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setembro 04, 2013

Portugal e a Google

“A Primeira Aldeia Global – Como Portugal mudou o Mundo” (2008) de Martin Page é um livro adorável, aconselhável a qualquer português, ou a qualquer cidadão do mundo que se sinta português. Page, citando Mário Soares, diz-nos que “A língua é o vínculo, falar português é ser português.”


“A Primeira Aldeia Global” é um livro escrito por um inglês que veio para Portugal viver os seus últimos anos de vida, e por este país se apaixonou. Jornalista do "The Guardian", cobriu várias guerras pelo mundo, atravessou continentes e muitos países. Experimentou in loco muito do que se dizia ter ali chegado através de marinheiros portugueses. Resolveu, nos últimos anos que viveu, já cego, pesquisar e escrever sobre a história de Portugal, sobre os seus feitos, sobre o seu povo e posição geográfica. Page criou um livro que eleva o orgulho português aos mais altos patamares. Dificilmente poderia este livro ter sido escrito por um português, sem ser ridicularizado pelo excesso de vanglória e ostentação. Como inglês disserta sobre a visão que os ingleses faziam de Portugal, como ajudaram a criar mitos como Infante D. Henrique, ou como foram grandes responsáveis pelo fim da monarquia em Portugal, os nossos eternos "amigos de Peniche". Page faz um trabalho de desmontagem de alguns personagens, mitos de hoje, como o Infante D. Henrique, Cristovão Colombo, ou o Marquês de Pombal. E não deixa incólume José Hermano Saraiva, e as suas tentativas de branqueamento do Estado Novo. Ainda assim este livro de Page é mais romance do que livro histórico. Está muito mais preocupado em romancear a história, do que em analisar a sua factualidade. Page apaixonou-se por Portugal, e este seu livro é uma carta de amor escrita como legado ao país, em que decidiu passar os seus últimos anos de vida.

Page recua aos tempos em que a região em que Portugal hoje se situa, era denominada de Lusitânia pelo Império de Roma, e enche o texto de detalhes apaixonantes, como o facto de Julio Cesar ter sido governador da Hispânia Ulterior, e nessa altura se ter dedicado a conquistar a Lusitânia, local de onde extrairia o ouro, nomeadamente no Alentejo, que lhe iria devolver o respeito de Roma e abrir caminho para se tornar no Cônsul da República de Roma. É esta forma de descrever a história, que torna o livro tão estimulante, carregado de detalhe explicado causalmente, ainda que por vezes não seja suportado em evidência científica (ex: a insistência no “Arigato”), mas que dão um sentido, uma lógica ao que aconteceu no passado. Apesar de nos levantarem dúvidas, alguns dos relatos que nos vai fazendo, é verdade que Page recorre a um manancial muito interessante de fontes exteriores a Portugal, capazes de ajudar a complementar muito daquilo que temos lido na história nacional. Escrevendo assim, jornalisticamente, Page ajuda-nos a criar uma ideia narrativa, coerente e consistente, que facilmente entendemos e registamos.

É fascinante toda a discussão que Page faz sobre a presença dos Árabes em território nacional, tudo o que nos trouxeram e que por cá deixaram, em termos de conhecimento, nomeadamente o conhecimento da Grécia antiga que nos chegou por sua via. Assim como todo o sentido fluído com que vai dissertando sobre cada rei de Portugal, os seus feitos, conquistas, os seus contributos para a Europa e o mundo. Mas lendo Page percebemos como Portugal, a seguir a cada grande momento de grande riqueza, teria sempre um grande momento de pobreza. Por isso se hoje vivemos com problemas de rating no crédito internacional, isso não é novidade para nós. Já vivemos o mesmo problema em 1557 (p.177), pouquíssimos anos depois de termos sido o país mais rico do globo. E voltámos a viver o mesmo com o fim do produto proveniente do Brasil, após a sua independência, e que levaria ao colapso em 1926, que levaria ao surgimento de Salazar para implementar uma austeridade brutal, e assim reganhar o respeito dos mercados. Fica a ideia que ao longo de 900 anos de história, vivemos ao sabor da sorte, daquilo que o além-mar nos poderia trazer. Se fomos um Império, como Page e outros atestam (wikipedia), foi mais por conta de tudo o que conseguimos trazer de outras partes do mundo. Apenas com um milhão de habitantes, a geografia do país, ou quem o habitava, nunca conseguimos fazer grande coisa dele.

No livro de Page, tudo nas conquistas além-mar portuguesas são glórias. Não existe uma linha para discutir criticamente o período. Como apontamento sobre isto, deixo apenas esta gravura "Europe supported by Africa and America" (1796) de William Blake.

Page não reflecte criticamente sobre a problemática da riqueza conquistada, Page limita-se a apontar Portugal, e os portugueses como um dos principais povos a trilhar a comunicação internacional. Neste campo Page eleva os Portugueses ao alto, citando e atestando, sobre a amabilidade, abertura, e empatia dos portugueses para com os outros povos. Desde os Árabes inicialmente, aos povos em África, e aos Judeus que viveram na Europa até ao modo como os Portugueses acolhem ainda hoje. Page não o diz, mas este poderá ter sido o elemento central em toda a criação do Império Português, a sua facilidade de comunicação com o outro, o modo como se dava rapidamente, se adaptava a cada lugar diferente, e se deixava ficar criando raízes. Ainda hoje se refere que os portugueses terão sido responsáveis pela criação da raça de mestiços, ao fundir-se desde o início com as outras raças e credos, que ia encontrando, de forma aberta e sem tabus.

A capacidade e empenho nas viagens além-mar levou a que Portugal se tivesse concentrado no desenvolvimento de tecnologia que lhe permitiria ligar todo o mundo por via marítima. Desde tecnologia de orientação, a tecnologia de navegação, a tecnologia de guerra. Portugal inventou, criou, desenvolveu e implementou todo um arsenal capaz de permitir abrir caminhos desconhecidos, estabelecendo rotas marítimas periódicas que passaram a transportar o conhecimento entre todos os pontos do chamado Império Português. Durante o auge, o português chegou a ser Língua Franca no comércio e navegação. E é exatamente aqui que encalha o meu título para esta resenha.

Portugal foi o Google, em todos os sentidos. Arrisco dizer “todos”. Primeiro porque abriu caminho, onde este não existia. Segundo, porque deu a conhecer o que antes era desconhecido. Terceiro porque se tornou global, rico e poderoso. Quarto, o mais importante para mim, porque conseguiu tudo isto sem verdadeiramente criar nada. Criar, no sentido de produção de cultura, definidor do saber-fazer de um povo, aparte a tecnologia já descrita.

Tal como a Google, Portugal limitou-se a inventar tecnologia para abrir caminhos e dar a conhecer. Ambos, nunca se preocuparam em criar conhecimento e cultura para legar aos seus sucessores. Portugal enriqueceu enquanto dominou os caminhos de acesso às especiarias e ouro, tal como a Google enquanto dominar as pesquisas online. Portugal limitou-se a fazer passar de mãos conhecimento, tendo participado muito pouco ativamente na criação desse conhecimento. Com o que trazia de um lado, podia adquirir tudo o que queria do outro. (Um exemplo disto é bem evidenciado por Saramago, na descrição da construção do Convento de Mafra no seu "Memorial do Convento" (1982)). Tal como a Google, com a abertura dos caminhos da pesquisa, tem gerado somas de dinheiro astronómicas em publicidade, que lhe têm servido para criar mais tecnologias de transmissão. Quando acabar o auge das pesquisas Google, esta acabará por se afundar, como afundou o Império Português logo após a morte de D. Manuel, aquele que ficou conhecido na Europa como o “Rei Merceeiro”.

Page vai citando alguns exemplos de notáveis cabeças e invenções nacionais, mas convenhamos, que em quase mil anos de história, tudo o que é citado pode ser encontrado num único século de vários países da Europa. Só isto por si, pode demonstrar o nosso problema, e talvez explique a nossa forma de estar enquanto cidadãos do mundo, somos provavelmente pouco ambiciosos.

