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março 18, 2017

“The Undoing Project”, 12/2016

O novo livro de Michael Lewis, autor do enorme sucesso “Moneyball” (2003) passado a filme homónimo em 2011 com Brad Pitt, é uma montanha russa de emoções. Usando como tema de fundo a amizade entre dois cientistas que revolucionaram a psicologia, Lewis leva-nos a conhecer o duo, dando conta de toda a sua genialidade sem descurar todas as fragilidades humanas. As páginas viram-se por si porque Lewis conta como poucos sabem contar uma boa história. É verdade que embeleza, que temos de ir colocando algum sal nos heroísmos, sonhos e facilidades que tão a jeito se colocam para nos lançar nos turbilhões emocionais, mas isso faz parte da arte do storytelling. Lewis não é um historiador, não está à procura da certeza absoluta, nem da total evidência daquilo que diz, Lewis é um contador de histórias, e usa toda a sua arte para nos inebriar e interessar pelo mundo da investigação científica.

Amos Tverski e Daniel Kahneman, nos anos 1970

Daniel Kahneman tem hoje 83 anos, fugiu, com a sua família de Paris, ao Holocausto e chegou a Israel em 1946. Licenciou-se, com um major em Psicologia e um minor em Matemática, praticou psicologia e aprendeu a arte da investigação nas forças armadas israelitas. Nos anos 1960 iniciou o seu trabalho científico de fundo com um outro psicólogo matemático, Amos Tverski. Juntos, de Israel à Ivy League americana, transformariam a Psicologia e em consequência a Economia, levando ao desenvolvimento de uma área científica totalmente nova, a Economia Comportamental. Tverski morria de cancro em 1996 deixando Kahneman sozinho para receber o Prémio Nobel de Economia em 2002. Esta é a história que nos conta Michael Lewis, e que pelos ingredientes facilmente se poderá depreender que não faltam conflitos, medos e alegrias para criar interesse na leitura.


Apesar de acreditar no livro como um excelente relato de proezas científicas, preenchido por uma boa componente humana que lhe confere grande empatia, recomendaria a qualquer leitor, se quiser extrair o máximo desta leitura, a ler primeiro “Pensar, Depressa e Devagar” (2011). Este é o livro que Daniel Kahneman e Amos Tverski tinham decidido escrever juntos, mas só acabaria por acontecer já depois da morte de Tverski e depois do Nobel. É um livro de divulgação científica, que abre o conhecimento complexo à leitura de leigos. E é um livro que não tenho parado de recomendar e recomendar a todos, porque é um livro que muda a forma como vemos o mundo, desde logo como nos vemos a nós mesmos. Daí que compreendendo melhor o alcance do trabalho de Kahneman e Tverski e admirando-o, aumenta consideravelmente o prazer desta leitura. Em “The Undoing Project” Lewis dá conta das principais teorias desenvolvidas e sua relevância, mas é no livro de Kahneman que podem encontrar uma porta segura para se iniciarem.

De forma muito resumida, Kahneman e Tverski são responsáveis por uma mudança de 180º na forma como passámos a encarar os seres humanos, de seres racionais a seres emocionais, nomeadamente em tudo o que tem que ver com o modo como se processa a tomada de decisões. Até ao surgimento do trabalho desta dupla, os modelos dos economistas criavam previsões partindo do princípio de que os seres humanos eram profundamente racionais, que agiam baseados em conceitos probabilísticos, capazes de quantificar os ganhos e as perdas, e tomar decisões lógicas nas suas vidas. Kahneman e Tverski demonstraram que os seres humanos são tudo menos isso, que a racionalidade não está nunca separada da emocionalidade, e que existe um conjunto de processos que toldam e enviesam o modo como vemos e compreendemos o mundo.

Lewis ao longo do livro vai usar toda a psicologia da dupla para nos dar conta da história de amizade que os levou a manterem-se juntos por mais de uma década, e depois novamente na hora da morte de um deles. Lewis podia ter-se focado sobre os processos de criação em duo, algo que sabemos bem ser imensamente complexo, contudo acabou por se concentrar mais sobre a amizade entre ambos, sobre o modo como se entendiam e aceitavam, sobre o como os opostos se atraem. Lewis cria uma quase história de amor, carregada de poética, beleza e sonho, capaz de produzir uma intensa carga inspiracional em quem lê. Não poderia recomendar mais.

fevereiro 19, 2017

Memorizar requer esforço e não é intuitivo

"Make it Stick" (2014) é um livro de divulgação científica que procura dar a corpo a um conjunto de teorias desenvolvidas por dois professores de psicologia (Henry L. Roediger e Mark A McDaniel) que ao longo de várias décadas estudaram o modo como criamos memórias. O terceiro autor (Peter C. Brown) é especialista em storytelling, e contribuiu aqui especificamente para o desenho da apresentação dos resultados desse estudo. A ideia central de toda a teorização que percorre todo o discurso apresentado no livro é o da Recuperação de Memórias (“Memory Retrieval”), de que já aqui tinha falado a propósito da leitura dos Cânones. Uma técnica suportada por dezenas de estudos empíricos que demonstram a sua relevância e pervasividade no largo espectro da aprendizagem. O conceito assenta na lógica biológica que regula a construção de memórias a nível neuronal.


Assim, precisamos de primeiro compreender que as memórias que possuímos são conjuntos de associações de nós neuronais, de ligações entre neurónios. Quando experienciamos algo — ao vivo, lendo, vendo, ouvindo — o nosso cérebro produz novas ligações entre neurónios que dão conta de imagens mentais que nós chamamos quando queremos recordar alguma coisa. Ou seja, quando jogamos xadrez e pegamos no cavalo, o nosso cérebro recupera a ideia de que este apenas se pode movimentar em L, e deste modo ajuda-nos a realizar a ação de movimentação da peça no tabuleiro. Nós podemos recordar a imagem mental do movimento em L, porque anteriormente a isso nos foi ensinado — explicado em palavras, ou visto em ação. A questão que se coloca, é, como é que nos lembramos que o cavalo se deve mover em L? E é a esta questão que o livro responde.


Não basta alguém explicar-nos em palavras ou atos, como se move o cavalo em L. Para que no fim-de-semana seguinte a ter aprendido a jogar, eu possa saber, ou seja aceder à memória do movimento do cavalo de xadrez, eu preciso de “exercitar” essa mesma memória, preciso de a recuperar várias vezes durante a semana. É importante que dentro da minha cabeça eu continue a “chamar” a memória, para manter vivas as relações de nós neuronais que edificam a imagem mental do movimento do cavalo. Se ao longo da semana não o fizer, as ligações neuronais criadas aquando da explicação de como se joga acabam por se desfazer, ou seja, acabarei por simplesmente esquecer.

Se o chamar da memória é importante, existe algo ainda mais importante, o modo como é chamada, ou dito de forma mais literal, recuperada. “Make It Stick” dedica-se fundamentalmente a explicar esse processo de recuperação, explicando os modos como podemos tornar as memórias mais fortes e sustentáveis no tempo. E esses modos, os melhores, não são aquilo que muitos de nós esperávamos, não são aquilo que nos ensinaram durante décadas de escola, não são nem atrativos nem intuitivos. O melhor resumo surge na explicação de uma professora, quase no final do livro:
"Eu não consigo dizer-lhe quantas vezes os alunos vêm ter comigo, e me mostram os seus livros com sublinhados e destacados em quatro cores diferentes. Então eu digo-lhes: "eu posso dizer que vocês têm trabalhado imenso e que realmente querem ser bem sucedidos nesta cadeira porque vocês tem azul e amarelo e laranja e verde marcados nos vossos livros”. Mas é também quando tenho de lhes dizer: “que todo o tempo gasto com o livro depois da primeira leitura foi um desperdício.” E eles dizem: "Como é isso possível?" Ao que respondo: "O que vocês tem que fazer é: vocês leem um pouco, e depois têm que se testar a vós mesmos”, mas eles não sabem como fazer isso.
Então eu modelo as aulas para que possam fazer isso mesmo. A cada cinco minutos, ou assim, eu jogo uma pergunta sobre o material que acabámos de falar, e eu posso vê-los a começar a olhar para as suas notas. Mas eu digo: "Parem. Não olhem para as vossas anotações. Basta um minuto para pensarem sobre isso vocês mesmos.” Eu digo-lhes que os nossos cérebros são como uma floresta, e que a memória está lá nalgum lugar. Vocês estão aqui, e a memória está ali. Quanto mais vezes vocês fizerem o caminho até essa memória, mais evidenciado ficará esse caminho, de modo que na próxima vez que vocês precisarem dessa memória, vai ser muito mais fácil encontrá-lo. Mas, assim que vocês olharem para as vossas notas, vocês vão curto-circuitar esse caminho. Vocês deixam de explorar o caminho, porque esse já vos foi dito. "
Mary Pat Wenderoth, Professora de Biologia, Universidade de Washington
Criar memórias é criar caminhos e exige esforço, repetição e dedicação. Ler um livro, ver um filme, assistir a uma aula são apenas pontas de icebergues, existe toda uma quantidade de trabalho de construção da memória que cada um precisa de fazer, que mais ninguém pode fazer por nós. E o que estes estudos nos vêm dizer é ainda mais dramático, já que não basta deixarmo-nos expor repetidamente à informação. Ou seja, reler e reler um texto, ou rever e rever um filme, ou assistir a todas as aulas. Se não existir um trabalho de chamar a memória que ilumine o “caminho” até ela, o simples facto da informação nos ser apresentada não ajuda a solidificar a memória em si, ainda que contribua para durar até ao dia seguinte, podendo contribuir para a falsa ideia de que já memorizámos.

Deste modo o que Henry L. Roediger e Mark A McDaniel nos dizem é que as as práticas denominadas de “marranço” que continuam a ser professadas desde sempre e até aos nossos dias, não funcionam. Os vários estudos realizados demonstram que os alunos que realizaram pequenos testes várias vezes depois de uma leitura única, face aos que releram várias vezes o mesmo material, são imensamente mais efetivos a recordar a informação.

