma opinião completamente negativa sobre o sistema, julgo que ele pode até funcionar, desde que a narrativa, em especial a escrita seja boa, já que não raras vezes me senti decepcionado com a trivialidade de algumas respostas. Contudo, não me parece que tenha sido a decisão de design correta, já que o sistema desenvolvido para a trilogia era muito bom, exatamente por não ser binário como alguma má crítica apontou, ou seja, apesar de dual o sistema tratava as nossas decisões num plano dimensional e não discreto.


O melhor do jogo é, sem dúvida, os ambientes criados por onde podemos viajar. Os cenários, o espaço, a possibilidade de aí construir, criar, lançar colonos, e avançar com novas civilizações. Em termos de ações, podemos agora dar saltos impulsionados pelo fato, temos um novo veículo ágil e rápido que nos oferece uma boa perspectiva dos mundos por onde viajamos. A colonização pode ser diferenciada entre desenvolvimento de ciência ou militar. Mas é a fluidez audiovisual que envolve tudo isto que nos faz sentir em harmonia com os lugares e vontade de continuar a voltar ao jogo, ainda que todo o sistema de crafting acabe sendo desnecessariamente complexo, e de difícil gestão.



Em jeito de conclusão, findada a main quest, existe tanto ainda por explorar e fazer no jogo que acredito poder fazer as delícias de quem resolver dedicar-lhe esse tempo, ainda que estejamos já no domínio dos fãs hard-core do jogo, nomeadamente por todas as potencialidades técnicas adicionadas ao que se conhecia da trilogia. Contudo, para quem vem à procura de uma experiência Mass Effect, ligação a personagens, tomada de decisões, perplexidade e dilemas narrativos, não a vai encontrar, e por isso não admira a fraca receção que o jogo teve. Ainda que muita da crítica se tenha focado em problemas técnicos como as expressões faciais, entretanto completamente refeitas nos novos patches, nada nessas transformações consegue disfarçar os vários problemas de escrita e narrativa apontados ao longo deste texto.


Ler mais
Processos de escolha em Mass Effect, VI, 2014
"Witcher 3": indústrias criativas e escrita de narrativa interativa, VI, 2015

setembro 09, 2017

Um cine-poema

Descobri Jenni Fagan por mero acaso no Goodreads a partir de uma pesquisa sobre o seu livro “The Panopticon”, que está a ser transposto para cinema. Enquanto passava os olhos pela sua página vi um post do seu blog que fazia referência a uma pequena curta dirigida por si, sobre um asilo, e que tinha rotulado de cine-poema. São 15 minutos, mas podem parar, desligar as luzes, colocar os auscultadores e desfrutar, ainda que a récita seja feita num inglês de acento escocês.





Os asilos são locais dotados de algum fascínio, nomeadamente por terem tido um auge quase desconhecido do grande público, e terem entretanto sido praticamente extintos graças ao progresso da ciência e da medicina. Ficaram as casas e paredes mas ficaram também muitas histórias. Ainda não há muito vi um documentário brasileiro sobre o asilo de Barbacena, intitulado “Holocausto Brasileiro” (2016) que veio pôr o dedo sobre feridas por sarar. Este nosso fascínio assemelha-se com o que nos provoca o Holocausto, daí o título do filme de Daniela Arbex, o que me conduz a pensar que de alguma forma tudo se liga ao sofrimento humano, pela nossa incapacidade de nos desligarmos daquilo que é ser-se humano.

Sobre o Edinburgh District Asylum pouco ficamos a saber no filme, para além de que foi um asilo tipo do início do século passado, encerrado na segunda metade desse mesmo século. O interesse da autora advém da peculiaridade de ter aí vivido, enquanto na barriga da mãe que era guarda no asilo. Fagan que tem sido imensamente bafejada pela crítica aos seus livros, e recebido vários prémios, de entre os quais, o Best Young British Novelists da Granta em 2013, resolveu não apenas escrever uma Ode aos Mortos sem nome desse asilo, mas declamá-la sobre belíssimas imagens em movimento do espaço.