Fica o livro de Page, um livro fluído, sobre uma história fluída, de um povo fluído.

setembro 03, 2013

"Livro" de José Luís Peixoto

Conheço o trabalho do José Luis Peixoto (JLP) desde o seu primeiro romance, “Morreste-me” (2000), que me deixou logo apanhado pelo autor. Foi numa fase em que me dedicava a ler autores mais novos, procurava mundos mais próximos, e não tanto os clássicos que nos falam sob uma forma grandiosa, mas sobre realidades tão distantes no tempo, que dificilmente nos identificamos, ficando muitas vezes apenas pela forma, sem razões para acreditar no conteúdo. Apesar de ter adorado, nunca mais li nada seu, com a vida académica a não-ficção tomou o lugar da ficção, que ficou apenas reservada ao cinema e videojogos. De vez em quando pego num romance.

"Livro" (2010)

Em Agosto passei pela loja, vi os vários livros do JLP enfileirados, fiquei admirado por já ter publicado tanta coisa desde então, mas fiquei contente, pelo respeito que me mereceu desde então. Dos vários, o "Livro" foi o que menos me impressionou quando lhe peguei. Estou um pouco cansado de histórias sobre a emigração, apesar de saber que ainda nos falta muito dizer, muito enfatizar, sobre uma enorme fase da vida de Portugal. Mas depois de lidas as várias sinopses em cada contra-capa acabei por aqui voltar, e é verdade que o título me impressionou. Primeiro pensei, que pretensiosismo, mas respeitando o JLP, quis acreditar que não era de todo o seu estilo, e por isso trouxe-o comigo para casa.

Duas constatações prévias, JLP nasceu no mesmo ano que eu, é um filho de Abril que nunca conheceu o antes. Mais, é filho de emigrantes portugueses partidos para o centro da Europa num tempo em que não era permitido sair do país, que tal como os meus pais voltaram para Portugal para nos dar uma infância nacional, depois da revolução. Do que ele sabe, e eu sei, sobre esses tempos, foi ouvido em discursos diretos em casa, ao longo das nossas adolescências. Vivemos uma ruralidade na infância, sempre comparada com o exterior, que nos impregnou os sentidos do que é viver Portugal. Mais tarde, as cidades nacionais receberam-nos para que pudéssemos continuar os estudos, impulsionados por uma geração de pais que quis o melhor do mundo para os seus filhos, que quis que estes chegassem onde eles não conseguiram, sabendo que o único caminho para dali sair estava nos estudos. Talvez por tudo isto perceba e sinta tão de perto o que está neste livro.

Apesar de sentir o tema do livro de perto, quero dizer que a maior parte da leitura, digamos 4/5 foi feita sem esta sensação, já que se relata o antes. JLP começa em 1948, e nós só nascemos em 1974. Por isso aquilo que o livro constrói como seu universo expressivo, tocará a todos, mesmo quem não tenha tido qualquer experiência de emigração perto. Já que o que torna o livro, uma experiência estética tão poderosa, não é o tema em si, mas o tratamento que lhe é dado por JLP. Não me admirei, nem fiquei surpreso com o seu à vontade descritivo, nem tão pouco com as suas capacidades de gerar metáforas tão "perfurantes", em termos de sentido, ao ponto de nos darem “a ver” através de meros conjuntos de palavras. Porque como disse, já o admirava como escritor, apesar de ter apenas lido um livro seu antes, e várias crónicas em revistas.
"A Adelaide carregava no interruptor e as lâmpadas fluorescentes, depois de piscarem em cambalhotas de luz, acendiam-se uma a uma e faziam crescer um zumbido branco, que permanecia." (p.142)

"A terra respirava. Quando a Adelaide saiu de trás do muro do chafariz, já uma vírgula iniciara o percurso em direcção ao seu útero" (p.202)
O livro vem dividido em duas partes. A primeira parte, o grande bolo do livro (ocupa 200 das 260 páginas) é realista, com um toque saramaguiano, enreda-nos, agarra-nos e não nos larga. Comecei pela manhã, e só parei no final do dia quando cheguei à última página. JLP descreve o rural português de uma tal forma que me fazia questionar, a todo o passo, sobre o nível de detalhe que consegue ali despejar, até parecia que ali tinha vivido, que ali tinha sentido. E na verdade só depois descobri que JLP tinha vivido numa aldeia portuguesa, como filho de emigrantes. Ainda assim, aquilo que descreve são as suas memórias transplantadas para um tempo antes de ter nascido.

Mas não é apenas o detalhe descritivo, o enredo construído sobre uma fragmentação do tempo, muito típica do pós-modernismo que atravessa o storytelling atual, é desenvolto e capaz de gerar momentos de puro "thrill", apesar de não se tratar de um "thriller". Logo a abrir o livro, temos um momento destes, um baque, que nos surpreende, nos intimida, e imediatamente nos agarra ao livro. Ao longo do texto, temos mais dois ou três momentos destes fortes, que servem para nos acordar do fio romanesco da história.

A segunda parte é um salto adentro da forma, um trabalho sobre os fundamentos da literatura. Se o tema é a emigração portuguesa, percebemos a breve trecho que este serviu apenas de motor para algo maior. O "Livro", poderia terminar no final das 200 páginas, e seria um muito bom livro, mas não seria o "Livro". O "Livro" abre-se a nós, e nós a ele, levando-nos para um novo nível de interação entre o texto, o autor e nós os leitores.

setembro 02, 2013

Filmes e livros de Agosto 2013

Julho tinha sido anormal no número de filmes vistos, por isso em Agosto tirei férias do cinema. Vi apenas 3 filmes e dediquei o resto do tempo à leitura. Finalmente consegui ver o primeiro filme de Malick, um filme impressionantemente maduro para primeiro filme. Já Oblivion deixou-me com um sabor agridoce, por um lado o design genial do ambiente e cenários, por outro uma história já vista sem grande novidade, e pior que tudo a inclinação para o show-off típico de Hollywood, com Cruise em mais uma MI. Na literatura, fiz algumas leituras mais leves de verão como Saramago, Peixoto ou Calvino, e outras mais pesadas como Sennett e Dutton. Deixo a lista, e no caso dos livros irei publicar ao longo de setembro uma resenha de cada um.

CINEMA

xxxx Badlands 1973 Terrence Malick USA

xxx Oblivion 2013 Joseph Kosinski USA

xxx Welcome 2009 Philippe Lioret France


ROMANCE
Livro (2010) de José Luís Peixoto [Análise]

Mudanças (2010) de Mo Yan

A Primeira Aldeia Global (2008) de Martin Page [Análise]

A Identidade (1998) de Milan Kundera

Palomar (1983) de Italo Calvino

Memorial do Convento (1982) de José Saramago


NÃO-FICÇÃO

The New Digital Age, (2013), Eric Schmidt [Análise]

Obras Primas da Arte Portuguesa - Pintura (2011) Dalila Rodrigues

Obras Primas da Arte Portuguesa - Século XX Artes Visuais, (2011), Delfim Sardo

The Craftsman, (2009), Richard Sennett [Análise]

The Art Instinct, (2009), Dennis Dutton

A Alma Está no Cérebro, (2006), Eduardo Punset

Modos de Ver, (1972), John Berger

junho 13, 2013

Grandes Livros: "1984"

Em tempos de Google, Facebook e o PRISM, é tempo de revisitar 1984, o livro que agora voltou aos tops de vendas dos EUA. Por isso resolvi trazer aqui o documentário, Great Books: "George Orwell's 1984", do Discovery Channel, que vi há algum tempo, e nos fala de Orwell e a escrita de 1984. O documentário fala-nos da ideias que terão inspirado Orwell a escrever 1984, a segunda guerra mundial, seguido pela fase dos medos da guerra nuclear. Acredito que em última análise, Orwell como jornalista terá percebido o poder e alcance das máquinas de propaganda totalitarista de Hitler e Estaline, e terá sido a partir daí que começou a desenhar a ideia do Big Brother na sua mente.



1984 de George Orwell é uma das obras de ficção científico-políticas mais relevantes do século XX, dado o momento em que surge, o tempo da guerra fria, e as previsões que faz, muito fáceis de ligar com os tempos que se viviam. O livro foi escrito em 1948, e projectado para 1984, ano em que toda a sociedade seria controlada através de sistemas de televisão, em que todos teriam a responsabilidade de se vigiar uns aos outros, em que tudo seria alegadamente "transparente". A obra entra pelos subterrâneos desta possibilidade ficcional e apresenta os seus piores problemas. Desmonta o momento em que as pessoas deixam de ser humanos para passarem a ser meras estatísticas, sem livre-arbítrio.

