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dezembro 06, 2015

"Witcher 3": indústrias criativas e escrita de narrativa interativa

Estou a 2/3 da história principal de “The Witcher 3: Wild Hunt”, mas posso dizer desde que já que estou apaixonado pela sua escrita, não apenas pela profundidade psicológica imprimida à história, mas pelo seu discurso, a forma ou o "como", a história está a ser contada, é impressionante. Jogando Witcher 3 podemos sentir como todo o universo narrativo nos videojogos evoluiu ao longo dos últimos 20 anos, não apenas a sua construção, mas também nas expectativas que temos face a estes. Witcher 3 não está apenas interessado em criar jogo ou interatividade, em criar uma relação sensorial, existe uma vontade enraizada na equipa de criadores de desenvolver algo capaz de tocar o imaginário semântico dos jogadores, de criar nestes, novas formas de ver o mundo, nomeadamente de aprender mais sobre o modo como nos relacionamos enquanto espécie. Witcher 3 pode até partir de um universo de pura fantasia, mas fá-lo com profundas preocupações humanas, e foi por isso que procurei saber mais sobre quem estava por detrás de tudo isto, tendo encontrado na rede uma belíssima entrevista com Jakub Szamałek, um dos escritores principais de Witcher 3, e da qual darei conta nas próximas linhas.



Antes de entrar nas questões relacionadas com o jogo em si, queria dar conta do contexto, que se por um lado parece estranho que um jogo desta dimensão, em termos financeiros (o custo de produção rondou os 75 milhões de dólares), surja num país do leste da Europa, a Polónia, é provável que isso seja aquilo que justifica que tenhamos aqui algo bastante diferente, com um posicionamento que vai buscar inspiração fora de Hollywood, procurando antes beber nos clássicos da literatura europeia.
We show people in Poland that it’s a serious business, that you can produce works of culture that are a hit globally… this is something that up until now has been very difficult, there are a lot of books and films that are written or produced in Eastern Europe but they usually don’t become terribly popular in the west. I think video games are the only medium in which we have been able to produce something that has been appreciated on a global scale. It’s very satisfying.”
Mas se isto é possível a partir da Polónia não é por acaso, e as suas razões devem servir na reflexão da indústria portuguesa de videojogos, não apenas esta, mas de toda a nossa indústria criativa. Porque as razões não passam pelo clima, como ainda há pouco tempo se discutia numa entrevista da GameReactor a José Teixeira que trabalhou nos Efeitos Visuais de Witcher 3, embora possa ter a sua influência, mas assenta essencialmente na formação e cultura da massa cinzenta que suporta estas indústrias. Veja-se o caso do responsável pela escrita do jogo,
“Jakub is a former Oxbridge student with a PhD in ‘Ancient Mediterranean and Near Eastern Studies and Archaeology’. If that doesn’t sound impressive enough, he has authored two (soon to be three I hear) critically acclaimed novels, while also writing for developer CD Projekt Red on a small project called The Witcher 3: Wild Hunt. With all of those credentials under his belt you could suppose that he’d be doing something like lecturing at universities or researching the origins of mankind. The reality is that he predominantly writes for video games — a pretty great profession if you ask me.”
Desta frase ressaltam dois elementos de grande relevância para o caso português: a necessidade de formação; e sua valorização/aceitação. Ou seja, trabalhar nas indústrias criativas em 2015 requer das mais altas competências algumas vez exigidas por alguma indústria, além da investigação científica. Não basta jogar muitos jogos, consumir muito produto criativo, embora ajude, assim como não basta paixão e querer fazer, embora seja fundamental. É necessária toda uma estrutura de base capaz de potenciar, catapultar, tudo o que se consome juntamente com toda a vontade de fazer, para se poder ir verdadeiramente além. Não nos podemos esquecer que estamos competir a um nível global, e não com os nossos vizinhos de bairro.

Temos que nos deixar de frases bacocas como — “Portugal tem licenciados a mais” ou “somos um país de Drs” — fundamentadas apenas no preconceito, sem qualquer suporte empírico, e que apenas servem para nos atirar mais para o fundo no cenário global. Em 2015 já passou tempo suficiente para termos uma democracia amadurecida, para nos deixarmos de tiques salazarentos, e assumir que para enfrentar o mundo em que vivemos, o ponto de partida começa numa simples licenciatura. Que se queremos verdadeiramente enveredar pelo desenvolvimento de indústrias criativas como solução para a nossa falta de matérias primas, teremos de investir na educação, não apenas financeiramente, mas essencialmente em vontade de aprender, de aprofundar o real, ser capaz de abstrair mais e mais camadas da sua estrutura constituinte.

Dito isto, que me parece relevante, e não é novo para quem segue este blog, tenho vindo a falar disto com outros exemplos, como a clássica Escandinávia ou a Coreia do Sul e as suas indústrias electrónica e automóvel (2011, 2013, 2013) ou até no caso por exemplo da artista nacional Capicua. A Polónia é apenas mais um exemplo, é verdade que é um país muito maior que o nosso, podíamos alegar fatores de escala, mas estaríamos apenas a iludir-nos, já que no caso da indústria de videojogos, a escala nunca pôde depender do país de origem. Verdade que um país maior gera maior fricção criativa, mas cabe-nos a nós encontrar a melhor forma de potenciar essa fricção, por exemplo tendo menos grandes cidades, concentrando mais os esforços nas que temos.

E agora o sumo da entrevista da Forerunner a Jakub Szamałek. Podem ver o vídeo realizado ou ler desde já os pontos que me pareceram mais relevantes na conversa, com algumas considerações sobre as mesmas.

Entrevista com Jakub Szamałek, escritor principal de Witcher 3


Sobre a complexidade da escrita
A escrita nos jogos é completamente diferente da escrita para um livro, desde logo por duas razões: a repetição e a avaliação. Ou seja, os personagens podem interagir repetidamente com o jogador, gerando repetição de um diálogo ou monólogo que pode perder todo o seu efeito dramático, enquanto num “book you don’t have to worry about how to make a repetitive conversation interesting”. Por outro lado, como o texto segue em estruturas em árvore, é necessário testar todos os caminhos possíveis e analisar se os seus elementos constituintes continuam a fazer sentido depois das múltiplas interações permitidas.

Sobre a agência e criação de personagens credíveis em Witcher 3
Os personagens com quem interagimos, não são adereços do mundo de jogo, todos eles possuem os seus objetivos e motivações intrínsecas, o que faz com que se tornem sujeitos, vão além da caracterização gráfica. O objetivo, como descreve Jakub passa por eliminar aquela sensação estranha que temos muitas vezes nos jogos, de que os personagens estão ali apenas para debitar informação, de forma a realizar a progressão da narrativa.

