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dezembro 18, 2012

Entrevista com Artur Leão - Senior VFX Artist

Finalmente! Esta entrevista vem desde o ano passado. Primeiro demorei eu meses a escrever as perguntas e a enviá-las ao Artur, depois demorou ele porque o apanhei em mudanças. Enviei as perguntas quando ele ainda trabalhava na Ingreme em Lisboa, hoje as respostas chegaram-me de Reykjavik, onde o Artur trabalha como Senior VFX Artist na CCP Games, a empresa por detrás de EVE Online.


O Artur Leão nasceu no Porto há 31 anos, e é um dos artistas 3D mais conhecidos na cena nacional. Para além de ter passado por várias empresas nacionais, entre as quais a Dreamlab de que aqui falei há uns meses, a sua actividade online tanto nos tempos do IRC (aka Kameleon) como mais tarde criando o fórum Dimensão3 tornou o seu trabalho amplamente conhecido em Portugal. O mais interessante não é ele ter-se tornado conhecido por estes meios, é antes ter utilizado estes meios como o seu centro de aprendizagem. O Artur é um auto-didacta autêntico, não realizou qualquer curso na área, aprendeu através da pura experimentação e através da continuada discussão com os pares.

A leitura desta entrevista é profundamente esclarecedora deste modelo de aprendizagem, e não é caso único. O Artur faz parte de uma geração como o Tiago Sousa (Crytek) ou o Bruno Ribeiro (Sony Europe), entre outros, que começaram a aprender com o online no final dos anos 1990 com a massificação da internet. Pessoas que andaram a estudar mas nunca acabaram os seus cursos, porque estes não lhes ofereciam o conhecimento de que precisavam e pelo qual ansiavam. Descrever isto desta forma pode dar a entender que este deveria ser o caminho a seguir por todos, mas longe disso. Estes casos que cito, como o Artur, são pessoas excepcionais, com uma motivação intrínseca desmedida, uma sede de aprender acima do comum e só isso explica que tenham conseguido "sozinhos" chegar onde chegaram. Aliás o próprio título do sítio pessoal do Artur é um bom indicador desta motivação - You can do it! VFX - mas vejam o seu Showreel e leiam a entrevista para perceber melhor tudo isto a partir das suas palavras e dos seus trabalhos.

Artur Leão Showreel 2012


1 - Como entraste no mundo do 3d? Qual foi o teu primeiro software?
:: Um bocado por engano. Um dia um colega emprestou-me um CD do Red Hat Linux 5 e, por acréscimo, vinha lá um CD que trazia o 3D Studio R4 para MS-DOS. Curioso, instalei e fui ver o que era. Lá mexi e carreguei nos botões, e tal, e lembro-me perfeitamente que fiquei fascinado quando descobri o material editor com os "sample slots", ou seja, as esferas com o material a aplicar. Tinha ouro, prata, latão, cobre, e só esses samples deixaram-me maravilhado! Confesso que ficava a olhar para aquilo durante uns segundinhos, a apreciar. No entanto, nunca fiz nada de jeito nessa versão do 3D Studio.
Uns tempos depois, e como estive sempre mais ligado à área da programação, fui aprendendo umas coisas muito interessantes (o famoso modo 13h...) através de uma revista chamada PC Mania (revista espanhola com bastantes tutoriais em Pascal/Assembly). Como fazer objectos em 3d e representá-los numa tela a 2d, modos de shading, muitas dessas coisas relacionadas com a demoscene, que na altura já tinha algum impacto em Espanha (ainda me lembro de tentar organizar a Demoparty 99 no Porto, mas sem sucesso).
Depois de uma aprendizagem regular de gráficos e interfaces em Pascal, a revista trouxe também o POV-Ray, que misturava de forma bem clara as duas coisas a que eu estava mais atento nessa altura: programação e 3D. Li imenso, fiz muitas esferas e planos com checkerboards, e lembro-me de uma animação de uma bola a saltar que demorou uma semana a renderizar!

3D Studio R4 para MS-DOS

2 - Como é que realizaste o teu percurso de aprendizagem?
:: Vem um pouco na continuação do que disse anteriormente, em que tudo aconteceu muito cedo na minha vida. Comecei aos 11 anos a aprender algoritmia e Pascal na antiga Microcamp e tive, felizmente, um professor fantástico que me passou dados valiosos e uma forma de pensar que me acompanha até aos dias de hoje. Por isso, obrigado Professor Eusébio Dobrões, pelos 6 meses de algoritmia antes de sequer tocar num teclado para programar.
Depois desta fase, passei pela tal revista PCMania, até que arranjei o meu primeiro trabalho... em programação, claro, nada de 3D, nem de longe nem de perto. Pouco tempo depois, tive a oportunidade de trabalhar em Autocad como desenhador/projectista de moldes para plástico e fundição injectada, a ganhar melhor e com melhores condições, e nem hesitei.
Passado algum tempo, e graças à minha vontade de querer sempre mais, comecei a explorar softwares que permitiam saltar a fase de desenhar os moldes primeiro em 2D para depois voltar a desenhá-los em 3D. Descobri assim o SolidWorks, onde fazia tudo de raiz em 3D e os desenhos 2D eram praticamente obtidos de "borla". Nesta fase, comecei a sentir o “bichinho”, ou seja, já não fazia só os moldes em 3D, fazia as peças, depois já não fazia as peças só no SW, já as exportava para o Max e tentava fazer renders hiper-realistas..... Eram horríveis, mas era sempre mais espetacular para o cliente ver um objecto rendido no Max com um material cromado e o "Lakerem2.jpg" a reflectir no environment do que uma peça em Phong shading!... E assim começou.

Lakerem2, material muito utilizado para efeitos de reflexão nos objectos

2 - Porque criaste um forum de discussão, Dimensão 3? Quais eram os objectivos iniciais, e em que se transformou?
:: Muito simples. Há muito tempo atrás, eu era operador no #3dsmax da PTnet e passava horas a teclar, a falar de 3D, a aprender, a tirar dúvidas, etc, até que um dia virei-me para o Hugo Adão, na altura também operador do canal, e disse-lhe que devíamos ter um sítio onde pudéssemos guardar a informação com perguntas que eram ali esclarecidas. Era um desperdício isso desaparecer nos confins do IRC. O pessoal estava a começar a migrar do IRC para os fóruns, por isso pareceu-nos lógico e, na altura, era o mais próximo de algo "social". Assim nasceu a Dimensão3, que era suposto ser mais do que um fórum, mas até hoje nunca foi mais do que isso. Acho que durante um bom tempo, transformou-se num hub importante para os artistas de 3D em Portugal, onde muita gente se conheceu, aprendeu, partilhou, se uniu, onde se fez umas coisas divertidas, como concursos, entrevistas, etc. Custa-me dizer isto, mas a D3 nesta fase da minha vida, está de facto em total e completo stand-by.
Gostava de dizer ainda que antes da Dimensão3 existiu o CGPortugal, que foi de facto o primeiro sítio onde se falou de 3D em português e onde, pela primeira vez, se reuniram pessoas apaixonadas pelo 3D. Essa ideia partiu inicialmente do Paulo Ricca, e eu e o Hugo Adão também fizemos parte.

Fórum Dimensão3

4 - Quantas horas investias por dia no início, e quantas horas investes hoje num dia normal?
:: Ao início, sinceramente, não via mais nada à frente. Posso dizer que investia praticamente todo o meu tempo sentado em frente ao computador, à parte do dormir, comer, ir às aulas. Hoje em dia, e porque gosto do que faço, estou no mínimo 5 horas por dia no computador. Não quer dizer que esteja necessariamente a aprender ou a ser produtivo, mas com o tempo também aprendi uma coisa que é: ser bom nesta área não implica apenas fazer coisas em frente ao computador, por isso tenho tentado dedicar mais tempo a coisas que aconteçam “fora do computador”. Ouvir música, ir ao cinema, teatro, concertos, exposições, excursões, são tudo coisas que me dão experiências e adicionam conhecimento que mais tarde posso vir a utilizar na minha área de trabalho.


5 - O que te dá mais gozo fazer no mundo 3d? No teu reel destaca-se o shading, lighting e Render, por necessidade ou porque é o que mais gostas? Podes explicar um melhor em que consistem estas especializações do 3d?
:: Sinceramente, gosto de tanta coisa… Sei o que não gosto, e mesmo assim tenho dúvidas, que é animar personagens. De facto, as áreas em que me desenvolvi mais foram as de lighting/shading e rendering. Quando trabalhava em archviz via os renders espectaculares no fórum do Evermotion e queria sempre “fazer como eles” e, pronto, passava horas a dissecar a informação lá contida. Penso que essa foi a minha primeira fonte de verdadeiro conhecimento relativamente ao 3dsmax. Veio um pouco por necessidade, mas o bichinho ficou lá e, pelos vistos, até tinha jeito, porque foi graças a isso que consegui um emprego na área da publicidade.
De uma forma muito geral, lighting/shading refere-se à iluminação das cenas, como no teatro ou nos sets de cinema/publicidade em que existe alguém que tem de colocar as luzes e dar um ambiente àquilo que está no cenário. O shading especificamente consiste na criação dos materiais que constituem todas as coisas que vês em 3D, como por exemplo definir se a toalha de mesa é de pano ou plástico e colocar os parâmetros correctos para que o pano pareça pano e o plástico pareça plástico.
Quanto ao rendering, apesar de haver uma posição que se chama “render wrangler”, que consiste em monitorizar os renders e certificar que sai tudo como era suposto, eu sempre estive mais ligado a outra coisa, o “scene assembly”. Hoje em dia, o “scene assembly” vê-se cada vez mais, até porque as cenas vão aumentado de complexidade e tem de haver alguém ou uma equipa que reúna e componha tudo o que as outras pessoas/equipas estiveram a fazer para que saia algo de útil para passar para a composição.


