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dezembro 01, 2017

Horizon Zero Dawn (2017)

Comecei a jogar "Horizon Zero Dawn" (HZD) como um simples jogo de aventura movido por fantástico, ao qual não faltavam magos, tribos e religiões, mas com o evoluir do jogo fui percebendo que não era nada sobre aquilo que o jogo queria falar, já que tudo aquilo que via, se ia desconstruindo de forma lógica, ligando toda a representação daqueles mundos ao nosso mundo real de hoje. Ou seja, HZD é ficção científica, e eu diria mesmo, Hard SF. Como se isso não bastasse, a obra é tecnicamente muito conseguida, plena de detalhe, constituída em cada dimensão por múltiplas camadas de elementos: da arte visual ao game design, do design de som à música, da atmosfera às batalhas, da arquitetura à moda, da tecnologia à IA, do storytelling à narrativa.
Ao fechar do pano não consegui deixar de voltar a impressionar-me, como tem sido hábito, com os créditos finais, vendo desfilar os nomes das centenas e centenas de pessoas necessárias para criar HZD. Tudo parece tão simples, tudo parece ter sido ali posto de forma plenamente natural, porque tudo faz pleno sentido, mas a verdade é que, e seguindo a discussão proporcionada pelo próprio tema de HZD, criar um artefacto destes está apenas ao alcance de uma sociedade evoluída o suficiente para dominar a imensa parafernália tecnológica e conhecimento necessários à sua construção. Aliás, basta ver a quantidade de produtores envolvidos na obra para se compreender a complexidade existente apenas ao nível da gestão dos recursos materiais e humanos.

Em termos críticos, antes de jogar tinha apenas presente “Far Cry Primal” (2016), em termos de cenário e aparentemente temático, bastante próximo. Tendo jogado e terminado ambos e contrastando-os, FCP é um simples brinquedo, é divertido, a jogabilidade cria bom “flow”, mas é totalmente desprovido de “alma”, ou seja, de intenção artística, não tem nada para dizer, ficando a anos-luz de HZD. Se quisermos encontrar no terreno dos jogos algo que se aproxime de HZD teremos de procurar jogos que visualmente nem nos lembraria, tendo em conta a aposta promocional de HZD que se cingiu demasiado aos aspetos pré-históricos e tribais do universo de jogo.
"Num mundo pós-apocalíptico no qual a natureza verdejante se alastrou pelas ruínas de civilizações perdidas, a humanidade continua a resistir em pequenas tribos de primitivos caçadores-coletores. O seu domínio desta nova área selvagem foi usurpado pelas Máquinas – criaturas mecânicas ferozes de origem desconhecida."

Assim, as obras que mais rapidamente se podem associar às ideias que sustentam o mundo de HZD são as que têm trabalhado ficção-científica em ambientes pós-apocalípticos ou dominados por máquinas, para o que podemos buscar referências em jogos como “Fallout 3” (2008), “Mass Effect 3” (2012) ou “Enslaved: Odyssey to the West” (2010) que até acaba por se aproximar visualmente, embora o seu lado mais aventureiro o afaste um pouco do campo mais cerebral que é aqui explorado. Aliás, relativamente a este último ponto, diria que HZD se aproxima mais da minúcia argumentativa de “SOMA” (2015). Claro que isto se deve ao investimento no guião, mas sem dúvida ao investimento em design de narrativa, tendo para o efeito sido escolhido John Gonzalez, que antes nos tinha dado “Fallout: New Vegas” (2010), daí a natural proximidade entre os universos-história.

Tendo em conta o modo brilhante como o desenho de narrativa foi articulado, acabei por esta semana dedicar-lhe uma parte de uma palestra que dei na conferência ErgoTrip Design 2017, a que podem aceder, em parte, via slides, que deixo aqui abaixo.


Assim, tendo passado da discussão do Conteúdo para a da Forma, posso agora realizar a comparação que mais se me apresentou ao longo de HZD, nomeadamente a partir do meio, e falo de “The Witcher 3: Wild Hunt” (2015). Sim, a mensagem, a história contada, está nas antípodas, mas a forma, o design de narrativa está bastante próximo. Temos o mundo aberto, temos as “main quests”, ou nós globais, temos as “side-quests”, ou nós tribais, e depois as pequenas “errands”, ou tarefas individuais, não que não se tenha visto em outros jogos, mas a funcionar deste modo estruturado, intrincado e interdependente é algo raro de ver.

É verdade que HZD tem menos diálogo e logo menos escolhas narrativas, consequentemente o jogador não consegue jogar propriamente com a mensagem, como acontece em “Witcher 3”, mas compensa por toda a história que espalhou pelo terreno e pelas diferentes quests, por meio de mensagens texto, áudio e hologramas. À medida que vamos progredindo, e apesar de ansiarmos por chegar ao final (não tendo feito todas as "side-quests" e "errands", e tendo jogado no modo mais fácil de luta, acabei mesmo assim por precisar de 30 horas), as mensagens dispersas vão-nos atraindo cada vez mais, não só porque estão imensamente bem escritas, ou são apresentadas por meio de boas performances, mas porque vamos compreendendo o quanto da história elas têm para nos oferecer. Pode-se mesmo dizer que todos aqueles fragmentos parecem quase janelas para um passado daquele universo, um universo que dá muito prazer ler e experienciar ao longo de todo o jogo.