Esta abordagem vem assim uma vez mais apoiar as práticas sustentadas em técnicas interativas, ou de jogos, de entre os mais famosos, os conhecidos Quizzes, mas quase todos os outros modelos. Aliás, é exatamente este o modelo proposto pela Escola Virtual em Portugal, que pega nas matérias escolares, e cria cenários hipotéticos que questionam os alunos sobre as matérias. Não querendo fazer aqui defesa promocional da plataforma, tenho de dizer que é excelente, porque um dos maiores problemas que um aluno enfrenta no seu estudo é a falta de uma base de perguntas sobre a matéria. Podendo ter uma plataforma na qual essas perguntas estão disponíveis e com claro feedback, algo essencial a uma efetiva aprendizagem, fica apenas a faltar o investimento do esforço do aluno.

Mas não queria quedar-me pelos testes e quizzes, mais ainda tendo sido eu desde há muitos anos um acérrimo crítico de exames e testes escritos. Aceito que eles servem a comparação, nacional e internacional, necessárias, mas não gosto particularmente do método de avaliar alguém por perguntas escritas, prefiro claramente abordagens projetuais, ou reflexivas e elaborativas como a escrita de ensaios. As razões porque não gosto começam desde logo pela pressão exercida, já que o teste só pode acontecer num momento concreto, e é de possibilidade única, ora o ser humano aprende essencialmente por imitação e tentativa e erro, que são formas de aprender no tempo, iterativas e interativas. Por outro lado, os testes condicionam a aprendizagem para a matéria em modo afunilado. Ou seja, aquilo que os alunos fazem enquanto estudam, releiam ou façam quizzes, é memorizar factos para poder debitar, quando aquilo que nós queremos é que a pessoa memorize esses factos para os articular com outros, para que construa e não apenas recite. Não é por acaso que Henry L. Roediger e Mark A McDaniel começam por enfatizar fortemente os testes, e os elevam a ferramenta de eleição para o estudo e aperfeiçoamento do ato de memorização, mas quando mais na parte final do livro começam a tentar aplicar este modelo à educação, acabam por citar a Taxonomia de Bloom (ver imagem).

Taxonomia de Bloom, revisão de 2001

Contudo, não podemos deixar de reconhecer que o objetivo deste livro, ao contrário do trabalho de Bloom, não são as práticas educativas mas o dar a conhecer de ferramentas e processo que nos permitem memorizar. O que na verdade, e olhando à pirâmide de Bloom, temos de aceitar como vital para tudo o resto. Não é possível criar sem deter conhecimento sobre o que se pretende criar. Assim como todas as restantes categorias que delineiam a nossa inteligência, todas precisam da base, da presença de memórias de factos, que possam ser recordadas no momento certo para agir.


Assim tenho de dizer que o livro vai mais longe do que a simples defesa do quizzing. Os autores apresentam múltiplas técnicas no livro, que se podem encontrar resumidas no último capítulo. Dessas, as três primeiras dirigem-se claramente ao quizzing, mas são passíveis de ser adaptadas a qualquer outro modelo, sendo que são as mais efetivas no processo de memorização: Recuperação, Espaçamento e Intercalação.

1. Recuperação 
Práticas de recuperação de informação por meio de testes de perguntas (quizzing). Em vez de reler a informação, ler uma vez, e depois realizar testes sucessivos sobre a matéria. Em vários estudos realizados, os grupos que relerem esqueceram 50% do que aprenderam, enquanto que os que realizaram apenas uma leitura, seguida de testes, investindo o mesmo tempo, esqueceram apenas 13%.

2. Espaçamento 
Espaçar as sessões de recuperação, deixando espaço entre estas para esquecer. Os autores não referem, mas isto está baseado nas questões cognitivas da Atenção. O facto de espaçarmos a aprendizagem permite que o foco da atenção sobre a informação se exerça mais vezes, uma vez que o foco da atenção não se sustenta muito tempo sobre o mesmo tipo de estímulos.

3. Intercalação
Alternar os temas em que se está a trabalhar. Contra-intuitivo, porque torna a aprendizagem mais difícil, mas é exatamente por a tornar mais difícil que se torna mais eficaz em termos de memorização. Os autores apresentam vários estudos que demonstram claramente a eficácia da intercalação, que se pode fazer entre disciplinas, ou entre matérias de uma mesma disciplina.


Indo para além dos testes de perguntas, a dupla de psicólogos segue Bloom e apresenta práticas muito menos coladas à voragem métrica dos testes, mais adaptadas aos domínios que falava acima de projeto e ensaio, para o que propõem então outras três técnicas: Elaboração, Geração e Reflexão

4. Elaboração
Tentar encontrar níveis adicionais de significado no material novo. No fundo, estamos a construir novas memórias com base em antigas, o que faz com que os caminhos das antigas ganhem novas ramificações, e se fortaleçam.

5. Geração
Tentar responder a questões ou resolver problemas antes de olhar para as respostas. Aqui fala-se de aprendizagem experimental, em que seguimos o processo de tentativa e erro, procurando o modo correto de ação a partir das memórias detidas.

6. Reflexão
Uma combinação das práticas de recuperação e de elaboração que adicionem camadas ao material de aprendizagem. Tentar questionar-nos a nós mesmos.

São apresentadas mais duas técnicas, a sétima denominada de "calibração" dos viés cognitivios, mas que talvez os autores devessem ter chamado de simples Feedback. Não é possível construir aprendizagem sem feedback, sem o efetivo retorno tanto aos quizzes, como a um projeto ou ensaio, o aluno não consegue crescer. Já a última técnica, diz respeito às abordagens mais esotéricas das "mnemónicas", muito interessantes, mas claramente menos relevante, por conduzirem o foco demasiado para a memória como mero fim, em vez de meio para aprendizagem.

Para fechar, aquilo que o livro tem a oferecer pode ser lido num artigo de dez páginas. Aliás, tudo está resumido no último capítulo, ou quase aqui no meu texto. Apesar disso, o livro não é grande e lê-se bem, está bem escrito e permite criar um enquadramento muito interessante para a aprendizagem dos conceitos, sem se tornar fastidioso.


Textos potencialmente relacionados:
O Código do Talento, 2014
Cognição e biologia na base do sucesso, 2013
Aprender, esquecer e memorizar os cânones culturais, 2016

novembro 02, 2015

"Player Stories vs. Designer Stories"

Já aqui falei antes de "Middle-earth: Shadow of Mordor" e também da Teoria da Autodeterminação de Deci e Ryan, mas agora venho dar conta da ligação entre ambos, estabelecida por Michael Plater, CEO da Monolith Studios, numa talk dada na DICE este ano, "Player Stories vs. Designer Stories – Empowering Players Around The World", na qual desvelou um pouco mais do véu sobre o sistema que suporta a jogabilidade e que ficou conhecido como Nemesis.


No essencial Plater vem dizer que a base de trabalho para o desenho do jogo partiu da teoria de Deci e Ryan, ou seja, do triângulo motivacional suportado pela Competência, Autonomia e Ligação. Deste modo, em vez de se limitarem a seguir os vagos e ambíguos desígnios do Fun ou Flow, agarraram-se a uma teoria com parametrização clara, e procuraram a partir daí conceber toda a experiência do jogador. Para tornar a base de Deci e Ryan mais diretamente presente no desenho de jogos, conectaram-na com a teoria dos RPGs, a GNS (Gamist, Narrativist, Simulationist), uma teoria que vem sendo desenvolvida por Ron Edwards. A ligação resultou na essência do design de "Middle-earth: Shadow of Mordor":

Competence <-> Gamist (jogo e mecânicas)
Autonomy <-> Simulationist (estratégia e credibilidade)
Relatedness <-> Narrativist (foco na história)
Assim temos de um lado a autodeterminação do jogador e do outro o seu resultado em termos concretos do artefacto. Plater não vai ao detalhe que gostaríamos nesta triangulação, focando-se mais sobre os dois aspectos mais salientes do sistema: memória e emergência. Ou seja, a forma como eles conseguiram desenvolver o,
Empowering players to tell stories, not us telling them (..) We had to give people detailed anchors so their imagination would fill in the gaps (..) We had to understand how much was enough to give…
Isto foi conseguido por meio da criação de estruturas de memória de eventos passados, que permitiam aos jogadores sentir a ligação com os personagens, e desse modo exponenciar a sua motivação. Plater apresenta um vídeo de um jogador a jogar, no qual podemos ver como a memória de conflitos anteriores cria a ligação, e como esta acaba sendo responsável pelo enorme envolvimento deste com o jogo. 


Por outro lado o modo como os designers suportaram a sistematização das memórias, apesar de se referir a base narrativa, não foi baseada numa lógica como a literatura, o cinema ou a televisão, mas antes no desporto, nomeadamente nas histórias que se criam à volta deste. Não deixa de ser algo com que não nos tenhamos já debatido, já que um jogo não é um filme, mas tem muito deste, assim como não é um desporto, mas também tem muito desse. Dessa forma as memórias, sendo bastante simples diga-se, acabaram por se servir de uma lógica desportiva, que trabalha numa base de conflitos de hierarquia, domínio e tribalismo.


Uma das questões levantada por Plater que surge por via desta repescagem de eventos passados no âmbito de um jogo em mundo aberto e sua recolocação em jogo, foi o da necessidade de improvisar on-the-fly argumentos para responder ao jogador, daí que tenham recorrido para o design, a um conjunto de técnicas de stand-up e teatro de improviso para dar suporte à credibilidade dos NPCs. 

"Player Stories vs. Designer Stories – Empowering Players Around The World" (2015) Michael de Plater 

outubro 05, 2015

Jogos educacionais que funcionam

Apesar de grande parte do tempo sentirmos dúvidas sobre o potencial dos jogos educacionais, por vezes surgem exemplos que individualmente são capazes de nos iluminar, e acender uma forte centelha de esperança. O que temos em "Neurotic Neurons" (2015) é a interatividade, o jogo e a simulação ao serviço de uma verdadeira pedagogia lúdica.



Nick Case criou um pequeno artefacto interativo que se socorre em parte de jogo mas que está essencialmente direcionado para a exposição, por via da simulação, do modo como funcionam os nossos neurónios, nomeadamente como geram e perdem memórias. O seu objetivo com este trabalho assenta num fim muito concreto, conseguir levar as pessoas que sofrem de ansiedade, traumas ou fobias, a compreender como funcionam as suas mentes, e o que podem tentar fazer para sair dessa situação. A base científica de suporte assenta na "terapia de exposição", e o resultado é admirável, não apenas por conseguir envolver-nos e motivar-nos a interagir e a querer saber mais, mas porque a mensagem passa verdadeiramente.