6 - Porque é que tão difícil aprender 3d? Falta de sensibilidade artística, falta de destreza visual, falta de vontade e motivação para trabalhar o tempo suficiente, ou outra?
 :: Não acho que seja difícil aprender 3D. Hoje em dia, existe muita informação, quer gratuitamente quer por parte de empresas que se dedicam exclusivamente à criação de material de ensino. O que poderá existir são pessoas que pensam que fazer 3D, ou “coisas-como-o-Senhor-dos-Anéis”, implica saber apenas os menus dos programas. Como é óbvio, não implica apenas isso, daí que tal como disse há pouco, ache cada vez mais importante aprender coisas de outras áreas. Ao longo do meu percurso, posso dizer que as pessoas que faziam 3D com formação em Artes eram normalmente melhores do que as que vinham de outras áreas. Tinham uma maior sensibilidade para certas coisas. Por isso, é sempre bom saber mais do que os menus e há medida que evoluis vais sentindo essa necessidade, caso contrário, estagnas.


7 - Para trabalhar nesta área basta escolher um pacote 3D e trabalhar 100% nele ou é preciso aprender outras coisas do tipo After Effects, Nuke, Maxscript, etc? Porquê, é uma questão de ser generalista, ou é mais do que isso, uma vontade de possuir alguma polivalência?
:: É óbvio que acabas sempre por ter uma ferramenta de eleição, mas isso não significa que não precises de outras para fazer o teu trabalho. Provavelmente toda a gente que faz 3D precisa de saber fazer algo no Photoshop, por exemplo, ou noutra ferramenta qualquer de edição de imagens/video. A questão de ser generalista prende-se mais com o facto de não existir muito espaço em Portugal para pessoas que façam só uma determinada tarefa, logo tens de ser polivalente/generalista para sobreviveres no mercado.


8 - Qual o teu melhor trabalho de sempre? E qual o que te consumiu mais tempo  a desenvolver?
:: Pode parecer cliché, mas realmente é difícil eleger apenas um. Há, no entanto, um anúncio da Vodafone que me marcou. Foi o primeiro em que tive oportunidade de trabalhar e, ainda por cima, sozinho. No final, correu tudo bem, mas a responsabilidade que senti foi enorme e acabou por abrir caminho para continuar a trabalhar noutros anúncios. Também tenho muito carinho pelos que foram feitos para a marca Chipicao, porque foram resultado de um grande trabalho de equipa, e gostei sempre do resultado final. Há outros trabalhos que me deram gozo a fazer, como o Arad, uma curta-metragem de um realizador iraniano que trabalha na Sony, o video de apresentação do novo estádio do Atlético de Madrid.
O que me deu mais trabalho.... Todos!... Mas talvez possa salientar um trabalho feito para a Nissan que foi uma dor de cabeça por várias razões, mas mais uma vez tudo se resolveu bem, e é isso que interessa no final do dia.


9 - Tendo em conta que trabalhas há mais de uma década com animação e modelação 3d, como é que te viraste para a programação e para o desenvolvimento de aplicações para iPhone? Faz sentido na tua carreira?
:: Como disse há pouco [nas primeiras respostas], estive ligado à programação desde o início do meu percurso, por isso é natural que tente usar isso como uma vantagem, seja para mim ou para equipa com que trabalho. O desenvolvimento de aplicações para iPhone surgiu invariavelmente da minha curiosidade em experimentar e testar coisas novas. Essa curiosidade leva-me a escrever centenas de scripts e/ou programas que guardo no meu disco ao longo do tempo. No entanto, o intuito foi mais comercial quando comecei a desenvolver para iOS, e daí resultou a minha primeira app, o iDevCam. Isso faz sentido na minha carreira, porque gosto de estar ligado às novas tecnologias, e mesmo que não seja eu a desenvolver as futuras versões da minha app, quero continuar relacionado com isso.

iDevCam Promo 1

10 - Olhando para o teu percurso pareces encaixar-te naquelas pessoas insaciáveis, sempre com vontade de aprender mais e mais? Como é que podemos estimular isso noutras pessoas?
:: Sim, gosto sempre de saber mais sobre tudo o que esteja relacionado com as novas tecnologias. Desde pequeno que sempre tive a ânsia de querer “chegar ao futuro". Lembro-me de ter 14 anos e pensar como seriam as coisas no ano X.
Tenho alguma dificuldade em responder sobre como estimular isso, mas posso dizer que nunca fui nem sou uma pessoa muito ligada à leitura, por exemplo. A vontade de querer aprender nem sempre tem de parecer aborrecida ou estar ligada a “marrar em livros”. Gosto de aprender pela experiência e talvez isso seja um bom caminho para as próximas gerações. Dar-lhes a oportunidade de interagir com as coisas, de as aprender a fazer desde tenra idade. Talvez essa possa ser uma solução, quanto mais não seja para aprender o que não gostam.


11 - Que dica darias a um jovem que visse hoje o Toy Story 3 e saísse da sala a pensar que queria fazer daquilo a sua vida?
:: Dir-lhe-ia que será precisa muita dedicação, paixão pelo que se faz e muita determinação, porque realmente não é um mundo fácil, principalmente para quem está a começar, sobretudo em Portugal. Uma coisa é certa: muita gente consegue fazer disto a sua vida e é feliz. Pixar, Dreamworks, Bluesky, etc, é possível :)

novembro 19, 2012

Randobot, novo jogo e entrevista

Randobot (2012) é o ultimo jogo de Vasco Freitas, um dos mais interessantes game designers nacionais, que nos trouxe Farmer Jane (2008), G-Switch (2010) e Freeway Fury 2 (2011). Desta vez o Vasco criou um jogo que me parece ser mais interessante para análise do que propriamente para jogar. Um jogo que não sendo cerebral acaba funcionando como uma metanálise dos fundamentos de jogo e do gameplay de plataformas.


Conceptualmente a história do jogo é em si muito interessante porque serve de metáfora à própria grande indústria de videojogos. O engenheiro é pressionado pelo produtor a enviar para fabrico um robô que ainda não está terminado nem completamente operacional. O engenheiro estabelece como meta a possibilidade de poder ir fazendo updates ao sistema antes que o robô seja completamente colocado no mercado. Tal como os jogos nos chegam e por vezes não respondem como deveriam, tendo nós de ir aplicando patch atrás de patch. Quando assumimos o controlo do robô percebemos claramente que este tem falhas, e são essas as falhas que acabam por servir de essência ao gameplay do jogo. O movimento à esquerda ou à direita tem apenas 80% de hipóteses de bom funcionamento, o de salto apenas 55%, e os restantes tiro, andar agachado estão inactivos. As falhas surgem de modo random, daí o titulo do jogo Randobot. Precisamos de atingir os objectivos em cada nível para ir reparando o nosso robô por forma a que este funcione de modo menos aleatório.


O interesse do jogo surge exatamente aí, quando mesmo tendo 80% da funcionalidade dos movimentos esq/dir percebemos o quão fragilizada fica a nossa capacidade de agir sobre o gameplay. Sabemos o que temos de fazer, mas não sabemos se o nosso robô vai reagir no exato momento em que vamos precisar dele, e isso coloca uma tensão ainda maior sobre nós. Isso frustra as nossas expectativas quanto ao domínio da lógica do jogo, é como se o gameplay do jogo se tivesse especializado em tirar-nos o tapete. O random é algo problemático para quem joga videojogos, porque nos habituamos a estudar padrões, analisamos e voltamos a analisar, até conseguir detectar o padrão. Uma vez feito este trabalho passamos a dominar o jogo, e o prazer apodera-se de nós. Mas aqui isso não acontece, não conseguimos dominar o padrão, porque ele não existe, é totalmente aleatório, o que gera grandes doses de frustração. Nesse sentido pedi ao Vasco que nos respondesse a algumas questões,


- Qual é a história por detrás do jogo, como surgiu a ideia do engenheiro e do robô?
:: Estava a jogar um jogo em que as teclas por vezes não funcionavam, devido a um bug. E então pensei se teria piada um jogo em que o mau funcionamento das teclas fizesse mesmo parte do jogo. À primeira vista parecia uma ideia louca (o que me agrada!), destinada a "falhar", mas pensei que se fosse bem executada poderia funcionar...

Imaginei que a aleatoriedade pudesse ser um tipo de gameplay interessante para explorar, devido ao jogador ter de medir o risco das suas decisões e ter sempre em atenção que algo pode deixar de funcionar como esperado de um momento para o outro. Achei simplesmente piada à ideia do jogador nunca saber se um salto vai funcionar, e ter que se precaver para o caso de não funcionar. O tipo de estratégia e processo mental envolvido seria bem diferente do habitual.