Em jeito de fecho, dizer apenas que HZD é uma experiência muito estimulante, tanto do ponto de vista da ação e jogo, como do ponto de vista intelectual. É mais uma obra que ultrapassa as barreiras do seu meio, e passa a figurar nos panteões da ficção-científica. Isto diz-nos também que todos aqueles que gostam do género, precisam de começar a sair dos seus meios de eleição, a literatura ou o cinema, e olhar para os videojogos, ou correm sério risco de perder muito daquilo que o género vai tendo para nos oferecer.

novembro 08, 2017

Sentidos e Tecnologia

O mais recente episódio da série Dark Web do Nowness — uma série de pequenos filmes que segue o género "Black Mirror" — intitula-se "Senses" (2017) e responde literalmente pela designação, criando uma experiência, de cinco minutos, que nos entra pela mente adentro ativando toda a nossa visceralidade.



O melhor da curta, em termos narrativos, advém pela estrutura e progressão, que começa por nos agarrar por um lado mais narcisista e techno-sexual, evoluindo por diferentes possibilidades até à consagração pela RV. No campo da direção artística temos todo um trabalho de cor e montagem que fazem notar como tudo segue em crescendo, adotando a linguagem audiovisual uma estética que serve a impressão de sentires, substituindo-se à ausência dos estímulos reais presentes na diégese virtual. Tanto a narração como a direção artística acabam por desenvolver um filme bastante singular, simultaneamente sensorial e autoral. Em entrevista, Fran de la Fuente, diz
"I’m fascinated by cinematography in general. A lot of what’s on the final picture was worked on in the early stages of the script. We wanted to create a very specific and accentuated look. That required designing, in detail, every scene prior to shooting. We used a wide colour palette, and worked with contrast, depth of field and camera movements. Above all, I think one of our biggest successes was finding the right locations! Throughout the whole project we complemented each other very well; we contributed what each of us knew better and is more passionate about. But we also took a lot of risks, and we achieved many of them! "
"our objective was to work mostly on fashion and advertising. Like scenes and settings. In that sense we were inspired by many other young directors of music videos, short films like ours, and so on. Also, for me personally, Black Mirror is beyond any doubt a clear visual and narrative inspiration. "
O filme é um trabalho completamente independente, financiado pelos próprios criadores, Alexan Kevork Sarikamichian e Fran de la Fuente, ambos argentinos e formados na Universidad del Cine, Buenos Aires, sendo a música também original para o filme.
"Senses" (2017) de Alexan Kevork Sarikamichian e Fran de la Fuente (mirror link)

novembro 05, 2017

Depois do Fotorrealismo

No outro dia deixei aqui algumas questões a propósito dos avanços da Inteligência Artificial no campo das artes digitais o que gerou alguma discussão, tendo depois o Artur Coelho partilhado, em resposta no Facebook, o video-ensaio "Goodbye Uncanny Valley" (2017) de Alan Warburton, que pode ser visto no final deste texto. Entretanto a Nvidia colocou online um vídeo impressionante (ver imediatamente abaixo), junto ao texto "Nvidia reveals photoreal fake people portrait generator", no qual dá conta dos resultados da investigação que tem andado a desenvolver em redor da IA e do fotorrealismo. Vale a pena espreitar esta evolução da Nvidia antes de entrar no vídeo de Warburton em que se discutem novas estéticas do pós-fotorrealismo.

  Nvidia reveals photoreal fake people portrait generator

O trabalho de Warburton pretende exatamente discutir o que teremos depois deste fotorrealismo que não só se se tornou hoje uma realidade, como uma realidade criada pelas próprias máquinas. Para o efeito propõe um enquadramento para análise com que concordo, constituído por 4 dimensões: "Uncanny Valley", "Frontier", "Wilderness" e "Beyond". As duas primeiras dizem respeito ao momento atual, sendo brevemente analisadas nos seus aspetos mais comerciais e incrementais. As duas últimas dizem respeito à possível resposta que a arte tem para dar ao avanço tecnológico.

Enquadramento do CGI por Alan Warburton

A dimensão de "Beyond the Frontier" é subdividida em três grandes vectores: "Post-Truth"; "Post-Cinema"; "Theoretical Photorealism". Os três casos são paradigmáticos do que temos vindo a assistir no mundo das artes visuais e audiovisuais, colocando em causa muitas das fundações de realidade que detínhamos, ao mesmo que tempo que abre perspectivas imensamente ricas sobre aquilo que nos espera nestes campos. Ou seja, se os casos de post-truth dão conta de potenciais distopias, o "post-cinema" mostra-nos todo um novo mundo cinematográfico que nos aguarda, e o "theoretical photorealismo" dá-nos ainda mais esperança, ao juntar a arte e ciência.




Já a dimensão de "Wilderness" apesar de ser aquela que mais encaixa numa conceptualização de Arte, no seu sentido de procura pela subversão dos paradigmas existentes dos usos e potenciais das técnicas e tecnologias, acaba sendo aquele que para mim menos oferece em termos de novas ideias. Reconhecendo o engenho e a criatividade dos artistas por detrás das diversas obras apresentadas, tendo adorado a maioria delas, ficam-se pela subversão, tal como ficaram os movimentos do modernismo — surrealismo, dadaísmo, cubismo, etc. Não é suficiente fazer diferente, introduzir estranheza, grotesco ou barroco, para que as ideias possam seguir sendo utilizadas e transformadas, é preciso algo mais.