O resultado é impressivo. A declamação calma mas muito sentida de Fagan, sobre uma música de ritmo melancólico, repetitivo e espacial, acompanhado de imagens aéreas e de detalhe do asilo, criam uma experiência verdadeiramente intimista. Regressamos no tempo, sentimos o que se sentia, percorremos os espaços com a ideia do que poderá ter ali acontecido, sentimos o ser humano mais de perto, e aprendemos um pouco mais sobre as ilusões do mundo em que vivemos. Um cine-poema.

 
"Edinburgh District Asylum" (2017) de Jenni Fagan 

setembro 06, 2017

O Verão Antes das Trevas (1973)

Foi o primeiro livro de Lessing que li, depois de ter procurado durante algum tempo por onde começar a ler a autora. As recomendações apontam quase exclusivamente numa direção, “The Golden Notebook” (1962), mas do que ia lendo sobre a obra, ia-me afastando cada vez mais, o que me fez procurar outras obras. O que se seguia era a série de cinco livros, ainda dos anos 1950 e 60, “Children of Violence”, mas não me apetecia iniciar uma série de uma autora que desconhecia, não sendo sequer os livros facilmente acessíveis. Assim cheguei a “O Verão Antes das Trevas”, vinha bem recomendado, e atacava um tópico que me interessava no momento, a crise da meia-idade.


“O Verão Antes das Trevas” coloca-nos na figura de espetador de um Verão na vida de Kate Brown. Mulher inglesa, proveniente de famílias abastadas com raízes em Portugal, casada com um médico bem sucedido, 4 filhos, governanta de uma casa nos subúrbios de Londres, cerca de 45 anos. Neste Verão, Kate será convidada a participar num trabalho de tradução simultânea para um grupo de trabalho internacional em Londres, devido à sua fluência em línguas, particularmente o português, enquanto toda a restante família parte de férias. Sozinha, sem ninguém dependente dela, inicia-se o confronto consigo mesma.
“All those years were now seeming like a betrayal of what she really was. While her body, her needs, her emotions–all of herself–had been turning like a sunflower after one man, all that time she had been holding in her hands something else, the something precious, offering it in vain to her husband, to her children, to everyone she knew–but it had never been taken, had not been noticed. But this thing she had offered, without knowing she was doing it, which had been ignored by herself and by everyone else, was what was real in her.” Excerto da versão original (p. 140).
A escrita de Lessing é perfeita, tal como a estrutura narrativa e a história. Lessing sabe cativar o leitor, apresentar os factos, lançar os eventos, e gerar conflitos, tudo isto é envolvido numa escrita direta que cria proximidade. A história é dotada de todos os ingredientes a que se propõe, levando o leitor pela mão ao longo de todo o percurso. Em parte, tudo é demasiado perfeito. Não raras vezes consegue sentir-se por detrás das linhas, Lessing a coser a obra, a dirigir os cordelinhos da narrativa e história, para nos conduzir, para nos falar ao ouvido, aquilo que verdadeiramente lhe interessa. Não posso dizer que não tenha sentido genuinidade, mas senti por vezes que Lessing estava muito mais interessada no que tinha para dizer, do que na obra que pretendia criar para o expressar.

Isto não será alheio ao facto de que muito do que se vai discutindo ao longo das páginas estar ligado a um mundo teórico defendido pela autora, do feminismo à psicanálise, passando pelo marxismo, um trio de conceitos académicos muito em voga à época da escrita do livro, os anos 1970. No entanto, Lessing tinha nesta altura já passado por dois casamentos falhados, abandonado dois filhos pequenos no continente Africano, e criado um terceiro até à idade adulta em Inglaterra, o que não deixa de lhe oferecer uma perspectiva prática imensamente rica.

Ou seja, a narração é credível, sente-se que a voz que fala conhece bem os cantos interiores do sentimento naquelas circunstâncias, mas sente-se também a ânsia da autora por transmitir os seus ideais sobre esse mundo. Ainda que no final as questões fiquem em aberto, não exista uma estrada indicada, apenas as questões ficam, cabendo a cada um encontrar-se no meio da sua própria identidade, a meio da idade.

setembro 03, 2017

Teatro Vertical (2017)

O autor é mestre-contista, bastam-lhe poucas linhas para nos prender à leitura, para nos cativar e colocar num estado de querer saber o vai acontecer a seguir. A edição independente do livro vem com um excelente tratamento e o trabalho de ilustração oferece coerência ao todo que Vieira vai construindo, conto a conto.