Case percebeu que face a um assunto de grande complexidade, como é o caso da ansiedade, precisava de realizar uma abordagem simples se o queria fazer por meio de comunicação audiovisual, e foi isso que fez, focou-se apenas num dos elementos da questão, pesquisou e investigou a informação factual, e criou. Diga-se, em toda a linha com aquilo que ainda ontem aqui dava conta a propósito do último filme da Pixar, "Inside Out" (2015).

Podem interagir e jogar em Neurotic Neurons, ou ainda ler uma entrevista de Case ao Kill Screen. No site do jogo, o autor providencia ainda uma listagem de vários links para compreender em maior profundidade o assunto tratado na sua obra.

novembro 28, 2014

Hipótese da Simulação Corpórea

Um dos livros que tenho andado a trabalhar, para textos que ando a desenvolver, deixou-me uma impressão grande, por isso resolvi pegar no que fui escrevendo sobre o mesmo, e juntar tudo num texto para dar conta do mesmo aqui no blog. Falo do livro "Louder Than Words: The New Science of How the Mind Makes Meaning" de Benjamin Bergen de 2012. Este livro não é uma mera discussão pessoal do modo como criamos sentido do mundo, antes desenvolve um conjunto de hipóteses assentes em dezenas de estudos realizados ao longos das últimas décadas, tendo o próprio Bergen contribuído para o desenvolvimento de vários desses estudos.


Bergen começa o livro discutindo a teoria vigente categorizada como, a “Hipótese da Linguagem do Pensamento”, que procura definir o modo como criamos sentido da realidade, e que nos diz que compreendemos a realidade por meio da linguagem, que não é propriamente a língua nativa, porque esta não passa de mera convenção cultural, mas antes uma linguagem interna do pensamento, que permite compreender por meio de um descodificador interno o mundo à nossa volta, e que ficou conhecida por “mentalese” (um conceito amplamente defendido por “Fodor (1975) e Pinker (1994) mas que já aparecia na lógica de Bertrand Russell (1903)”). Ou seja para cada objecto, propriedades, conceitos, ações, etc. teríamos um símbolo mental que corresponderia e que atribuiria sentido ao real que enfrentamos em cada momento. O mentalese funcionaria de certo modo como uma normal linguagem, com substantivos, verbos, adjetivos, etc. Ou seja é possível construir ideias, frases, como numa linguagem normal, mas é algo sem forma, sem som nem imagem, não concreta.

Ora isto levanta um problema, sem solução à vista, de onde vem o mentalese? Como se cria, como se desenvolve, como se processa, onde está alojado? Para Pinker, partindo da sua ideia da inexistência de um "Blank Slate" (2002), defende que o mentalese é algo inato, que nasce inscrito em nós, e por isso somos seres dotados de linguagem.

Mas outros procuraram dar resposta por outros meios, nomeadamente por meio de algo que vai além do reduto da mente, e usando o corpo como um todo, como detentor de conhecimento, adquirido pela experiência do mundo. Autores como George Lakoff na linguística, Mark Johnson na filosofia, ou Eleanor Rosch nas ciências cognitivas procuraram compreender a ideia de significado no corpo. Uma ideia que claramente deve a vários princípios discutidos nos últimos 20 anos no ramo da neurociência, nomeadamente com os estudos da emoção de António Damásio (1994) e depois com os Neurónios Espelho de Gallese e Rizzolatti (1999). Assim esta abordagem pelo corpo, apresentada como ideia rival do mentalese, ficaria conhecida como “Hipótese de Embodied Simulation” (que opto aqui por traduzir como Hipótese da Simulação Corpórea), definindo-se como
“Maybe we understand language by simulating in our minds what it would be like to experience the things that the language describes.”
O mais interessante é que esta ideia de conceber o mundo por via do corpo, é bem mais antiga que os estudos aqui apresentados por Bergen, nomeadamente toda a Fenomenologia, nomeadamente com Merleau-Ponty, assenta sobre este princípio base, em que se procurava desviar o foco da mente para o fenómeno externo. Mesmo dentro da psicologia com Gibson, em que este procurou claramente desviar-se do foco do cognitivo, para a ecologia visual, o mundo externo, concebendo a construção de realidade, por meio da interação e experienciação do mundo externo. É claro que aquilo que se apresenta agora aqui é mais desenvolvido, muito mais elaborado, e acima de tudo mais relevante porque sustentado em imensos estudos empíricos.

Ou seja, nós sabemos o que é simular mentalmente. Nós passamos a vida a fazê-lo, é assim que imaginamos a cara dos nossos amigos ou filhos, ou imaginamos um passeio pela praia, é assim também que imaginamos sons, sem sequer sentir qualquer onda sonora bater nos nosso tímpanos. Acordados ou a dormir, somos verdadeiros especialistas da simulação mental. Mas aquilo que Bergen nos diz, é que estes exemplos que imaginamos através do “olho da nossa mente”, são no fundo apenas aquilo que designamos por “mental imagery”, ou seja processo de criação de imagens mentais, sendo que o processo de simulação é algo mais vasto e profundo.
“Simulation is an iceberg. By consciously reflecting, as you just have been doing, you can see the tip—the intentional, conscious imagery. But many of the same brain processes are engaged, invisibly and unbeknownst to you, beneath the surface during much of your waking and sleeping life. Simulation is the creation of mental experiences of perception and action in the absence of their external manifestation. That is, it’s having the experience of seeing without the sights actually being there or having the experience of performing an action without actually moving. When we’re consciously aware of them, these simulation experiences feel qualitatively like actual perception; colors appear as they appear when directly perceived, and actions feel like they feel when we perform them. The theory proposes that embodied simulation makes use of the same parts of the brain that are dedicated to directly interacting with the world. When we simulate seeing, we use the parts of the brain that allow us to see the world; when we simulate performing actions, the parts of the brain that direct physical action light up. The idea is that simulation creates echoes in our brains of previous experiences, attenuated resonances of brain patterns that were active during previous perceptual and motor experiences. We use our brains to simulate percepts and actions without actually perceiving or acting.”
Nós temos consciência deste processo de simulação, é perfeitamente natural, e não há nada de muito novo aqui, a grande questão é saber se processamos a linguagem do mesmo modo. Ou seja, se compreendo as palavras, as frases, as ideias aí inscritas, por meio de processos de simulação, em vez de por meio de uma linguagem interna, o mentalese. Porque na verdade, o que temos é algo bastante mais natural, em termos de rentabilização de recursos do nosso corpo e cérebro. Faz mais sentido que utilizemos os nossos sistemas de percepção (o sistema sensorial, os 5 sentidos, embora haja uma tendência para privilegiar a visão e audição) e a ação (sistema motor) para compreender a realidade, do que tenhamos criado algo novo, à parte, para processar apenas a linguagem. No fundo, isto vem reforçar fortemente a ideia de que a linguagem nos ajuda a construir sentidos mais elaborados do mundo, já que ela faz uso directo das experiências desse mundo. Ou seja, o modo como trabalhamos a gramática da linguagem, serve-nos para processar de modos mais elaborados a realidade que experienciamos, as vivências que adquirimos, o mundo a que acedemos.

Uma das grandes questões que se levanta de imediato, é que se em vez de recorrermos a uma linguagem inata, igual e universal para todo o ser humano, recorrermos a processos que simulam experiências perceptivas anteriores, então o significado da realidade passa a ser algo extremamente pessoal e subjetivo. O que mais uma vez nos indica que estamos no caminho correto, se olharmos para as grandes questões da semiótica, desde a “Obra Aberta” (1962) de Umberto Eco, que discutimos a ideia de interpretação da realidade, as realidades convergentes e as realidades pessoais. O que temos é uma cultura humana como dotadora de códigos que permitem a criação de uma comunicação humana, e à qual cada um de nós ajusta as suas próprias impressões e experiências pessoais do mundo.


“Perky Effect” 

O “Perky Effect” consiste em estar a olhar para uma parede branca enquanto se imagina um objecto (uma banana ou uma folha), e projectar nessa parede uma imagem desse objecto com variações de transparência. O que Perky descobriu é que muitos acreditavam que estavam apenas a imaginar a banana ou a folha, não reconhecendo que esse objecto estava verdadeiramente na sua frente. Deste modo este efeito demonstra que, realizar imagens na mente pode interferir com a percepção que temos do mundo. Isto é o que acontece quando sonhamos acordados, vemos imagens sobrepostas sobre a realidade que nos rodeia, que no fundo bloqueiam essa mesma realidade. Os estudos sobre este efeito demonstraram que não apenas imagens mas também as suas posições no espaço, assim como os seus movimentos visuais ou verbais, podem interferir com o modo como percepcionamos a realidade.

Ao nível do movimento e espaço, os estudos demonstraram algo verdadeiramente relevante sobre o modo como organizamos mentalmente a espacialidade que nos rodeia. Estudos que me deixaram a reflectir particularmente na organização de espaço em ambientes virtuais. Em estudos desenvolvidos sobre processos mentais que procuravam realizar acções de de rotação de objetos ou movimentação espacial, verificou-se que  “you perceive motion in mental images like you do real motion in the world — the things that take longer in the world also take longer in the mind. Because it’s like real motion, mental motion is useful”.


A criatividade por detrás dos Porcos Voadores

Uma questão que se levanta quando se lança a hipótese da teoria de simulação a partir de experiências, é que se a construção de significado é realizada na nossa mente, então nós devemos ser capazes de gerar ideias a partir de ideias que não existem no mundo real. Daí que a ideia de “Porco Voador”, algo que não existe, sirva de exemplo perfeito aos intentos de Bergen, estando inclusive na capa do livro. Então como é que chegamos a essa ideia?
“The writer John Steinbeck imagined such a winged pig and named it Pigasus. He even used it as his personal stamp. What do you know about your own personal Pigasus?
It probably has two wings (not three or seven or twelve) that are shaped very much like bird wings. Without having to reflect on it, you also know where they appear on Pigasus’ body—they’re attached symmetrically to the shoulder blades. And although it has wings like a bird, most people think that Pigasus also displays a number of pig features; it has a snout, not a beak, and it has hooves, rather than talons”
Daqui podemos extrair várias ideias:

1 - A ideia de Porco Voador é comum à grande maioria de pessoas, e parece significar algo. Apesar de este não existir, o que coloca um problema ao Mentalese, que defende que o significado surge da relação com o real, o que obrigaria então a que este existisse de algum modo.