Inicialmente o jogo era para ser mais simples, só mesmo para experimentar, mas depois, como costume, tive vontade de ir acrescentando mais coisas. A ideia do engenheiro e robô veio mais tarde, servindo para justificar o facto das teclas por vezes não funcionarem, e como história, o que acabou por também ser uma parte importante do jogo.


- Qual o objectivo por detrás de um gameplay aleatório?
:: Neste caso não houve um objectivo em particular, apenas segui o impulso de experimentar a ideia. Falando de "gameplays aleatórios" em geral, eles existem em quase todos os jogos, e podem servir vários propósitos (tornar o jogo mais interessante, variado, imprevisível, pseudo-realista, etc). Jogos de cartas ou de dados, por exemplo, são um bom exemplo em que a aleatoriedade é parte fundamental do jogo.

- O que pretendias testar? Atingiste a ideia que tinhas?
:: Não pretendi testar nada em particular, apenas concretizar a ideia e ver os resultados. Achei que valia a pena fazer o jogo, já que não existia nada semelhante. Penso que atingi a ideia que tinha, sim, no sentido em que concretizei a minha visão inicial.

- Como te parece que as pessoas estão a responder a essa aleatoridade no gameplay? O que lhes podes dizer em relação à sua frustração?
:: Achei as reacções das pessoas muito interessantes. Alguns dizem ter adorado o jogo do princípio ao fim, enquanto que outros acharam demasiado frustrante. Alguns acharam a ideia interessante, inovadora, e bem executada, enquanto que outros acharam que isto nunca se devia fazer. Sinto que as opiniões dividiram-se muito nos extremos, e é sempre interessante quando isso acontece.

A frustração que sentem é muito dependente do jogador, e para dizer a verdade nem estava à espera que essa fosse uma reacção tão comum, já que as pessoas a quem mostrei o jogo antes de lançar nem acharam muito frustrante. Não tenho muito a dizer a quem tenha achado frustrante, a não ser que podem sempre voltar a tentar noutro dia, e que acho que vale a pena jogar até ao fim, nem que seja para ver como a história acaba :)

Jogar Randobot.

setembro 16, 2012

Entrevista com os criadores de Toren

Toren é um jogo independente do Brasil em desenvolvimento pela equipa Swordtales. A versão alfa obteve uma Menção Honrosa no Indie Game Festival 2012 na categoria de Excelência em Arte Visual, estando em competição com Dear Esther (The Chinese Room), Botanicula (Amanita Design), Lume (State of Play Games) ou Beat Sneak Bandit (Simogo).


Descobri este projecto no facebook em agosto do ano passado, através do Alessandro Martinello, director de arte do projecto. Senti uma paixão instantânea pelo jogo, muito por causa da sua arte visual, mas também por todo o desenho da atmosfera e character design me recordar Ico (2001). Desse modo quis logo lançar-lhes várias questões, mas o tempo foi faltando, e por isso só agora que o jogo já entrou no desenvolvimento da fase beta, é que consegui preparar as perguntas e enviar à equipa que aceitou muito amavelmente responder.


Assim em termos de contextualização prévia às questões, Toren é o primeiro videojogo da Swordtales que é constituída por três pessoas de Porto Alegre: Alessandro Martinello (26), Designer; Conrado Testa (26), Geógrafo (animador autodidata); e Luiz Alvarez (26), programador. O grupo conheceu-se numa pós-graduação em jogos digitais leccionada por ex-profissionais da extinta Ubisoft Brasil.

1 - Toren é um projecto financiado? Se não existe como continuam a trabalhar no mesmo depois de lançada a versão alfa?
:: O jogo ainda não está totalmente financiado, mas estamos otimistas, e publishers e investidores demonstram interesse. Antes desta boa fase que estamos atravessando nós mostrámos a versão Alpha temporariamente num convite especial, por apenas 15 dias, e ela agora não está mais disponível para o publico já que o sistema Onlive não permite a copia vazar. Então foi de certa forma como uma exibição fechada.
Foi a nossa melhor oportunidade de testar o conceito com o público e soubemos depois disso o que melhorar. Foi uma prova ao conceito do jogo que foi o mais votado e aprovado do pacote com vários Indies consagrados concorrendo conosco. Então isto só aumentou nossa vontade de continuar.


2 - No processo o que surgiu primeiro, a história, o visual, ou o gameplay? Como se processou a evolução do jogo?
:: Primeiro surgiu a temática do jogo e logo em seguida a história, tínhamos um gameplay idealizado que bolámos junto com a história porém este foi mudando conforme a gente ia testando com as pessoas e por fim descobrimos um equilíbrio entre história e gameplay que todos gostassem e ficassem imersos.


3 - Quais são as influências centrais de Toren? Toren possui traços que o tornam diferente ou único?
:: As influências centrais são o estilo simples e minimalista do Team Ico, e o jeito de contar história e de carisma das personagens dos filmes de Hayao Miyazaki. O que é único no nosso jogo é a forma como ele conta sua história com uma coerência total com o gameplay, onde cada ação sua desencadeia mais um pouco da narrativa de forma leve, natural e fluida. Quanto mais trabalhamos nele, mais adicionamos nuances e camadas de interpretação. Em si ele tem uma história envolvente, mas nas entrelinhas queremos pôr algo maior ainda.


4 - Qual é a história por detrás de Toren? E o que quer dizer Toren?
:: Toren quer dizer Torre em uma língua, e Portal em outra. Gostamos da coincidência e de soar como um nome saído de um livro do Tolkien. A história do jogo é sobre o mito do cavaleiro e da princesa mostrado pela perspectiva dela. A princesa nasce na torre e não contamos muito ao jogador, conforme ele vai desvendando e explorando o lugar, a história vai-se revelando, sobre a busca mais comum feita pela alma humana.
A great tower wraps the life of the little princess
One contract, one journey and Time itself ...
... that she's about to face
A path we're treading, seeking our inner Truths
Overcoming obstacles looking for what can fulfill ourselves
A sword, a gun, a door, an answer
One reason to survive among the cold stones
5 - Toren é um projecto para ganhar dinheiro, ou é a realização de um sonho?
:: O projeto nasceu da concretização de um sonho, é algo que a gente queria fazer naquele momento e quer ver pronto agora e esperamos que o sucesso seja uma consequência natural disto. Alguns veteranos falaram que nosso projeto intriga e tem "aderência" (que vende), no mínimo esperamos que ele abra portas para a gente como empresa ou como indivíduos.
Mas no fundo dos nossos corações, se conseguirmos executar da forma ideal, queremos que seja marcante, que seja memorável para os jogadores como está sendo para a gente criá-lo.


6 - Quantos prémios já arrecadou Toren? O que vos parece ser a principal força do jogo?
:: Arrecadou dois prémios no Brasil e foi destaque e finalista em mais dois importantes internacionais: foi melhor jogo no E-Games patrocinado pela Microsoft e foi o primeiro jogo brasileiro a ser destaque no IGF sendo menção honrosa em arte e este é de fato o ponto forte do jogo.
Não estamos indo pelo caminho mais habitual dos jogos artísticos, o caminho da "arte pela arte", estamos tendo uma abordagem mais pragmática e que julgamos que no fundo é muito poderosa com a maior parte dos jogadores.
Acredito que Papo & Yo seja o caso de direção mais parecida com o nosso, porém o nosso tem menos foco em puzzles e mais em situações inusitadas e novas, mas a aceitação dele pelo público do PS3 nos deixou otimistas para fazer o mesmo no PC.


7 - O Unity é a vossa ferramenta central, será para continuar, e porque não usar o UDK é grátis para jogos que vendam até 50 mil dólares?
:: Nosso programador era especialista em Unity e ele diz que nunca teríamos feito um Alpha desta qualidade e em tão pouco tempo com apenas 3 pessoas. A UDK aparentemente nos faria sempre ter o dobro de trabalho justamente pela quantidade de opções e trabalho que ela exige a mais que a Unity sem ter um resultado tão superior assim, e sinceramente começamos a acreditar na oportunidade de passar dos 50 mil em vendas após a Game Spy nos descrever como um possível próximo "hit indie massivo".


8 - O que podemos esperar mais de Toren e da Swordtales?
:: Esperem de Toren algo feito de coração, que comunica esse sentimento a todos que jogaram, e se conseguirmos refiná-lo será um grande jogo. A Swordtales pretende passear pelos géneros, se o Toren nos ajudar a bancar um próximo jogo, é possível que ele seja completamente diferente e inesperado novamente. Temos interesse em diversificar os apelos dos nossos jogos baseado no que queremos de coração fazer naquele momento e sabemos que este é um caminho que pode dar muito certo.

julho 14, 2012

José Alves da Silva, uma referência em character design 3d

Fiquei impressionadíssimo com o trabalho de José Alves da Silva que assumo, desconhecia. E o mais interessante é que não desconhecia o seu trabalho, desconhecia é que alguns trabalhos desses que agora reconheci fossem do José Alves da Silva. A última lista de artistas nacionais que aqui publiquei não lhe fazia qualquer menção.

Lil B! (Junho 2012), criado com 3ds max, VRay, ZBrush

O José acabou o seu curso em Arquitectura em 1996 e logo a seguir fundou a empresa Pura Imagem, empresa de 3d dedicada à visualização de Arquitectura. Esteve na Pura Imagem durante 15 anos (com mais 3 sócios), até que em 2009 cedeu a sua quota para se dedicar à actividade de freelancer na área de personagens. Em certa medida isto explica porque é que o seu trabalho criativo pessoal apenas começa a aparecer em 2009, mas talvez mais importante tenha sido o facto de nesse ano ter vencido o Image Master Award no CGSociety Challenge XXIV, com Mouse Love (2009).