Em todos estes anos, tudo temos feito para caminhar nesta direcção, muito pouco se fez para o evitar, acreditando num "bem maior" que aqui é claramente exposto e desmascarado. Fica o documentário que podem ver no YouTube com legendas em português. Claro que depois de ver o documentário, aconselha-se vivamente a ler o livro, se ainda não o tiverem feito, a sua riqueza é insubstituível.

Great Books George Orwell's 1984 , (2000), Discovery Channel

O documentário tem 45 minutos, e está dividido em três partes. Aqui ficam os links para: Parte 2 e Parte 3

junho 07, 2013

a vida através dos livros (e do cinema)

Lisa Bu é membro da equipa que produz as conferências TED, nesse sentido foi convidada para as conferências anuais internas de colaboradores da TED. A sua conferência foi tão interessante que a convidaram a apresentar a sua palestra no palco principal da TED, tornando-se assim na primeira colaboradora a fazê-lo.


Lisa Bu nasceu na China, veio para os EUA já depois de se licenciar, fazer um MBA em Sistemas de Informação, seguido de um doutoramento em Jornalismo na Universidade de Wisconsin-Madison. Ficou na universidade a trabalhar na rádio, como directora de conteúdos digitais, até que foi trabalhar para a TED.

A mais importante mensagem desta talk é o facto de que mesmo depois de destruírem os nossos sonhos ainda podemos emergir. Que para o fazer, muitas vezes não podemos apenas basear-nos nas pessoas que nos rodeiam, precisamos de ir além disso. No caso de Bu, foram os livros. Foi através dos livros que Bu descobriu o seu novo sentir, e criou os seus novos sonhos. Depois de todos terem desistido dela, ela acreditou no poder dos livros, para crescer, para emergir.

How books can open your mind (2013) Lisa Bu na TED

Sobre isto tenho apenas a dizer que não é nenhuma possibilidade remota, é algo a que dou muita importância em termos de educação e formação de um ser humano. Não apenas a literatura mas também o cinema. Passei toda a minha adolescência longe dos meus pais, num colégio interno, só os via nas férias. Durante todos esses anos, grande parte da minha formação foi feita à base de fins de semana de cinema. As sessões começavam a seguir ao almoço e prolongavam-se até depois do jantar. Desse modo via entre 4 e 5 filmes no sábado, mais 4 ou 5 no domingo. Depois passava o resto da semana envolvido nas aulas e trabalhos de casa, na interacção com os colegas que estavam ali como eu longe dos pais, mas à espera que chegasse de novo o fim-de-semana. Isto forma e educa, mas também deixa marcas, ainda hoje se passo muitos dias sem ver cinema começo a sentir uma espécie de melancolia invadir-me.

maio 13, 2013

a que objetiva a Arte?

Esta semana publiquei na Eurogamer um artigo sobre questões de impacto das obras de arte sobre as pessoas - "Qualidade na Arte. Porque algumas obras são mais importantes que outras". Ou seja, sobre o retorno de investirmos tempo a ler um livro de José Rodrigues dos Santos versus ler um livro de José Saramago, ou ver um filme de João César Monteiro versus ver um filme de Joaquim Leitão. Esta é uma questão que se aplica a qualquer domínio da criação artística, porque esta se produz segundo uma lógica. Se a ciência procura fazer avançar o conhecimento e o pensamento, a arte busca fazer avançar o sentir e a percepção. Ambas o fazem pela mesma via, a produção de novo e original.


Na relação conceptual popular entre a arte e o entretenimento, a arte aparece como definidora do domínio da inovação discursiva ou formal, capaz de despertar as nossas faculdades cognitivas e de as obrigar a transformar-se. Já o entretenimento segue os padrões existentes, mantêm-os e reforça-os, para assim conquistar mais facilmente o receptor. No artigo trabalho esta diferença a partir dos videojogos, mas sendo baseado em estudos sobre a literatura, serve a arte e a definição dos seus objectivos de forma geral.

Não são ideias novas, mas neste texto utilizo estudos recentes realizados no campo da neurociência que suportam estas ideias. Estes estudos têm sido dirigidos por Philip Davis que é da área das humanidades, trabalhando com neurocientistas como Neil Roberts e Guillaume Thierry.

abril 30, 2013

os livros contra as séries e jogos

Ainda ontem aqui falei dos problemas da enorme duração das experiências das séries TV e dos jogos. Agora trago uma belíssima campanha da Asociación De Editores De Madrid que se foca sobre isso mesmo, com o objetivo de alertar as pessoas de que é preciso salvar a leitura!


Esta é a realidade, por muito que aos jogadores e amantes das séries lhes custe. O tempo que se gasta com séries e jogos intermináveis é valioso, e pelo meio muito fica para trás. Não coloco aqui em questão deixar de jogar ou ver séries para ir ler, apenas relembro que como em tudo, é preciso moderação. É preciso conseguir distribuir melhor o tempo que se investe em cultura. E queiramos ou não, entre ler Dom Quixote ou jogar centenas de horas de Angry Birds, ou ver centenas de horas de Lost, existe uma clara diferença no retorno cognitivo. Aliás, além destes consumidores de horas, como muito bem diz o Carlos Merigo do Brainstorm9, era bom ter visto um cartaz destes com o Facebook como "assassino" de tempo.



A campanha é constituída de três cartazes em que personagens clássicos da literatura morrem: Dom Quixote por Angry Birds, O Pequeno Príncipe por Call of Duty, e Moby Dick por Lost.

abril 19, 2013

Informar não é Comunicar

Esta semana andei a reler Informer n'est pas Communiquer (2009) de Dominique Wolton por causa de algumas reflexões que tenho andado a fazer sobre os conceitos de copyright e open access. Entretanto aproveitei para escrever algumas linhas como pequena síntese do livro. Sobre os conceitos que me trouxeram até ele, em breve publicarei aqui um texto sobre o assunto.


Dominique Wolton é um dos gurus internacionais das ciências da comunicação, destacando-se por tratar o tema da comunicação a partir de uma perspectiva optimista. Para Wolton o fundamento da comunicação assenta na criação de relação entre diferentes. Em Pensar a Comunicação (1997) Wolton apresentava a sua teorização sobre o processo de comunicação em duas dimensões: a) o funcional, que se concretiza em meros processos de transmissão e difusão, em que a preocupação é apenas garantir a emissão e recepção; b) o normativo que se define por uma codificação da mensagem em função do meio e em função do receptor de modo a garantir a compreensão e compartilha. Ou seja, o funcional é aquilo que temos na grande maioria da comunicação tecnológica, em que existe uma emissão de informação e uma preocupação com a garantia dessa recepção. Já o normativo está preocupado em desenhar todo um processo capaz de garantir que a informação veiculada, não só chega ao outro, como é compreendida, e acima de tudo é partilhada também pelo outro.

Ora neste seu livro mais recente, Informar não é Comunicar de 2009, apresenta uma divisão destas duas dimensões em dois processos distintos, os quais já não se colocam sob o chapéu da Comunicação. Embora Wolton não reconheça que o faz, e reconhecendo eu que estou a forçar os seus pressupostos, com o objetivo de simplificar a análise dos processos. Assim Wolton passa a definir a Comunicação Funcional como apenas Informação, e só a Comunicação Normativa como verdadeira Comunicação. Esta sua redefinição vem no sentido de acompanhar as transformações tecnológicas, que se têm vindo desenvolver a um ritmo galopante, conduzindo a uma aceleração dos processos de transmissão que superam largamente a capacidade de recepção humana. Nesse sentido todo o livro acaba por funcionar como uma crítica às evoluções operadas pelas tecnologias de comunicação, nomeadamente a internet, ou melhor, os modos informativos da internet.

Aliás esta é uma crítica que já vem detrás, e que começa no Elogio do Público (1990) em que Wolton discutia a problemática da segmentação dos canais de televisão, no sentido em que a perda de discussão de diversidade, diminuia as pontes de contacto, promovendo a guetização cultural da sociedade, conduzindo à incomunicação, criando a desconfiança e a violência. Por sua vez a internet é um ainda maior exacerbamento de toda esta individualização, provocando uma destruição dos laços entre as pessoas. Um pensamento em toda a linha seguido por Sherry Turkle no seu livro Alone Together: Why We Expect More from Technology and Less from Each Other (2012). Para Wolton o processo de comunicação é algo muito sensível, frágil, e em negociação permanente, ao contrário da informação que para além de poder ser à prova da tecnologia, é capaz de evoluir ao seu ritmo. Como diz Wolton logo no início do livro, "nós sonhámos com a Aldeia Global, e agora redescobrimos a Torre de Babel" (2009:17).