Acaba sendo desta vontade dos criadores que emana uma outra característica menos positiva, que por vezes surge mais acentuada: a constante necessidade de dar algo em troca de algo. Ou seja, sempre que vamos falar com alguém que pode ter algo que nos interessa, já sabemos que vamos ter de proceder a uma troca de favores, o que se torna em si repetitivo do ponto de vista da interação e escrita. Contudo, nem sempre é visível este efeito, já que o guião não se limita a este ciclo de interação com o jogador. Ou seja, existe desde logo uma preocupação de desenhar as trocas por via de verdadeiras necessidades e preocupações dos personagens, mas o que garante a envolvência assenta no modo como os personagens tomam conta da relação connosco e procuram, em diversos ciclos interativos, ganhar a nossa confiança e obter de nós o que não estávamos inicialmente preparados para dar. No fundo temos uma escrita profundamente entrosada graças ao desenho de ciclos de conversação, dotados de acessos participativos ou de interação pelo jogador, em que as nossas escolhas no diálogo e ações vão influenciando os personagens e a sua relação connosco, servindo assim um aprofundamento da nossa relação com estes, e por sua vez com todo o universo de jogo. Falamos essencialmente de agência, da consequencialidade da nossa presença naquele mundo.
“It’s very gratifying to see how people get invested in the game, the other day I saw I giant thread on Reddit about a quest that I wrote and people were discussing what they did and why they did it… something that I think is unique to video games is that people identify more strongly with characters because they assume the role of that character while they are playing. The decisions that you face in a game touch you more profoundly than choices you read about in a book for instance; in a video game it’s more personal to you.”
O mais interessante que Jakub nos diz sobre tudo isto é o quão barato é na verdade construir todo este sentimento de agência, tudo aquilo que os jogadores verdadeiramente procuram extrair de um jogo está ao alcance de uma simples caneta e papel. Basta saber ativar a imaginação dos jogadores,  o que claramente requer, como diz Jakub, “competência na escrita”, e que se pode ver em abundância em Witcher 3, mas que ainda se vai vendo pouco no mundo dos videojogos, o que facilmente se percebe, já que uma grande parte das pessoas que está na indústria domina muito pouco a componente da escrita. Aliás basta recordar os tempos áureos dos videojogos, que o entrevistador aqui relembra, com Carmack a lançar uma das mais ridículas frases de sempre do meio, mas que tanto sentido fazia e continuou a fazer durante muitos anos depois: “Story in a game is like story in a porn movie. It’s expected to be there, but it’s not that important”. Como tudo mudou, e em tão pouco tempo.



Sobre a não-linearidade e multilinearidade
Desde logo Witcher 3 apresenta um problema que poucos outros videojogos ou projetos de narrativa interativa apresentaram até agora, uma gigantesca dimensão de estrutura de eventos, algo provavelmente apenas comparável com as séries de televisão e telenovelas. A estrutura central, a chamada “main quest”, é enorme, mas as “secondary quests”, que se revelam aqui ao contrário da grande maioria dos outros jogos, partes integrantes da narrativa central, ao serem dotadas de consequencialidade bidireccional, tornam todo o jogo insanamente gigante. Como diz Jakub, o desenho dos diálogos acaba por dar origem a “massive flowcharts e branching trees”, o que eleva a complexidade do que está a ser feito em Witcher 3 a um patamar que vai muito além da mera boa escrita, sim tem de ser boa, mas tem de existir todo um trabalho de lógica e racionalidade na gestão do sistema que dá estrutura a tudo o que vemos no ecrã. Ou seja, não se trata de um simples trabalho imaginativo, tudo isto assume uma complexidade de abstracionamento que exige dos criadores elevadas competências.

Não deixa de me impressionar a quantidade de personagens e diálogos que se podem encontrar ao longo do mundo de jogo fora da narrativa principal, mas que se interligam perfeitamente com esta, mais ainda quando percebemos que por não serem centrais, serão acedidos por uma minoria de jogadores, e no entanto não deixam de apresentar um enorme cuidado no seu desenho.



Sobre a história e tema
Como disse na abertura deste texto, e apesar da entrevista com Jakub versar mais sobre o discurso e forma, Witcher 3 não deixa de nos impressionar profundamente em termos de história, nomeadamente nos vários temas chamados à discussão, mais ainda quando sabemos que o território de Witcher 3 não deveria ir além da fantasia. Assim temos que Witcher 3 é muito mais do que bruxos e monstros, poções e alquimias, aliás arrisco mesmo a dizer que a contrário da restante fantasia, tudo isso é aqui apenas decorativo. O cerne de Witcher 3 acaba por emergir das pequenas histórias profundamente humanas que vamos desvelando ao longo da nossa viagem pelo seu território fantástico. Ainda tenho de finalizar o jogo para chegar à sua essência, assim espero, mas encontrar e interagir ao longo destes 2/3 com — personagens vítimas de violência doméstica, famílias destroçadas pelos efeitos da guerra, abusos de poder, suicídios por amor, fanatismos religiosos, abortos espontâneos ou discriminação por homosexualidade — tudo tratado com imenso cuidado, detalhe e enorme credibilidade narrativa é para além de inovador, profundamente inspirador no alimentar do sonho de tudo aquilo que este meio ainda tem para nos oferecer.


Ler mais
Videojogo do Ano [AAA:2015] - "The Witcher 3: Wild Hunt",  VI, 2015

novembro 01, 2015

"Her Story" (2015)

Na semana passada foram anunciados os vencedores do IndieCade, com o grande prémio a ser conquistado por um dos mais interessantes videojogos deste ano "Her Story" de Sam Barlow, ao que se juntou o interessantíssimo facto, da entrega do prémio carreira a Brenda Laurel. A leitura da lista de premiados gerou impacto pela conexão entre os dois prémios o que me levou de imediato a dedicar-lhes a minha coluna no IGN: "A Narrativa nos Indies".


"Her Story" é uma viagem no tempo, mas e por isso mesmo mesmo é uma consagração de algo que pensávamos perdido no tempo. Usando os rudimentos da linguagem interativa dos anos 1990, Barlow apresenta um artefacto que consegue ir muito para além de tudo o que conhecíamos assim caracterizado, consegue agarrar a nossa atenção e emocionar a nossa experiência. Na verdade só a superfície é dos anos 1990, por baixo temos toda uma lógica e algoritmia a que não tínhamos ainda chegado noutros tempos, por isso acabamos sendo apanhados totalmente desprevenidos, como que enganados pelas inferências imediatas que vamos realizando ao entrar no jogo. Não posso deixar de agradecer ao Carlos Mendes que teve a enorme amabilidade de me oferecer uma chave para o jogo em junho, assim que saiu.