Mouse Love (Agosto 2009) criado com 3ds max, Photoshop, VRay, ZBrush

As obras de José Alves da Silva são de uma qualidade incrível. Não é tanto a escultura/modelação, ou o realismo, é mesmo o detalhe, a assimetria e a “rugosidade” das formas e os pormenores na construção dos cenários. Depois em termos de textura e shadings é tudo tão absolutamente perfeito, bem saturado, realista mas suficientemente cartoonizado. Ou seja, o trabalho de José Alves da Silva não é daqueles que dizemos ser tecnicamente perfeito, ele é apenas e só, artisticamente brilhante.

Tequila Tatu - an Armadillo's Alcohol Addiction (Fevereiro, 2011) criado com 3ds max, VRay, ZBrush

Tendo em conta que qualidade deste nível não se vê todos os dias, não admira nada todo o reconhecimento que este artista nacional tem tido internacionalmente. São mais de 10 capas de revistas - 3DCreative, BANG!, PIXEL magazine - e livros internacionais - ZBrush Character sculpting - mais de 20 artigos/inclusões em revistas internacionais - 3D Artist (UK), 3D World (UK), 2D Artist (UK), 3DCreative (UK), Zupi (Brasil), PIXEL magazine (Républica Checa), Animation Reporter (India), Mars (China) - e nacionais - Computer Arts (Portugal), BANG! (Portugal) -, e mais de 60 distinções/prémios - CGTalk CG Choice Award, 3D Total Excellence Award, CG Hub Gold Award, It's Art Hall of Fame, Game Artisan's Award of Recognition, Deviant Art Daily Deviation, CG Arena Excellence Award, 3D Artists Jury Pick, Dopw Award, Art Limited Choice Gallery, GoldenTopia Award, 3D Artist Picture of the Week, CG Feedback Top CG Award, Art Squared Monthly Masterpiece -.

Capas de José Alves da Silva na 3dcreative entre 2009 e 2012

A juntar a tudo isto José Alves da Silva publicou ainda trabalho em alguns dos livros mais emblemáticos da arte 3d internacional - Exposé 9 e 10, Exótique 5 e 6, Digital Art Masters 5 e 6, Digital Art Masters 7, d'Artiste Character Modelling 3, Photoshop for 3Dartists, ZBrush Character sculpting -. Com tudo isto tenho poucas dúvidas que o José seja o artista 3d português mais reconhecido e premiado internacionalmente de sempre.

Fiz entretanto algumas perguntas ao José, que teve a amabilidade de responder e com grande celeridade. As respostas são muito interessantes para todos os que partilham a profissão, mas acima de tudo todos o que buscam entrar nela. Leiam mas acima de tudo percam-se no meio do seu magnífico trabalho, cada obra está tão cheia de pequenos detalhes que podemos passar muito tempo a olhar para cada uma delas.

A break from Bamboo (Maio 2011) criado com 3ds max, mental ray, Photoshop, ZBrush


1 – Como se atinge este nível de mestria de uma arte que exige ao mesmo tempo conhecimentos de escultura e de pintura?
:: Eu acredito que temos sobretudo de ganhar cultura visual, conhecendo o trabalho de outros artistas e enchendo a nossa cabeça de memórias. Os princípos base da arte são universais e intemporais. Aprendemos muito apreciando a arte de todos os períodos históricos, assim como os artistas contemporâneos. Essa vai ser a matéria a partir da qual iremos criar as nossas futuras obras. Acredito que a originalidade é sobretudo uma nova abordagem a algo que já conhecemos. Sem memória não há matéria para criar.
Pintar e esculpir é materializar a imagem que temos na nossa cabeça. A escultura e pintura digitais são mais fáceis do que as suas vertentes tradicionais, temos muitas hipóteses de errar e rectificar. Por isso podemos dar-nos ao luxo de ir experimentando e rectificando até atingirmos a imagem mental que criámos. É uma questão de persistência e treino das mãos para que acompanhem a cabeça.

Rhino General (Outubro 2011) criado com Photoshop, ZBrush

2 – Quanto do teu trabalho acreditas ser fruto de talento individual, e quanto do teu trabalho é aprendizagem?
:: Não sei se talento e trabalho podem ser separados. No caso do desporto podemos falar de uma aptidão física/genética, em relação às artes acho que é mais uma questão de educação e muitas horas de dedicação. Acredito que quem comece a desenhar/pintar cedo e mantenha essa actividade ao longo da sua vida consegue ter uma destreza superior a quem comece na idade adulta, da mesma maneira que uma criança que aprenda uma língua muito cedo tem a fluência de um nativo, não se passando o mesmo quando aprendemos uma língua mais tarde.
No meu caso, acho que sempre gostei muito de desenhar/pintar e nunca deixei de o fazer. O que faço é o resultado de todas as horas que treinei/estudei ao longo da minha vida.

The Boxing Kangaroo (Abril 2010) criado com 3ds max, mental ray, Photoshop, ZBrush

3 - Com tanto reconhecimento internacional e nacional, o número de pedidos  de trabalho que te chegam devem ser muito superiores ao que consegues dar  resposta, como é que arranjas tempo para criar trabalho teu, e participar em concursos?
:: Na verdade já há cerca de 2 anos que não faço um trabalho pessoal (a 100%) e não participo em concursos. No entanto, sempre que escrevo um artigo para uma revista que implica fazer uma imagem ou faço um trabalho comercial para um cliente tento dar o melhor de mim. À partida tento que todos os trabalhos que faço sejam matéria para portfólio. A verdade é que em muitos deles coloquei tanto de mim que acabam por parecer trabalhos pessoais, mas na realidade não são.  É o resultado de eu ter a grande sorte de trabalhar naquilo que me apaixona fazer.

Barrio Guy (Julho 2010) criado com 3ds max, Photoshop, VRay, ZBrush

4 - Tendo tu passado pela Universidade na área de arquitectura, o que é que achas que faz falta no Ensino Superior por forma a facilitar a geração de mais talentos nacionais na área do 3d?
:: A área do 3d implica (como muitas outras) uma aprendizagem que excede em muito aquilo que se pode dar num curso. É uma área muito tecnológica e em permanente mutação do ponto de vista das ferramentas e técnicas que usamos. Ninguém pode esperar tirar um curso e que essa bagagem de conhecimento lhe sirva para o resto da vida. Apenas 3 anos após o curso já tudo terá mudado.
Os cursos ou formação devem servir sobretudo para criar bases saudáveis, sobretudo ao nível das disciplinas fundamentais da arte. Também devem ser ensinadas as ferramentas e técnicas actuais mas incutindo no aluno a cultura da contínua aprendizagem e investigação. Só assim conseguirão sobreviver na indústria. Um curso em que estas duas vertentes sejam privilegiadas constituirá uma boa plataforma de lançamento.
Do que tirei no curso de Arquitectura, uso sobretudo aquilo que aprendi nas disciplinas de desenho, realçando a importância da teoria da côr ou a forma como devemos manter a mente aberta em relação a novas técnicas. O facto de ser um curso criativo, em que desenvolvemos projecto durante cinco anos também nos incute hábitos de criação diários. No entanto, na minha área sou sobretudo auto-didacta e tento, de facto, aprender coisas novas todos os dias e manter-me actualizado.
Aconselho a que as pessoas estudem em cursos que lhes ofereçam boas bases artísticas e que complementem esse conhecimento com disciplinas mais técnicas que explicam o uso das ferramentas (software). A partir daí é necessário manter a cabeça aberta para o resto da vida.

maio 19, 2012

Entrevista com Pedro Mota Teixeira

Depois do enorme sucesso que foi o video clip Sexta Feira do Boss AC resolvi fazer algumas perguntas ao Pedro Mota Teixeira criador do vídeo. O Pedro é para além de um excelente profissional, uma pessoa de uma enorme simpatia e humildade, digo-o porque tenho trabalhado com ele no âmbito do seu doutoramento em Ciências da Comunicação na Universidade do Minho nos últimos anos, e não deixa de me surpreender. Com 37 anos é licenciado em Design de Comunicação e Mestre em Arte Multimédia pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e é neste momento o director da Licenciatura em Design Gráfico do IPCA.