2 - A ideia de Porco Voador, não estimula apenas o surgimento mental de uma imagem de um porco, mas de um porco com asas, em que montamos uma ideia nova, a partir da junção de dois conceitos distintos. Ao mesmo adicionamos os efeitos das suas condições, neste caso sendo porco e não pássaro, é natural que nos surja a imagem de um porco, e as asas, normalmente apenas duas por imitação das aves, e sendo voador é natural que surja voando no ar e não sentado no chão.

3 - A imagem criada para o Porco Voador é altamente subjectiva, cada um imaginará algo completamente distinto, porque não existindo uma imagem real, que coloque em comum, cada um terá repescar as imagens que possui de Porcos e Aves Voando, para construir a nova. Alguns poderão mesmo construir ideias de Porcos com capas voadoras, do tipo Super Porco.

Imagem retirada do livro de Bergen

Ou seja, o processo de Simulação Mental é um processo profundamente pessoal, e que está na base explicativa do que é a Criatividade (“how you breathe life into your own personal Pigasus”). Neste sentido o uso de texto é profundamente mais criativo, já que obriga os sujeitos a construírem, a inovar na construção mental de ideias, a que se acedeu apenas a partir de texto. Se visse um porco voador num filme, nada haveria a simular de novo, seria dado como adquirido, e o processo de simulação mental seria reduzido à integração de uma nova experiência na memória.


Treino e prática mental

Vários estudos realizados com atletas de golfe, ténis, basquetebol demonstraram que os atletas que treinavam apenas vendo imagens de jogos e imaginando sequências de ações de jogo, melhoravam concretamente nas suas competências. A grande questão que se coloca então é: porque é que estando apenas a imaginar o uso do corpo de uma forma particular, se torna mais fácil ao nosso corpo mover-se depois?
“When we visualize actions—consciously and intentionally activating mental images—we use the very parts of our brain that control our body’s movements. When we imagine the footwork we employ to serve a tennis ball, the part of our brain that controls foot motion starts firing. When we think about how we hold a basketball in our hands, the part of our brain controlling hand motion lights up. As a result, whether you call it mental imagery, visualization, or mental rehearsal, imagining doing things is extremely effective at solidifying motor skills. And that’s because, to a large extent, when we’re visualizing, our brain is doing the same thing it would in actual practice.”

O maior problema da “Simulação Corpórea”
“in understanding language, we use our perceptual and motor systems to run embodied simulations. That’s all fine and good... about concrete stuff—polar bears that have a visual appearance, door knobs that you can physically turn, and rock classics that actually sound like something. But this only scratches the surface of what we can talk about. One of the unique and powerful things about human language is that we can use it to talk not just about the easy, concrete stuff but also about ideas that we can’t see or feel. We can talk meaningfully about truth, responsibility, or justice, none of which really look like anything. Or, for that matter, we can talk about meaning itself, like this book does... If simulation of sights, sounds, and actions is really at the heart of meaning, then how could we ever understand language about things that we can’t see or do?”

Solução: a Metáfora

A resposta apresentada por Bergen assenta na ideia de Metáfora, algo que faz imenso sentido nomeadamente no campo do design de interação, mas faz ainda mais sentido no campo do Cinema. Quando preciso de transmitir uma ideia abstracta, a primeira coisa que fazemos é procurar ideias concretas, que possam metaforizar a ideia abstracta que se quer transmitir. Uma das mais trabalhadas no cinema, é a ideia de Tempo, que Bergen também trabalha aqui.

Um dos exemplos que começa por trabalhar é o conceito de “sociedade”, através dos exemplos:

- “Japan has been a closed society for long despite its huge ”
- “War veterans struggle to fit back into society”
- “those who without assistance and guidance would fall through the cracks of society”

Ou seja, o que aqui temos é uma discussão sobre a ideia de sociedade, realizada de um modo perfeitamente concreto. Uma sociedade que pode ser fechada, que pode encaixar pessoas, ou pode apresentar fissuras. Ou seja, sociedade, nestas expressões parece uma espécie de “contentor”. O problema é que podemos falar de sociedade, de modos completamente distintos, e passar por exemplo, de contentor a uma espécie de “organismo”:

- “Farmers are the backbone of our society.”
- “Sexual violence disempowers women and cripples society.”
 - “A healthy society requires an ongoing dialogue between faith and reason.”

Claro que percebemos que “sociedade” não é um contentor nem um organismo vivo, mas usamos essas ideias concretas, como metáforas do seu significado. E é assim que surge a “metaphorical simulation hypothesis”, que nos diz que “ we understand abstract concepts through concrete, though metaphorical, simulation.”.  Exemplos, do uso do sistema motor,

- “grasping ideas”
- “clubbing you over the head with study after study”
- “bite the apple”
- “kick the bucket”

Esta ideia sustenta-se nas duas seguintes hipóteses,

Hipótese 1: “understanding a metaphorical action phrase, like grasp a concept, activates the motor apparatus responsible for performing the same action; in other words, mentally simulating the metaphorical action.”

Hipótese 2: “merely simulating an action makes you understand a phrase faster if it metaphorically uses that same action. ”

Mas um estudo demonstrou que “language that appears metaphorical like familiar metaphorical idioms that, when you read it as whole sentences, doesn’t always massively activate the relevant parts of the brain that we might expect to light up if people are performing motor simulations.”. Ou seja, a familiaridade das metáforas, evita o uso da simulação motora.

Por outro lado um outro estudo demontrou, “a sentence describing metaphorical motion upward, like The rates climbed, doesn’t interfere with perceiving a shape, no matter where it appears on the screen.” Assim “the Perky method shows no effect for metaphorical language - “if there’s no specific object being mentally simulated, then there’s no image to interfere with actual perception.” Ou seja, não estamos a usar a mesma parte do cérebro, e isto diz-nos que não estamos então a simular mentalmente.

Deste modo temos que “a compreensão da linguagem metafórica é feita através da construção de simulações corpóreas que são menos detalhadas, do que as literais, mas que ainda assim fazem uso do sistema motor e perceptual.”
“So much of what we actually talk about is abstract that we could hardly say we understand the process of understanding without figuring out how people grasp abstract concepts. The idea that we’ve come to is that we take what we know about how to perceive concrete things and to perform actions, and we use that knowledge to both describe and also think about abstract concepts. In this way, we bootstrap harder things to think and talk about—abstract concepts—off of easier things to think and talk about—concrete concepts.”

Uso da Metáfora sem Linguagem

Utilizamos todo o tipo de metáforas, mesmo quando não se trata de linguagem, mas apenas e só de compreender o real. No caso do tempo, que é um conceito extremamente abstracto, não existe nada palpável que lhe possa conferir forma. Ainda assim, temos tendência a medir o tempo em função do espaço (exemplo: linha de progressão de download). Uma linha maior dará indicação de maior duração, ou por exemplo um salto em comprimento, quanto maior, mais tempo terá levado. Por outro lado, o inverso não se confirma para nós, em termos metafóricos, ou seja, mais tempo não nos dá indicação clara de mais espaço.
“even when there’s no language around (just lines on screens), people use space to make judgments about time but not the reverse. This adds support to the idea that abstract concepts are generally understood in terms of more concrete ones, and not the reverse, even when there’s no language to prompt them to do so.”
Ou seja, usamos o concreto para criar sentido no abstracto, mas não usamos o abstracto para dar sentido ao concreto. Outros exemplos, tais como por exemplo uma “pessoa calorosa” ou o sentimento de “exclusão social”, foram investigados em termos perceptivos. E no caso da descrição de pessoas, existe uma tendência para descrever de forma mais calorosa ( adjectivando com: generosa, alegre e sociável) outra pessoa, depois de lhe terem passado para a mão um café quente. Da mesma forma se pediu para pensarem em momentos em que se sentiram incluídos ou excluídos socialmente, e logo a seguir questionou-se sobre a temperatura do quarto em que estavam. Os que pensavam em momentos de exclusão, descreveram como mais frio que os que pensavam em momentos de inclusão “lonely feels cold”. Ou seja

Outro exemplo dado, é o Macbeth Effect. num estudo em que foi pedido a pessoas para pensarem em ações éticas e não éticas, tendo a seguir oferecido um objecto para levar, verificou-se que quem tinha pensado em ações éticas tendia a escolher o lápis, ao passo que as não-éticas tendiam a escolher um objecto de limpeza. Assim o efeito corresponde à ideia de que quando as pessoas pensam em ações pouco éticas que fizeram no passado, sentem uma certa necessidade de se “limpar”.

Todos estes exemplos de metáforas fora do domínio da linguagem acabam por demonstrar que “concepts like time, morality, and affection are tightly linked to the very concrete things that they’re metaphorically described in terms of—distance, cleanliness, and warmth.”

Contudo e apesar destes exemplos, a verdade é que a simulação corpórea não responde a todos os problemas, nomeadamente ao facto de sabermos quando devemos simular uma metáfora como real percepção/ação real ou quando simular como mera metáfora conducente a um sentido abstracto. Como acaba dizendo Bergen, “the more that understanding abstract language is like understanding concrete language, the more infrastructure we must have to keep them apart.” E isso está longe de estar explicado.


Conclusão

No final Bergen questiona a funcionalidade e utilidade da simulação, toma o lado oposto, e questiona de várias formas a sua possibilidade, acabando por concluir, que apesar de muitas dúvidas termos, a hipótese é muito mais sustentada que a do mentalese, deixando vários exemplos, recordando de novo a questão do japonês, que ao contrário das línguas europeias, que apesar de trazer o verbo de acção, no final das frases, leva a processos de simulação mental muito aproximados na interpretação de frases, quando comparados com os das línguas ocidentais. Ou seja, o mentalese “doesn’t explain why Japanese speakers already have expectations about the shape of a mentioned object before they even come to the verb.

