Mostrar mensagens com a etiqueta emoção. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta emoção. Mostrar todas as mensagens

novembro 02, 2017

"Stranger Things 2" e os Media nos 80

“Stranger Things 2” não difere muito da primeira temporada no que toca ao conceito, diferenciando-se no entanto bastante a nível técnico, desde a escrita à cinematografia.  Nota-se um cuidado tremendo, tudo foi muito pensado e analisado, cada detalhe que vemos, ouvimos ou percepcionamos foi lá colocado com um objetivo muito concreto, o que garante a toda a série uma coerência impressionante, e explica em parte o seu sucesso.

A televisão como centro da cultura dos anos 1980

Este caráter técnico muito cuidado acaba por contrastar com o tema de fundo da série, os anos 1980, um tempo em que muito do que se fazia estava longe da perfeição. Mas o trabalho de realização não se limita a repescar ou a prestar homenagens a obras dessa época, toda a estrutura narrativa assenta numa mescla de padrões decalcadas dessas obras. As estruturas mais evidentes surgem desde logo pelo uso do grupo de crianças que partem à aventura ("ET", 1982; "The Goonies", 1985; "Explorers", 1985) a que se junta o padrão do grande mal que veio do desconhecido ("The Evil Dead", (1981) "The Thing", 1982; "Aliens", 1986). Neste caso a série é mais arrojada que por exemplo o filme “Super 8” (2011), pois não se constrange no uso do horror.

Um dos múltiplos postais de promoção da série que citam diretamente filmes de horror, no caso "Aliens" (1986), ao que junta a data prevista de saída, junto ao Halloween.

Os anos 1980 não são os primeiros a ter direito a este tipo de adaptações, no entanto são os que têm ostentado mais sucesso. Por exemplo Netflix produziu uma outra série, “The Get Down”, dedicada aos anos 1970, tendo recorrido ao respeitado cineasta Baz Luhrmann, mas que não passou do episódio 11, apesar de um resultado audiovisual excepcional. Contudo o público alvo dos anos 1970 é muito mais escasso, desde logo porque nessa década a televisão e o cinema ainda não tinham assumido o controlo total da cultura, o que fez com que muitos dos que viveram essa época não tenham acedido a veículos de massificação de cultura. É verdade que existem alguns resquícios dessa identidade massificada nos anos 1970 mas mais no campo musical. Aliás, talvez não seja por acaso que “The Get Down” se baseie na música, no "disco sound".

Série “The Get Down” (2016-2017) da Netflix

Neste sentido, podemos dizer que muito do que alavanca a recuperação da cultura dos anos 1980 se deve ao facto de termos, hoje, as gerações que viveram nessa época a sua adolescência, em lugares centrais de poder, desde as empresas às universidades, passando por tudo o que é comunicação social e produção cultural, mas aquilo que os torna verdadeiramente particulares é o facto de pela primeira vez termos tidos obras de massificação global da cultura, que chegaram a quase todas as geografias e de forma muito rápida, por meio da Televisão. Se olharmos à evolução dos media e à produção cultural que os alimentava, existem pelo menos dois elementos centrais: por um lado, o aumento da relevância da televisão na cena pública, que faz com que aumente a necessidade de maior produção de produtos audiovisuais, em que se inclui a necessidade da música começar a surgir com telediscos; e por outro lado, sendo a televisão hegemónica, e ainda sem o espartilhamento em canais segmentados, os mesmos ideais, valores e identidades vão ser repassados para todos de forma igual. Podemos dizer que os anos 1980 funcionaram como a ponta de um funil, que fez convergir toda a diversidade cultural que vinha de trás. E repare-se como tudo isto vai começar a desaparecer a partir do meio da década dos anos 1990, quando a internet surge e começa a tomar conta dos interesses das gerações que estão nessa altura a crescer.