Brenda Laurel no IndieCade 2015 recebendo o Trailblazer Award

Brenda Laurel é nada menos que a musa inspiradora de todo o meu interesse pela Interatividade. Nos anos 1990 o meu mundo girava em redor da arte cinematográfica. Foi o contacto com Laurel e o seu livro "Computers as Theatre" que me fizeram mudar a agulha dos interesses, nomeadamente fizeram perceber que existia ali algo relevante que precisava desesperadamente de ser estudado e aprofundado. Passados 20 anos, ainda por cá continuo, e ela também.

setembro 11, 2015

“V8ORS – Flying Rat” (2015)

Os últimos dois anos têm sido muito felizes para a produção independente de videojogos nacionais, são imensos os trabalhos que têm surgido, não sendo já fácil acompanhar tudo e todos. Hoje trago aqui este novo jogo nacional, porque tive o prazer de acompanhar partes do seu desenvolvimento, o que de certo modo fez com que acabasse por lhe ganhar um carinho extra. "V80RS", ou aviadores, foi criado por uma pequena equipa de Aveiro, liderada por Deivis Tavares, mentor da ideia e responsável pela arte, uma das áreas em que jogo mais se destaca. Em poucos segundos, "V80RS" consegue despertar memórias nostálgicas de múltiplos jogos de arcada dos anos 1980 e garantir a nossa ânsia pela sensação de progressão.




Da oportunidade que tive de acompanhar o desenvolvimento fui agradavelmente surpreendido com a liderança e gestão do projecto realizada pelo Deivis que optou, desde o início, por uma abordagem bastante simples do shoot 'em up, e que apesar de ter uma arte bastante enriquecida que facilmente se prestaria a jogabilidades mais ricas e complexas, soube manter o controlo da ambição e o foco no projecto final. Deste modo “V8ORS” pode até parecer oferecer pouco para os dias que correm, mas se o faz não é por acaso, fruto de uma estratégia que assenta numa primeira fase free-to-play, que pode vir a ser ampliada dependendo da aceitação do público.

Na jogabilidade temos os elementos mais comuns do shoot 'em up muito bem balanceados, com a dificuldade que enfrentamos a progredir a bom ritmo, com a evolução em agressividade das naves a darem o mote do incremente de dificuldade, assim como os upgrades que a nossa nave pode ir ganhando a garantirem a possibilidade de nos mantermos em jogo. O jogo torna-se rapidamente viciante e aos poucos vamos percebendo que existe mais para oferecer além da superfície da jogabilidade, como as manobras que a nossa nave pode executar garantindo evasões mais eficazes. Por outro lado, a componente publicitária foi implementada de forma muito inteligente na manutenção da progressão, já que só tendo uma vida estamos sempre a recomeçar do zero a não ser que aceitemos ver um spot publicitário.





Voltando à arte, é ela que faz deste pequeno jogo algo distinto, uma espécie de pequena jóia que dá vontade de tocar e jogar, contribuindo fortemente para o sentimento que emana de toda experiência de jogo. A opção por tudo ser desenhado em 3d low-poly, mas dotado de excelentes contrastes de cor, fornece um tom peculiar ao ambiente de jogo, gerando um ambiente fresco, solto e leve, muito em contra-corrente com muito do que se vai vendo. Ainda dentro da arte, a componente de animação está muito bem conseguida, com a nave a sofrer latência na movimentação garantindo todo um realismo extra à nossa ação, assim como toda uma gratificação visual por via das manobras de evasão que podemos executar.

Vídeo do gameplay de "V80RS"

O pior, só mesmo estarmos limitados a jogar em Android, ficamos à espera da versão iOS. Podem seguir o jogo no Facebook, ou obter mais informações na sua página oficial.

janeiro 11, 2015

“Valiant Hearts", dramas da I Grande Guerra

Valiant Hearts - The Great War” terminado, senti um forte arrepio com o adeus "sonoro" de Emile, tocou-me e emocionou-me, um verdadeiro “coração valente”… Não é um jogo que exija de nós, usa e abusa de mecânicas mais do que conhecidas, mas fá-lo porque está convicto de que aquilo que importa é contar a história que tem para contar, e fá-lo muitíssimo bem.





Valiant Hearts” é um dos pequenos videojogos desenvolvidos pelo pequeno estúdio da Ubisoft em Montpellier. Grafismo 2d e jogabilidade 2d, mas com grande qualidade gráfica, grande qualidade musical, e grande qualidade no storytelling. Entramos no jogo com a sensação de que é apenas um pequeno jogo com pouco para mostrar, puzzles de acção visual em sidescroller com variação de profundidade de campo, parece ter tão pouco para nos impressionar, mas à medida que vamos entrando no jogo, vamos percebendo que a sua essência não está nos puzzles, nem nos “quick time events”, mas está na história rica de drama, está nas personagens ricas de humanidade.

Valiant Hearts” vem de encontro a algo que escrevi há já muitos anos, quando queremos contar uma grande história, quando queremos agarrar o jogador emocionalmente pela narrativa, a componente de jogo tem de se pautar pelo uso de mecânicas de alguma forma standard, que não obriguem o jogador a grandes processos de racionalização da sua interacção. Ora é exactamente isto que temos aqui.

Trailer "Valiant Hearts - The Great War" (2014)

Acima de tudo “Valiant Hearts” é um magnífico videojogo sobre a I Grande Guerra, vale por tudo aquilo que tem para dizer, mostra a guerra sem terror, mas não esquece o drama que é fortemente enriquecido por um dossier de imagens e histórias reais que podemos ir coleccionando através de pistas obtidas no jogo.

dezembro 27, 2014

IGN: comentário à violência em GTA

Esta semana publiquei o último texto do ano no IGN, "A Liberdade da Violência", tendo escolhido para tal o tema da violência e os problemas que os videojogos têm apresentado no trato do mesmo. Este é um assunto imensamente problemático porque: de um lado temos os opositores dos videojogos que usam e abusam do tema para maltratar o meio; do outro lado temos os jogadores que se sentem atacados e reagem em defesa, mesmo que seja indefensável. Por isso mesmo acaba sendo um tema que evito, porque não gosto de polarizações, se o fiz foi apenas porque desmultipliquei o foco do assunto, introduzindo três casos para análise: retirada da versão remasterizada de "GTA V" de algumas lojas; o trailer de "Hatred"; e a apresentação de um jogo de guerra pela UNICEF.


Apesar destas minhas preocupações, a polémica acabou por surgir nos comentários do IGN. Normalmente não respondo, mais ainda quando os comentários surgem em tom desadequado, no entanto acabei por responder, porque entendi que podia adicionar algo mais ao que tinha dito no artigo. Os artigos que escrevo raramente ultrapassam as mil palavras, não por razões de espaço, mas por razões de atenção e respeito pelo tempo de quem lê. Por isso por vezes não é possível dizer tudo, mais ainda quando se discute um assunto de múltiplas perspectivas como acontece neste caso. Desta forma o texto desta semana acaba por se prolongar nos comentários, com ênfase para o caso de "GTA V".