"Goodbye Uncanny Valley" (2017) de Alan Warburton

julho 09, 2017

Distopias da cultura de videojogos

Filipe Hodas é um artista 3d da República Checa. Com apenas 24 anos e 2 anos de prática diária de Cinema 4D conseguiu ver o seu trabalho reconhecido por vários sites de design gráfico (Design Boom, Hi-frutose, DYT), tendo a sua mais recente série de trabalhos, “Pop Culture Dystopia”, sido partilhada por milhares de fãs no Facebook e Instagram.


Esta série que Hodas delimita como Cultura Pop é constituída por vários trabalhos gerais, existindo uma clara tendência para a cultura de videojogos que escolho aqui dar conta. A série apresenta personagens e objetos dos videojogos re-imaginados em universos alternativos com claros sinais de decadência. A beleza da decadência material é um tema amplamente explorado nos últimos anos, tanto no campo fotográfico, como em filmes de animação 3d ou até de imagem real. Existe algo na visualização dos efeitos da passagem do tempo que nos fascina, seja a possibilidade de ver o tempo concretizado materialmente, seja a quantidade de sentidos que se conseguem extrair dos materiais pela especulação sobre as interações atravessadas e choques culturais, ou ainda o simples deleite com o detalhe visual que surge pelo acrescento de camadas materiais aos objetos originais.

Apesar do tema, Hodas não está verdadeiramente preocupado com a decadência ou crítica cultural, o seu foco, e no fundo a razão porque começou a produzir estes trabalhos, tem mais que ver com o melhorar das suas competências 3d. Neste caso o objetivo são os materiais, as texturas que servem para cobrir as suas esculturas 3d, e mais em concreto a rentabilização da ferramenta Substance Painter para a criação dessas. Daí que nada como um projeto assente no tema do apocalipse em que seja necessário apresentar transformações da realidade visível, nomeadamente em termos de degradação e deterioração, para dar asas à criação de texturas de enorme detalhe e significância.






A lista de ferramentas utilizadas para o desenvolvimento destes trabalhos apresenta, além do Cinema 4d e do Substance Painter: Octane Render, Zbrush, Substance Designer, World Machine e Adobe Photoshop.

junho 24, 2017

The Thrilling Adventures of Lovelace and Babbage (2015)

A história, e o tardio reconhecimento, de Ada Lovelace como pioneira da Algoritmia — criadora do primeiro potencial programa para computador — criou em mim expectativas demasiado altas para este livro que de algum modo acabaram por não se concretizar. Sendo interessante, e muitas vezes divertido, faltou-lhe alguma seriedade que gostaria de ter visto em homenagem a Lovelace. Não podemos esquecer que a computação tem sido uma área quase exclusivamente masculina, daí que ter como pioneira da área uma mulher é algo absolutamente ímpar.


O algoritmo desenvolvido por Lovelace foi escrito, entre 1842 e 1843, como notas de rodapé a um texto de Babbage. O texto original surgiu como transcrição em francês de uma comunicação que este tinha feito em Itália, e Lovelace tinha sido contratada para traduzir o mesmo para inglês. Contudo ao realizar a tradução, Lovelace desatou a escrever notas de rodapé explicativas do texto, indo muito para além daquilo que estava contido no texto original de Babbage, ultrapassando completamente a sua visão, apresentando assim aquele que é hoje considerado o primeiro programa para computador escrito.

Tendo em conta este feito, a criadora deste livro, Sydney Padua, resolveu prestar uma homenagem direta na forma do livro. Ou seja, não temos uma novela gráfica tradicional, mas antes uma novela gráfica intercalada por extensas notas de rodapé, que por sua vez têm ainda notas finais. Deste modo, temos metade livro tradicional, ainda que escrito em notas, e metade banda desenhada.

Notas de rodapé que vão muito além dos quadradinhos da banda desenhada.

Padua não se ficou pela forma. Padua parece ter digerido bibliotecas a respeito de Lovelace antes de avançar para a criação deste trabalho, por isso que teve de pensar um modo para explanar tanta informação absorvida. Em vez de se ficar pelo contar da biografia de Lovelace e Babbage, e tendo em conta que tudo aquilo que ambos criaram tinha-se ficado por um conjunto de propostas e modelos não aplicados, resolveu criar um conjunto de aventuras potenciais nas quais os seus feitos teriam sido levados à prática, aproveitando Padua para assim dar conta da história da informática. Para tornar estas aventuras ainda mais atrativas, Lovelace e Babbage são acompanhados por escritores ingleses de peso — como Coleridge, Lewis Carroll, George Eliot, ou Charles Dickens — o que faz imenso sentido se tivermos em consideração que o pai de Lovelace foi nada menos que o poeta Lord Byron.

A luta entre a Poesia de Lewis Carroll e a Matemática de William Hamilton

O resultado final é uma obra que transpira trabalho e inteligência, que usa o sentido de humor para dar conta de questões de complexas, mas acaba por não conseguir uma coerência completa. A constante interrupção entre os diferentes estilos de escrita — banda desenhada e notas — retira prazer à leitura. Por outro lado, o modo como a autora vai especulando sobre os feitos de Lovelace e entremeando com a história real da computação ao longo do tempo resulta em algo, que apesar de cómico, confuso e muito pouco pedagógico.


Recomenda-se a amantes da informática e da abordagem steampunk.

março 22, 2017

"Strange Beasts": Uma app para o futuro próximo?