1 - Começaste pela Ilustração e BD, como é que passaste para a Animação, e depois para a Animação 3D?
:: Sim, comecei pela Banda Desenhada muito cedo. Com 16 anos ganhei dois prémios nacionais de BD (ainda estava no secundário, a frequentar a Escola Artística Soares dos Reis, no Porto). Depois, já na faculdade, continuei a desenvolver ilustração e BD, com mais alguns prémios – ganhei 3 anos seguidos o concurso de BD de Matosinhos, organizado pelo Salão de Banda Desenhada do Porto. Neste enquadramento, fui publicando alguns livros e, quando acabei a licenciatura, fui "recrutado" (soube mais tarde, à custa destes prémios) pela produtora Miragem, para trabalhar no projecto de TV "Major Alvega", para o qual desenvolvi, inicialmente, toda a ilustração, desenhando directamente numa "wacom", e, mais tarde, quando houve necessidade de aumentar a equipa para acelerar todo o processo de animação, fiquei responsável por essa equipa multidisciplinar que ia da ilustração à animação 2D e 3D.
Para poderes entender como tudo isto se desenrolou, tenho que voltar um pouco atrás… Os meus primeiros passos na animação foram guiados pelo Prof. Clídio Nóbio, na altura docente na Escola Artística Soares dos Reis, um homem da animação, que me deu a conhecer a Cinanima, alguma documentação mais "pesada", etc. Sempre fui muito pró-activo, daí ir desenvolvendo, na faculdade, trabalho nas áreas do 2D (flash, sobretudo) e 3D (lembro-me de desenvolver projectos na UC de Vídeo que misturavam 3D com imagem real, coisas muito amadoras, e de me apontarem como sendo “demasiado ilustrativo”. Aliás, devo dizer que o design só, não me completava, tinha alguma necessidade de pôr tudo a mexer!
Mais tarde, na Miragem, tinha as condições todas para evoluir: equipamento profissional, uma equipa muito competente e muita vontade de trabalhar! Fui quase obrigado a tirar, num ano e meio, um curso intensivo em várias aplicações. Sempre me senti confortável com a animação, apesar de, na altura, o 3D estar entregue a outros profissionais, o António Gonçalves (Seed Studios, e Linha de Terra) inicialmente, e o Luís Felix mais tarde (meu incansável amigo com quem há muitos anos comecei nestas andanças). A minha preocupação era conhecer o mais possível as técnicas digitais (2D e 3D) para poder gerir as necessidades de cada sector. Julgo que a minha grande contribuição na altura foi precisamente ter criado uma "linha de montagem", ter recrutado as pessoas certas e ter sido muito rigoroso com a estética da série (a minha costela de designer formado pelas Belas Artes: questões de composição, iluminação, expressão, sempre foram importantes). No final fomos nomeados para os Emmys.
Na Animago, apesar de me focar mais na realização, não deixava de explorar todos os sectores. Nos últimos seis anos, por razões académicas, de facto, tenho investido mais no 3D, mas não quer dizer com isso que privilegie esta técnica. Pelo contrário, aprecio a diversidade das técnicas da animação.



2 - Tanto trabalhas em 2D, como em 3D. É semelhante, é fácil para qualquer animador fazer esse cruzamento de dimensões?
:: Não é. Mas julgo que o mais importante para um animador é saber animar nos moldes tradicionais. Do meu ponto de vista, o computador é mais uma ferramenta, assim como o 3D é mais uma dimensão. É por isso que a Pixar recruta animadores com profundos conhecimentos da animação clássica. Claro que o domínio do software é importante, mas a animação não melhora por ser feita num ou noutro software, é a visão do animador que traz os resultados, independentemente de trabalhar no 3DS, Blender ou no Maya. Para mim, quando o animador tem as noções certas de timing, da importância da luz, da volumetria das sombras, da continuidade de planos, da interpretação da personagem, etc, o 3D traz imensas vantagens. E deixa-me acentuar que não tenho a visão que a “transformação do desenho” seja exclusivo do 2D. Não é um acaso que, nos últimos anos, curtas e longas criadas em 3D tenham arrecadado todos os grandes prémios internacionais. Aliás, a maior parte dos “dinossauros” actualmente já incorpora 3D nos seus projectos, seja de uma forma assumida ou dissimulada. Uma das vantagens do digital, nomeadamente do 3D, é a sua resiliência e capacidade de absorver uma infinidade de disciplinas e de estéticas.



3 – O teu projecto "Pedro e o Gato" é um sucesso na área da animação em Portugal, com a tua empresa de audiovisuais “Animago” acontecera o mesmo, qual é o teu segredo?
:: Julgo que na altura, o sucesso da Animago surgiu porque os principais recursos humanos da Miragem “transitaram” de uma empresa para outra, para além de, confesso, haver na altura falta de bons animadores virados para o mercado. Julgo que a Animago, no Porto, foi pioneira com a prestação de serviços de animação digital para genéricos televisivos, apresentações multimédia, cruzamento da imagem real com animação digital, o que agora designamos de “motion graphics”, etc.
A “Pedro e o Gato”, surge muito simplesmente porque, a determinada altura, me cansei de todo o frenesim que é desenvolver dezenas e dezenas de trabalhos comerciais, e também porque me sentia distanciar cada vez mais da criação (sendo sócio-gerente e director criativo, passava os meus dias em reuniões e viagens). Decidi, então, que estava na altura de desenvolver projectos com mais tranquilidade, e que me realizassem doutra forma. Claro que isso entrava em conflito com a Animago, que existia muito convictamente para prestar serviços ao mercado.
Nessa altura surgiram várias propostas, e aceitei o desafio para assumir a direcção do Curso de Design Gráfico no IPCA (Instituto Politécnico do Cávado e do Ave), participar na criação do MIA (primeiro mestrado público em Ilustração e Animação), conjuntamente com a Paula Tavares e a Marta Madureira, e dar apoio no desenvolvimento de um super laboratório de jogos digitais que, finalmente, irá surgir ainda este ano.
No fundo, em vez de Pedro Mota Teixeira, temos a “assinatura” do gato, que é uma imagem de marca que tinha criado na altura da Animago. Em tudo o que faço (sempre que possível) coloco sempre um gato preto ☺. Foi a forma que encontrei de se identificar facilmente o meu trabalho. E tem funcionado, ouço malta a dizer-me: “Sabes como sei que o filme é teu? Vi um gato preto no genérico, é teu não é?”.




4 - Muito do trabalho 3d em Portugal é feito no campo da publicidade, mas tu tens trabalhado acima de tudo para TV/Cinema (curtas, séries, genéricos, vídeo-clips). Por alguma razão em concreto, é uma opção ou tem mais a ver com a tua rede de contactos?
:: É uma opção pessoal. Normalmente em genéricos e videoclips tenho espaço criativo. Neste momento tenho a sorte de poder aceitar participar em projectos quando são de cariz autoral, quando me permitem explorar diferentes experiências estéticas e, sobretudo, quando me permitem estudar questões ligadas à criação de personagens, a minha área de doutoramento, e de interesse pessoal.


5 - Em termos de trabalho, para quem quer trabalhar na área, existe alternativa ao trabalho empresarial e/ou freelance na área da animação, dos audiovisuais, no fundo das áreas criativas? Em Portugal e mesmo internacionalmente.
:: Como docente preocupam-me as saídas profissionais dos alunos. A minha experiência diz-me que, felizmente, há muitos casos de sucesso. É necessário que o aluno seja competente, saiba pensar e executar; mas a forma como se posiciona na relação com o cliente, os colegas e o trabalho também ditará muito do seu sucesso. Nem todos são empreendedores ou artistas, mas a animação tem surgido em diversas plataformas, na Web, nos videojogos, nos motion graphics, o que também quer dizer que o campo de intervenção é dinâmico e com horizontes cada vez mais alargados. Suzanne Buchan, editora da Animation Journal é peremptória em afirmar que actualmente, a animação existe em formatos híbridos, em múltiplos suportes de comunicação, que podem e devem fomentar a criatividade e o empreendedorismo. Assim, a aposta na cultura e nas áreas criativas não deve ser desvalorizada; pelo contrário, deve ser um forte investimento.

Vasco, mascote do Oceanário

6 – Como é que vês a Animação em Portugal, é uma área com potencial de crescimento, em que áreas devemos apostar? E temos massa crítica para o fazer, ou vamos continuar a olhar para a área como uma actividade secundária?
:: Infelizmente não vejo a animação em Portugal de uma forma muito entusiasmada. Durante muitos anos viveu de curtas-metragens com apoios estatais do ICA e poucos recursos financeiros, distribuídos sempre pelas mesmas produtoras e autores. O circuito dos festivais era o único recurso de divulgação e fazer séries de animação não trazia retorno financeiro nenhum. Em suma, julgo que o futuro da animação passa por apostas em alternativas de financiamento, co-produções nacionais e internacionais, e por tirar proveito das novas tecnologias. O potencial da animação digital é enorme, não deve ser menosprezado, e temos que olhar para ela como uma ferramenta de trabalho com enormes vantagens.


7 - Referes que o vídeo Sexta-feira para o Boss AC, que já vai com mais de 2 milhões de visualizações no YouTube, como um trabalho autoral porquê? Ainda é possível criar trabalho autoral em 3d em Portugal? Quais são os maiores entraves?
:: Agora já vai em quase 4 milhões! O fenómeno das redes sociais é incrível, há meia dúzia de anos atrás isto nunca aconteceria! O termo “trabalho de autor” não me faz confusão nenhuma, basta olhar para trabalhos de Andrew Hickinbottom, Rebeca Puebla, Michael Kutsche, William Joyce, etc. para perceber que existe uma linguagem estética, única e expressiva, independentemente do alto domínio da técnica computacional. O entrave continua a ser a desconfiança com que alguns ainda olham para a ferramenta do computador, mas também a dificuldade em se poder criar “livremente” em projectos comerciais. Com o vídeo do BossAC foi muito fácil, foi-me dada total liberdade criativa.



8 - Ainda sobre este vídeo, como é que deste a volta aos direitos de autor da Lego?
:: Alterando as dimensões do lego. Na realidade é parecido com um lego, mas não tem exactamente as mesmas dimensões, e os encaixes também são diferentes. Por outro lado, por ser um trabalho de autor, não comercial.