O texto completo pode ser lido em "A Liberdade da Violência".

maio 02, 2014

"Ni no Kuni: Wrath of the White Witch" (2013)

“Ni no Kuni” é uma experiência de encantamento, produzida com recurso aos imaginários coloridos e doces das fantasias de criança. Posto isto, devo dizer que não sou fã de RPG, menos ainda de JRPG. Obriguei-me a jogar “Ni no Kuni” apenas por este ser, em parte, criado pelo Studio Ghibli. De modo genérico, posso dizer que as primeiras duas horas são muito boas com a introdução da arte e storytelling, depois das 3 às 10 horas entramos no modo tutorial alargado, no qual se aprendem as mecânicas, se absorve muita informação, e se tem de suportar muitos diálogos redundantes. Quero por isso mesmo agradecer aqui ao Vítor Alexandre da Eurogamer, porque foi a sua análise que me deu forças para continuar até às 10 horas. A partir desse ponto entranha-se verdadeiramente o design do jogo, e começa-se a sentir a sua gratificação.




Qualquer pessoa que goste do trabalho de animação do Studio Ghibli, o estúdio de Miyazaki, irá gostar de “Ni no Kuni”, mas este não é um trabalho exclusivamente seu. Aliás a ideia original é de Akihiro Hino, o CEO da Level-5, empresa responsável por dezenas de títulos, grande maioria RPGs, como "Dark Cloud" (2000), "Dark Chronicle" (2002), "Dragon Quest VIII" (2004) ou ainda a série de enorme sucesso da Nintendo DS, o “Professor Layton”. Ou seja, temos por um lado um estúdio habituado a produzir arte de animação ao mais alto nível, e por outro uma empresa de jogos habituada a criar RPG de elevada qualidade, não sendo assim de estranhar que a primeira incursão do Studio Ghibli nos videojogos, resulte numa pequena jóia. Mais sobre isto pode ser visto no Making Of sobre o jogo (Parte 1  e Parte 2).

Começando pela arte visual, o melhor elemento do jogo, tenho de dizer que inicialmente fiquei um pouco decepcionado com a transição entre cutscenes 2d e gameplay 3d, porque a qualidade do 2d é muito superior. Digo inicialmente, porque à medida que o jogo avança as cutscenes em 2d são cada vez menos e menores. Deste modo as primeiras duas horas de jogo servem um pouco de introdução à transição do mundo 2d, marca de autor da Ghibli, para o mundo 3d. Ao longo do jogo podemos ver como a Ghibli se soube adaptar ao 3d, e trazer para esta abordagem gráfica muito daquilo que a torna singular. “Ni No Kuni” apresenta-se como universo formado de várias ilhotas, e vários reinos. Circulamos nas ilhas a pé, entre elas de barco ou dragão. Uma das particularidades da arte visual, mais interessantes, é o facto dos reinos serem apresentados como miniaturas, quando ali chegamos somos muito maiores que o reino, entrando as dimensões ganham a proporção normal. É um detalhe, mas encantador, capaz de conferir uma enorme graciosidade à fantasia do universo, mergulhando-o num imaginário infantil. Depois o tratamento dado à apresentação da natureza, como é comum no trabalho Ghibli, é todo ele soberbo, não apenas pela imaginação mas pela beleza e doçura com que é representado. Ainda no campo estético, não podemos esquecer a banda sonora, que ficou a cargo de Joe Hisaishi, o compositor habitual dos filmes da Ghibli (ver making of da música). Se o mundo gráfico é doce e belo, a música segue o mesmo tom, enfatizando e exponenciando ambos esses adjectivos.


E se a arte é de excelência, a história não lhe fica atrás. Somos Oliver, um miúdo de 13 anos que acaba de perder a mãe, e para quem a mais leve hipótese de a poder reencontrar e trazê-la de novo à vida, serve para seguir atrás e acreditar no mundo mais fantasioso alguma vez encontrado. A narrativa é linear, como se de um filme se tratasse, e por isso acaba não diferindo muito dos filmes da Ghibli que já conhecemos. Mundos paralelos, mundo real versus mundos imaginários, viagens entre mundos, criaturas imaginárias, duplos de almas, magia e feitiços, amigos, companheiros, príncipes e princesas, respeito pelo outro, pela natureza, muito carinho e ternura. A história vai progredindo à medida que vamos avançando, surpreendendo-nos sempre, mantendo-nos interessados em descobrir mais sobre os porquês, e o que vai acontecer a seguir. O final apresenta vários twists narrativos, alguns mais surpreendentes que outros, mas sempre muito envolventes. É uma história com valor universal, que qualquer pessoa deveria experienciar, capaz de elevar os valores sobre a nossa condição.

No design de jogo, surgem as piores partes do jogo, isto para quem como eu não for fã de JRPG (RPG Japonês). Assumo que apesar de atribuir nota máxima ao jogo, preferiria ter visto o jogo trabalhado enquanto acção/aventura, porque se os jogos RPG são objectos exigentes, um JRPG é ainda mais exigente. No fundo temos todo o trabalho da Ghibli e Hisaishi enredado por um enorme e complexo conjunto de regras, desenhadas com uma perfeição matemática, mas profundamente condicionadoras da experiência. Basta dizer que as primeiras 10 horas de jogo são passadas em modo tutorial, para assimilarmos a quantidade de regras que temos de aprender. Desde uma enorme quantidade de competências, feitiços, metamorfoses, armas, comidas e ingredientes que podemos usar para elevar as competências dos jogadores, até às regras do mundo que passam pela busca de corações, caça recompensas, ou recolha de selos que permitem aceder a novas competências, sem falar num número gigantesco de familiares (+300) que nos acompanham nas lutas, ao género de Pokemon, Skylanders ou Invizimals. Toda esta informação vem detalhada num livro de 300 páginas, o "Wizard's Companion" que o jogador vai conquistando ao longo do jogo, ou pode ser adquirido como livro físico na versão de colecionador do jogo.


Uma das regras mais estranhas, porque em termos psicológicos profundamente penalizadora, é o facto de perdermos 10% do nosso dinheiro sempre que queremos voltar ao jogo depois de  perdermos uma luta. Não bastava os “Saves” terem de ser realizados “inGame” e serem esparsos, ainda somos confrontados com a retirada de dinheiro caso queiramos permanecer no ponto mais próximo para voltar a tentar! Mas o pior acaba sendo mesmo o facto da Level-5 ter optado por seguir algumas das mais duras convenções dos JRPG, nomeadamente de “grinding” e “levelling” (combates repetitivos que elevam as competências dos nossos personagens, a XP), assim como de “dungeons” com “bosses” inultrapassáveis sem a XP adequada. Estes foram per se os principais responsáveis por ter desejado desistir do jogo várias vezes, ao longo das primeiras 10 horas.

Apesar de apontar estes problemas, sei que estão relacionadas com o género e não com qualquer problema de design concreto. Aliás o jogo parece um relógio em termos de design, nomeadamente no que toca à progressão, temos uma curva ascendente praticamente perfeita. Mesmo os problemas que tenho visto apontados à IA dos companheiros nas lutas, me parecem sem sentido, já que elas nada mais fazem do que reflectir o estado de XP que temos à chegada a cada dungeon. Se este não for adequado o sistema simplesmente não nos ajuda. Diga-se que todo o sistema de combate é bastante elaborado, fundindo o turn-based com real-time, assim como a luta física com a magia, o que nos obriga a trabalhar para aprender e dominar o sistema, mas que mesmo assim de pouco nos serve a cada momento sem a XP adequada.