Fantástica curta, ou talvez reportagem, ou ainda anúncio! O melhor será mesmo caracterizar de mockumentary, já que é um pouco de tudo, ou talvez bastasse dizer que é um trabalho do género "Black Mirror", fica tudo mais claro! Mas não é por isso que o trago aqui, embora também, é pelo seu conteúdo, o que tem para nos dizer ou melhor questionar, seguido da belíssima execução, tanto discursiva como plástica.




"Strange Beasts" foi criada por Magali Barbe, uma especialista em VFx baseada em Londres, que tem no seu CV trabalhos pela Passion Pictures, Framestore e TheMill, o que só por si garante à priori um trabalho de topo. Mas como disse acima, não é apenas a execução plástica que é deliciosa, o discurso narrativo é modelado de forma brilhante. Desde o momento em que somos introduzidos ao universo, ao momento em que nos despedimos, a crença é completa em tudo o que se apresenta, porque o storytelling é absolutamente perfeito no ritmo, na causalidade, na verossimilidade e familiaridade. Barbe usa os diferentes discursos do storytelling para nos envolver, focar a atenção e criar o modo de humor próprio, para depois nos tirar o tapete. Belíssima execução.

Quanto ao que se discute no filme, não quero entrar em pormenores, já que vos estragaria a surpresa. Mas que não vos deixará indiferentes, disso não tenho dúvidas. As questões despoletadas são absolutamente centrais em face da realidade que a tecnologia atual nos providencia.

"Strange Beasts" (2017) de Magali Barbé

março 12, 2017

Switch, mais uma revolução Nintendo

2017 viu nascer não apenas uma nova consola, mas o renascer da esperança nas consolas de videojogos. Com a evolução tecnológica — aumento de processamento, sistemas cloud e novas plataformas (telemóveis, tábletes, Steam, etc.) — as consolas pareciam estar condenadas ao definhamento. Muito se escreveu sobre o seu fim, sobre a sua irrelevância. Contudo o lançamento da Nintendo Switch pôs um ponto nesta discussão, ainda que possa ser temporário, ao tornar-se na consola que mais rapidamente vendeu em mais de 30 anos. Como é que as previsões falharam tanto?



Interessa-me menos explicar o que falhou nas previsões, já que as previsões apenas existem para gáudio mediático e financeiro. As previsões tecnológicas ou outras, como nos demonstrou a astrologia, estão condenadas às regras do acaso e coincidência. Daí que conduzir as nossas expetativas na certeza de previsões seja pouco saudável e nada recomendável. Interessa-me mais perceber o que desencadeou todo este interesse nesta consola especificamente, e acima de tudo, tentar compreender o que ela representa para o meio expressivo dos videojogos. Faço-o enquanto investigador que estuda o meio, mas faço-o também enquanto mero consumidor, já que em 30 anos de historial nunca tinha comprado uma consola em pré-venda.

Começando pelo lado do consumidor. Comprei a Nintendo Switch influenciado por apenas um elemento comercial, o primeiro trailer “First Look at Nintendo Switch”. Assim que o vi, em Outubro 2016, fiquei apaixonado, e tomei a decisão de a adquirir. Pouco mais li sobre a mesma até a adquirir. Contribuíram para essa decisão vários fatores: 1) não tinha adquirido a Wii U, e com isso tinha perdido a oportunidade de jogar alguns jogos da Nintendo, vi assim na Switch a oportunidade de recuperar alguns desses jogos; 2) a saída de um novo Zelda, e o desejo de voltar ao fantástico universo de "Skyward Sword" (2011), agora num mundo completamente aberto; 3) e por último o potencial de jogabilidade demonstrado pelo trailer. Este último ponto foi decisivo porque se ligava ao meu trabalho de forma mais concreta, acabando por ser o gatilho fundamental para a compra.

A Nintendo Switch revelou-se distinta do que vi no trailer. Primeiro porque ainda falta um claro investimento em jogos que rentabilizem todo o seu potencial, muito daquele que surge no trailer, falo em concreto da jogabilidade social, assimétrica e física. Temos uma clara evolução face à Wii, porque é claramente mais social. Os dois comandos pedem de imediato dois jogadores, e com isso a construção de toda uma relação social muito mais intensa (que consegui observar diretamente cá em casa). A Wii apesar de ter esta mesma capacidade, continuava ainda muito agarrada à ideia do jogador individual, com o ecrã a marcar o centro de toda a experiência. O videojogo “1-2-Switch” abre todo um leque de experiências de jogo até aqui deixadas por explorar pelas consolas, nomeadamente todas as que secundarizam o ecrã e colocam os jogadores fisicamente no centro da ação.



Insisto no campo social, por contrapeso à Realidade Virtual, que tomou conta do mundo dos videojogos nos últimos dois anos. Os jogos, antes de serem digitais, foram sempre sociais. Os jogos só se tornaram individualizantes com a presença das máquinas, porque estas passaram a simular a existência de um outro, permitindo a gratificação de jogo a solo. O ato de jogar não é relevante sem a componente social. Podemos até jogar sozinhos algumas bolas ao cesto, mas a gratificação é efémera se não pudermos competir, ou pelo menos demonstrar as nossas competências a quem nos dê feedback. Neste sentido, a Nintendo Switch poderia chamar-se Nintendo Social, porque é um dos seus maiores atributos, porque recolocou a essência do jogo no centro da atividade, e  finalmente porque o fez remando contra toda a maré individualizante da Realidade Virtual.