São 12 contos com temas bem distintos — “O filho”, “A festa”, “A estátua”, …—, mas a escrita e estrutura oferecem-nos um padrão estético que dão conta do livro como um todo, uno e coerente. São contos curtos, rápidos, diretos e ao mesmo tempo minimais e enigmáticos. Em cada um, Vieira elege um foco que oferece na forma de título com o objetivo de iluminar o caminho do leitor à entrada. Esses títulos são depois suportados por personagens dotadas de enorme proximidade e naturalidade, muito fáceis de seguir ainda que nem sempre, ou nunca, saibamos para onde e porquê.

A beleza da arte de Vieira reside no modo como cose enredo e escrita num antagonismo formal. Se os enredos apresentados são matrizes complexas e obscuras, que se esforçam por nos impedir de aceder aos porquês, a escrita é todo o seu contrário, dando-nos a sorver os mundos e personagens, como se de realidades imensamente familiares tudo se tratasse.

Dos textos, junto às ilustrações de Sebastião Peixoto, emana algo que já conhecemos bem, um realismo mágico, em que o fantástico adentra a realidade sem pedir licença. A diferença de Vieira, face aos grandes mestres do género, é que o faz na forma de conto curto, o que o obriga a ser extremamente económico, ou seja rápido e eficaz, na criação de universos e dos personagens que os habitam. Neste sentido, interessa mais o processo, a viagem, do que a chegada, os fechos e os porquês.

Interessante como sendo eu algo avesso a contos, por razões genéricas como preferir leituras focadas no desenvolvimento de personagens e exploração de teias sociais, elementos dificilmente suportados por textos curtos, acabei gostando bastante deste “Teatro Vertical”. Lê-se muito bem e deixa uma marca atmosférica, como se tivéssemos visitado um outro planeta, quase igual, paralelo, mas ligeiramente distinto. Uma viagem pela imaginação do outro.

Gilead (2005)

Não percebia como é que um livro que tinha ganho o Pulitzer em 2005 nunca tinha sido editado em Portugal*, mas depois de o ler talvez perceba um pouco melhor. O tema tratado ainda que desejando-se universal está intimamente ligado à defesa de uma visão do chamado cristianismo norte-americano. O modo para o fazer é o melhor do livro, já o conteúdo falta-lhe estrutura, ou uma abordagem que aproxime quem está por fora do contexto das problemáticas que vão surgindo, aparentemente centrais para compreensão em profundidade do texto.


“Gilead” é uma história contada em tom diarista e confessional, por parte de um padre protestante com 75 anos que escreve ao seu pequeno filho que tem no momento apenas 7 anos. Todo o tom do texto é servido numa expetável melancolia, já que quem escreve o faz na esperança de ser lido depois de ter partido. É uma carta escrita para uma futura pessoa, e só por si é suficiente para nos colocar num estado introspectivo e meditativo, algo que a autora aproveita bem para lançar as suas grandes questões sobre a identidade religiosa.

O mais interessante acaba por provir da dúvida que acompanha o reverendo ao longo de todo o seu discurso, do modo como enfrenta a dúvida sem esperar por respostas de qualquer orgão religioso externo, confrontando-se apenas com algumas obras, em particular com Feuerbach. O foco narrativo centra-se na história de vida do reverendo que essencialmente dá conta das vidas do seu avô e pai que também foram reverendos. A discussão atrai porque as igrejas metodistas e congregacionalista, baseadas no Calvinismo diferem da Católica, entre outras coisas, por se formarem e susterem de modo autónomo. Não existe um centro de onde são emanadas leis e concordatas, para onde olhar e procurar respostas, o que faz com que as igrejas sejam mais assentes na comunidade, na construção do comum e menos no da mera evangelização.

Apesar do potencial interesse que o livro poderia representar, e da excelente escrita de Robinson, falta-lhe não apenas contexto, mas essencialmente estrutura. O livro surge como um carta que alguém vai escrevendo ao sabor do tempo e disponibilidade, faltando trama, razões e motivações que nos prendam à leitura. Se as primeiras páginas se sorvem de um trago o resto do livro parece repetir-se, dando conta de pequenos casos, pequenas situações, com um ou outro evento mais relevante, mas sem uma verdadeira consequência no todo, ou pelo menos assim o li, talvez por falta de conhecimento do contexto.