Um outro ponto a favor é o mundo completamente aberto, que permite que circulemos por este com uma enorme sensação de liberdade, algo que se vai intensificando à medida que vamos tendo acesso a mais meios de transporte. A liberdade não dá apenas conta do nosso controlo sobre o mundo, mas do acesso à beleza e atmosfera que o jogo desenvolve gerando em nós a vontade de nos perdermos por entre aquelas ilhas ao longo de longas horas. Por outro lado o "levelling" em conjunto com as lógicas próprias dos mundos abertos acaba por produzir um jogo que requer de nós um investimento mínimo de 40 horas para se ver o fechamento da história principal. E sendo aberto, depois de terminarmos o jogo, somos convidados a voltar a entrar no chamado pós-jogo onde nos esperam mais de 100 sidequests, com mais alguns bosses, fora os vulgares tesouros e troféus e que facilmente poderão oferecer mais 20 horas de jogo. Como vi várias pessoas dizer na rede, todas estas horas de jogo seriam uma delícia quando tínhamos 10 anos, mas em adulto torna-se muito complicado gerir tanto tempo. Eu precisei de 3 semanas para colocar 45 horas no jogo, além de que dava para ter visto quase 20 filmes.

Para fechar o design, sente-se que o jogo vive demasiado das lutas, que por sua vez quebram a relação jogo/narrativa, mas esta quebra é por sua vez compensada por todo um sistema de mecânicas paralelo às lutas, que assenta em quests orientadas à busca de "tipos" de corações, que precisamos de obter e oferecer aos personagens que se encontram com os "corações partidos". Uma mecânica que revela a essência narrativa do jogo, que nos liga profundamente à história, e que assim enreda vigorosamente jogo e narrativa.

Em jeito de síntese, a história é bastante apelativa, apesar de nunca deixarmos de ter de realizar lutas para fazer "leveling up", sendo o melhor a arte (visual e musical). O todo gera uma atmosfera que inspira pura imaginação e fantasia, a viagem completa é uma experiência inesquecível.


Links de interesse
Ni No Kuni guide: 20+ essential tips to get you started, in Destructoid
Before You Start... Tips For Playing Ni no Kuni The Best Way, in Kotaku

abril 18, 2014

"Monument Valley", estéticas do impossível

Uma obra-prima de design, tanto no design de jogo como no design gráfico. Monument Valley está carregado de influências, não num sentido intertextual, mas antes como raízes conceptuais criativas, que vão de M.C. Escher a Fez (2012), passando por Echochrome (2008) e Wonderputt (2011).



É evidente que não existiria Monument Valley sem MC Escher, um artista gráfico que tem servido de inspiração a muitos de nós pela força do seu trabalho. Escher demonstrou por via do grafismo como a realidade que vemos e que tanto sentido faz, é por vezes verdadeira ilusão. As suas dimensões impossíveis continuam a exercer forte encantamento sobre nós, pela forma como misturam o real e o virtual, criando uma espécie de caminhos para o possível.

Relativity (1953) M.C. Escher

Monument Valley serve-se dessa força encantatória do impossível para criar o seu mundo de jogo e para nos seduzir. Mas se fosse apenas por Escher, seria apenas mais um jogo como Echochrome (2008), entre múltiplos outros pequenos jogos que já tentaram explorar esta ideia. Muitos têm tentado explorar as lógicas visuais de Escher, porque quando olhamos para as suas obras sente-se uma tremenda vontade de lhes dar vida, de as colocar em movimento, de passear dentro delas. Mas a verdade é que muitos dos trabalhos que se têm socorrido deste universo visual ficam-se pela sombra de Escher, não conseguindo ir além daquilo que já temos nas telas.

Echochrome (2008) Sony Japan

Por isso quando tomei conhecimento de Monument Valley fiquei logo algo receoso de ser apenas mais uma mera tentativa de gamificar os mundos de Escher. Mas quando começamos a jogar percebemos que é claramente mais do que isso, uma das primeiras evidências surge com o design gráfico e a atmosfera, que seguem o minimalismo do trabalho de Escher, na evolução visual das suas obras pela cor, movimento e som. Cada um dos níveis possui uma atmosfera bem delineada, e acima de tudo muito coerente em si e no conjunto dos 10 níveis. Todos os elementos — cor, movimento e traço — trabalham para solidificar o universo de jogo, transformando-o num espaço imensamente atrativo e envolvente.

Mas se Monument Valley fosse apenas um conjunto coerente de universos audiovisuais envolventes, seria apenas uma interessante animação. O design de jogo é ele próprio brilhante, no sentido em que serve o universo impregnando-o de interesse, motivando-nos assim a perscrustar cada detalhe de cada ecrã, muito na linha de Wonderputt (no meu Top 10 2011). Porque o design não se limita à resolução dos espaços impossíveis, ele é servido por um conjunto de personagens muito relevantes, que conferem uma camada adicional de valor e envolvência ao espaço, gerando narrativa e jogabilidade, tal como temos em Fez (no meu Top 10 2012).

Wonderputt (2011) de Reece Millidge

Fez (2012) de Phil Fish

De forma geral, podemos dizer que o design é progressivo e bastante balanceado. A cada novo nível, novos elementos são trazidos para o espaço de jogo, e apesar de sentirmos que o jogo espera mais de nós, cognitivamente na sua resolução, nunca nos sentimos presos num espaço por tempo demasiado. Ou seja, a dificuldade foi algo muito bem balanceado, demonstrando que os autores estavam mais interessados em criar um universo interativo que fosse gerador de emoções estéticas do que de resolução de problemas. Aliás a demonstrar esta vontade de criar uma experiência estética, e não uma fórmula de puzzles, é o facto de o jogo conter apenas dez níveis, preocupados em desenhar uma experiência única — com um princípio, meio e fim — longe do mero sucedâneo de níveis sem fim.


Links de Interesse
Página do jogo
Jogo na App Store

abril 16, 2014

"Fallout 3"

Fallout 3 (2008) terminado. Quando saiu joguei apenas até sair do Vault 101, voltei depois a investir mais algum tempo até encontrar a vila Megaton, nada mais do que isso. Achava a interface do jogo demasiado complexa, e o modo de combate rígido e muito errático. Agora resolvi pegar-lhe de novo e dedicar-me a tentar terminar a main quest, tendo-o feito com um total de 16 horas, o que é perfeitamente normal, mas dá conta do facto de ter evitado completamente as side-quests.