Em vez da simplicidade e facilidade de comunicar prometida pela Aldeia Global, encontrámos a complexidade e a confusão da Torre de Babel.

Ao criar uma discussão permanente 'todos para todos', assume-se um carácter profundamente funcional, já que na impossibilidade da partilha se assume como denominador a transmissão da informação. Além disso, todos assumem a posição de emissor, enquanto o papel de receptor praticamente desaparece, pondo fim à partilha e compreensão. Wolton diz, "onde estão os lugares e espaços de legitimação quando todo o mundo intervém?". Porque sem a legitimação, passamos mais tempo a tentar verificar a veracidade da informação que nos chega do que a tentar compreender o seu significado. E eu digo mesmo, não só passamos mais tempo a confirmar, como passamos mais tempo a "descascar" a informação para a conseguir compreender. Este é o grande problema de dar a todos a mesma legitimidade de falar sobre assuntos sem distinção. Daí a velha noção da comunicação social de basear as suas fontes em especialistas, algo que tem vindo a ser distorcido com o tempo. Quando temos comentadores que falam sobre todo e qualquer assunto, sabemos de antemão, que o que nos está a ser oferecido, não tem como intenção informar, menos ainda comunicar, mas apenas e só entreter. A situação atual do excessivo número de comentadores políticos em televisões nacionais é em Portugal já um clássico, claramente que estes emissores não estão ali para informar, mas apenas e só para entreter. Porque a função de um político é tomar decisões informadas, não emitir pareceres ou opiniões, para isso existem os especialistas e técnicos de cada área. Como os espectadores não estão interessadas em especialidade política, os contornos dos processos de decisão, eles falam de tudo e de nada. É para isso que as cadeias de televisão os contratam, para servirem de entertainers.

Em 2013 o número de comentadores políticos com espaço próprio na TV atingiu proporções que não se conhecem em mais nenhum país. Os políticos portugueses, deixaram de agir e tomar decisões, para estar ao serviço do entretenimento.

Aliás isto é fruto de uma ideologia que evoluiu com a internet mas não só, a ideia de que o que conta é o que a pessoa diz, e não a sua formação ou origem, é uma tentativa clara de deturpação do processo de comunicação. Porque se não tenho nenhuma forma de legitimar a origem da informação, como é que atribuo valor ao que é dito por ela? A alternativa seria verificar tudo o que ela diz, mas para isso não me adianta perder tempo a ouvi-la, já que terei de confirmar eu próprio a informação. Ou seja, temos um problema de desdobramento de emissores por um lado, em que todos falam para todos, e ao mesmo tempo um problema de concentração sobre os emissores, em que todos falam de tudo. Os dois processos conduzem a uma perda de qualidade da informação, ou seja a uma deterioração da comunicação.

Surgiu um comentador na televisão portuguesa em 2012 que legitimava aquilo que dizia com o "facto" de ser coordenador de um observatório de economia das Nações Unidas, e ainda como consultor do Banco Mundial, doutorado e docente numa universidade americana. Descobriu-se mais tarde que tudo o que o legitimava não existia. Com isto esvaziou-se o discurso, pois deixou de ser credível, já que aquilo que dizia, careceria de ser tudo confirmado, para aferir da veracidade. Ou seja, deixou se ser relevante ser ouvido, naquelas matérias em particular, em que se pretendia fazer ouvir.

Wolton define o processo geral da comunicação como sendo constituído por três componentes: o tecnológico, que diz respeito aos aspectos instrumentais da transmissão; o económico, ligado às técnicas de trocas de mensagens; e o cultural, que se refere ao espaço simbólico da comunicação. O tecnológico e o económico pertencem ao domínio do acto de informar, que por seu lado não revela preocupações de âmbito simbólico ou cultural, já que isso é relegado para a dimensão do processo de comunicação. Enquanto no processo de informar o Receptor é algo menor, no processo de comunicação o Receptor torna-se "protagonista ao negociar, filtrar, hierarquizar, recusar ou aceitar as mensagens recebidas". Contudo isto não deve ser visto, e mais ainda em tempos de interactividade, como uma troca de papéis entre emissor/autor e receptor. Wolton frisa muito claramente que “o reconhecimento da alteridade no esquema da comunicação, só o poderá ser com a condição de não se tornar na referência última. O receptor pode tornar-se tirânico. Entre a alteridade e o imperialismo, as margens são muito estreitas (..) sobrevalorizar o receptor pode implicar tanta tirania como tê-lo ‘ignorado’ em excesso” (2009:121). É isto que acaba por acontecer quando não se aceita a legitimidade de quem emite, em que as ações cognitivas do receptor passam da compreensão, à confirmação e questionação, e daí para a emissão, transformando a comunicação um-todos ou poucos-todos, num processo todos-todos. Isto é algo que tem vindo a afectar muito particularmente a indústria dos videojogos, leia-se Controlling creativity: Eight developers discuss the dilemma of interactive art (2013).

Mass Effect 3 (2012), o final do jogo gerou tanta pressão por parte dos receptores, que os criadores se viram obrigados a criar um novo final para satisfazer os seus receptores. Ou seja, foi colocado em causa a legitimidade dos criadores, e o processo de comunicação foi corrompido.

Neste sentido Wolton critica o tecnicismo, a ideologia que acredita que a essência do processo de comunicação assenta na tecnologia e nas suas economias. Um pouco como o médico que se foca na doença e no seu tratamento, esquecendo o ser humano que se encontra à sua frente. Assim fugir ao tecnicismo é vital para se poder providenciar uma comunicação efectiva, em que o centro não seja o processo de transmissão, mas o receptor. Deste modo torna-se algo irrelevante os avanços técnicos da tecnologia nos domínios da velocidade ou multiplicidade de acessos, já que estes avanços não podem mudar o tempo que os homens precisam para se compreender mutuamente. Neste sentido a evolução tecnológica acaba por acentuar os processos de incomunicação, uma vez que o nosso cérebro não os consegue acompanhar. Daí que a informação em directo, ou as grandes ideias de 'democracia directa' percam validade, uma vez que não é pelo simples facto de ganhar acesso à informação que consigo ter tempo e capacidade para a 'digerir'. O problema é mesmo maior do que a velocidade e a quantidade de informação, já que para além de não se conseguir responder à velocidade exigida ou à quantidade apresentada, teremos sempre ainda a falta do conhecimento necessário para interpretar toda a informação, isto porque não nos poderemos especializar em tudo. Como dizia Gustavo Reis na sua palestra TEDxUnisinos 2012,
"The infinite information that is offered by search engines, translates into zero knowledge.
If there is no selection of relevant information and the creation of links between the relevant parts of that information, the infinite information tends to zero knowledge."
Ou seja, se aquilo que é comunicado é-o feito de modo meramente funcional, ou informativo, então fica de lado a hipótese do receptor poder agir sobre essa informação. Liquida-se o processo de comunicação, apesar da informação continuar a ser transmitida.

Neste sentido, o intermediário – jornalista, professor, editor, curador, académico, etc. – continua a ser fundamental para triar, hierarquizar, verificar, comentar, legitimar, eliminar e criticar a informação de modo a guiar o receptor. “Estas profissões intermediárias são indispensáveis para relativizar a ilusão de um mundo transparente, no qual cada um seria um ‘actor multiconectado’. Recordam-nos o papel dos conhecimentos que se devem transmitir. Existem competências específicas que justificam a transmissão” (2009:121). Neste sentido o intermediário terá maior ou menor capacidade para legitimar, quanto maior for o seu “capital simbólico” (Bourdieu), aquilo que permite ao receptor definir as hierarquias de credibilidade dos intervenientes na comunicação. Ou seja, não é indiferente para o receptor, a fonte que emite, o seu reconhecimento confere um determinado grau de credibilidade que facilita e incrementa a verdadeira ação de comunicação, ou seja de compreensão e compartilha.