9 - O trabalho que fizeste para o Café Central, é bastante diferente do que tens feito, em termos de controlo total da animação final. Em que medida é que isso choca com a tua noção de autoria e como é que minoraste essa questão?
:: Numa altura que o país atravessa um tempo delicado, este era o momento de dar voz a um Silva ou um Águas, no fundo, ao português anónimo. Todos os dias ouvimos injustiças, o caso da escola da Fontinha, dos cortes nos subsídios, nas pensões, etc. Por isso, o desenho das personagens exigia também uma linha mais agressiva, rude, um tom mais polémico que, partindo do humor, pudesse abordar temas sérios. Para tal era necessário que a animação pudesse ser gerada em tempo real de modo a acompanhar a actualidade das notícias. Em prol da importância da mensagem e devido a algumas limitações do software que gera toda a animação das personagens, procurou-se que a interpretação da personagem fosse credível o suficiente para que a mensagem passasse e suplantasse alguma rigidez da animação. Julgo que foi dado um passo importante no que toca a uma animação socialmente “interventiva” e “participativa”, mas também em termos tecnológicos, porque a animação interactiva é um campo com imenso potencial, que poucos conhecem. Diga-se que o desafio foi alargado ao MIA (Mestrado em Ilustração e Animação) do IPCA, que respondeu muito positivamente através da participação de alguns alunos.


10 - Qual o melhor trabalho que fizeste até hoje e porquê? E qual o trabalho que te deu mais prazer, e porquê?
:: Não sei se foi o melhor trabalho, mas tenho um especial carinho pela “História de um Caramelo” porque, em primeiro lugar, identifica uma época importante da minha vida, depois, porque é representativo no meio por ter sido o primeiro filme em tecnologia 3D apoiado pelo ICA, depois ainda, porque envolveu um trabalho de equipa com pessoas que valorizo, e, finalmente, porque foi um daqueles projectos em que a vontade de fazer conseguiu ultrapassar todas as dificuldades. E já agora, quando surgem elogios de animadores e realizadores internacionais, é sempre muito gratificante.

abril 18, 2012

Entrevista com Mário Domingos - Artista 3d

Mário Domingos [aka Spurv3d] é um artista 3d bastante conhecido na cena nacional. Hoje com 35 anos trabalha há mais de 15 no campo como generalista. No final dos anos 1990 termina o 12º ano em Artes em Lisboa e realiza um curso técnico de um ano em Maya na ETIC. Na sua carreira já trabalhou com Maya, 3D Studio Max, Shake, Photoshop, Boujou, Mudbox, Illustrator, Corel Draw, mas hoje dedica-se fundamentalmente a Softimage e After Effects.


Mário trabalhou para algumas empresas nacionais reconhecidas como a Duvideo e a Grande Écran,  no entanto rapidamente passou a freelancer. No final dos anos 2000 criou uma empresa em Portugal dedicada aos VFX, a Pato TV que no ano passado converteu em Pato Collective juntando vários artistas em regime de freelance, trabalhando internacionalmente. No momento trabalha em Portugal e desloca-se quando o trabalho exige à Irlanda. Da análise do seu Reel facilmente irão perceber que a sua área de eleição é a animação, mas como generalista acaba por trabalhar em todo o pipeline de produção.


Uma das coisas que me chamou a atenção no CV do Mário, é a forma como este começa, simplesmente dizendo "I love what i do". Isto é para mim uma marca distintiva no CV, que ainda por cima traz a vantagem de automaticamente impregnar o CV de motivação, e pro-actividade, que é algo que hoje mais do que nunca se procura numa pessoa.
Aqui ficam as perguntas que fiz ao Mario e as suas respostas.

1 - Como entraste no mundo do 3d? Encontraste aquilo que adoras fazer na vida, ou é um trabalho que tens de fazer?
:: Desde muito novo que soube que o meu caminho passaria por uma arte gráfica, talvez por influência do meu pai que era uma pessoa de muito talento artístico e também do meu irmão que sempre teve grande aptidão para o desenho, os dois bem mais talentosos que eu.
Devido a ter crescido na era das tecnologias, quando tudo estava a começar em Portugal, o ZX Spectrum, Timex, Atari St, Amiga, sempre me senti mais atraído pelas artes gráficas digitais.
Fiz de tudo um pouco até comprar um 486 e arranjar uma piratice de x disquetes chamada 3D Studio, ainda para DOS, isto ainda foi na altura do Windows 3.1 penso eu.
Foi paixão à primeira vista. Mas na altura o mercado era nulo, não havia cursos, ninguém sabia o que era o 3D e sem Internet estava sozinho no mundo!
Adoro o que faço.


2 - Qual foi o teu primeiro software? De todos os que utilizaste, e mesmo já não utilizando, qual o que te trás melhores memórias?
:: Como disse anteriormente o primeiro software que usei foi o 3D Studio versão DOS.
Daí fui seguindo todas as versões até ao 3D Studio Max 2.5 penso eu. Nessa altura soube que tinha saído o Maya e resolvi experimentar e descobri numa realidade nova, entrei noutra dimensão, finalmente tinha um software que me deixava criar sem os limites da altura, rapidamente percebi que estava no caminho certo, o Maya era outra filosofia, esse é o software que me trás melhores recordações, trabalhei com ele durante vários anos, oito ou nove. De momento uso o Softimage, há pelo menos três anos, a evolução fez com que se tornasse o melhor software do mercado na minha opinião, o mais equilibrado de todos.


3 - És generalista de 3d, por razões de mercado, pessoais ou outra?
:: O mercado obriga a isso, de qualquer maneira gosto muito de participar em todas as fases de produção e isso tem-me trazido bastantes frutos.




4 - Se pudesses ser Especialista, em que te especializarias?
:: Em animação, sempre foi o que mais gostei de fazer e penso que é o meu ponto forte.


5 - A Publicidade está muito presente no teu trabalho, sentes que em Portugal este meio é o único que compreende os benefícios do 3d, ou são os únicos que têm meios para o pagar?
:: Sim, são os únicos que têm meios. Mesmo assim não pagam o que devem pagar quando devem pagar, "esmifram" os orçamentos o mais possível e ainda por cima ficam meses sem pagar a quem realmente fez o trabalho e por vezes repensou todo o conceito.


6 - É assim tão caro usar 3d? Mais do que efeitos visuais tradicionais? As pessoas não requisitam por ser caro, ou por desconhecerem?
:: Sim é caro, não sei valores dos efeitos tradicionais, mas o trabalho em 3D e Pós-Produção requer técnicas específicas que requerem vários anos de experiência e isso vale muito, é um trabalho muito técnico e muito exigente que só alguns sabem, tem de ser bem pago, precisa de ser bem pago!
É isso que muita gente não quer perceber e pior ainda são os profissionais que "dão um tiro no pé" desvalorizando o seu próprio trabalho fazendo preços ridiculamente baixos para conseguir o projeto, e não pensam que isso os vai prejudicar no futuro. Não me refiro só aos freelancers que muitas vezes não têm escolha, de um lado as produtoras e pós-produtoras que literalmente arruínam o mercado, lobbies onde mostram orçamentos uns aos outros e regateiam para ver que faz mais baixo, outras que entraram no mercado há pouco tempo, gestões inexperientes que trabalham para o estilo, cheias de talento mas que não sabem o que valem, literalmente comidos pelas agências que ganham o bolo todo.
Por outro lado clientes que não cumprem com a sua palavra, simplesmente não pagam, ou demoram meses a pagar. Desrespeito e falta de integridade.

Tudo isto atrasa o mercado, orçamentos baixos levam a pouco investimento por parte dos estúdios, logo ordenados miseráveis e baixa qualidade por falta de empenho de empregados mal pagos e desmotivados que quando podem "bazam" para fora. Quem ganha com isto?
Poucos, talvez por vezes os clientes, as agências e por vezes algumas produtoras que vão passear para o Brasil e Polónia para fazer os projectos a sério que deviam de ser feitos cá. É uma bola de neve. É mais uma situação que espelha o estado do nosso país.


7 - Tens trabalhado para Telefilmes, Telenovelas e Publicidade, qual dos três é o teu meio preferido e porquê? Existe alguma área em que gostasses de trabalhar e ainda não tivesses tido oportunidade?
:: Sim já trabalhei em várias áreas e não tenho preferência, interessa-me que o projecto seja interessante, para mim é o que conta, nem sempre acontece.


8 - Qual o trabalho mais complicado que tiveste de fazer em termos técnicos? Podes dar alguns detalhes?
:: Trabalhei durante o ano passado numa longa metragem americana onde tive de criar vários enxames de traças para algumas das cenas. Foi bastante complexo ter de simular vários milhares de instâncias. Tive de criar um sistema de partículas que facilitasse a minha vida sempre que o realizador pedia alterações, não foi fácil mas foi um desafio e eu gosto de desafios. Usei Softimage/ICE.

9 - Como é que funciona o mercado nacional do 3d, recebes encomendas maioritariamente por que via: amigos, pessoas com quem já trabalhaste anteriormente, contactam a empresa directamente, ou outra?
:: Já me contactaram de todas a formas, funciona como qualquer outro mercado, mas em mau.


10 - O que aconselhas a uma pessoa que queira entrar no mercado nacional de criação de 3d? Mandar CVs? Criar porfólios? ou o quê?