Mas talvez não tivesse escrito estas linhas, se não tivesse encontrado outro fator que me marcou ainda mais na experiência desta consola, por ter superado completamente aquilo que o trailer apresentava, falo da portabilidade. Muito honestamente, do trailer não tinha compreendido que a consola era essencialmente portátil, e que a componente de sala era apenas um modo de carregamento e ligação à televisão, por isso a surpresa foi ainda maior. Ou seja, a consola no seu modo portátil está completa, na presença de todo o seu poder de processamento, apenas com um ecrã menor. Por outro lado, o processo de conexão e desconexão da televisão é imediato, automático e completo. Passar de um jogo na televisão da sala para o sofá do escritório, demora apenas o tempo de levantar de um sofá e sentar no outro. Isto não é impressionante, isto muda tudo.


Podemos dizer que a Nintendo Switch superou todas as previsões sobre o futuro das consolas porque pegou nelas e simplesmente revolucionou o conceito de consola de sala. Percebe-se também a partir do design da Switch o porquê da Nintendo ter começado a investir em jogos móveis para telemóveis e tábletes. Porque a essência do design da Switch diz-nos que as consolas como caixas grandes, fixas e inamovíveis no centro da sala terminaram mesmo. Afinal os futurólogos acertaram em parte nas suas previsões. A evolução tecnológica permitiu miniaturizar de tal modo as capacidades de processamento, que tudo aquilo que precisamos para jogar os nossos videojogos pode estar contido num simples táblete, e em breve num simples telemóvel. Mas! Se assim é, porque é que ainda precisamos de uma consola, porque precisamos de uma Switch quando temos tantos modelos de tábletes?


A Nintendo podia ter lançado apenas um táblete, mas isso nunca seria uma consola. Uma consola é um sistema de jogo dedicado. Pode até fazer tudo o que faz um táblete, mas tem de oferecer mais, e a Switch oferece. Da portabilidade entre televisão e táblete, à essência do ato de jogar que assenta numa dupla de comandos como interface entre o mundo digital e o mundo físico. Tudo isto pode tornar-se rapidamente num standard copiado por várias empresas para uso com diferentes sistemas móveis. E mesmo o leque de jogos pode rapidamente ser ultrapassado pelos milhares de criadores independentes que desenvolvem para Android ou iOS. Mas no final do dia, o que conta é quem chegou primeiro, ou melhor, quem teve a visão, quem deu liberdade à criatividade e arriscou, e isso é aquilo que a Nintendo ainda nunca parou de fazer, por isso se mantém no mercado, e enquanto assim for continuaremos a ter sempre consolas.


Declaração de interesses: A consola e os videojogos aqui discutidos foram adquiridos pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com as marcas envolvidas.

novembro 12, 2016

“Kinoautomat” (1967), o primeiro filme interativo

Uma das razões que me trouxe à conferência ECREA 2016 em Praga, foi poder ver ao vivo o primeiro filme interativo da história, “Kinoautomat” (1967). A sua produção teve como objetivo uma demonstração tecnológica no pavilhão da antiga Checoslováquia, na Expo 1967, em Montreal. O filme além de requerer comandos distribuídos pela audiência, requer ainda um apresentador que interage com a audiência e com o filme. Neste caso tivemos a sorte de ter a realizar esse papel, a filha do realizador Raduz Cincera, Alena Činčerová.



A sessão dura cerca de uma hora e um quarto, para um filme que terá à volta de trinta minutos. Os comandos originais estavam fixados aos sofás da sala de cinema (com cerca de 124 lugares), neste caso deram-nos comandos portáteis, que tivemos de devolver no final, estando na sala cerca de 60 pessoas. O filme é a preto e branco, e é fundamentalmente uma comédia negra, muito típica dos anos 1960, recorrendo a alguns dos estereótipos mais banais, como “a vizinha do lado”, a “família que chega da província”, o “louco que tudo sabe”, ou ainda “a velha inocente que é muito pouco inocente”. Contudo, e apesar de todos estes clichés, fez-me rir como já não ria há bastante tempo, recordou-me imenso o cinema de Louis de Funés. Claro que estar inteiramente predisposto e altamente expectante terá ajudado, mas a verdade é que Cincera consegue imprimir ritmo, produzir cenas curtas carregadas de leitura de enredo que nos fazem ver múltiplas possibilidades muito rapidamente, e por isso ainda mais desejosos de participar nas escolhas propostas.

O cliché, da vizinha bonita do lado que fica trancada fora do seu apartamento, é o mote para todo o conflito.

O sistema de escolhas, e tendo em conta que é coletivo, funciona numa lógica de maioria. Ou seja, existem sempre apenas duas opções, verde e vermelho, e as cenas são escolhidas em função daquilo que a maioria presente em sala escolhe. Parecendo um sistema meramente mecânico, devemos relembrar que em 1967 a Checoslováquia vivia debaixo de uma sistema totalitário comunista, sem direito a eleições, votos, nem escolhas de maiorias. Nesse sentido, uma das grandes questões que terá estado na base da invenção deste sistema terá sido a crítica ideológica. Num país em que não se pode escolher, poder escolher como deve prosseguir o filme, é no mínimo instigador, mas na verdade revolucionário! Não admira que o filme tenha sido proibido no país, e mesmo impedido de circular durante muito tempo pelo próprio governo da Checoslováquia.