No essencial esta obra resume o acto de comunicar como um ato de partilha, de sedução e de persuasão, mas como diz Wolton, “o desafio está menos no acto de partilhar o que é comum, e mais no facto de aprender a gerir as diferenças que nos separam” (2009:11). Wolton baseia todo o seu discurso no pressuposto antropológico da “alteridade”, que nos diz que todo o homem social interage e é interdependente do outro. Assim a comunicação tem como referente "a busca do outro e da relação", sendo um processo frágil, em negociação e legitimação constante.

abril 04, 2013

"Civil War", extenso e desaproveitado

Finalmente acabei de ler um dos arcos narrativos da Marvel mais badalados da última década, Civil War, e um dos maiores, espalhado por mais de 100 livros e 3000 páginas. Já não lia comics com esta continuidade desde os anos 1990, e se o fiz agora novamente, deve-se essencialmente ao iPad e ao acesso online. Se existe conteúdo para o qual o iPad parece ter sido desenhado propositadamente, é o dos comics. O brilho e o tamanho do ecrã, e a usabilidade deste, tornaram-no num perfeito leitor de comics. A PSP tinha um ecrã demasiado pequeno, o Kindle era monocromático, o iPad abriu uma nova janela para o meu passado!

Civil War (2006-2007), atravessa mais de 100 livros, num total de mais de 3000 páginas

Civil War tornou-se um arco de peso capaz de saltar as fronteiras dos comics, dado que o assunto de fundo tratado tem uma relação directa com o momento da história em que vivemos. É inevitável comparar o fundamento de todo o conflito, o Superhuman Registration Act (registo governamental de todos os que detém super-poderes) com toda a paranóia e nova legislação que atenta contra a liberdade individual nos EUA, o Patriot Act, criada na sequência dos ataques do 11 de Setembro 2001. Se logo após o 11/9 a comunidade aceitou que o governo usasse de todos os poderes para garantir a segurança, com o passar dos anos começou a questionar-se sobre o que é que o governo andava a fazer com tanto poder conferido. Com Guatanamo a manter pessoas indefenidamente prisioneiras sem acusação, com a invasão do Iraque sem fundamento, com milhares de deportações dos EUA por meras razões raciais/religiosas. A ideia de proteção a qualquer custo começou a deixar de ter o sentido que aparentemente parecia ter. Deste modo a Marvel aproveitou todo este sentimento generalizado na comunidade para lançar o arco da Civil War em 2006 que se estendeu até 2007.


Civil War centra-se num conflito extremamente simples, o choque entre dois grupos de heróis, um por e outro contra o registo de todos perante o governo. Os problemas começam com as implicações da descoberta de identidades que isso tem sobre a vida de cada um, o que vai servir de mote para discutir muito mais sobre a informação e controlo da informação em sociedade e pelos governos. Do lado por, o grupo é liderado pelo Homem de Ferro, do lado contra, é liderado pelo Capitão América. Neste evento acaba por ser envolvido praticamente todo o universo de heróis Marvel, mesmo alguns que tinham entretanto desaparecido, regressam ao mundo dos vivos para dar o corpo e surpreender. Assim como vários heróis acabam por perder a vida ao longo desta saga, servindo assim a dramatização de tudo o que vai acontecendo. Em termos de nós principais, estes estão centrados sobre um grupo mais reduzido de personagens, num primeiro plano temos Homem de Ferro, Capitão América, Homem-Aranha e Reed Richards (Senhor Fantástico). Num segundo plano temos ainda Pantera Negra, Thunderbolts, os Novos Vingadores, Namor e os Atlantes e Wolverine.


Julgo que o primeiro plano funciona muito bem, mas o segundo é um mero aproveitamento narrativo para expandir o tema e o tornar maior do que aquilo que seria necessário, e assim também garantir mais história e mais vendas. Nesse sentido Civil War acaba por perder face a outros eventos do passado que conheço bem - Secret Wars - nomeadamente por se perder entre tantas ramificações. Um dos maiores problemas apontados pelos fãs foi exactamente a desarticulação do arco geral. Muitos dos livros que iam surgindo pareciam falhar na coerência com os eventos centrais, tanto em termos cronológicos como em termos de causalidade. Eu senti isso também mas era algo quase inevitável tendo em conta a dimensão, distribuição e a duração do arco. É preciso ter em conta que estão aqui em jogo várias equipas de escritores e desenhistas que normalmente trabalham nos seus projectos, seguindo as suas linhas temporais.

Aliás esse foi talvez o pior sentimento produzido pela série, as diferenças estéticas tanto na arte visual como na escrita. As abordagens são tão diferentes, e o modo como cada um toca certas cordas emocionais é muito distinta. Desse modo acaba por ser muito natural que estejamos a ler um dos livros, e adoremos pelos diálogos, e logo a seguir noutro apenas nos detanhamos sobre a arte gráfica.

Por outro lado passados mais de 6 anos sobre o lançamento de Civil War o seu mote continua imensamente atual. Aliás é muito relevante que a Marvel tenha ousado entrar numa discussão tão política e tão atual. A série começa por nos confrontar com discussões, por vezes profundas sobre o que está em causa. Nomeadamente as discussões sobre a luta pela Lei e a luta pelos Princípios é o melhor. A justificação para a tomada de posição a favor de Reed Richards é também muito boa. Mas depois o guião acaba por se perder na segunda parte, a luta mantém-se porque tem de se manter, e o conflito acaba porque tem de haver um fechamento. Esta série tinha potencial para se tornar em algo verdadeiramente inesquecível, algo capaz de elevar as qualidades humanas, mas acaba por falhar tudo isso. Claramente o seu escritor, Mark Millar, não consegue dar respostas, limita demasiado o alcance daquilo que está em causa, talvez com receio da falta de bagagem do seu público alvo. Falhou, porque tendo sido capaz de lançar-se numa jornada destas deveria ter sido capaz de a assumir até ao final.


Para quem quiser ler, não aconselho a leitura de todos os cento e tal livros, aconselho apenas os 7 livros principais, que podem ser encontrados num único tomo (TPB) Civil War. Se quiserem mais leiam também The Road to Civil War que dá detalhes sobre muitas das questões discutidas ao longo dos 7 livros. Para os fãs de cada personagem existem vários TPB que reúnem as histórias de cada herói relacionadas com o evento.

março 13, 2013

a Felicidade segundo o budista Matthieu Ricard

Matthieu Ricard tornou-se mundialmente conhecido depois de ter participado em vários testes com MRI (ressonância magnética) na Universidade de Wisconsin–Madison e se ter verificado que a sua serenidade ou capacidade para controlar as emoções estava completamente fora dos parâmetros normais. A partir daqui Ricard tornou-se conhecido como o "homem mais feliz do mundo". Isto é apenas um detalhe sobre a sua pessoa, saber mais sobre o seu passado, as suas origens e o que tem feito é muito mais impressionante e é isso que se pode descobrir no seu livro Happiness (2007).


Matthieu Ricard é hoje um monge budista e vive na zona dos Himalaias - entre a Índia, Nepal, Tibete e Butão - há mais de 40 anos. Ricard nasce num berço dedicado à arte e à filosofia, filho do reconhecido filósofo francês Jean-Francois Revel e da pintora Yahne Le Toumelin, o que lhe daria acesso às mais altas esferas intelectuais em França. Realiza toda uma primeira fase da sua vida dedicada à ciência terminando com um doutoramento em Genética Molecular no Instituto Pasteur em 1972. Terminado o doutoramento, larga tudo o que tem e que conseguiu fazer, e vai viver para o Nepal para se dedicar totalmente aos ensinamentos do budismo.


Claro que o facto de ter tantos contactos no ocidente, lhe permitiu ao longo de todos estes 40 anos realizar a ponte através de seminários, palestras e livros. Um dos mais interessantes livros que escreveu, foi feito a meias com o seu pai, The Monk and the Philosopher (1997). Um livro escrito a partir de uma dezena de conversas ocorridas entre ambos em Katmandu aquando duma visita do seu pai. No livro ambos discutem, e colocam em confronto as posições ocidente e oriente, a propósito da essência do ser humano. Outros livros foram escritos, entretanto mais testes foram realizados por alguns dos mais renomeados cientistas e autoridades no campo da psicologia cognitiva. E é aqui que chegamos ao cerne do livro.