A semelhança com "Close Encounters of the Third Kind" (1977)

Isto acaba por conduzir “Stranger Things 2” a um paradoxo em termos de media, porque se a maioria da cultura que suporta os anos 1980 na série provém diretamente do cinema (The Exorcist, 1973; Jaws 1975; Close Encounters of the Third Kind, 1977; Halloween, 1978; The Warriors, 1979; Escape from New York, 1981; Poltergeist, 1982; The Thing, 1982; E.T. the Extra-Terrestrial, 1982; Gremlins, 1984; Ghostbusters, 1984; Indiana Jones and the Temple of Doom, 1984; Karate Kid, 1984; The Goonies, 1985; The Terminator, 1984; The Breakfast Club, 1985; Stand by Me, 1986, ver muitas outras referências e ainda mais), isso só se explica porque a geração que recorda estes filmes, não se recorda de os ter visto nas salas de cinema, mas na televisão. Do mesmo modo, se a série é supostamente uma série de televisão, o media que a suporta é a Web (Netflix), e muitos dos que hoje a veem não usam a televisão para a sua visualização. No fundo temos um produto de televisão que homenageia o legado cultural da televisão, não tendo esta estado na base da produção, nem antes nem depois. Isto está relacionado com o afunilamento cultural do parágrafo anterior, mas merecia todo um estudo per se.

Voltando à série em si, é impossível não falar do modo como exerce a sua atração sobre os espetadores. Já percebemos que o tema são os anos 1980, o cinema, a música e a televisão dessa época. Já percebemos que existe um público muito alargado de pessoas que se identificam com essa época e essa cultura, e que garante à partida o sucesso da série. Este público está hoje na meia-idade, e como disse acima algum dele até bem posicionado na sociedade, mas isso não o impede de se questionar sobre o que conseguiu e não conseguiu, de voltar às dúvidas existenciais que pensava terem desaparecido com o final da adolescência. Para muitos, esta série é o antidepressivo perfeito, já que os leva de volta à idade da inocência, antes do conhecimento dos problemas, das responsabilidades, dos empregos, casa e filhos. De certa forma podemos dizer que a pré-adolescência e adolescência representa para uma parte significativa de pessoas, o eldorado desta vida, o tempo em que a imaginação era tudo, e a criatividade era ilimitada, mesmo que os adultos e professores teimassem em dizer que não. Depois de adultos, mesmo com algumas pergaminhos na parede e sem falta de meios no bolso, tudo parece mais vedado e artilhado à nossa volta. Pode-se fazer muito mais, ir de férias, adquirir a consola ou televisão que se quiser, comer a doçura que nos apetecer, quantas vezes no apetecer, mas a liberdade de que se dispunha, de que o mundo estava a nossa mercê desapareceu, sendo que o que verdadeiramente aconteceu foi a nossa transformação, ganhámos consciência dos limites que a sociedade nos impõe e por isso dos nossos próprios limites. “Stranger Things 2” abre uma janela, ainda que temporária, para esse mundo sem limites.

Por outro lado, e apesar da série ser recomendada para adultos, os seus principais intérpretes são um grupo de crianças, pré-adolescentes, que servem de padrão narrativo em analogia aos filmes dessa época, e acabam por trazer para a frente do ecrã pais e filhos, mas nesta segunda temporada parece existir algo mais. Os pré-adolescentes em cena, não estão apenas a fazer o papel de crianças nos anos 1980, gerando identificação com as crianças de hoje, estão ainda a gerar identificação direta entre os espectadores agora adultos e as suas nostalgias de criança. Existem dois momentos em que isto é muito evidente: a abrir a temporada, no salão de jogos, e a fechar a temporada no baile de finalistas. Em ambos os casos, os miúdos não teriam idade para ali estar, contudo se ali aparecem, é acima de tudo para manipular as memórias que vamos revisitando por meio dos estímulos que as referências cinematográficas vão gerando.