Algumas escolhas são triviais, não nos movem particularmente, outras são até bastante duras, ainda que tratando-se de comédia negra, deixam-nos hesitantes, questionam-nos sobre o tipo de pessoa somos, "Eu não posso deixar de...". Por outro lado, por vezes, a questão passa a um estado meta, em que deixamos de nos colocar no lugar do personagem, e passamos a pensar no efeito na história e no que desejaríamos ver acontecer no filme e com os personagens.

A inovação, ou melhor, a grande distinção, face ao cinema interativo que veio a suceder a "Kinoautomat" está no apresentador, o entertainer. O seu papel era o de orientar a audiência no processo de escolha, explicar e garantir que estes realmente interagiam, já que aquela era uma experiência nova. Mas do que pude apreciar, acaba servindo muito mais do que isso, o facto de termos uma pessoa que fala connosco, que dá ordens ao filme, e nos questiona, faz com que as pausas para interatividade, tão malfadadas pela quebra de ritmo, se tornem prazeirosas, e sejam elas parte da obra. Ou seja, o filme interativo não é apenas o que vai surgindo na tela, nem a interação é apenas o que nós escolhemos no comando, é antes um todo, uma instalação, uma performance, um jogo, que cria um espaço de relação interno à audiência e desta com o apresentador, e desses todos com os personagens no filme, na tela. E é por isso que se gera uma experiência tão vívida, tão entusiasmante. Não sou apenas eu que escolho, enquanto escolho penso nos outros, sinto-os ali, meço-lhes o pulso pelo que a maioria escolhe, a própria apresentadora vai fazendo comentários ao tipo de audiência que temos ali naquela noite — conservadores, curiosos, impulsivos, pecaminosos, etc.

As escolhas da sala surgem no ecrã, em pequenas bolas, que crescem de baixo para cima, como um gráfico que sobe, até que se identifica o lado escolhido pela maioria.


Fluxograma de "Kinoautomat" criado por Brian Moriarty, no qual se pode ver como a maior parte das escolhas, são mera ilusão. Por outro lado, não podemos esquecer que a projeção em 1967 era feita com grandes máquinas de projetar película, controladas manualmente, o que impossibilitaria uma criação real de vários ramos de nós.

Em relação ao desenho das escolhas, e pelo que consegui ver, e depois pesquisar online, elas são bastante limitadas, como seria expetável, criando-se muito mais ilusão de escolha, do que consequência efetiva. Contudo, a audiência não sente essa ilusão, a audiência participa ativamente, envolve-se fortemente, e deseja agir nessas escolhas. Instigada pela força questionadora do filme, mas também pela apresentadora que nos espevita a curiosidade do que poderá vir a seguir. Aliás, um dos elementos que mais funciona para esta ativação da audiência, é que em cada paragem do filme, para cada escolha, a apresentadora levanta ligeiramente o véu do que pode vir a acontecer, deixando rolar alguns frames de cada uma das diferentes opções, o que torna ainda mais estimulante todo o processo de escolha.

Trailer recente da experiência

Para fechar, foi sem dúvida uma sessão de cinema, ou experiência, não só muito animada, mas imensamente participada e sentida, a demonstrar todo o poder do cinema interativo, quando bem pensado. Mesmo que recorrendo a ilusão de interação, mesmo que recorrendo a clichés, o trabalho é irrepreensível, o que acredito ter contribuído, e continuar a contribuir, para inspirar muitos dos que se aventuram por estes caminhos.

junho 06, 2016

Contar histórias em 360º

Pearl” é uma animação criada por Patrick Osborne para o formato 360º, dotada de belas história, ilustração e animação, capaz de rentabilizar na perfeição a inovação introduzida pela perspetiva 360º, embora não demonstre per se como é que o formato poderá vir a tornar-se um standard no futuro.




Osborne parte da simples premissa de que o 360º, apesar de abrir em todas as direções, congela o eixo do ponto de vista, impossibilitando o seu movimento, e ainda bem. Poder ver em todas as direções é já pesado em termos cognitivos para o espectador, se pudéssemos ainda variar o eixo do ponto de vista, a experiência tornaria-se simplesmente insustentável já que perderíamos a ação desempenhada para suportar o contar de história.

Deste modo a experiência criada acaba funcionando muito bem, exatamente porque o autor soube encontrar um ponto de vista capaz de garantir a variedade de espaço (ver making of), isto porque o ponto se vai movendo, sem qualquer ação da nossa parte, fruto do objeto em que se encontra inserido (o carro). Contudo, por várias vezes damos por nós a tentar virar rapidamente em ambas as direcções para conseguir acompanhar o que estará supostamente a acontecer, e esse acaba por ser o maior problema da abordagem 360º ao contar de histórias.

Apesar destes reparos negativos, esta abordagem tem uma mais valia indubitável que se pode ver emergir aquando de uma segunda ou terceira visualizações, mas a grande questão é se é esse será o objetivo desta, ou outras obras?

"Pearl" (2016) de Patrick Osborne

março 11, 2016

Brinquedos inteligentes

Os “brinquedos inteligentes” (ex. MagikBee) continuam a surgir um pouco por todo o lado, o mais recente vem do Copenhagen Institute of Interaction Design, chama-se Ziff e foi criado por Alejandra Molina, uma designer de interação mexicana, como trabalho de tese da pós-graduação Interaction Design Programme.