Este livro fala-nos da Felicidade, mas não é um mero livro de auto-ajuda. Aqui procura-se entender o que é a felicidade, de que é feita, o que a constrói e o que a destrói. Para muitos este é um tópico banal sem interesse, e Ricard passa boa parte do livro a explicar a importância do tópico. Não vou detalhar aqui a importância, porque falei já disto no texto Acções para a Felicidade. Aliás como diz Ricard na sua TED,
"As a Frenchman, I must say that there are a lot of French intellectuals that think happiness is not at all interesting. I just wrote an essay on happiness, and there was a controversy. And someone wrote an article saying, "Don't impose on us the dirty work of happiness." "We don't care about being happy. We need to live with passion. We like the ups and downs of life. We like our suffering because it's so good when it ceases for a while."
Este texto demonstra muito claramente o entendimento que grande parte de nós tem sobre o que é a Felicidade, os altos e baixos, os momentos de sofrimento que depois de passarem conduzem ao que acreditamos serem os momentos de Felicidade. E o interessante é ver Ricard explicar, que esta ideia, está errada, porque não define felicidade, define apenas o prazer. Como explica Ricard, o prazer não é felicidade, no sentido em que este é limitado no tempo e se refere a um objeto ou lugar. O prazer consome-se. Eu adoro gelado, mas se tentar comer cinco Magnum de chocolate branco, o prazer irá transformar-se em nojo.

Neste sentido Ricard procura trabalhar a Felicidade como algo para além das meras sensações e emoções de prazer. Ricard aborda a felicidade como um estado interior de serenidade e preenchimento, um estado capaz de se ocupar de todas as emoções e sensações que possamos sentir, e nesse sentido capaz de controlar os nossos altos e baixos, mantendo-nos num estado de maior constância de bem-estar. Isto parece algo absurdo, porque na verdade a nossa interacção constante com o mundo impossibilita esta constância. Por outro lado o que Ricard defende, e essa é a essência deste seu livro, é que assim como podemos treinar 10 mil horas para ser um grande violinista, também podemos treinar para controlar as nossas emoções. Ao contrário do que acreditávamos há 20 anos atrás, o cérebro  não é uma matéria fixa e imutável, é antes maleável, podemos adaptar-nos e transformar as nossas capacidades. Na sua TED Ricard dá um óptimo exemplo desta busca interior, a propósito da visita do Dalai Lama a Portugal
"The Dalai Lama was once in Portugal, and there was a lot of construction going on everywhere. So one evening, he said, "Look, you are doing all these things, but isn't it nice, also, to build something within?" And he said, "Unless that -- even you get high-tech flat on the 100th floor of a super-modern and comfortable building, if you are deeply unhappy within, all you are going to look for is a window from which to jump." So now, at the opposite, we know a lot of people who, in very difficult circumstances, manage to keep serenity, inner strength, inner freedom, confidence."
Ao longo do livro Ricard ajuda-nos a construir uma nova ideia do Eu e do Meu, através do definição do Ego. Ajuda-nos a compreender que a essência do Ego como o construímos, está numa constante busca por conseguir tudo o que deseja a qualquer custo. A ideia do prazer, advém desta constante satisfação do nosso Ego. Nesse sentido deixamos de ser o Eu para estarmos constantemente centrados no Meu. Deixo dois belíssimos exemplos dados no livro, na página 84,
"A friend of mine had come to Nepal from Hong Kong to attend some teachings. Thousands of people had gathered and were jam-packed on the floor of our monastery's vast courtyard. As my friend was moving back and forth trying to seat herself a bit more comfortably, cross-legged on her cushion, someone punched her in the back. As she told me later: "I felt irritated for a whole hour. How could someone attending Buddhist teachings behave in such a rude and uncompassionate way toward me, who had come so far to receive these teachings! But after a while I realized that although my irritation had been long-lasting, the actual physical pain had faded quickly and had soon become imperceptible. The only thing that continued to hurt was my wounded ego! I had one minute of body pain and fifty-nine minutes of ego pain!" When we see the self as a mere concept and not as an autonomous entity that we must protect and satisfy at all costs, we react in completely different ways."
"Here is another example to illustrate our attachment to the idea of "mine." You are looking at a beautiful porcelain vase in a shopwindow when a clumsy salesman knocks it over. "What a shame! Such a lovely vase!" you sigh, and continue calmly on your way. On the other hand, if you had just bought that vase and had placed it proudly on the mantle, only to see it fall and smash to smithereens, you would cry out in horror, "My vase is broken!" and be deeply affected by the accident. The sole difference is the label "my" that you had stuck to the vase. This erroneous sense of a real and independent self is of course based on egocentricity, which persuades us that our own
fate is of greater value than that of others."
O que precisamos é de ser capazes de desligar do objecto externo, e olhar directamente para dentro, para o sentimento que nos acossa, para assim o controlar e evitar que este se auto-perpetue sobre a nossa consciência, contaminando todo o nosso ser e eliminado o bem-estar. E é a esta capacidade de auto-controlo cognitivo que Ricard refere como o aspecto que o treino pela meditação nos pode garantir. Ou seja,
"So the whole point of that is not, sort of, to make, like, a circus thing of showing exceptional beings who can jump, or whatever. It's more to say that mind training matters. That this is not just a luxury. This is not a supplementary vitamin for the soul. This is something that's going to determine the quality of every instant of our lives."
No fundo é um livro que nos dá a visão budista do mundo, dada a necessidade de estabelecer a ponte com o pensamento ocidental, fá-lo pela discussão da felicidade, um tema que se tornou bem visto na academia recentemente. Mas em certa medida é um livro mais de introdução ao budismo, do que de discussão sobre a ciência da felicidade. Para quem quiser mergulhar um pouco mais na discussão da Felicidade, pode ver os links no meu post anterior sobre o assunto, quem quiser avançar um pouco mais no budismo aconselho vivamente a leitura de O Livro Tibetano da Vida e da Morte (1992) de Sogyal Rinpoche. Entretanto se quiserem um acesso rápido ao conteúdo do livro, vejam a TED talk de Ricard de 2004, porque é um bom resumo do que podem encontrar no livro.

janeiro 26, 2013

Makers (2012) de Chris Anderson

Tenho sentimentos mistos sobre o novo livro de Anderson, Makers: The New Industrial Revolution (2012). De um ponto de vista sou um crente nos Makers, nos que fazem acontecer, na motivação intrínseca, na criatividade pessoal. Mas a partir de outro ponto de vista, não posso aceitar a ideia simplista de que vamos transformar todo o modelo industrial num modelo caseiro. Porque apesar de Chris Anderson saber e dizer mais do que uma vez no livro que estamos a falar de nichos e não de todo o espectro da vida social, muitos dos seus argumentos acabam por entrar em paradoxo. Essencialmente porque para afirmar algumas das coisas que afirma tem de partir da condição de que o mundo inteiro vai passar a funcionar neste modelo, o que joga por terra várias das suas previsões futuras. Apesar disto este é um livro que todos aqueles que estudam e se interessam pelo futuro do trabalho, pela tecnologia e pela criatividade devem ler, ainda que com as devidas cautelas.


Chris Anderson foi editor da Wired ao longo de toda a primeira década de 2000 tendo saído no final de 2012 para se dedicar à gestão da sua empresa 3DRobotics, que usa aqui como um dos exemplos base para lançar a conceptualização de todo este livro. Depois de nos ter trazido dois livros imensamente discutidos, The Long Tail: Why the Future of Business Is Selling Less of More (2006) e Free: The Future of a Radical Price (2009) Anderson procura em Makers evoluir as suas ideias do virtual para o real, aplicando exatamente os mesmos princípios que desenhou nos dois livros anteriores: "a cauda longa da distribuição online" e o "modelo de criação grátis". Gostei de ambos os seus livros anteriores que tal como este apresentam como objectivo primário a previsão do futuro dos impactos e efeitos da tecnologia. Mas tanto esses como este sofrem do facto de se apresentarem mais como extensos artigos de revista, baseados em pequenas histórias, do que de estudos em profundidade, tendo em conta tratarem assuntos de grande complexidade.

Em Makers Anderson apresenta-nos o impacto da internet sobre a mudança que está a acontecer dos bits para os átomos. Essencialmente demonstra como os processos de manufactura à escala global estão a mudar drasticamente os modos de produção de bens, e como isso está a produzir impactos acentuados sobre o empreendedorismo, a inovação e a criatividade. O centro da sua discussão baseia-se sobre o aparecimento de duas máquinas - impressão 3d e corte a laser – e de dois modelos de produção/distribuição – conhecimento aberto e crowdfunding. Com estes quatro elementos Chris Anderson assume que é possível mudar todo o modelo industrial, e assim construir a tal Nova Revolução Industrial.