Um último ponto surge neste livro de relevância, e que no fundo está subjacente a toda esta discussão, e que tem que ver com a Comunicação. O que é, e como se serve de toda esta maquinaria.
“As speakers, the messages we intend to transmit are probably far from discrete packets of information. Instead, they are dynamic and continuous currents of perception and action, either performed and perceived or mentally simulated. As speakers, we have to jam all this messy, amorphous, nonspecific, continuous stuff through the narrow aperture afforded by discrete words and grammatical structures available to us in our language. This process of encoding is necessarily lossy: a few words can’t hope to capture the breadth and depth of the perceptual, motor, or affective experiences we want to convey. It’s also nondeterministic: we might use two different words to describe the same thought, sometimes even in the same sentence. And it’s fickle: we often just reuse words or grammar that we’ve just uttered and we tend to mimic the linguistic patterns of our interlocutor, instead of picking out the theoretically perfect words for a given message. So the information we want to convey is neither neatly delineated to begin with nor uniquely and perfectly packageable in words.”
A grande questão com que Bergen acaba fechando, é a eterna questão da Comunicação, como é que com mundos internos tão complexos, que cada um de nós desenvolve dentro de si, e com experiências do mundo tão distintas, conseguimos nós chegar a comunicar uns com os outros com sucesso?

julho 23, 2014

Porque criámos a Escola, a Arte ou o Entretenimento

Este mês a Science publicou o artigo “Just think: The Challenges of the Disengaged Mindcoordenado por Timothy D. Wilson do Departamento de Psicologia da Universidade da Virginia. A abordagem escolhida para problematizar a questão é provocatória, no sentido em que aborda o problema pelo lado de uma alegada incapacidade para pensar. A provocação premiou o texto e fez com que este se espalhasse pelos media rapidamente. Mas do que se fala aqui é essencialmente dos efeitos da hipoestimulação externa sobre a nossa mente.

"The Thinker" (1882) de Auguste Rodin
Sumário do estudo: “Era pedido às cobaias - estudantes universitários e posteriormente pessoas recrutadas num mercado e numa igreja local - que estivessem períodos entre seis e 15 minutos sentados numa sala sem decoração e sem ter por perto objectos pessoais. Durante esse tempo poderiam pensar no que quisessem. Numa primeira fase, mais de metade dos participantes informou ter sido difícil concentrar-se, mesmo sem haver nada a distraí-los. Quase cinco em dez (49,3%) considerou a experiência desagradável.” [fonte]
Foram feitos ainda vários testes para despistar potenciais hipóteses para o surgimento do desprazer no alegado acto de pensar, entre as quais: "ruminar sobre os seus defeitos”; “pensar no próprio momento em como iriam ocupar a cabeça”; “usar mais ou menos o telemóvel no dia-a-dia”; ou ainda “a personalidade dos participantes”. Nenhuma destas demonstrou ser verdadeiramente responsável por estes efeitos. Deste modo o artigo publicado levanta o véu e deixa o caminho livre para mais estudos que expliquem o problema. Do meu lado resolvi fazer algumas reflexões a propósito e que partilho aqui a seguir.

Quando falei em hipoestimulação estava a falar em algo que está intimamente ligado à nossa biologia. No século XXI é inevitável realizar estes cruzamentos entre a psicologia e a biologia para procurarmos compreender porque somos aquilo que somos. Assim, devemos começar por perguntar porque sofremos quando em ambientes de hipoestimulação, quais as suas causas, os seus efeitos e como lidar com o problema?

A hipoestimulação representa uma condição de ausência de estimulação externa, e os seres-humanos lidam mal com essa condição. Surgimos enquanto espécie a partir de um caldeirão de elementos e variáveis que potencializaram a nossa emergência neste planeta. Somos parte do sistema natural como um todo, que é um sistema contínuo no tempo e no espaço. Assim sendo, aquilo que somos é praticamente impossível de ser desconectado desse contínuo. Esse contínuo é toda a natureza, mas são todos os outros nossos semelhantes, assim como toda a produção cultural que desenvolvemos e que vai servindo em substituição desse natural.

Nos "tempos das cavernas" esta ligação ao contínuo circundante foi essencial para que pudéssemos elevar a acuidade das nossas capacidades perceptivas. Desenvolvemos assim mecanismos, entre os quais as emoções, que nos permitiram agir de modo instintivo sem necessidade de recorrer ao consciente (mais lento) para sobreviver. A nossa condição animal não nos dava propriamente grandes garantias à nascença, tendo em conta a força e mesmo inteligência, de alguns predadores que por cá andavam antes de nós. Nesse sentido fomos desenvolvendo e seleccionando aqueles que de entre nós tinham melhores sistemas de alerta, ou seja que conseguiam estabelecer a melhor sintonia com a realidade circundante externa. Durante todo esse tempo a virtualidade interna das nossas mentes foi muito pouco relevante. Os nossos mais hábeis funcionavam quase exclusivamente em função da acção sobre o exterior, mantendo os aspectos interiores a um canto, o que terá dado origem a ditados como “um homem não chora”.

Com o passar do tempo a componente social mamífera foi-nos empurrando para a socialização e permitiu o surgimento da protecção e sobrevivência pelo efeito de grupo (ver The Age of Empathy). Isto veio permitir que alguns de nós, com menores instintos de sobrevivência, pudessem também sobreviver. Estes por sua vez, e por agirem menos sobre o exterior, passaram a poder dar azo à pessoa interior, que liberta das amarras da sobrevivência podia deambular mentalmente. A baixa sintonia com o mundo externo, fez aumentar a percepção do mundo interno, fez ganhar consciência de si, e do seu posicionamento no contínuo natural.

Deste modo seriam conduzidos a uma hiperestimulação interna da mente que por sua vez os iria conduzir à exteriorização e materialização dessas suas internalidades. Temos assim as primeiras imagens da nossa espécie nas paredes de Lascaux e Altamira a surgirem há 20 mil anos atrás. Esta exteriorização surge como uma necessidade fundamental para comunicar aos outros as suas estimulações internas, ou seja camadas de ideias sem objecto material concreto. Ideias suportadas por camadas de abstracções que precisavam de ser tornadas em algo material a que os outros pudessem também aceder. Assim a arte acaba por surgir como a recriação de mundos internos, fundindo-os com as condições do mundo externo.

Pinturas das caves de Lascaux, datadas de há 20 mil anos

A necessidade de estar em sintonia com esse mundo exterior, os perigos e a fome, foi decrescendo já que a nossa sobrevivência passou a estar assegurada pelo esforço de comunidades cada vez maiores. Nesse sentido havia cada vez mais pessoas que se podiam dedicar a reflectir e a produzir pensamento cada vez mais complexo. Esta reflexão interna daria origem ao desenvolvimento das capacidades de elaboração mental, e por sua vez isso levaria à criação de tecnologias de suporte à sua externalização como por exemplo o surgimento da escrita. Com o passar do tempo fomos enriquecendo o natural, complementando-o com o cultural tornando-o cada vez mais complexo e elaborado.

Assim a realidade que passou a rodear-nos era composta de uma camada de abstracção completamente diferente daquela que o mundo natural apresentava, e para a qual tínhamos desenvolvido toda a nossa máquina sensorial. E é aqui que vai entrar a escola, porque nessa altura começa a deixar de ser possível viver apenas confinado às propriedades do mundo natural. As ferramentas com que nascemos, que nos apetrecham para lidar com a natureza, já não são suficientes para lidar com o novo mundo, criado a partir do interior das mentes de cada um de nós. Isto acaba por estar reflectido na frase que fecha o artigo na Science,
“The untutored mind does not like to be alone with itself”
Precisamos então de desenvolver esquemas mentais capazes de suportar o pensamento interno, que nos conduzam à produção de novo pensamento em territórios de abstracção. E é isso que a escola se dedica a fazer, fornecendo instrumentos para que cada um de nós possa ser capaz de enfrentar o seu próprio ser pensante. Ao mesmo tempo a escola ajuda-nos a construir a ponte entre o nosso interior e o exterior, fazendo uso dos canais de abstracção não naturais, seja a escrita, seja a imagem, a música, o cinema, os videojogos ou a ciência, a engenharia, etc. Por isso a escola acaba sendo difícil para todos nós, porque queiramos ou não, trata-se de um processo de modelação do nosso ser, de ajuste das nossas potencialidades naturais às novas potencialidades da cultura humana.

Isto não quer dizer que tenhamos abolido a nossa ligação ao exterior, antes pelo contrário, com a expansão do natural pelo cultural e tecnológico, apenas acentuámos mais ainda a nossa ligação e dependência do exterior. O acto de pensar não se confina ao nosso interior, porque ele apenas se finaliza quando tornado material. Por outro lado o acto de pensar a complexidade não existe nunca sem estimulação externa, esta obviamente não precisa de ser contínua, mas precisa de acontecer. Para compreender esta condição basta parar e “observar” o que acontece no interior da nossa mente quando acabamos de ler um livro que nos apresentou ideias desconhecidas mas que fizeram sentido para nós. O pensamento entra em ebulição abstracta, procurando criar novos esquemas mentais para encaixar o conhecimento novo. Nesses momentos é fácil estar 10, 30 ou 60 minutos em hipoestimulação, porque o pensamento está totalmente “entretetido”.

Isto leva-nos à discussão do surgimento do entretenimento, da literatura, do cinema, dos videojogos. Se o seu surgimento consiste na externalização do pensamento dos seus autores, ele também surge e invade toda a nossa sociedade porque esta precisa de mais e mais estímulos para poder manter a mente entretida, agora habituada a pensamento mais elaborado. Já não é suficiente a estimulação simples natural. Para fechar e responder à provocação do artigo na Science, se se tivesse colocado as pessoas ler um livro, ver um filme, ou jogar um jogo que os engajasse em profundidade, e a seguir pedissem para realizar a experiência de estar só e sem estímulos, provavelmente as pessoas teriam conseguido sem grandes problemas.


Outros textos relacionados,
A Ciência por detrás da Arte, in Virtual Illusion
Empatia, colaboração e cooperação, in Virtual Illusion

Pensar é muito incómodo. Cientistas tentam saber porquê, in iOnline
Just think: The challenges of the disengaged mind, in Science

julho 03, 2014

Problemas do marketing digital

Hoffman é autor de "101 Contrarian Ideas About Advertising" (2011) e do blog Ad Contrarian, é ainda CEO da agência americana Hoffman/Lewis, tendo desenvolvido campanhas para a McDonald's, Toyota, Shell, Nestle, etc. Com formação de base em ciências e sendo assistente especial da California Academy of Sciences, parte do seu discurso move-se no sentido da obtenção de fundamento e evidência científica. E é por isso que esta palestra dada em Março na Advertising Week Europe 2014, intitulada, “The Golden Age of Bullshit” é extremamente interessante.