* 6 janeiro 2019
Afinal o livro foi editado em Portugal pela Difel, em 2006, sob o título "Ao Meu Filho"

setembro 01, 2017

Mudar, recomeçar, continuar

Passei os últimos 11 anos como professor e investigador na Universidade do Minho. Não foi fácil à chegada, também não é fácil na partida. Conheci funcionários, alunos e colegas fantásticos, com um sentido de dever e curiosidade constantes, e é por eles que custa. São as pessoas que nos marcam, são elas a cola das experiências que construímos no interior das nossas memórias, e que seguem conosco. Sou uma pessoa diferente da que chegou à UM em 2006, aprendi muito mais do que ensinei, e por isso agradeço a todos os que encontrei e me encontraram.



Hoje inicio funções na Universidade de Aveiro, é uma mudança, é um recomeço, mas será também uma continuação da construção de experiências, agora com um novo grupo, ainda que constituído de muitos antigos colegas, ansiando por estar à altura da excelência do trabalho que têm desenvolvido.

agosto 30, 2017

Ciência e igualdade de género

O tema está na agenda nacional o que é ótimo, quanto mais se falar e discutir mais poderemos criar conhecimento sobre o que representa, sobre os seus problemas, efeitos e limitações. O assunto é complexo, mexe com estruturas civilizacionais ancoradas em milhares de anos de evolução e por isso não podemos ter ilusões de que se possa mudar tudo em meio século, menos ainda num par de semanas. Vamos precisar de continuar a conversar, a estudar, e a desenvolver mais e melhores argumentos que elucidem as dúvidas de cada um. Se em Portugal a discussão se faz por causa de cadernos de atividades para crianças, nos EUA faz-se porque um empregado da Google escreveu um "Manifesto Anti-Diversidade", enquanto no meio online mais subterrâneo se digladiam movimentos, com enorme poder, como o chamado Gamergate.

Nesta composição podemos ver a expressão do modelo social que vingou na nossa espécie até há pouco tempo, e que a evolução dos tecidos sociais veio questionar.

A igualdade de género é uma abordagem sociológica, ou seja, baseia-se na análise dos modos de funcionamento das sociedades, procurando compreender porque funcionam da forma como funcionam, no sentido de contribuir para o seu auto-conhecimento, com o que se espera poder otimizar o funcionamento dessa sociedade. Uma das maiores confusões sobre os objetivos desta abordagem e que cria grande ceticismo e reticência em muitas discussões é o facto de se assumir que aqui se defende que os géneros são iguais, o que é um erro. A abordagem, por ser sociológica, trata do modo de funcionamento dos géneros em sociedade, não trata da fisiologia dos géneros. Ou seja, apesar do chapéu criado para englobar a discussão parecer indicar que se procura tornar os géneros iguais, o que é preciso saber, e aquilo porque se luta, é que os géneros tenham um tratamento igual pela sociedade: que nenhum ser humano seja tratado diferente por ser Mulher ou por ser Homem.

Ora para isto não basta criar um par de leis que defendam os mesmos direitos para homens e mulheres. As leis são emanadas da sociedade e se esta não acreditar, de forma generalizada, naquilo que essas leis defendem, dificilmente estas poderão ter efeito prático. Assim, mais importante do que criar leis é a formação e educação da sociedade, mas para isso também não basta criar umas cadeiras na universidade que discutam o assunto, é preciso que o tema seja debatido em sociedade, que as pessoas não tenham receio de falar sobre o mesmo, e mais importante, não tenham pudor em mudar de opinião.

Esta questão não tem meia-dúzia de anos, faz parte de nós desde que surgimos como espécie, desde que iniciámos a partilha de esforço e responsabilidades, precisando de homens e mulheres para progredir na conquista por mais e melhores condições. Se a sociologia estuda os comportamentos da sociedade atual, não o pode fazer no vazio, ou arredada do outro conhecimento existente sobre o ser humano, nomeadamente a biologia, as neurociências e em especial a psicologia evolucionária.