Porque demorei tantos anos a chegar ao final? A razão principal tem que ver com a confusão entre géneros de jogo. Fallout 3 apresenta-se inicialmente como um normal jogo de acção 3d em primeira-pessoa, com possibilidade de jogar em terceira, e isso faz com que o jogador procure usar lógicas cognitivas de resolução de jogos desse género. O grande problema é que Fallout é muito mais RPG do que jogo de Acção.

Começando pelo elemento essencial à progressão no jogo, o modo de combate, este está desenhado para nos obrigar a jogar segundo uma lógica RPG. Ou seja, quando tentamos progredir no jogo apenas combatendo em tempo real, o normal em jogos de acção, simplesmente não conseguimos, não acertamos, morremos facilmente, e daí que muitos, como eu, tenham desistido pouco depois de sair do Vault, já que é quando as necessidades de combate a sério começam a ser necessárias. Assim Fallout só se torna verdadeiramente jogável se optarmos por combater através do chamado V.A.T.S. (Vault-Tec Assisted Targeting System), o sistema turn-based de Fallout 3. Através destes sistema somos obrigados a realizar os combates de modo estratégico, e não simplesmente em modo shooting. Ainda assim e por estar muito bem desenhada a progressão de jogo, inicialmente o V.A.T.S. vai parecer complicado, mas quanto mais o utilizamos mais gostamos dele, até que se torna a nossa segunda natureza dentro do jogo.

V.A.T.S. (Vault-Tec Assisted Targeting System)

Ainda dentro da ideia RPG, se o V.A.T.S. é vital nas lutas, o Pip-Boy 3000, que é uma espécie de PDA, é o cerne de toda a jogabilidade. Se o V.A.T.S. se torna na segunda natureza dentro do jogo, é porque o PIP-Boy 3000 é a primeira camada dessa natureza. Sim, porque a camada de acção directa em tempo real sem HUD surge apenas como terceira camada do jogo. Para alguns pode ser motivo de afastamento, mas é a natureza do jogo. Fallout nasceu como RPG, a sua terceira encarnação deu um passo grande no sentido dos jogos de acção e aventura 3d, mas as suas raízes não foram apagadas, o seu fundamento de jogabilidade continua a ser RPG, sendo a acção em tempo real mais dada à criação de atmosfera e progressão narrativa.

Depois de termos interiorizado esta ideia da jogabilidade RPG com narrativa de acção-aventura, o jogo ganha todo um novo encanto, porque abre um enorme leque de possibilidades, impossíveis de realizar em jogos exclusivamente RPG ou acção-aventura. O mundo gigantesco navegável de Fallout 3, filtrado por um sistema complexo de regras do design de jogo, permite desenvolver uma vastidão de possibilidades, que dão ao jogador a sensação de liberdade como nunca antes sentiu em qualquer outro jogo. Mesmo quando comparado com GTA, o facto da jogabilidade possuir um enorme conjunto de regras que alicerçam todas as nossas acções, e essas regras poderem ser agenciáveis pelo jogador, faz disparar o nível de interactividade, e logo de sensação de liberdade no jogo.

Em Fallout 3 as escolhas começam antes de nascermos, já que podemos escolher nascer como menino ou menina, daí em diante todas as escolhas que fizermos irão ditar o nosso modo de agir sobre o mundo. Sem ser um sistema binário de escolhas A ou B, vamos percebendo que o mundo se dá a nós consoante as várias opções que vamos fazendo, tanto na estratégia do desenho do personagem através dos sistemas Personalidade (S.P.E.C.I.A.L. - Strength, Perception, Endurance, Charisma, Intelligence, Agility, Luck) e Competências (Skills), como na forma como decidimos interagir com os outros personagens dentro do universo, como ainda nos modo como decidimos completar cada uma das atividades que encontramos pela frente. O nosso jogo define-se segundo as nossas acções, nós somos responsáveis pelo jogo que estamos a jogar, porque ele reflecte aquilo que escolhemos ser naquele universo.

Pip-Boy 3000, menu das competências (Skills)

Pip-Boy 3000 menu da personalidade (SP.E.C.I.A.L.)

Relativamente ao universo ficcional temos uma atmosfera fantástica, embora ao fim de algumas horas se comece a sentir o seu peso, por ausência de variabilidade, demasiado verde acastanhado, e também o facto do jogo ser de 2008 não lhe permite apresentar atributos visuais em termos de definição gráfica que compitam com trabalhos mais recentes. Ainda assim continua a produzir o seu encantamento, muito graças ao detalhe da estética centrada no universo visual americano dos anos 1950, assim como as vozes de grandes actores, como Liam Neeson, Malcolm McDowell ou Ron Perlman. A verdade é que depois de entrarmos dentro da lógica do jogo, dificilmente conseguimos esquecer o universo, que nos vai atormentando a mente várias vezes ao longo dos dias, quando não estamos a jogar.

Atmosfera de Fallout 3 renderizada em 2014 através de sistemas técnicos modificados. Mais imagens.

Quanto à história, é bastante interessante, não sendo nada de novo, pós-apocalipse com seres humanos que se mutaram por força da radioatividade gerada pelas explosões nucleares. A narrativa segue a lógica do duplo-enredo, em que por um lado procuramos o pai do nosso personagem e por outro tentamos salvar a humanidade através de um elemento base da vivência neste planeta.

Comparando com Metro: Last Light (2013), temos aqui um sistema de jogo bastante mais complexo, mais trabalhado e enraizado na narrativa, por outro lado Metro: Last Light é atmosfericamente mais denso e rico. Claro que Fallout 3 por ser aberto permite uma liberdade de exploração e criativa completamente impossíveis em Metro: Last Light. Ainda assim são dois belíssimos jogos para quem gostar de universos pós-apocalípticos.

abril 02, 2014

Design de contexto de personagens interactivos

Excelente análise de alguém que jogou quatro vezes The Last of Us, fazendo-o por vezes de modo experimentalista, testando o jogo, a história e as personagens, descobrindo situações e acções que revelam o quão pensado ao detalhe foi todo o design e narrativa. Para nos apresentar as suas investigações Grant Voegtle não se limitou a escrever uma análise, deu-se ao trabalho, extraordinário, de extrair 30 minutos, de cenas muito específicas, para demonstrar cada uma das suas ideias, um trabalho de centenas de horas feito ao longo de meio ano.




De todo o trabalho, a primeira parte dedicada às “The Little Things” é a mais interessante, porque apresenta uma espécie de desconstrução dos personagens IA nos seu momentos de pura autonomia. Na especificidade falamos do design de contexto dos personagens, que inclui a linguagem corporal e os diálogos que devem reflectir-se na autonomia da estrutura psicológica e social dos personagens, responsável por levar o jogador a aceitar a personagem IA, a acreditar na sua existência, ainda que ficcional.