:: Primeiro conselho que dou é de não entrar no mercado nacional mas sim no mercado global. O nosso mercado é minúsculo e funciona mal como já referi.
A criação de Portfólio é primordial, uma página simples com bom trabalho, ao início terá de ser com trabalho pessoal obviamente. Apresentem só o melhor que têm, mesmo que o melhor seja só um projecto, não mostrem projectos feitos a partir tutorials, não tem qualquer lógica, é preferível mostrarem algo da vossa autoria que fizeram com o que aprenderam no tutorial. O portfólio online é de certo a porta de entrada para o mercado.

11 - E em termos de abordagem, aconselhas à especialização ou ao generalismo?
:: Aconselho a saberem fazer de tudo um pouco mas com um ponto forte em algo específico. A especialização por vezes significa limitação, é uma questão de escolha e posicionamento.

abril 04, 2012

Entrevista com André Sier - Artista digital

O Andre Sier esteve a realizar uma residência artística no engageLab, e no seu último dia por cá resolvi fazer-lhe algumas perguntas, nomeadamente depois deste ter realizado uma excelente apresentação do seu trabalho no workshop TICE.pt.

Lampsacus

O André tem 34 anos é de Lisboa, e tem uma licenciatura em Filosofia, à qual juntou toda uma formação ecléctica de estudos adicionais nas áreas de Música, Bioquímica, Pintura, Escultura. Além disto é autodidacta em Matemáticas, Digital Signal Processing, OpenGL, Electrónica, Motores Gráficos, HTML, Java, C, C++, 3D, Som. Divide o seu tempo entre o criador, performer e formador na área das artes interactivas. Alia a paixão pela arte à paixão pela tecnologia dos videojogos em tempo real e algoritmos síntético-generativos-estocásticos.

32-bit Wind Machine @64-bits, who galeria, lisboa, maio-junho 2011

1 - Como nasceu o ímpeto para a criação de experiências estéticas?
:: Como nasceu não sei; sei que sou bastante incompleto se não me expressar esteticamente a vários níveis. Lembro-me de tocar guitarra, pintar, fazer objectos, modificar brinquedos e jogar jogos, no início da adolescência. Lembro-me claramente do momento em que experimentei pela primeira vez as experiências imersivas de motores como o space quest, wolfenstein, doom, quake ou o unreal, e estas experiências mudaram-me. Lembro-me também de certos filmes e discos e livros de autores especiais que me fizeram olhar para a vida com outros olhos. Todas estas culturas fizeram-me trilhar o caminho que percorri até agora. Experiências mais depuradas do que apenas tiros em jogos, talvez tiros metafísicos nos algoritmos, disparos de câmaras sintéticas em espaços fílmicos tridimensionais, livros generativos sem palavras e sem diálogos, sons de fórmulas harmonizados e polifónicos.

32-bit Difference Machine @64-bits, who galeria, lisboa, maio-junho 2011

2 - Qual era a tua relação com a escola? Davas-te bem com qualquer disciplina? Mais tarde no Superior as formações estavam adaptadas ao que pretendias?
:: Tinha alguns amigos com quem me esgotava fisicamente em jogos. Mas, regra geral, sempre fui solitário na escola. Gostava, mas não me dizia muito. Depende tanto dos professores. Gostava mais dos livros e dos autores. Do conhecimento. Fui descobrindo assim alguns. Acabava por navegar nas aulas no que era dito, acabando por me focar nos meus próprios mundos divagantes, perco rapidamente a atenção quando são coisas que não me dizem nada. Tinha bastante facilidade com qualquer disciplina, gostava e gosto de aprender coisas novas todos os dias.

No superior, foi o descalabro. Inicialmente estive uns 2 anos em Bioquímica, minha única opção de ingresso no público, porque de alguma maneira já sabia que não era aquilo que queria fazer. Mas tive algumas bases interessantes de pensamento científico aliado a uma boa mas muito insuficiente componente matemática. Paralelamente, fazia as coisas que me davam realmente gozo. Muita Música, alguma Performance, depois emergi em Pintura e Escultura, que ainda hoje me acompanham, numa prática mais direccionada para as instalações, modificações e sínteses dos fluxos sonoros e visuais em tempo-real.

Nessa altura, na escola de artes, depois de quadros e instalações, entrei a fundo nos motores de jogos e construí a minha primeira modificação de Unreal, que me levou alguns 6-9 meses a por de pé, aprendendo um pouco de Java e C++ e OOP para alterar alguns comportamentos da mecânica do jogo e levá-la mais para um lado de cinema experimental de autor de cariz imersivo, onde o espectador, à semelhança destes jogos, vai esculpindo a sua experiência com base nas interacções disponíveis no espaço. Mesmo a escola de artes de vanguarda na altura foi decepcionante. Tive várias discussões com alguns professores que me diziam que aquilo não era nada, já estava tudo feito antes no jogo original, eu não tinha feito nada, e, além disso, andar/habitar mundos virtuais nada tinha a ver com arte -- e eu sabia que estas ferramentas eram a resposta às minhas perguntas criativas, tudo o que queria fazer e desenvolver de futuro, tudo o que meu eu ansiava até então.

Desisti da escola de artes, mudei o meu curso para Filosofia (o meu self-hack final necessário para abraçar o âmbito da experiência de ser humano com a lógica de construção de algoritmos direccionados à criação de novos modos de experimentar), e continuei os meus estudos e a minha prática artística nesses meios computacionais, através de muitos livros e da internet. Isto era 1996, 1997, quando já fazia as minhas primeiras exposições e experimentações nas áreas de computação artística, e quando tive 4 semanas a tirar o CodeWarrior pirateado numa ligação de 56kbps, que pouco depois usava avidamente. Estudava Filosofia durante o dia, e programava durante as noites até altas horas da madrugada. Pouco tempo depois comecei a dar aulas de computação interactiva enquanto ainda estudava.

Depois de acabar Filosofia na área de Estética, com um trabalho final de 18 valores que metaforizava a filosofia de Gilles Deleuze com um filme de Michael Snow, enquanto já tinha participações regulares em exposições e dava aulas -- factos que me levaram a ter demorado mais 2 anos que os normais 5 anos a terminar o curso -- , abandonei de vez os estudos e dediquei-me quase inteiramente à minha vida profissional activa precária, de desenvolver peças interactivas em torno das ideias que fui depurando, de dar umas aulas de vez em quando, e de ser explorado monetariamente na apresentação dos trabalhos que tenho realizado, e de algumas boas colaborações em projectos com artistas.


3 - O que consideras que foi mais importante na tua formação para fazeres o trabalho que fazes hoje, de cruzamento entre arte e programação?
:: Sem dúvida alguma: ter uma ideia difusa muito forte do que queria fazer, e ir activamente populando os meus neurónios com ferramentas, conceitos e práticas essenciais para o fazer. Cedo percebi que essas ferramentas tinha de as inventar eu, usando linguagens de programação primeiro visuais, depois, mais poderosas, textuais. Uma auto-formação activa. Self-hacking. Algo que nenhuma escola ensina e poucos e bons professores deixam pairar numas entrelinhas escondidas que levam a esses becos sem saídas óbvias, e, mais importante, às fontes de onde eles próprios bebem. As más experiências foram também muito boas por duas razões: prática e conhecimento dos meios artístico-pedagógicos; saber o bê-á-bá da história e das técnicas em si nos vários media que explorei; conhecer os meandros dos sistemas sociais que regem a elite praticante vigente como se de uma cátedra se tratasse. Pelo caminho fui e vou requintando uma linguagem de autor, vendo as coisas cada vez mais transparentes.


4 - O que é que pensas que falta para que mais pessoas consigam tornar-se híbridos no sentido de desenvolver trabalhos de fronteira como o k. ou Corrida Espacial?
:: As pessoas têm de sonhar e de ousar intervir. Têm de se lançar em regiões inóspitas e desconhecidas. Saltarem sem certezas de aterrarem vivas. Isso só elas podem fazer. Claro que o sistema social e de educação poderia ajudar, se, em vez de máquinas ferrugentas e lentas, portas de triagem da elite vigente, fossem de facto um sistema que primasse pela investigação e desenvolvimento, nas mais variadas áreas, que permitisse a livre circulação dos verdadeiros alunos pelas várias disciplinas e vários espaços de vanguarda, criando gerações de pessoas nativamente híbridas, adaptativas, e acima de tudo, criativas.

Por outro lado, estes trabalhos só se criam porque são uma resposta a um estado de coisas tão absolutamente cego, a mecânicas universais naturais que não poderão existir num mundo harmónico, interessante e inovador.

São trabalhos que não vejo muito por aí. O que mais se vê nestas áreas são interacções minimalistas que se ficam por formas eye-candy e que deixam muito a desejar conceptualmente. Neste tipo de trabalhos que desenvolvo, procuro que sejam, primeiro, experiências imersivas intensas, transportem as pessoas para dentro da obra, dando a ver os alicerces dos edifícios, relegando o sabor visual para experiências arcaicas; segundo, que conceptualmente iluminem às pessoas regiões minimamente interessantes e lhes proponham labirintos mentais muitas vezes sem saídas; terceiro, que sirvam como setas arremessadas à sociedade global que nos rodeia e faz deste mundo o que ele é -- sempre mantendo a esperança que as setas acertem mesmo os alvos, e, ferindo, activem mecanismos anímicos transformadores ou catárticos.