Psicologia que procura descrever o comportamento humano com base nas funções biológicas e genéticas

Dito isto, e assumindo todo o conhecimento científico que possuímos, temos de compreender que a modelação social dos géneros, Homem e Mulher, não é determinada apenas pela diferença dos órgãos reprodutores, o chamado sexo, o pénis e a vagina. Em termos sociais, ou seja do modo como nos relacionamos uns com os outros, mais importante do que o sexo são as hormonas que correm na nossa corrente sanguínea, nomeadamente a percentagem de duas em especial: a Testosterona e a Ocitocina.

A ciência diz-nos que a testosterona contribui para a formação de corpos mais robustos e ao mesmo tempo de comportamentos baseados na ação, no risco e no desapego. Por outro lado, a ocitocina contribui para tornar os corpos mais relaxados o que leva a criação de comportamentos mais passivos, de recato e apego. O facto de, em média, a testosterona estar mais presente nos homens, faz com que se associem os comportamento por ela incitados ao comportamento social másculo. Acontece o mesmo com a ocitocina que está, em média, mais presente nas mulheres, fazendo com que aqueles comportamentos ofereçam uma espécie de norma feminina.

O excesso de Testosterona conduz ao autismo, pelo sub-desenvolvimento da cognição social, sendo o autismo mais prevalente nos homens. O excesso de Ocitocina conduz a desordens bipolares e depressão, pelo super-desenvolvimento da cognição social, sendo estas patologias mais prevalentes nas mulheres. (Gráfico por Bernard Crespi, "Oxytocin, testosterone, and human social cognition" (2015), in Biological Reviews)

O primeiro problema a reconhecer, surge com o facto da sociedade se deixar conduzir pela força das hormonas, ao atribuir papéis aos géneros apenas em função de médias. Ou seja, só em média é que os homens têm mais testosterona, e as mulheres mais ocitocina, fora da média temos homens com mais ocitocina, e mulheres com mais testosterona. Para esses casos a sociedade arranjou novos rótulos, são as "maria rapaz", e os "afeminados", sem contudo deixar de exercer o seu poder de grupo para torcer estes sujeitos que não se encaixam bem na norma.

O segundo problema é não percebermos que a origem desta divisão da presença de quantidades das diferentes hormonas nos corpos do homem e da mulher, não é mero fruto da natureza. A testosterona não é produzida pelo pénis, nem a ocitocina pela vagina. A divisão decorre de um processo de seleção sexual, ocorrido ao longo de milhares de anos. Ou seja, tendo em conta as condições de vida na nossa pré-história, os grupos de humanos que sobreviveram e se tornaram dominantes foram os detentores desta divisão hormonal: homens dotados de muita testosterona e mulheres de muita ocitocina. Ou seja, os homens com corpos robustos, caçavam e protegiam, saíam para a caça porque não tinham medo do desconhecido, nem tinham um apego tal às crias que os impedisse de sair em busca de comida. Claro que estes homens só tiveram sucesso porque ao seu lado tiveram mulheres carregadas de ocitocina, que com medo do risco nunca abandonavam o lar, ao mesmo tempo que o seu forte apego as conduzia a dar tudo pelas crias, mesmo quando os homens desapareciam por muito tempo. Ou seja, a dupla teve de coexistir, e este padrão foi vencedor na luta interna da nossa espécie.

Joana d'Arc (1412-1431) foi queimada viva, aos 19 anos, por não se adequar aos estereótipos do século em que viveu.

Assim, as mulheres que nasciam com doses maiores de testosterona, que desejavam ir guerrear e não queriam saber de crias, eram votadas ao desprezo pelos homens, por isso reproduziam-se menos. Os homens que nasciam com maiores níveis de ocitocina, que queriam ficar nas grutas a tomar conta dos outros, ou a tornar o espaço mais aprazível, eram vistos como incapazes de oferecer um futuro sustentável às mulheres que os preteriam, reduzindo a sua possibilidade de passar os seus genes. A natureza oferecia diferentes possibilidades de comportamento, mas coube sempre à cultura escolher quais privilegiar.

Os homens que queriam ficar nas grutas a tomar conta das crianças ou dos mais velhos, ou a tornar o espaço mais aprazível, eram vistos como fracos.