Peças criadas com uma impressora 3d

Assim o que Anderson nos diz é que estes quatro elementos serão capazes de transformar a indústria de produção em massa, que custa milhões e serve milhões, numa nova indústria que produz produtos com supostamente a mesma qualidade dos produtos de massa, mas com as vantagens de poderem ser produzidos em pequenas quantidades (1 a 10 mil) e logo altamente personalizáveis. Deste modo esta nova revolução responderá duplamente às necessidades das pessoas: por um lado permitirá que todos possam construir as suas próprias "coisas" (DIY); por outro permitirá construir as "coisas" segundo os desejos individuais de cada um.

Exemplo dado no livro: Armas da 2ª Guerra Mundial criadas pela BrickArms para preencher o vazio deixado pela LEGO que se recusa a criar armamento contemporâneo para as suas colecções.

O problema que vejo aqui é exatamente o facto de falarmos de “coisas”. Na sua generalidade aquilo que foi apresentado por Anderson ao longo de todo o livro não passa de pequenos exemplos de bens supérfluos, que realmente preenchem buracos deixados vagos pela grande produção, mas que a sua existência per se raramente produz alterações com impacto no mundo, o nas nossas vidas. Aliás ao longo do livro e à medida que vamos ouvindo os exemplos, vou ficando com a ideia que esta nova comunidade de que nos fala Anderson, já existe, aliás sempre existiu, e chama-se de comunidade de inventores. São pessoas que se dedicam a bricolar com ferramentas e tecnologia e dessa forma vão encontrando novas soluções para pequenos problemas. Sempre tivemos comunidades criadas por essas pessoas, e além disso existem empresas que já se especializaram na comercialização dessas ideias como por exemplo a DMail, ou aqueles canais de vendas na TV.

Mas não podemos confundir, como Anderson faz aqui, estes modos de invenção criativa com a investigação científica que é necessária realizar para se poder chegar a processos e modelos capazes de dar origem a um Airbus A380, a uma placa gráfica de alto desempenho, a um motor de combustão eléctrica, etc. Aliás tem até uma certa piada ver Anderson assumir que como os carros estão a deixar de ser mecânicos e estão a passar a funcionar por via eléctrica e digital, estes serão muito rapidamente tomados em mãos pelos novos makers!!! Isto são ideias peregrinas e até perigosas, porque assumem que o desenvolvimento e o engenho humano têm limites. Ou seja que depois de desenvolvido o carro eléctrico, já não vamos mais precisar de ciência para os continuar a melhorar e a evoluir, apenas será preciso trabalhar em cima dos modelos já desenvolvidos realizando pequenas modificações ou pequenos incrementos.

Examine-se a complexidade do motor de um avião a jacto.

Eu sei que não é bem isto que Anderson quer dizer, mas é esse caminho que trilha, quando afirma o fim da grande indústria baseada na colaboração muito estreita e responsável de equipas altamente especializadas para a substituir por comunidades online que dão feedback quando podem, ou quando lhes interessa. Quando afirma o fim da proteção de ideias (conhecimento aberto) e impede que estas possam pagar o esforço de quem tem de parar para pensar. Quando afirma a produção apenas em função daquilo que as multidões estão interessadas (crowdfunding) e esquece que a maior parte da tecnologia que hoje suporta a sociedade não é sequer compreendida pelas multidões. Quando afirma que vamos buscar empregos à China através da automação, e esquece que os que são criados cá, são uma ínfima parte das nossas necessidades, uma vez que usamos robôs porque ficam mais baratos do que a mão de obra na China.

Apesar de toda esta minha análise crítica, julgo que existe algo em que Anderson tem razão, e é sobre os novos modos de vida e trabalho do futuro. Estas tecnologias existem, estão aí e não vão parar o seu processo natural de aumento de automação. Ou seja, com a ajuda da robótica cada vez mais será possível empregar menos pessoas porque 1 pessoa poderá fazer o trabalho de 5, 10 ou 20. Isto aumenta enormemente a produtividade das empresas, a produtividade de um país. Aliás acredito que quando comparamos a produtividade nacional com a de países mais desenvolvidos, o factor essencial que diferencia, não é propriamente a qualidade dos seus trabalhadores, embora a Educação pese bastante, mas pesa ainda mais a quantidade de tecnologia e automação introduzida nas indústrias dos países.

Mas mais robótica implica menos empregos, não? Não propriamente, se conseguirmos fazer evoluir a legislação laboral e fazê-la acompanhar a evolução tecnológica. Não podemos continuar com jornadas de 8 horas. Não é aceitável de um ponto de vista social, que uma empresa empregue 1/4 das pessoas, mas realize lucros 4 vezes superiores. Aliás estou em crer que muito da distorção provocada nos últimos 50 anos entre a classe média e o 1% de milionários se deve exatamente a isto. Nesse sentido a solução está à vista, vai requerer políticos fortes para o fazer, e passa por reduzir a jornada de 8 para 4 horas máximas. Poderemos empregar mais do dobro das pessoas por cada empresa/instituição. A empresa continuará a ser lucrativa, as pessoas continuarão a ter um meio de subsistência. Mas a pergunta que se coloca é, o que farão as pessoas com tanto tempo livre?

A resposta está exatamente neste livro de Anderson, as pessoas passarão a poder construir coisas fora do tempo em que estão no seu emprego diário e chato. Sim porque os empregos chatos e stressantes não deixarão de existir. Ao contrário do que por vezes Anderson parece acreditar, vamos continuar a precisar de canalizadores, de lixeiros, de limpezas, de manutenção de máquinas, de guardas prisionais assim como vamos continuar a precisar de juízes, de professores e formadores, de enfermeiros e assistentes na doença, velhice e deficiência, etc. O mundo está cheio de necessidades que só o ser humano consegue cumprir. E quando a tecnologia evolui, esta não pode ser vista como algo mau para o ser humano. Ela é boa para nós, a única coisa que precisamos de fazer é garantir que exista regulação capaz de impedir grupos restritos de se aproveitarem do avanço desta para ignorar a restante população.

Com a maior parte do tempo por nossa conta, todos poderemos fazer aquilo que nos dá verdadeiro prazer, que nos emociona, que nos garante autoestima, que alimenta a nossa vontade de viver dia após dia. Porque só a condição de Maker, seja através de um processo de criação material ou de criação social, é capaz de nos garantir os meios para atingir o equilíbrio na felicidade.


Artigos relacionados:

janeiro 22, 2013

A mente como autobiografia

Fiquei um pouco desapontado com Self Comes to Mind. Damásio é um cientista brilhante e bom comunicador, mas aqui repete-se. Se já leram seus livros anteriores, principalmente O Erro de Descartes e O Sentimento de Si, vão sentir que se avança muito pouco. Se quiserem ficar por dentro do pensamento de Damásio e de uma forma brilhante, aconselho antes a sua TED talk do ano passado. Naqueles 18 minutos estão condensados todos os avanços teóricos que ele desenvolveu sobre a consciência ao longo dos últimos 15 anos.


Em Self Comes to Mind Damásio desenvolve um modelo da experiência da consciência que assenta numa ideia de consciência autobiográfica constituída por todas as nossas memórias somaticamente marcadas, que nos permitem recordar o passado e projectar o futuro. Algo em que tenho vindo a reflectir também nomeadamente quando pensamos nos efeitos do Alzheimer e que aqui falei a propósito do livro Ainda Alice de Lisa Genova. Apesar de interessante, o livro apresenta o clássico problema dos livros académicos, que julgo que ele tinha superado em parte ao longo dos seus livros, que é a quantidade de detalhe técnico. Não é mau pelo detalhe em si, mas porque se repete, e passamos folhas atrás de folhas a ler detalhes neuro-técnicos que nada acrescentam às conceptualizções teóricas.

Quando este livro foi lançado Damásio fez uma série de sete vídeos que explicam os conceitos gerais por detrás do livro. Podem ver todos no YouTube, desses escolhi para deixar aqui, aquele que para mim é o centro conceptual deste livro What Qualities Define the Self?