Ziff é um brinquedo inteligente, um híbrido composto por dois objetos, um físico e um digital. O brinquedo físico funciona neste caso como uma interface tangível do videojogo. A inovação mais interessante da abordagem apresentada reside no entanto no facto do brinquedo não se limitar ao mero estatuto de interface, mas ser ele próprio dotado de uma componente de interação criativa. Ou seja, os jogadores precisam de experimentar com o brinquedo, construir e transformar, para que ele possa realizar as tarefas necessárias no âmbito do jogo digital. Não basta pegar e carregar em botões, ou abanar e mexer, é preciso olhar para o que se tem nas mãos e para o que está no mundo digital e combinar, encontrar a complementaridade.

A prototipagem em papel do jogo

Existe aqui uma certa similaridade com a nossa abordagem no Bridging Book, pelo uso da conceptualização da representação em modo de complementaridade. Ou seja, o brinquedo aqui tem de funcionar em complemento do mundo digital, e não apenas como transmissor de sinais. E é aí que tudo se torna mais complicado no processo de design como acaba por admitir Molina ao Gamasutra,
“I have to think about where the attention of the player is at all times, exactly where the player’s eyes will be looking. The level design has to consider the time it takes to make any physical change, and I needed to consider all the possibilities, not just the “right ones”. The game should react to whatever configuration the child makes, and should give you some space to experiment, and learn by trial and error. Every level has to have different environments to motivate the player to change configuration.”
Em termos de desenvolvimento a componente digital foi toda criada sobre Unity, no caso do brinquedo recorreu-se ao Arduino e RFduino. O resultado final é fruto de trabalho de equipa, sendo Molina engenheira, toda a arte foi criada por Line Birgitte Borgensen.

A maker Alejandra Molina 

O projeto convenceu desde já muitas pessoas, tendo sido selecionado para ser apresentado no Alt.CTRL.GDC da Game Developers Conference que vai decorrer de 14 a 18 Março em São Francisco. Aliás estará aí presente um outro projeto dentro desta mesma linha, que esteve no Kickstarter há pouco tempo, o Fabulous Beasts.



Sobre todo o processo criativo e de desenvolvimento podem ler em detalhe no blog de Molina ou ler a entrevista que deu à Gamasutra recentemente.

janeiro 15, 2016

"Information Doesn't Want to Be Free: Laws for the Internet Age"

Cory Doctorow é sobejamente conhecido pela sua luta contra o copyright, com formação em tecnologia e editor de um dos blogs internacionais mais influentes — Boing Boing — assim como com vários livros publicados, muitos de forma independente, é uma pessoa com uma visão alargada do estado do copyright assim como das tecnologias que dão vida à atual web. Este seu novo livro surge num tom bastante retórico sustentado pela sua experiência pessoal, acumulada ao longo das últimas duas décadas.


Do lado positivo, além da sua experiência e amplo envolvimento no debate internacional, o livro vem carregado de analogias que nos permitem facilmente ganhar uma compreensão do que está em causa em toda esta discussão. O cerne do seu argumento não se foca na abolição do copyright, de todo, antes na proposta de uma nova regulação para o mesmo, estando o verdadeiro problema, para Doctorow na grande indústria de entretenimento. Doctorow ataca sem dó nem piedade tudo o que ela representa desde a música, cinema às editoras livreiras.

Diga-se que o foco é bem definido e sustentado, se fossemos aceitar tudo o que essa grande indústria deseja, viveríamos hoje debaixo de uma autêntica ditadura, totalmente amordaçados, tudo em nome de algo que nunca foi consagrado na lei do copyright. É contra isto que Doctorow se move, e toda a sua argumentação está cheia de casos recentes que conferem enorme força à sua luta, e digo mesmo que era bom que fosse ouvido.

O problema é que o livro acaba por sofrer desta abordagem, de pura retórica, mais tipo TED Talk ou post de blog, estendidos num livro, sem metodologia de fundo que sustente toda a argumentação, acabando por surgir caso a caso, mais anedotário do que cientificamente sustentado, conferindo-lhe assim baixa credibilidade. Doctorow mete os pés pelas mãos ao misturar assuntos imensamente mais complexos — banca, terrorismo, pedofilia — do que aquilo que a indústria de entretenimento anda a tentar fazer com o PIPA, a SOPA ou a ACTA. Doctorow tenta tocar em tudo aquilo que a internet toca, e ao fazê-lo perde-se, porque apesar de eu concordar com o facto de esta ser o sistema nervoso da sociedade contemporânea, isso não quer dizer que não tenha de existir regulação, como ele próprio acaba por admitir por entre frases ao longo do livro.

Por outro lado, e talvez por ser um discurso sentido e quase confessional com o leitor, que se espera serem os novos criadores, Doctorow acaba fazendo um discurso muito relevante para todos aqueles que pretendam entrar no mercado da cultura criativa. Sempre que apresenta alguma coisa boa que a internet pode fazer pelo artista independente, nunca se esquece de apresentar o reverso da medalha, explicitando bastante bem os problemas, as armadilhas, mas sem deixar de incentivar sempre à criação. Aliás, o modo como termina o livro vai exatamente nesse sentido quando diz simplesmente:
If I have to choose between twenty hours’ worth of blockbusters every summer and sixty hours of “personal” video every second on YouTube, I’ll choose the latter (..) I think we can tell a good copyright system from a bad one by what kind of work gets made under its rules. A bad copyright system has fewer creators making fewer types of work, enjoyed by fewer people. A good copyright system is one that enables the largest diversity of creators making the largest diversity of works to please the largest diversity of audiences.

novembro 09, 2015

Automação da arte

Nos últimos anos temos assistido à automação de tarefas um pouco por todas as esferas da atividade humana. Qualquer atividade que requeira repetição de passos, sem grande variabilidade, é rapidamente sujeita a processos de informatização que permitam a sua automação por máquinas. Ora se existe área onde isto não parece fazer muito sentido é na criação artística, já que aquilo que se espera neste domínio é sempre a criação de novo, diferente, original. Contudo parece que já nem sempre assim é.