Esta componente contextual é uma das partes mais complexas no desenvolvimento de videojogos e narrativas interactivas, porque é responsável pela quebra da ilusão da credibilidade dos personagens, contribuindo assim para a quebra do envolvimento com a experiência. Estes momentos de autonomia dos personagens, são algo inteiramente novo na escrita de narrativas, já que nunca existiram no âmbito dos media anteriores. Requerem por parte dos criadores que descrevam e desenhem cada personagem ao seu mais íntimo detalhe, para que depois os artistas e programadores possam seguir essas directivas na criação dos mesmos. Porque num videojogo, a construção de um personagem não se faz apenas nos momentos de jogo ou nos momentos narrativos, faz-se durante todo o jogo.

Ver o que foi feito em TLOUS é absolutamente delicioso, confesso que na minha passagem única pelo jogo experiencei algumas das reacções de Ellie aqui descritas, mas fiquei absolutamente impressionado quando as vi assim todas juntas, porque percebi melhor todo o alcance e profundidade do desenho da personagem, percebendo assim porque realmente a senti tão próxima, porque é tão credível em tudo aquilo que faz e diz ao longo do jogo. Uma das cenas que Voegtle apresenta, do roubo do brinquedo sem ninguém ver por parte de Ellie, é impressionante (primeira imagem deste texto). É um detalhe que passará despercebido a uma grande parte dos jogadores, mas a sua subtileza, quando deparado pelo jogador, é capaz de definir por si apenas tudo aquilo que a personagem de Ellie representa.

Quando penso no futuro dos videojogos, é nisto que acredito estar a sua evolução e melhoria, não no realismo gráfico, que deixou para mim de ser relevante a partir do momento que um artista pode expressar quase tudo o que deseja visualmente. O futuro dos videojogos passará por criarmos personagens mais realistas, mais credíveis, porque mais humanos. Dotar os personagens de algum tipo de pré-consciência com quem poderemos brincar, jogar e empatizar, com quem poderemos identificar-nos e relacionar-nos (ler o texto "Design de Interacção em Her").

"The Last of Us Changed My Life: In Depth Analysis and Dissection" (2013) de Grant Voegtle 

Uma outra constatação interessante neste trabalho de Voegtle é o facto de confirmar quantitativamente que o jogo não está tão repleto de cutscenes como somos levados a pensar, já falei disso na última vez que abordei o jogo na Eurogamer. Das 7 cenas mais emocionais definidas por Voegtle, 4 são interactivas, e apenas 3 cutscenes, e em termos comparativos existe muito menos cutscenes em TLOUS do que em Uncharted 3 que possui metade da duração total de TLOUS.

março 24, 2014

“Enslaved: Odyssey to the West” (2010)

Bruce Straley é co-diretor de “The Last of Us”, juntamente com Neil Druckmann, ambos já suficientemente elogiados, Druckmann na área da narrativa cinemática, e Straley no campo do design de jogo. Ambos trabalham na Naughty Dog há bastante tempo, mas Straley passou pela Ninja Theory antes, onde foi o designer de “Enslaved: Odyssey to the West” (2010), jogo que acabei de jogar por estes dias. Nesse sentido não deixa de ser interessante verificar os pontos de contacto entre ambos estes projectos, ainda que continue a considerar que "The Last of Us" é o jogo, até à data, mais completo do meio.



Assim, e se “The Last of Us” tem uma belíssima história trabalhada por Neil Druckmann, “Enslaved: Odyssey to the West” não lhe fica atrás, contando com Alex Garland, autor de “The Beach” para escrever o jogo. Desta forma “Enslaved” é capaz de apresentar personagens completos, partindo no início do jogo a uma certa distância de nós, no caso do personagem masculino sente-se até algum desdém, mas que depois vão amadurecendo imenso, contribuindo assim para o aumento da empatia em curva ascendente até ao final, momento em que os conseguimos sentir bastante próximos, porque os passamos a compreender. O epílogo apresentado é do melhor que podemos encontrar no mundo dos videojogos em termos de finais, surpreende-nos e apela à contemplação, não por ser uma ideia completamente nova, difícil não pensar em "The Matrix", mas por ser muito coerente com todo o jogo, fazer sentido e estar muito bem escrita. "Enslaved" demonstra não apenas que os jogos conseguem contar grandes histórias, mas que para o fazer são precisos grandes contadores de histórias.

A nossa viagem começa, como em “The Last of Us” num cenário pós-apocalíptico, situado num futuro bastante distante do nosso, e avançado tecnologicamente. E assim durante todos os anos passados após a destruição, o planeta teve tempo para recuperar o seu estado inicial e voltar a ser imensamente verde e azul. Aqui The Last of Us” segue exactamente o mesmo padrão, menos verde porque passaram-se menos anos no seu caso. "Enslaved" leva-nos através de uma jornada a dois, com a bela e inteligente Trip e o musculado e capaz Monkey, para oeste através de uma suposta América do futuro, permitindo que a história se desenrole de forma muito diversificada em termos de cenários e atmosferas. Nenhum dos personagens se assume verdadeiramente como principal, apesar de controlarmos quase exclusivamente Monkey, o que cria espaço para o jogador(a) assumir interpretações a partir de ambos.

Trip e Monkey, personagens principais de "Enslaved"

Além da história que é talvez dos elementos de maior qualidade do jogo, existem mais três elementos de excelência em "Enslaved" que contribuem para a sua memorabilidade: a banda sonora, as expressões faciais, e a arte. Podemos dizer que grande parte da emocionalidade do jogo é dirigida através da componente musical a cargo de Nitan Sawhney que detém um percurso muito interessante em matéria de composição para televisão, cinema e videojogos.

Tema principal de “Enslaved: Odyssey to the West” (2010)

No campo das expressões faciais a Ninja Theory trabalhou não apenas a componente tecnológica de captura, mas foi ainda buscar nada menos que Andy Serkis, conhecido por interpretar um dos personagens em motion capture, Gollum da trilogia “The Lord of the Rings”, mais bem conseguidos até hoje. Para o papel de Trip foram buscar Lindsey Shaw conhecida pelo seu trabalho em várias séries de televisão. Ambos os actores contribuem não apenas com interpretação para a captura de movimento, mas também com a voz que acaba a garantir a capacidade de projecção dos personagens dentro da narrativa.




O quarto e último elemento de excelência, a arte, é algo em que os videojogos têm vindo a realizar um belíssimo trabalho nos últimos anos, podendo nós encontrar inúmeros trabalhos de enorme qualidade visual, desde o próprio "The Last of Us", a "Bioshock Infinite", passando por "Prince of Persia", entre outros. Em "Enslaved" a direcção de arte está a cargo de Stuart Adcock, capaz de nos dar a experienciar num detalhe magnífico o espaço do jogo, conferindo-lhe credibilidade e grande atractividade, vale a pena ver as "fotografias" do Dead End Thrills. "Enslaved" resolveu cortar com uma tradição de apresentação do pós-apocalypse como algo deserto, para apresentar um ambiente futurista muito verde, cheio de natureza. Adcock faz referência ao documentário que veio determinar este novo padrão visual do pós-apocalypse, "Life After People" (2008) do History Channel.