Mas o mundo muda, e mudou muito com o surgimento da agricultura, das civilizações, da ciência, e claro da Revolução Industrial. A agricultura fez desaparecer a necessidade de ir à procura de comida, e com isso trouxe as civilizações, juntando pessoas num mesmo espaço, obrigando à criação de regras de funcionamento, transformadas depois em leis, com direito a justiça, tribunais e polícia. O medo do desconhecido reduziu-se, passámos a viver em ambientes mais controlados, com deveres mas também com direitos. Depois a ciência ajudou-nos a compreender melhor o mundo, reduzindo ainda mais o medo, permitindo uma explosão criativa que nos levaria até à motorização do mundo, e mais recentemente a sua digitalização. A partir da motorização, ainda que sendo um processo iniciado já com a agricultura e domesticação de animais, a força muscular deixaria de ser a eleita, cedendo o lugar à força intelectual.

Os papéis que os nossos antepassados se tinham habituado a ver como essenciais para a sua sobrevivência deixariam de fazer sentido. O homem já não tem de ser alguém sem apego pelas crias, para conseguir sair em busca de comida, a agricultura trouxe a comida até ao seu quintal, e ele pode estar muito mais tempo com as crias. O homem já não tem ser mau e forte para afastar os outros que lhe querem roubar a riqueza e as crias, a polícia e a justiça fazem isso por ele. O homem já não tem de ser alguém robusto e ativo, pode trabalhar 8 horas sentado numa cadeira.

Do mesmo modo, a mulher já não tem ser recatada e submissa ao homem, não precisa da sua proteção, a sociedade — na forma de leis, justiça e polícia — assumiu a sua defesa como ser humano individual, independente do seu sexo, ainda que continue a apresentar muitos problemas, nomeadamente na resposta à violência doméstica. A mulher pode ser menos apegada às crias, porque passou a partilhar a responsabilidade de as criar com o homem com quem vive. Com isto não se está a defender, como erradamente defenderam algumas feministas, que as mulheres se tornem libertinas ou negligentes, porque isso seria defender uma troca dos papéis. Ou seja, não podemos defender que os homens abandonem papéis de desapego, e que por outro lado as mulheres adquiram esses papéis. O que está em jogo é as mulheres, em virtude de um apego exacerbado, não deixarem de viver as suas vidas, mas isso não deve conduzir a deixar de pensar na vida dos outros, principalmente das suas crias. Até porque nos dias de hoje, tendo a sociedade desenvolvido todo o tipo de suportes às crias desde bebés até quase à idade adulta — creches, jardins infantis, escolas, lares, ATLs, etc — não é preciso abandonar as crias para se poder ser independente.

Por outro lado, o facto de termos perpetuado a divisão de presença de hormonas nos homens e mulheres para além da sua necessidade pré-histórica, veio criar novos problemas nomeadamente ao nível do ensino, ou seja na nova sociedade assente no valor intelectual. Partindo de alguns factos sobre Portugal, existem mais mulheres (52.6%) que homens (47,4%), e apesar de no passado as mulheres terem sido impedidas de estudar, por isso a população sem qualquer escolaridade ser constituída por 71,2% de mulheres, atualmente as mulheres dominam no Ensino Superior, com 60.9% dos formados a serem mulheres. A razão porque isto acontece não é por as mulheres serem mais inteligentes, mas antes porque os estereótipos, ou melhor, a hormona da ocitocina que origina o recato, submissão e apego, funciona melhor em relações de autoridade, como é caracterizada a relação professor-aluno. As raparigas fazem o que os professores mandam, cumprem o que se lhes é pedido, demonstrando ter aprendido aquilo que o professor lhes ensinou. Os rapazes tendem a correr mais riscos, logo a desobedecer e a tentar fazer como lhes dá mais prazer, indo contra as expectativas do professor, que vê isso como não aprendizagem.

As raparigas, dotadas de mais ocitocina, submetem-se ao que os professores exigem, cumprem o que se lhes é pedido, demonstrando ter aprendido aquilo que o professor lhes ensinou. Os rapazes, dotados de mais testosterona, tendem a correr mais riscos, logo a desobedecer e a fazer diferente, indo contra as expectativas do professor, que vê isso como não aprendizagem.