O mais recente exemplo surgiu esta semana no campo da criação de ambientes virtuais em tempo real, para usar na plataforma Unreal. Trata-se do Landscape Auto Material criado pela VEA Games, e que permite criar todo um ambiente florestal, altamente original de cada vez, porque personalizado em termos de posição e dimensão, assim como elementos e texturas. Basta arrastar o rato para rapidamente criar um trilho com ervas, pedras, arbustos, riachos, assim como criar relevos. É o mais próximo que já vimos da criação artística através do clique de um botão.

Como dizíamos acima isto não é novo, em 2010 tínhamos visto a Adobe apresentar a ferramenta Content Aware que faz algo muito parecido em fotografia 2d no Photoshop. Estamos no fundo a falar de algoritmos que conseguem usar informação sobre objetos pré-existentes para criar novos. Aliás o próprio mundo do webdesign já imensamente fustigado pelas gigantescas bases de dados de templates, começa também agora a conhecer ferramentas deste tipo, com IA que se adapta às necessidades mais específicas de cada utilizador. Por um lado tudo isto parece em certa medida ficção científica, por outro começa mesmo a parecer o início do fim das artes, mas será mesmo?

Na verdade não. Primeiro, porque falamos de atividades criativas altamente repetitivas, profundamente orientadas a um objetivo, ou mesmo tarefa. Nada nestes processos é muito criativo, tendo em conta a quantidade de objetos semelhantes criados antes. Ou seja, de que modo podemos separar hoje o desenho de um website, ou de um terreno florestal 3d, do esculpir de uma caneca de barro? Na verdade nada, e por isso mesmo é que estas ferramentas surgem, e cada vez teremos mais. Mas isto não quer dizer que deixaremos de precisar de criadores de universos de paisagens virtuais, ou de criadores de websites.

Simplesmente porque estas ferramentas são apenas e só tecnologias criativas, tecnologias que trazem embebidas em si, conhecimento de suporte à criação. Ou seja ferramentas que permitem a quem nada percebe do assunto rapidamente construir algo, e assim aceder ao universo em questão, encontrando-se em termos criativos. Assim como permitem a um criativo profissional rapidamente executar algumas das tarefas mais repetitivas, sem contudo deixar nunca de executar o seu trabalho, aquele pelo qual verdadeiramente é pago, a ideação e a comunicação, ou seja a capacidade de pensar de forma única, inovadora, e de transformar esse pensar, a imaginação, numa forma real e expressiva.

Por mais automação que venhamos a criar, a ideação e sua expressão são uma espécie de último reduto intransponível. Mesmo que venhamos a conseguir dotar máquinas de consciência um dia, aí passaremos a ter entidades por detrás dos processos de ideação, o que implicará que esses processos continuarão a não ser catalogados de automação, mas sim de criação, ainda que não sejam fruto de uma mente humana.

"UE4 Pack: Landscape Auto Material" (2015) da VEA Games

maio 17, 2015

as tecnologias criativas

Esta semana saiu o resultado de mais um projecto do engageLab, o livro "Creativity in the Digital Age", dedicado a aprofundar as questões por detrás das tecnologias criativas. O livro foi publicado pela Springer e sucede a um número da revista Comunicação e Sociedade, nº22 (2012), também dedicado ao tema. O domínio das tecnologias criativas tem servido como um dos motores de ação no trabalho, que tenho desenvolvido conjuntamente com o Pedro Branco, no engageLab.


Este volume que agora editamos começou a ser preparado quando saiu o nº22 da revista Comunicação e Sociedade, ou seja teve um percurso de quase três anos até ver a luz. Na altura sentimos que ainda não tínhamos conseguido ir ao âmago da questão. É verdade que o domínio é em si extremamente abrangente, mas tínhamos algumas ideias bastante concretas do que queríamos aprofundar. Nesse sentido fomos trabalhando um position paper sobre o domínio, que tínhamos intenção de submeter a um journal, mas que acabou servindo de capítulo de abertura deste novo livro, sendo depois intitulado - "The Creative Revolution That Is Changing the World".

"Tecnologias Criativa", nº22 (2012)

As dificuldades de concretizar a temática deveram-se muito ao hype gerado em torno da ideia de criatividade nos últimos anos, de que fazemos menção no prefácio do livro, e que nos levou a recusar várias propostas, mesmo de pessoas que tínhamos previamente convidado a participar no projecto, por não se enquadrarem na abordagem que pretendíamos focar. Tudo isto arrastou a produção do livro, atrasando o seu fecho e submissão ao peer-review final dos editores da colecção Springer Series on Cultural Computing.

Dito isto, o resultado final satisfaz-nos bastante, julgamos que estão representados neste volume as áreas centrais do domínio das tecnologias criativas, e esperamos que este trabalho possa servir no lançamento de outras iniciativas, capazes de alavancar e sustentar o futuro da área.