Bob Hoffman

Bob Hoffman procura ao longo de uma hora de palestra desmontar alguns mitos do mundo da publicidade e do marketing digital, com base num estudo comparado entre aquilo que os Marketeers e Publicitários foram dizendo ao longo dos anos e aquilo que verdadeiramente foi acontecendo no mundo real. Um dos maiores criadores desses mitos tem sido Seth Godin, um dos grandes gurus dos novos paradigmas de marketing, e em quem eu tenho vindo a confiar cada vez menos, nomeadamente desde que resolveu começar a aplicar as suas ideias sobre marketing, como grande martelo para tudo, como é o caso do livro autopublicado “Stop Stealing Dreams: What is School For?”. Esta crença nos gurus não acontece por acaso, mas porque como diz Hoffman no final da palestra, e citando Daniel Kahneman, "People don't believe in facts, they believe in experts."

Assim algo concreto de que tenho desconfiado no marketing contemporâneo, é o hype em redor do storytelling e dos videojogos. Ideias que têm sido vendidas como uma necessidade para criar relações com os consumidores. Ora, se é verdade que estas duas formas de construir experiências trabalham sob o desígnio do engajamento e envolvimento, ligando as pessoas às obras, não é claro que isso seja facilmente trespassável para o mundo do marketing ou branding. Mais, se tem sido imensamente difícil passar estas abordagens para o mundo da educação, porque é que haveria de ser tudo fácil no mundo do consumo? Deste modo Hoffman abre a palestra dizendo, o seguinte,
“We’re so drunk on this stuff that we’re starting to believe our own bullshit.
There are people in our business who believe that consumers are in love with brands! They believe consumers want to have relationships with brands. They want to have brand experiences and be personally engaged with brands. This people actually believe in this. You go to their Twitter profiles,
- “I’m passionate about brands”
- “You’re what? Dude get a fucking girlfriend”
There are people in our business who believe that consumers are going on Facebook and Twitter and having conversations with each other about  brands. All you have to do is going to your Facebook page, and if you can read, you can see that people are having conversations about everything in the universe, except brands.
And yet the bullshit we tell ourselves is apparently so powerful that it supersedes the evidence of our own eyes.”
Esta é a dura realidade que o marketing digital ainda não quis encarar de frente. Ninguém online fala das marcas, nem sequer está importado com as páginas das marcas, a não ser quando elas fazem asneira, tendo assim uma espécie de canal directo para lançar algum fel. As pessoas procuram outros seres humanos, não procuram objectos, artefactos, e menos ainda marcas. Quem tem página online de uma empresa, associação ou blog de certeza que já percebeu a diferença entre publicar algo no facebook sob o nome da página ou sob nome individual. As pessoas clicam mais quando a partilha é feita por uma pessoa, do que por uma marca, uma identidade abstracta desprovida de sentir. As pessoas querem a garantia que do outro lado está alguém capaz de interpretar aquele clique, aquele like. Clicar num like não é uma mera acção abstracta, é um acto de comunicação, é um acto de aceitação do outro.

Bob Hoffman, "The Golden Age of Bullshit" na Advertising Week Europe 2014

Isto não quer dizer que o marketing não está a mudar, que o digital não lhe serve. Serve sim, mas serve essencialmente para compreender melhor para quem se fala, e como se deve falar. O Facebook é muito útil para conseguirem compreender melhor o que move as pessoas, e conseguirem assim criar e desenhar para as suas verdadeiras necessidades. Mas não esperem que porque têm um discurso mais próximo, até mais humano, as pessoas desatem a envolver-se com as marcas, ou como diz o Hoffman, “amem as marcas”, isso não vai acontecer.

março 22, 2014

"Predictably Irrational: The Hidden Forces That Shape Our Decisions" (2008)

Segundo o NYT o livro “Predictably Irrational” é revolucionário, porque dá a conhecer o modo irracional como os seres humanos funcionam, defraudando por completo qualquer tipo de previsão lógica que os mercados e economistas pretendem apresentar a partir dos seus modelos numéricos. Se é verdade que estas descobertas são revolucionárias, elas não foram descobertas por Ariely, menos ainda neste livro. Em 2002 Daniel Kahneman recebeu o Nobel exactamente por ter chegado a estas descobertas. Para quem quiser saber mais sobre a pesquisa de Kahneman, vale a pena deter-se sobre o seu livro de divulgação "Thinking, Fast and Slow" (2011), que é hoje conhecido com um dos mais importantes tratados sobre a ciência Behavioral Economics.


Apesar disso Dan Ariely é um dos académicos mais conhecidos no domínio da Behavioral Economics muito por causa das suas palestras TED, e também em parte graças à sua história de vida, que acaba por lhe conferir um carisma capaz de incrementar validade ao que diz. E assim, e apesar de “Predictably Irrational” apresentar uma selecção de experimentos cognitivos, seguindo uma linha de escrita próxima de Gladwell, com humor e envolvência, os leitores encaram-no sempre de modo mais sério que Gladwell. Na realidade conta também bastante o facto dos experimentos apresentados serem quase integralmente concebidos por si, e não se limitarem à citação de estudos de terceiros. No entanto este tipo de livros em que os experimentos se sucedem, uns aos outros, acabam por cair na armadilha de se apresentarem em suma mais como livro de receitas, ou de auto-ajuda, faltando-lhes estrutura e reflexão geral de suporte ao argumento central.

O argumento de Ariely está focado em apresentar evidências sobre a irracionalidade humana, no entanto nunca constrói sobre as implicações deste problema para a sociedade e humanidade, dando apenas algumas dicas, centrando-se quase exclusivamente na apresentação das experiências mais surpreendentes por ele concebidas e testadas. Se em 2008 este livro era uma novidade no mercado editorial de divulgação de ciência, hoje com a enorme quantidade de títulos publicados, inclusive do próprio autor, acabou perdendo grande parte da sua relevância. Lê-lo em 2008 poderia realmente representar novidade, como diz o NYT, hoje fica-se por uma leitura interessante e rápida de introdução à temática.

De todas as ideias apresentadas, vou apenas deixar uma referência ao Capitulo 4 “The Cost of Social Norms” que me interessou particularmente. Ariely apresenta o modo como lidamos com a sociedade em dois modos distintos: um dominado pelas normas sociais; um segundo regulado pelas normas do mercado.
1 - “The social norms include the friendly requests that people make of one another… Social norms are wrapped up in our social nature and our need for community. They are usually warm and fuzzy. Instant pay­ backs are not required: you may help move your neighbor's couch, but this doesn't mean he has to come right over and move yours. It's like opening a door for someone: it provides pleasure for both of you, and reciprocity is not immediately required.”

2 - “the one governed by market norms, is very different. There's nothing warm and fuzzy about it. The exchanges are sharp-edged: wages, prices, rents, interest, and costs-and-benefits. Such market relationships are not neces­sarily evil or mean… but they do imply compa­rable benefits and prompt payments. When you are in the domain of market norms, you get what you pay for — that's just the way it is.”
Com base nisto Ariely fala sobre a forma como as empresas passaram a querer relacionar-se socialmente com os seus clientes, ou ainda como as empresas passaram a tratar os seus empregados. Ariely fala das mudanças no tipo de trabalho, do manual para o criativo, que passaram a exigir uma dedicação cada vez maior dos empregados à empresa, mas que essa dedicação precisa de ser compensada, não financeiramente mas socialmente.
“If employees promise to work harder to achieve an important deadline (even canceling family obliga­tions for it), if they are asked to get on an airplane at a moment's notice to attend a meeting, then they must get something similar in return—something like support when they are sick, or a chance to hold on to their jobs when the market threatens to take their jobs away.
Although some companies have been successful in creat­ing social norms with their workers, the current obsession with short-term profits, outsourcing, and draconian cost cut­ ting threatens to undermine it all. In a social exchange, after all, people believe that if something goes awry the other party will be there for them, to protect and help them. These be­liefs are not spelled out in a contract, but they are general obligations to provide care and help in times of need… companies cannot have it both ways”
Este é apenas um dos muitos exemplos que se podem encontrar ao longo de todo o livro, que claramente iluminam a compreensão de nós próprios e nos podem ajudar a olhar de forma diferente para o outro.

maio 22, 2013

Pensar, Depressa e Devagar

Thinking, Fast and Slow (2011) devia ser o livro utilizado nas escolas para fazer a introdução à Psicologia, com isto quero dizer que o livro é de tal forma fundamental na compreensão da cognição humana que se torna obrigatório. O livro vai ao fundo daquilo que somos, e porque vemos o mundo desta forma. O livro não pode transformar-nos, mas pode deixar-nos muito mais conscientes daquilo que nos comanda. O livro é de tal forma fundamental que vários livros, bestsellers sobre o comportamento humano, se têm baseado nos estudos aqui apresentados - Fooled by Randomness: The Hidden Role of Chance in Life and in the Markets (2001), "Freakonomics: A Rogue Economist Explores the Hidden Side of Everything" (2005), "Predictably Irrational: The Hidden Forces That Shape Our Decisions" (2008), "The Drunkard's Walk: How Randomness Rules Our Lives" (2009).


Daniel Kahneman ganhou o prémio nobel da Economia em 2002! É isso, um psicólogo ganhou o nobel da economia. Durante mais de 30 anos Kahneman, e o seu colega Amos Tversky que morreu em 1996 e que teria recebido o Nobel conjunto caso estivesse vivo em 2002, trabalharam questões fundamentais na chamada área da economia comportamental ("behavioral economics"). A sua maior preocupação foi procurar compreender o que contribui para o enviesamento das decisões que as pessoas tomam, aquilo que alguns catalogaram de "psicologia da estupidez". No fundo Kahneman e Tversky passaram décadas a desmontar toda a nossa máquina cognitiva e exemplificam como muito daquilo que utilizamos para nos garantir a sobrevivência num mundo inconstante e altamente variável, nos conduz também à produção de erros, por vezes muito graves.