Se aparentemente as mulheres parecem estar a ganhar com os estereótipos hormonais do passado, isso não acontece em todas as frentes, nomeadamente não acontece nas Engenharias e Tecnologias, em que os homens dominam com 80% dos diplomados em Portugal. Mais uma vez a base deste desequilíbrio é hormonal, é a testosterona que contribui para ter rapazes sem medo do risco, sem medo de errar, a serem preferidos pela engenharia e tecnologia que desse tipo de abordagem depende. A engenharia e tecnologias não vivem tão centrados no conhecimento existente, como o Direito ou a Medicina, antes necessitam de estar constantemente a fazer diferente, partindo do que se sabe, mas essencialmente experimentando o desconhecido, em busca do que pode vir a funcionar. As mulheres não se dão tão bem com estes ambientes, não por serem mulheres, mas pelo excesso de ocitocina na sua corrente sanguínea, preferindo ambientes em que as matérias estão mais estabilizadas, em que o risco de erro é mais diminuto.

A testosterona facilita a navegação de mapas e labirintos, não por tornar os sujeitos mais inteligentes, mas por os dotar de menor resistência ao risco, menor medo de falhar, contribuindo para uma atitude de experimentação, avançando por tentativa e erro até conseguir o objetivo.

A luta pela presença de mais mulheres nas Tecnologias não se resolve atacando apenas o problema dentro das estruturas sociais que suportam as Tecnologias, é preciso ir à fonte do problema, aos ideais e estereótipos que regram toda a sociedade de modo quase invisível.

Em face de tudo isto, torna-se mais fácil compreender de onde vieram os estereótipos de género e compreender que servem apenas o perpetuar de ideias erróneas sobre aquilo que o Homem e a Mulher devem ser, inibindo homens e mulheres de serem aquilo que são ou pretendam ser, mas mais grave que isso, impondo direitos e deveres diferentes em função do simples facto de termos nascido homens ou mulheres. Repare-se como nada disto tem qualquer relação com o pénis ou a vagina, nem mesmo com um útero, ovários ou espermatozóides. Aliás, se os homens e mulheres não usassem roupas e adereços, completamente determinados pelos estereótipos sociais, na maior parte do tempo não saberíamos se a pessoa que está na nossa frente é Homem ou Mulher. Recorde-se a lenda da Papisa Joana e do seu suposto efeito, a criação de uma cadeira papal perfurada para avaliar os órgãos genitais antes da eleição.

Não passando de lenda, mas exatamente por se ter tornado numa lenda quase milenar, a Papisa Joana é apenas um dos muitos exemplos que dão conta do mau estar instalado no pensar da sociedade, que continua a perpetuar estereótipos de separação dos géneros.


Outros textos que sustentam a abordagem aqui apresentada:
A Ciência por detrás da Arte,, 2013
"Sapiens", porque Dominamos o planeta, 2017
"Homo Deus", de Yuval Noah Harari, 2017
O Gosto não Existe, 2017
O Cérebro (2015), 2016
Pensar Depressa e Devagar, 2013
Porque evoluímos tanto nos últimos 13,000 anos, 2013
A Ciência não é Crença é Conhecimento, 2017

agosto 28, 2017

Desgraça (1999)

Conhecia o filme homónimo mas não conhecia a escrita de Coetzee, por isso foi uma surpresa total esta leitura, tinha-a evitado durante anos por julgar que nada de novo aqui me aguardava. Sendo a história similar, ganha-se com a leitura porque a escrita é exemplar, e porque naturalmente o cinema não consegue dar a ver o que sente interiormente cada personagem na forma detalhada como Coetzee o faz. Embora tenha de dizer também que ganhei porque se passaram quase 10 anos desde a estreia do filme, tendo o meu mundo mudado e contribuído para enriquecer a minha compreensão da história criada por Coetzee.


Começando pela escrita, esta destaca-se por uma aparente simplicidade que no evoluir da leitura vamos percebendo ser fundamental para a narração neutral procurada pelo autor. Coetzee escreve de modo muito direto o que pensa e faz cada personagem, assumindo uma postura de brevidade, evitando adjetivação, evitando juízos. Ou seja, temos uma forma minimal e seca que funde escrita e narração, para nunca se abster de dizer o que está acontecer, abstendo-se apenas de dizer porque está a acontecer. Deste modo, e apesar de poder criar algum sentimento de perda de orientação no leitor, em essência o que Coetzee busca é que seja o leitor a criar os seus juízos. Assim, em termos estruturais, a obra é imensamente conseguida, unindo forma e conteúdo num discurso imensamente coerente.