Links de interesse
A consciência de Damásio, o Eu ou a Alma, in Virtual Illusion

novembro 29, 2012

Empatia, colaboração e cooperação

Acabei de ler The Age of Empathy de Frans de Waal, que viagem magnífica. Trabalho com o conceito da Empatia desde o início da década passada, e vi o evoluir da aceitação do conceito pela academia ao longo dos últimos anos, ler tudo isto foi um reforçar de muitas convicções. Não conhecia ainda Frans de Waal que foi eleito em 2007 um dos 100 cientistas a seguir pela Time. O seu trabalho enquanto biólogo, primatologista e etologista levou-o a desenvolver estudos comparativos entre os animais, só mamíferos, e o ser humano, e a procurar compreender que características animais se comparam connosco. De Waal publicou vários livros mais ligados à primatologia e etologia, mas apareceu no ano passado numa TED muito partilhada, Moral Behavior in Animals, e que praticamente resume o conteúdo de The Age of Empathy.


Neste livro e nesta Ted, De Waal fala da empatia, mas abre a sua aplicabilidade, ao comparar a empatia animal com a do ser humano, coloca o dedo na ferida aberta pelo capitalismo em 2007. De Waal recua lá atrás para nos dizer que Charles Darwin não nos deixou apenas o legado da Selecção Natural, demonstrativo do vigor competitivo. Depois de escrever a Origem das Espécies, escreveu The Expression of the Emotions in Man and Animals (1872), aonde explicava em muito maior detalhe como se processava a comunicação interpessoal e social tanto nos animais como nos humanos através da emoção. Como diz De Waal, “biology is usually called upon to justify a society based on selfish principles, but we should never forget that it has also produced the glue that holds communities together” (2009:7). O problema é que a ciência não estava ainda preparada para o estudo das emoções no tempo de Darwin. Aliás como o De Waal vai sempre dizendo ao longo deste livro, a academia sempre foi reticente em aceitar a possibilidade de equiparar as características animais com as dos humanos. Em termos cognitivos, emocionais, comportamentais, ou de consciência. Não sabemos se por forças religiosas, ou se por simples obstinação antropocêntrica, mas ainda hoje persistem tiques na academia e fora dela nesse sentido.

Ted Talk Moral Behavior in Animals (2012) de Frans de Waal

Aliás um dos melhores documentários que vi até hoje, e que continua a ter muito pouca divulgação, chama-se Why Dogs Smile and Chimpanzees Cry (1999). É uma obra poderosa, capaz de demover qualquer antropocentrista. Ao longo de hora meia somos levados a compreender como entre o homem e os restantes mamíferos, existem tão poucas diferenças. Mas diga-se que o grande responsável por se ter colocado as Ciências Afectivas no mesmo patamar das restantes ciências na academia foi António Damásio, e o seu O Erro de Descartes (1994). Com ele foi possível começar a aceitar-se no plano científico o conceito de empatia sem se ser rotulado de fantasista, ou pior. Continuamos a trabalhar para demonstrar a sua cientificidade, mas são cada vez mais as áreas que abraçam o conceito, desde a Psicologia à Biologia. E se no campo da criatividade antes se falava em Desejo e Projecção, conceitos caros à Psicanálise, hoje assumimos a Empatia como o grande conceito que define de forma ampla a relação entre os seres, entre os seres e os animais, e entre os seres e os objectos ou obras.

Pode ser visto no Daily Motion, Parte 1 e Parte 2

A Empatia começou pelo simples significado de senso comum - “colocar-se no lugar do outro” e evoluiu entretanto. Zillmann trabalhou a conceptualização no campo da Psicologia dos Media definindo a Empatia como um estado no qual, não apenas “sentimos como o outro, mas sentimos pelo outro”. No campo da neurociência em 1998 Gallesse e Goldman descobriam os chamados neurónios-espelho que permitiram avançar o nosso conhecimento sobre os processos neurológicos por detrás da empatia. Os neurónios-espelho, são responsáveis pela nossa atividade de mímica do outro, e de certo modo explicam processos afectivos mais básicos como o Contágio Emocional. Baron-Cohen (2003) pelo seu lado dividiu a empatia em duas componentes - cognitiva e afectiva. A primeira define a capacidade para “prever o comportamento ou estado mental de outra pessoa”, enquanto a componente afectiva define a “resposta emocional apropriada ao estado emocional da outra pessoa”. Posto tudo isto eu dizia no meu livro Emoções Interactivas, que
"o processo de empatia é um processo complexo, que está intimamente relacionado com as teorias da mente ou da simulação mental sobre a nossa capacidade para construir um modelo da mente do outro seja por meio da simulação ou imaginação, que potencie a competência para antecipar as acções do outro e, desse modo, não só perceber e sentir o outro, mas também agir, ajustando-se emocionalmente ao outro. É um dos pilares fortes da interacção social..." (Zagalo, 2009:62)
De Waal neste seu livro leva a definição um pouco mais longe, porque estabelece uma relação mais directa entre a imagem mental de empatia e a nossa acção fisiológica. Partindo de tudo o que elenquei aqui antes, desde o senso comum aos neurónios-espelho, De Waal diz,
“empathy and sympathy start not in the higher regions of imagination, or the ability to consciously reconstruct how we would feel if we were in someone else’s situation. It began much simpler, with the synchronization of bodies: running when others run, laughing when others laugh, crying when others cry, or yawning when others yawn.” (De Waal, 2009:51)
A "Sincronia dos Corpos", é para mim o conceito mais importante apresentado neste livro. Um processo mecânico, sem complexidades, fruto da evolução das espécies, e através do qual conseguimos ao longo de milénios, desenvolver sistemas sociais de tão grande complexidade. Aliás Rizzolati num artigo de 2004 vai mais longe elevando a importância dos processos de gregariedade, à condição básica do nosso sistema de aprendizagem,
“Se queremos sobreviver, precisamos de perceber as acções dos outros. Para além disso, sem compreender a acção, a organização social é impossível. No caso dos humanos, existe uma outra faculdade que depende da observação das acções dos outros: aprendendo imitando. Diferentemente da maior parte das espécies, nós somos capazes de aprender imitando, e esta faculdade está na base da cultura humana” (Rizzolatti e Craighero, 2004).
Esta afirmação de Rizzolatti é interessante duplamente, porque se é verdade que somos o que somos, porque aprendemos imitando, e evoluímos imitando, não é menos verdade que os animais não sejam capazes de o fazer. E esse acaba por ser uma das grande discussões presentes neste livro de De Waal. Demonstrar que eles têm consciência de si, e que eles conseguem aprender uns com os outros, que eles conseguem sentir empatia. O que eles têm, em princípio, é um processo de memorização menos sofisticado, que impossibilita que o conhecimento se acumule, e desse modo se possa transformar e evoluir. No fundo o que faz de nós seres ligeiramente diferentes dos animais, é a nossa capacidade para exercitar continuamente o método experimental, procurar antever o “depois”, através de tudo aquilo que sabemos do “antes”.


Mas o mais importante é que tudo isto demonstra que o discurso sobre a evolução das espécies tem sido erradamente associado à competitivdade e agressividade. Percebe-se daqui que se somos hoje a espécie mais evoluída do planeta é graças ao enorme sentido colaborativo e de partilha que conseguimos estabelecer na interacção social. Tem sido através deste sentido, que cria rede social, que temos conseguido evoluir o conhecimento de nós próprios. Mas se isto surpreende quem defende teorias económicas do relacionamento social, não surpreende quem estuda a psicologia social desde há mais de 50 anos.

O mesmo experimento de Frans de Waal com os mesmos resultados mas do documentário Capuchins: The Monkey Puzzle

Não é de agora que estabelecemos a forma como o ser mamífero funciona por oposição ao réptil. A essência está presente desde a primeira hora em que nascemos. Sem uma vinculação forte entre mãe e filho, a possibilidade do bebé sobreviver é muito reduzida. Passamos a infância toda dependentes dos seres mais velhos, que nos levam comida a boca e dão carinho. Dos estudos realizados há mais de meio de século, em tempos perturbados, percebemos que o bebé não definha apenas por falta de comida, mas também por falta de contacto humano. Sem o contacto humano, o nosso cérebro não constrói as sinapses necessárias para poder compreender o outro, e emocionar-se com o outro, os fundamentos da empatia não se constroem tornando-se num ser associal. A empatia é assim, como diz De Waal, a cola que nos mantém juntos, e nesse sentido é uma das característica que a Selecção Natural tudo tem feito para preservar.