PARTE I - Dois Sistemas
À medida que ia lendo a primeira parte do livro, "Two Systems", parecia que estava ler uma espécie de atlas de toda a ciência cognitiva com que tenho trabalhado na última década, incluindo os avanços e contribuições da neurociência. Uma síntese poderosa e belissimamente formulada sobre o funcionamento da nossa cognição. A conceptualização é tão boa que consegue passar por cima de toda a problemática que vimos discutindo desde Descartes a propósito da Razão e da Emoção. Kahneman, não perde tempo com essa divisão, aceita os avanços da neurociência, e coloca tudo num único plano, não dando espaço a bom e mau, preocupando-se, apenas e só, com a variação do tempo de resposta. Kahneman define a nossa cognição como simplesmente alicerçada num sistema a duas velocidades, o Sistema 1 e o Sistema 2. A inteligência desta conceptualização assenta no modo como vai construir todo o livro, assumindo ambos os sistemas como personagens de uma mesma história.
"System 1 operates automatically and quickly, with little or no effort and no sense of voluntary control."
"System 2 allocates attention to the effortful mental activities that demand it, including complex computations. The operations of System 2 are often associated with the subjective experience of agency, choice, and concentration."
Kahneman
O que acontece então nas nossas tomadas de decisão é que existe uma constante tentativa do  Sistema 1 de responder a tudo, porque é muito mais rápido, simplesmente intui. Este apenas pára quando o que é pedido se torna complexo demais, e é obrigado a recorrer ao Sistema 2. Ou seja, o Sistema 2 é digamos mais "preguiçoso", só entra em ação quando o Sistema 1 não consegue dar conta do recado, para realizar processamento mais complexo. As ilustrações criadas pelo New York Times e pelo Financial Times com a Lebre e a Tartaruga dizem tudo sobre os Sistemas 1 e 2 (imagens abaixo). Deste modo o que acontece é que muitas das decisões que tomamos são baseadas em análises intuitivas daquilo que nos é apresentado. E esta intuição consegue funcionar muitíssimo bem a maior parte das vezes. Quando atravessamos a rua, conseguimos rapidamente decidir qual é o momento certo para atravessar, e se devemos correr ou podemos avançar calmamente. Quando se aproxima alguém de nós, o Sistema 1 consegue rapidamente identificar a cara da pessoa e responder quem é, e como devemos reagir. O que temos é então um sistema de cognição, Sistema 1, que é muito rápido e automático, ou seja não temos de o ativar conscientemente, ele reage com toda a informação emocional e estereotipada que temos.

Os Sistemas 1 e 2. Ilustração de David Plunkert (NYT)

Por outro lado o Sistema 2 é acionado de modo consciente para realizar uma decisão, para ponderar os prós e contras, exige esforço da nossa parte, realiza cálculos de hipóteses e age segundo lógicas aprendidas, não se baseia na intuição. O sistema 2 entra em acção com esforço, quando somos obrigados a realizar decisões complexas que exigem ponderação complicada, como cálculo matemático mental. As nossas pupilas são o reflexo exterior do Sistema 2. As pupilas dilatam e encolhem consoante o cérebro está mais profundamente activo, ou seja são um claro indicador da quantidade electricidade activa no nosso cérebro.
"System 2 is the only one that can follow rules, compare objects on several attributes, and make deliberate choices between options. The automatic System 1 does not have these capabilities. System 1 detects simple relations (“they are all alike,” “the son is much taller than the father”) and excels at integrating information about one thing, but it does not deal with multiple distinct topics at once." Kahneman
Depois de apresentados os dois sistemas, Kahneman vai passar toda a primeira parte do livro a detalhar situações em que o Sistema 1 se sobrepõe ao Sistema 2 e nos leva a cometer decisões erradas: esforço e atenção; controlador preguiçoso; máquina associativa; facilitador cognitivo; normas, surpresas e causas. Algumas destas situações são verdadeiramente preocupantes, e deveriam ser mais discutidas entre nós, assumidas como uma realidade, para que pudéssemos compreender melhor como funcionamos no nosso dia-a-dia, e como tomamos decisões. Resumo aqui apenas algumas destas:

Esforço e Atenção (irritação, açúcar e juízes)
O sistema 2 pode ocupar quase todo o nosso pensamento, mas nós não podemos deixar de continuar a monitorar a nossa biologia e o mundo que nos rodeia. Neste sentido quando o Sistema 2 está demasiado ocupado, é o Sistema 1 quem decide, e isso pode conduzir a problemas. Por outro lado o Sistema 2 quando extensivamente utilizado provoca um esgotamento dos recursos no cérebro, o que leva a cedência de decisões para o Sistema 1. Estudos realizados mostram que quando estamos sob esforço cognitivo cedemos muito mais facilmente à tentação.
"Imagine that you are asked to retain a list of seven digits for a minute or two. You are told that remembering the digits is your top priority. While your attention is focused on the digits, you are offered a choice between two desserts: a sinful chocolate cake and a virtuous fruit salad. The evidence suggests that you would be more likely to select the tempting chocolate cake when your mind is loaded with digits… People who are cognitively busy are also more likely to make selfish choices, use sexist language, and make superficial judgments in social situations." Kahneman
No caso do chocolate faz todo o sentido, porque outros estudos demonstraram que para poder conseguir manter performance mental, a ingestão de glucose era fundamental para manter o mesmo nível de açúcar no cérebro e assim conseguir manter o Sistema 2 ativo. Um estudo apresentado por Kahneman é deveras preocupante, porque diz respeito à justiça e aos homens que tomam decisões nos tribunais todos os dias. No estudo feito com juízes que decidem sobre liberdade condicional, foi identificado que mais de 65% das decisões afirmativas de liberdade condicional eram tomadas logo após as refeições, e que à medida que o dia ia avançando as negativas iam aumentando. O cansaço vai-se apoderando do juiz, e este vai recorrendo cada vez mais à intuição para tomar decisões.

Máquina Associativa, (dinheiro e o individualismo)
O nosso cérebro tem uma enorme capacidade para despoletar associações de ideias, várias em simultâneo. Como tal quando nos dizem Dia, imediatamente pensamos em Noite, se dizem Comer imediatamente pensamos em comer algo. Kahneman refere-se a este poder associativo, como um efeito de priming, ou seja um efeito de impressão de ideias no nosso cérebro, e diz que este efeito não acontece apenas com conceitos e palavras, mas pode acontecer com acções e emoções. Num estudo pediram a um grupo de jovens para andar durante um espaço de tempo a um ritmo inferior duas vezes ao seu normal, no fim da experiência as palavras que mais lhes vinham à ideia eram: "esquecimento, velho e solitário".  Noutro estudo pessoas são levadas a acreditar que estão a testar auscultadores, e é-lhes pedido para abanarem a cabeça na vertical, para cima e para baixo, indicando o gesto "Sim". A outras é-lhes pedido que abanem para os lados, na horizontal, indicando o gesto "Não". Os primeiros começam a concordar com aquilo que estão a ouvir nos auscultadores, enquanto que os segundos acabam por maioritariamente discordar do que ouvem. Isto para além de demonstração dos efeitos de priming, é mais uma prova da importância e do impacto da nossa fisiologia e biologia sobre o nosso pensamento, sobre o nosso discernimento do mundo.
“The world makes much less sense than you think. The coherence comes mostly from the way your mind works.” Kahneman
Num experimento feito por Kathleen Vohs, ela demonstrou que quando imprimimos a ideia de dinheiro (por palavras ou imagens) na cabeça de estudantes, estes mudam de atitude. Passam a investir o dobro do tempo a tentar resolver um problema, e a ter menos vontade de investir tempo a ajudar os colegas na resolução de problemas. Quando se sentam ao pé dos outros estudantes, têm uma tendência para se sentar mais afastados uns dos outros que os estudantes que não receberam qualquer priming de dinheiro. Assim como têm uma maior preferência por estar sozinhos. Isto é tudo aquilo que as correntes do Individualismo defendem, e forma toda a base do objectivismo defendido por Ayn Rand. Para fugir ao extremo oposto do colectivismo russo, Rand extremou a sua ideia de sociedade, e acabou por desenhar uma ideia totalmente assente num viés cognitivo. A ideia de um "Homo Economicus", perfeitamente racional e baseado no interesse próprio apenas, tal como definido por Richard Thaler and Cass Sunstein em Nudge: Improving Decisions About Health, Wealth, and Happiness (2008).
"The general theme of these findings is that the idea of money primes individualism: a reluctance to be involved with others, to depend on others, or to accept demands from others… findings suggest that living in a culture that surrounds us with reminders of money may shape our behavior and our attitudes in ways that we do not know about and of which we may not be proud. Some cultures provide frequent reminders of respect, others constantly remind their members of God, and some societies prime obedience by large images of the Dear Leader. Can there be any doubt that the ubiquitous portraits of the national leader in dictatorial societies not only convey the feeling that “Big Brother Is Watching” but also lead to an actual reduction in spontaneous thought and independent action?" Kahneman
Efeito de halo, (corrigindo exames)
É a tendência que temos para gostar ou desgostar tudo sobre uma pessoa - incluindo coisas sobre as quais nada sabemos dessa pessoa. Para explicar este efeito Kahneman apresenta um exemplo próprio brilhante e que dirá muito a quem é professor.
"Early in my career as a professor, I graded students’ essay exams in the conventional way. I would pick up one test booklet at a time and read all that student’s essays in immediate succession, grading them as I went. I would then compute the total and go on to the next student. I eventually noticed that my evaluations of the essays in each booklet were strikingly homogeneous. I began to suspect that my grading exhibited a halo effect, and that the first question I scored had a disproportionate effect on the overall grade. The mechanism was simple: if I had given a high score to the first essay, I gave the student the benefit of the doubt whenever I encountered a vague or ambiguous statement later on. This seemed reasonable. Surely a student who had done so well on the first essay would not make a foolish mistake in the second one! But there was a serious problem with my way of doing things. If a student had written two essays, one strong and one weak, I would end up with different final grades depending on which essay I read first I had told the students that the two essays had equal weight, but that was not true: the first one had a much greater impact on the final grade than the second. This was unacceptable." Kahneman
Para acabar com este problema, Kahneman passou a corrigir os exames, questão a questão, e não aluno a aluno, para evitar qualquer contágio de halo entre as perguntas. Apesar disso refere, que os efeitos dessa decisão levaram a resultados que lhe custaram a aceitar. Porque agora verificava discrepâncias grandes entre as respostas dos mesmos alunos, o que o deixava com vontade de alterar algumas notas, porque se sentia desconfortável em termos de coerência da avaliação. Mas diz que apesar disso, sabia que agora estava a ser mais justo, já que a coerência que existia antes, não existia realmente mas estava a ser criada artificialmente pelo seu cérebro.