5 - Falando de k. quais são os maiores desafios que temos ali em termos de desenvolvimento técnico?
:: Foi um motor de jogo relativamente ingénuo mas quase completo e criado a partir do zero em processing sem qualquer tipo de dependências, e mais recentemente portado para c++ / openframeworks. Mas foi inteiramente concebido e criado por mim, sem qualquer tipo de apoio em trabalhos pré-existentes. Nada de Binary Space Partition Trees (ainda), apenas grelhas com alturas, muitos objectos e polimorfismo e muita lógica simples. Foi o meu primeiro motor procedural verdadeiramente 'infinito', capaz de gerar numa precisão de 32-bit uma panóplia inimaginável de níveis jogáveis da ordem do sublime kantiano (cerca de 4,294,967,295 espaços possíveis, ou seja, 2^32-1) a partir de apenas 64kb de código java compilado.

Cada nível/espaço deste motor, por sua vez, consiste numa grelha de número arbitrário de subdivisões, onde cada subdivisão pode ter um tipo de terreno distinto e uma proporção aleatória dos elementos geométricos base que constituem as formas do mundo virtual ( prédios, torres, espirais, portais esféricos, quadrados, etc). E há uma lógica de jogo simples, bem como detecção e respostas de colisão com os objectos. A ideia principal é coleccionar quadrados que permitem activar o transporte para outros níveis. Ser um agrimensor, na correcta acepção da palavra.

A ideia deste jogo, desta experiência, é lançar o utilizador, como K. de Kafka, na demanda do castelo do conde Oeste-Oeste, que domina as engrenagens geométricas das paisagens. Obviamente que o Castelo se encontra apenas num dos níveis, dentro duma subdivisão dessas zonas, o que torna um desafio extremamente interessante e simultaneamente inglório, à boa maneira dos labirintos gregos originais.

Esta primeira versão de 2007 foi um verdadeiro ovo de pássaro de fogo, no sentido deleuziano, por ter 3 níveis de actuação. A minha primeira comissão estatal, para a galeria net-arte da DGartes, aparece como um cavalo de tróia metafórico, quer no local onde se instala, na direcção que aponta (deslindar os meandros do conde de oeste-oeste / u.s.a ) e no poema que cria da vida do software aberto / comercial / (k)rackado na internet. A versão de 2010, 'k.~', é já uma fénix crescida, onde não são já necessárias nem teclas nem rato, apenas a voz e o som dos espaços activa a navegação do avatar no espaço (i)limitado.


6 - Qual dos teus projectos foi mais complicado de implementar, e porquê?
:: Todos foram complicados, mesmo os aparentemente mais simples, requerem sempre detalhes minuciosos. Deliciosamente os meus melhores professores, os meus projectos. Talvez hoje escolha 'Eer' de 2011, da série uunniivveerrssee.net, porque foi a criação de um ambiente tridimensional partilhado simultaneamente por multi-utilizadores onde sincronizo através da internet e de bases de dados php posições e acções de múltiplas pessoas simultaneamente, bem como enxames de elementos autónomos.


7 - E qual te deu mais gozo, prazer ou desafio intelectual?
:: Todos eles dão, de maneiras diferentes, por isso gosto de trabalhar em séries. Talvez aqui hoje escolha o '747.4' por condensar o gosto que tenho na delimitação de falhas lógicas em algoritmos, que se expandem a regras sociais. Esta peça, '747.4', consiste na criação de 4 esculturas em gesso da minha série '747' caracterizada por vôos livres, onde um avião sobrevoa uns blocos de terrenos. Mas o interessante desta peça em particular é que criei 4 esculturas de gesso e instalei em instituições / eventos de arte à sua revelia e sem o seu conhecimento, tendo hoje em dia apenas imagens que provam as intervenções. Um roubo invertido, onde tive de entrar, por exemplo, nos jardins da Gulbenkian no dia do trabalhador de 2008 à noite para instalar o primeiro modelo de '747.4' e tirar umas fotos sem saber se ia ser apanhado pela polícia.

747.4

8 - Quando crias trabalhos como k. a vontade é movida unicamente por razões pessoais, ou levas em conta a audiência, as suas sensações, experiências e dificuldades de acesso à ideia, conteúdo da mensagem?
:: Unicamente não, mas maioritariamente pessoais. Acho que as obras têem de trilhar caminhos novos, fazerem novos mapas, e, se forem boas o suficiente, audiências capazes de as apreciar surgem naturalmente em torno delas. Nestes casos, nunca são coisas mainstream, talvez hoje em dia haja um nicho reduzido de artistas internacionais que polua esse espectro, mas sinceramente, isso não me interessa. Para mim, os meus projectos são objectos de auto-conhecimento e de experimentação na criação de novas linguagens de comunicar conteúdos e conceitos. A contínua refinação de objectos-koan, simples, precisos, elementares, incisivos, mesmo que para tal comportem uma avalanche de mecanismos complexos de relacionamentos algorítmicos. Gostava de criar objectos que transportassem as pessoas para mecanismos tão díspares do real, que pudessem ser pedras-de-toque desencadeadoras de avalanches subtis, emocionais, racionais.


9 - Estiveste no engageLab a trabalhar na tua última obra, como é que foi a experiência, o contacto com as outras pessoas do laboratório, o contacto com Universidade e a cidade?
:: Foi uma experiência óptima, estrangeirar-me para o berço da nossa nação para fundar uma cidade virtual, Lampsacus, que é uma metáfora das regiões que albergam limites (a grega antiga Lampsacus que albergou Anaxágoras exilado vs. o que acontece na grécia contemporânea / declínio da capitália ) e de regiões que se autoconfiguram continuamente com base nas intervenções dos utilizadores do  cyberespaço, Lampsacus de Otto Rössler, a internet livre, caótica, a bomba, a cidade berço de onde todos nascemos e habitamos.

Foi também um voltar à universidade e aos seus ritmos, à boa comida vegetariana da cantina; e um reconfirmar que não irei tão cedo pensar em voltar para a universidade tentar doutoramento ou algo do género. Os meus projectos são os meus guias, e espero poder continuar a construir experiências marcantes para as pessoas. Conheci pessoas muito interessantes, ávidas de criar, que estão a desenvolver trabalhos dentro do engageLab com um grande potencial, e procurarei manter contacto com pessoas que me marcaram durante a minha não tão curta estadia, e de com elas criar sinergias a múltiplos níveis. Precisamos de laboratórios deste tipo por todo o país, onde não apenas se cumpram requisitos académicos mínimos, mas se tente fazer algo de novo.

Guimarães é das poucas cidades que conheço que tem o tamanho adequado. Pequena, num vale. Adoro o centro inalterado, casas em pedra de boas proporções, esplanadas, burburinho universitário, onde tradições académicas andam de mãos dadas com turismo religioso e espaços verdes. Acima de tudo a qualidade do ar que lá se respira é magnífica. Tem é excesso de turismo religioso, e precisaria de mais e melhor diversificação cultural -- mesmo durante Guimarães 2012, as iniciativas passam ao lado das pessoas devido à pouca informação disponível.

Lampsacus

10 - O que é que pretendes com esta nova obra, Lampsacus? Quando é que estreia?
:: Pretendo criar uma experiência única às pessoas que a visitem e que procurem interferir com ela. Controlarem a peça apenas através do seu movimento no espaço. Algo entre o filme, o jogo, a experiência pessoal não verbalizável. Algo que esteja à altura de uma ideia como a de Rössler, algo que funda novos territórios geométricos na fruição de experiências. Algo que transporte as pessoas para uma Lampsacus delas, que se sintam como Anaxágoras, exilados, mas cientes das suas ideias modificantes. Algo que lhes visualize a eterna mudança das estruturas despoletadas pelas suas próprias acções. Algo que as mantenha despertas, proactivas e as faça sonhar com o que elas possam fazer, desequilibrar, construir, destruir. Vejam algumas imagens e videos.

A peça vai estrear na exposição Emergências 2012, no dia 16 de Junho, na Fábrica Asa, em Guimarães, junto à Nacional 105, Covas, com muitas outras peças de arte digital, experimental, new media. Vejam o site da expo para mais informações e tragam os vossos amigos!

11 - Para fechar, o que quer dizer s373?  :)
:: É o meu estúdio virtual, onde passo maior parte do tempo, a congeminar combinações harmónicas de símbolos e números aparentemente sem significado em coisas como 7 e 3 são dez ( x ). Acrónimos numérico-simbólicos mais próximos de essências de raízes dos meus trabalhos, bastante mais colados a uma proto-linguagem poderosa de onde nascem as várias línguas humanas e mecânicas. Depois de arranjar boas combinações, começo a escrevinhá-los em arranjos lógico-semânticos que passam a ter algum significado algorítmico ( pelo menos lógico-operativo, correm, são executáveis ). Algo como o pintar o sete do Almada Negreiros vem-me à mente, bem como a minha tradução numérica do nome do meu estúdio, 24('s' é a 24ª letra do alfabeto) + 3 + 7 + 3 = 37 = 10 = x. Infelizmente, nos Estados Unidos, parece que é uma moção para banirem o uso doméstico de pythons. E sim, seria interessante que estes significados meta-simbólicos fossem activados em forma de DNS's proactivos :)

Snakes are nice pets, but you just can't beat mon-keys :)