"The Last of Us" acabaria por usar também este padrão, mas o facto de "Enslaved" trabalhar um futuro mais distante leva-nos para ambiente de ficção científica, carregado de tecnologia, ainda que muita destruída e abandonada, mas muito ativa ainda, e nesse sentido a arte visual é extremamente coerente e capaz de criar o mundo ficcional para onde nos quer levar. Sente-se alguma influência oriental em termos da atmosfera visual em certas áreas abertas com o confronto do verde com o azul, ou seja na escolha de cores, no desenho de maquinarias, assim como nos movimentos dos personagens. De tudo o menos conseguido julgo que acaba sendo o excesso de saturação, embora se perceba que faz parte da marca daquele universo, mas um pouco menos de saturação poderia ter contribuído para gerar um universo ainda mais coerente e equilibrado.



Deixo para o final o design na sua especificidade, e admito que apesar de ser um jogo de Straley que admiro, apresenta algumas fragilidades, algumas acredito que mais potenciadas pela tecnologia e talvez também por falta de tempo para afinação. Será difícil jogar "Enslaved" e não pensar em "Prince of Persia" (2008) em termos de design, porque existem vários pontos de contacto, desde logo pela forma acrobática como se movimentam ambos os personagens jogáveis. Ambos possuem uma companheira que os acompanha e os ajuda, sem a qual não poderiam avançar no jogo, assim como ambos assentam a jogabilidade em duas mecânicas principais, os puzzles plataformas e as lutas, que se vão intercalando para não cansar o jogador.

Em termos comparativos "Enslaved" não consegue incutir no desenho da jogabilidade a mesma fluidez e diversidade que PoP mostra. O principal joga-se nos movimentos do personagem que conjuntamente com as suas possibilidades de interacção no jogo, não funcionam tão bem como em PoP contribuindo para a geração de problemas ao nível do ritmo da jogabilidade e da percepção das nossas acções sobre o mundo de jogo. Por vezes sentimos que algo nos prende, que a navegabilidade se entrecorta, influenciando completamente a percepção que construímos da jogabilidade. Para além disso, existe alguma repetição e alongamento de lutas e puzzles, mais a meio do jogo, mas isto é algo que vamos vendo acontecer em quase todos os jogos, desde "Tomb Raider" (2013) a "Bioshock Infinite" (2013), exceptua-se aqui "The Last of Us" que consegue desenhar uma experiência, diria praticamente perfeita, e em parte também "Uncharted 2" (2009).

Apesar dos problemas identificados, "Enslaved" continua a ser um jogo com enormes qualidades,  e que vai continuar a ser jogado por muitos mais anos. Aliás apesar de ter saído para as consolas em 2010, foi re-lançado em 2013 para PC no Steam.


Links a seguir...

Porque é inovador, "The Last of Us”?,  in Virtual Illusion, 
A sintonia entre História e Jogo, in Eurogamer, 
"Prince of Persia" (2008), in Virtual Illusion, 
O universo visual de "The Last of Us”, in Virtual Illusion,
Fotografias tiradas dentro do jogo, in Dead End Thrills 

dezembro 11, 2013

Remember Me, história e arte visual

Remember Me é um dos videojogos mais relevantes de 2013 no domínio da arte visual. Se dúvidas houvesse quanto ao quão visionário foi o trabalho feito por Ridley Scott dirigindo Syd Mead (ilustrador), Lawrence Paul (designer) e David Snyder (diretor de arte) em Blade Runner (1982) aqui elas desaparecem. Remember Me não só apresenta uma das melhores histórias de ficção científica dos videojogos, capaz de ombrear com Philip K. Dick e William Gibson, como o faz atualizando todo um imaginário visual criado há mais de 30 anos. Remember Me sintetiza-se assim em dois grandes vetores, a história e a arte visual.



Ou seja, fundamentalmente é um jogo para quem gosta de ficção científica que discute aspectos da memória, registos, modos de acesso e preservação de memórias, assim como todos os problemas decorrentes destas tecnologias. Por outro lado é um rasgo visual de excelência capaz de encantar qualquer apreciador de concept art, ou visualizações do mundo no futuro.

Criado por um novo estúdio, o Dontnod Entertainment, composto por pessoas oriundas da EA, Ubisoft, etc, apresenta-nos um novo mundo, e um possível novo universo ficcional para a área. Fugindo ao cânone do herói masculino, enfrentou dificuldades de financiamento, algo que poderia ter subvertido facilmente com a fuga para o FPS já que o jogo foi desenhado em Unreal. Mas ainda bem que não o fizeram, porque acredito que a história e  jogo funcionam muito melhor com uma personagem feminina. O modo como esta evolui, e vai re-adquirindo as suas memórias, como ela vai compreendendo o que está por detrás de toda a instituição que regula as memórias em todo o mundo é feito, apesar das lutas, de um modo bastante sereno e preocupado com as relações humanas. Visto através de um olhar masculino, dificilmente se poderia elevar a última parte do jogo a um tão alto ponto emocional e de reconhecimento do impacto negativo que todas aquelas tecnologias podem ter sobre a humanidade.

Remember Me não foi propriamente muito bem recebido pela crítica, que não dizendo totalmente mal do jogo, o crucifica pela sua componente gameplay. Concordo que este apresenta problemas, por vezes graves ao nível do design de navegação e manipulação, assim como no excesso de lutas e repetições redundantes. A grande evidência desses problemas é a constante necessidade de apontar o caminho a seguir, a navegação é pouco intuitiva, o excesso de arte acaba por vezes por se intrometer na funcionalidade do design. Por outro lado, a necessidade de agradar a um público mais alargado faz com que o jogo se perca em lutas e mais lutas, para assim alongar a experiência e também criar algumas sensações básicas fortes. De qualquer modo acredito que Remember Me pode vir a tornar-se num jogo de culto com o passar dos anos, veremos. Todos os problemas de gameplay que temos são largamente compensados pela história e estética do jogo.



Muita da imprensa deu destaque para os combos de luta, que eu particularmente não gostei. Obrigar-me a definir o tipo de combos de luta não é propriamente o tipo de interatividade que procuro num jogo. Contudo algo que não só gostei, mas me pareceu verdadeiramente genial em termos de design de interação, foram as sequências de alteração das memórias. Inicialmente parece estranho, mas depois de compreender o sistema, torna-se extremamente envolvente. Ou seja, cada memória é apresentada como um filme em flashback e nós podemos aceder à mesma, como se de uma cassete de imagens se tratasse, em que podemos bobinar e rebobinar, alterando pequenos eventos no seu interior, que por sua vez provocarão alterações no jogo. É uma ideia de design de manipulação brilhante, porque permite um contato muito próximo e detalhado da ideia de memória, assim como atribui muito maior sentido a todo storytelling que envolve o jogo.

Apesar de perder no game design muitos dos seus potenciais jogadores, é um jogo de que nos vamos lembrar daqui a muitos anos ainda.