A primeira parte do livro trabalha ainda - controlador preguiçoso; facilitador cognitivo; normas, surpresas e causas - mas não se pode aqui resumir tudo. O livro é todo ele um grande manual, que se deve ler, reler, consultar e voltar a consultar. Antes de terminar esta parte Kahneman faz um resumo das características que definem o nosso Sistema 1.
"Characteristics of System 1 
. generates impressions, feelings, and inclinations; when endorsed by System 2 these become beliefs, attitudes, and intentions
. operates automatically and quickly, with little or no effort, and no sense of voluntary control
.can be programmed by System 2 to mobilize attention when a particular pattern is detected (search)
. executes skilled responses and generates skilled intuitions, after adequate training
. creates a coherent pattern of activated ideas in associative memory
. links a sense of cognitive ease to illusions of truth, pleasant feelings, and reduced vigilance
. distinguishes the surprising from the normal
. infers and invents causes and intentions
. neglects ambiguity and suppresses doubt
. is biased to believe and confirm
. exaggerates emotional consistency (halo effect)
. focuses on existing evidence and ignores absent evidence (WYSIATI)
. generates a limited set of basic assessments
. represents sets by norms and prototypes, does not integrate
. matches intensities across scales (e.g., size to loudness)
. computes more than intended (mental shotgun)
. sometimes substitutes an easier question for a difficult one (heuristics)
. is more sensitive to changes than to states (prospect theory)*
. overweights low probabilities*
. shows diminishing sensitivity to quantity (psychophysics)*
. responds more strongly to losses than to gains (loss aversion)
. frames decision problems narrowly, in isolation from one another" 
Kahneman

PARTE II e III - Definição de Intuição e a Previsão do Futuro
Na segunda parte Kahneman continuará a trabalhar as questões dos desvios de cognição, indo ao âmago dos métodos que utilizamos para raciocinar, ou sejas as heurísticas que utilizamos, tais como - Lei dos Números Pequenos; Âncoras, Disponibilidade, Risco, Padrões estatísticos, Regressão à média. Depois na terceira parte entra no campo da Ultraconfiança, e apresenta os problemas do excesso de confiança na análise apresentando elementos como - ilusão de compreensão ou a ilusão de validade que conduzem a um dos tópicos mais interessantes de todo o livro a Intuição dos Especialistas. O capítulo começa com uma afirmação controversa, mas com a qual me identifico bastante,
"Professional controversies bring out the worst in academics. Scientific journals occasionally publish exchanges, often beginning with someone’s critique of another’s research, followed by a reply and a rejoinder. I have always thought that these exchanges are a waste of time. Especially when the original critique is sharply worded, the reply and the rejoinder are often exercises in what I have called sarcasm for beginners and advanced sarcasm. The replies rarely concede anything to a biting critique, and it is almost unheard of for a rejoinder to admit that the original critique was misguided or erroneous in any way. On a few occasions I have responded to criticisms that I thought were grossly misleading, because a failure to respond can be interpreted as conceding error, but I have never found the hostile exchanges instructive." Kahneman
A discussão segue depois para a análise do exemplo dado por Gladwell em Blink, dos especialistas em arte que percepcionavam que a obra em análise pelo museu era falsa, só não sabiam explicar porquê. Ou seja, Gladwell apresenta o caso como sendo um dos exemplos do poder da intuição dos especialistas. Mas Kahneman não crê nessa explicação, diz-nos que na verdade se os especialistas tivessem realizado um verdadeiro trabalho de inquérito teriam descoberto porque era falsa. Kahneman vai explicar a seguir que a Intuição não é mais do que o Reconhecimento de algo que já se fez ou encontrou antes, citando a definição de intuição dada por Herbert Simon,
“The situation has provided a cue; this cue has given the expert access to information stored in memory, and the information provides the answer. Intuition is nothing more and nothing less than recognition.” Kahneman
Isto responde em parte ao facto pelo qual muitas das previsões futuristas de especialistas não funcionam. Kahneman apresenta vários estudos que demonstram preto no branco que ter utilizado grandes especialistas (corretores de bolsa, analistas políticos, etc.) ou um conjunto de macacos para tomar decisões teria tido o mesmo resultado, o estudo que mais me impressionou foi exactamente o dos correctores da bolsa. Num estudo feito pelo próprio a pedido de uma empresa de Wall Street para procurar definir um melhor sistema de compensação pelas competências, Kahneman ficou ele próprio surpreendido, porque não encontrou qualquer relação entre as competências dos correctores de bolsa e os seus resultados, como ele diz: "The results resembled what you would expect from a dice-rolling contest, not a game of skill". A razão para isto não está verdadeiramente na falta de competências dos correctores, a razão para isto está no objecto em análise, porque o mundo é muito mais difícil e variável  do que queremos acreditar. Kahneman tenta então definir as actividades nas quais faz sentido questionar especialistas. Ou seja, é apenas expectável encontrar argumentos sólidos e leituras relevantes feitas por especialistas sobre o futuro quando estas dizem respeito a:
"- an environment that is sufficiently regular to be predictable"
"- an opportunity to learn these regularities through prolonged practice"
Kahneman
Quando ambas as condições existem, então a intuição funcionará com todo o poder das competências. O xadrez é o exemplo de um ambiente regular que permite ser treinado através da prática prolongada das 10 mil horas de mestria. O mesmo se pode dizer dos Médicos ou Bombeiros quando encontram sistema complexos mas ordenados. O que acontece nestas situações é que "o Sistema 1 aprendeu a utilizar os sinais para guiar as suas acções, mesmo quando o Sistema 2 não aprendeu a nomear os sinais ou as acções".


Ilustração de James Ferguson (FT)

Por outro lado os correctores da bolsa ou os cientistas políticos que fazem previsões de longo-prazo trabalham num ambiente de validade zero. No fundo os seus falhanços são apenas um reflexo da total imprevisibilidade dos eventos que eles estão a tentar prever. Leonard Mlodinow escreveu todo um livro sobre as questões da aleatoriedade da vida a propósito destes estudos, The Drunkard's Walk: How Randomness Rules Our Lives (2009). Mas um dos exemplos mais interessantes que Kahneman nos dá é da análise da história do século XX.
"The idea that large historical events are determined by luck is profoundly shocking, although it is demonstrably true. It is hard to think of the history of the twentieth century, including its large social movements, without bringing in the role of Hitler, Stalin, and Mao Zedong. But there was a moment in time, just before an egg was fertilized, when there was a fifty-fifty chance that the embryo that became Hitler could have been a female. Compounding the three events, there was a probability of one-eighth of a twentieth century without any of the three great villains and it is impossible to argue that history would have been roughly the same in their absence. The fertilization of these three eggs had momentous consequences, and it makes a joke of the idea that long-term developments are predictable." Kahneman
PARTE IV - "Prospect Theory"
Na quarta parte do livro Kahneman dedica-se a apresentar o seu trabalho no campo das Escolhas, e é aqui que apresenta a sua grande teoria, responsável pelo Nobel recebido em 2002 - Prospect Theory. Amos e Kahneman descobriram uma falha nas teorias económicas, que previam os comportamentos das pessoas com base em lógicas racionais quantificáveis. Os economistas acreditavam que as pessoas procuravam sempre maximizar os seus ganhos - “maximize utility" - mas isso verificou-se não ser verdade, por causa de falhas ao nível cognitivo, como por exemplo a Aversão à Perda. Quantos de nós são capazes de agir racionalmente e optar por vender a nossa casa por menos dinheiro do que nos custou? A teoria fica demonstrada no exemplo abaixo:

- Se forçados a escolher entre receber garantidamente 500€ ou ter 50% de chance de ganhar 1.000€, a maioria de nós irá optar pela coisa certa. Mas se a escolha for entre perder garantidamente 500€, ou ter 50% de chance de perder 1.000€, a maioria de nós preferirá jogar -  

PARTE V
A quinta e última parte é dedicada aos seus mais recentes trabalhos no campo da análise da felicidade e bem estar. Deste capítulo o que mais me interessou foram as suas análises e comparações entre o processo de storytelling e o modo como criamos e guardamos memórias das nossas experiências. Neste processo o autor definiu um novo patamar cognitivo, a que chamou os Dois Eus ("Two Selves"), que não estão relacionados com os Sistemas 1 e 2, mas antes com o Eu que Experiencia, e o Eu que Recorda. Nos seus estudos demonstrou que a nossa memória segue uma lógica de "Peak-end rule", em que apenas preserva o pico da experiência e o modo como acaba, negligenciando a duração da experiência. Já falei disto num artigo na Eurogamer - A Memória da Experiência. Deixo um excerto desse artigo,
"Aprendemos assim que existe um conflito entre o Eu que experimenta, e o Eu que relembra. Somos seres feitos de histórias, e a nossa mente constrói continuamente histórias sobre as nossas experiências. Estas descobertas vêm de algum modo lançar mais alguma luz sobre as razões pelas quais estruturamos as narrativas em modelos que possuem um início, um meio, e um fim. O que interessa de cada história que nos contam, é o modo como começa pelo seu contexto, depois o seu momento alto, o clímax, e finalmente o modo como acaba. Assim não só explicamos a necessidade de linearidade, seguir estes três momentos, mas explicamos ainda melhor a obsessão que temos pelos finais felizes nas histórias." Zagalo, in Eurogamer.pt

O livro é grande por isso a quantidade de dados, estudos, experimentos e casos é enorme. A quantidade de teorização apresentada para suportar cada um destes é ainda maior. Como dizia no início isto deveria ser um livro obrigatório em qualquer introdução ao mundo da Psicologia. É um dos livros maiores da área para leigos, capaz de nos ajudar a ir além do mero senso comum, do expectável, das crenças. É já um clássico, e um dos grandes livros obrigatórios.


Edição analisada: Thinking, Fast And Slow, 2011, Daniel Kahneman, Penguin Books, Páginas: 512
Edição portuguesa: Pensar, Depressa e Devagar, 2012, Daniel Kahneman, Temas e Debates, Páginas: 644