Podemos dizer que Coetzee surge aqui nas antípodas de Victor Hugo (ler análise recente realizada a "Os Miseráveis"), o que é reconhecido pelo próprio Coetzee ao citar Hugo quase no final do livro. Apesar de ambos os autores estarem fortemente empenhados na luta social: Hugo usa e abusa do sentimento para manipular os leitores e os convencer da existência de um único caminho verdadeiro e correto; já Coetzee põe a nu as problemáticas por meio de conflitos que se opõem, mas não dá respostas sobre como as resolver, obriga os leitores a procurar as suas próprias respostas. Ou seja, Hugo é mais político, está mais preocupado em conduzir, enquanto Coetzee é filósofo, mais preocupado em fazer refletir. Se Hugo foi bem sucedido ganhando relevância política, Coetzee granjeou enorme resposta crítica e prémios literários.

Mas de que fala afinal “Desgraça”? Tenho de dizer que não é fácil sintetizar tudo o que é dito, aliás esse é um dos paradoxos mais interessantes da arte minimalista, quanto menos diz mais quer dizer. Não esquecendo que este é um livro com parcas 200 páginas, Coetzee ataca várias fantasmas sociais, desde logo o Pós-Apartheid, não fosse esta uma obra do fim do século XX escrita na África do Sul, mas não se fica por aí: fala de forma perfurante sobre os direitos da mulher; põe a nu os problemas da comunicação humana; dos efeitos do envelhecimento e seu existencialismo; dos direitos dos animais; do desejo sexual visto pela natureza versus cultura; e vários outros temas que vão surgindo colados a estes.

Não é imediato o acesso ao tema dos problemas da comunicação humana, mesmo quando Coetzee procura tornar isso implícito ao fazer de Lurie um professor universitário de Comunicação. Mas a verdade é que a essência do Apartheid nasceu da incapacidade de comunicar. Pode parecer ao lado, já que o racismo surge na frente e a comunicação é comumente vista como mero ato de transmissão de informação. Mas se olharmos àquilo que define a comunicação humana, e compreendermos que ela responde pelo ato de colocar em comum, ou seja, de conduzir os sujeitos num ato de comunicação a comungar uma mesma ideia, compreendemos melhor porque surjem os diferentes "apartheids" no mundo.

Nesta obra, Coetzee torna este ponto central, não apenas pelas desgraças que acontecem ao professor diretamente mas mais ainda indiretamente, por via da sua filha, Lucy, e da sua relação com o vizinho, Petrus. No diálogo que se vai construindo entre Lurie e Petrus, vai-se percebendo como ambos vivem em mundos de costumes muito mais distantes do que a simples cor da pele, e como só com enorme esforço e cedência se pode aprender a viver num mesmo mundo. De certa forma, o trauma da filha coloca este mesmo ponto em evidência, mas pelo lado dos direitos das mulheres. Porque se no caso de Petrus o que tolda a comunicação é a cor da pele, no caso de Lucy é o facto de ser mulher.

O mais impactante de tudo acaba sendo o quão difícil é para nós leitores ocidentais aceitar tudo isto. O facto de Coetzee lançar os dados e não criar guias de orientação, deixa-nos perdidos e sem respostas. Porque é que Petrus é assim? E Lucy, como pode ela continuar ali, aceitando? Terão algum problema, estes dois? Mas se em vez de procurarmos o problema neles o procurarmos em nós, como acaba fazendo Lurie, quando conseguimos chegar a comungar, então acabamos a compreender.

Não posso dizer muito mais, correndo o risco de estragar completamente o efeito surpresa da história para quem ainda não leu. Mas é disto que se faz a arte, de obras que nos obrigam a ir além da redoma do que somos feitos, que não se limitam a confirmar o mundo como desejamos e acreditamos ser. Que sendo difíceis e nos colocando em situações desconfortáveis, o fazem com um claro objetivo, o de nos enriquecer enquanto seres humanos.