No fundo, “Stranger Things 2” é um cocktail de estímulos desenhado para nos impactar emocionalmente, para nos agarrar através daquilo que mais prezamos nas nossas vidas, as memórias das nossas experiências. Sendo estas memórias um reflexo do que fizemos, mas mais do que isso, daquilo que somos ou daquilo em que nos tornámos. Porque é nestas memórias que as nossas emoções mais profundas se baseiam para nos ajudar a reagir, é aí que estão gravadas as nossas decisões morais, sobre o que correu bem e correu mal, e por isso quando ativadas reagem fortemente. Neste sentido, não admira que tantos e tantos espectadores se digam profundamente afetados emocionalmente pela série.

dezembro 17, 2016

“The Last Guardian” (2016)

“ICO” saiu em 2001, “Shadow of the Colossus” (SOTC) saiu em 2005, e este ano chegou a vez de “The Last Guardian” (TLG). São os três únicos videojogos criados por Fumito Ueda, três grandes visões oníricas e peculiares que dão acesso a um género próprio que opto por apelidar aqui de humanismo fantástico. Dito isto, fica claro que não podemos cingir a interpretação de TLG a si próprio, temos de olhar ao contexto do autor e suas criações prévias. Não sabemos se Ueda nos dará mais algum jogo mas esta é, desde já, uma das trilogias mais relevantes na definição da arte dos videojogos.



Podemos começar pelo que uniu ICO (analisado em 2004) e SOTC (analisado em 2013) dizendo que é o mesmo que os une a TLG, e que assenta em dois grandes pilares: a capacidade empática; e o mundo história. Nos três videojogos, os mundos são enigmáticos, nos seus sentidos mais herméticos e obscuros, ao mesmo tempo que os seus personagens são profundamente humanos, nas suas expressões mais sensíveis e de compreensão do outro.

Por outro lado, em todos os três jogos, a história é mais tema e menos trama. Ou seja, surge como pano de fundo que alimenta um enredo mínimo, estimulando o interesse e a envolvência dos jogadores pela performance e interação dos seus personagens. Temos aquilo que na academia definimos como, narrativas orientadas por personagens (character-driven narrative). Assim, não é saber quem criou aquele mundo e aqueles seres (problema ou conflito) que nos agarra, mas é antes saber como vai terminar a relação entre aqueles seres que nos move (personagens).

"ICO" (2001)

"Shadow of the Colossus" (2005)

"The Last Guardian" (2016)

Em 2001 tivemos o Rapaz e a Rapariga, em 2006 o Jovem e o Cavalo, e agora de novo o Rapaz, mas junto com uma criatura do fantástico (fusão gigante de cão, gato e pássaro). Podemos tentar explicar o que une estas três relações, e se nos esforçarmos serão múltiplas as interpretações que poderemos desenvolver, até mesmo, criar as devidas progressões e evoluções entre os três volumes. Contudo o seu criador não o fez com esse intuito, de modo que fazê-lo será estar apenas a dar azo as nossas próprias fantasias. Para mim, é suficiente reconhecer que os universos dos três videojogos se cruzam, formam um todo coerente, profundo e impactante do ponto de vista sócio-político, emocional e claro, estético. Ainda assim, arrisco a deixar a minha leitura: temos a fragilidade humana que dita a sua condição colaborativa e cooperativa; temos o instinto de sobrevivência emocional que nos empurra para o outro, para a compreensão desse outro, e obriga ao colaborativo e cooperativo; e temos, todo um mundo exterior que nos coage pela sua grandeza, pela sua estranheza e seu segredo, que nos encosta à parede e nos obriga a gritar pelo outro, a recorrer ao colaborativo e cooperativo. E assim temos um humanismo fantástico.

Não admira que durante quase uma década “ICO” tenha surgido invariavelmente citado como o videojogo mais emocional, em termos de emoções introspetivas — empatia e melancolia — já que no que toca a emoções expansivas — tensão e euforia — sempre estiveram presentes desde o primeiro videojogo. O que as obras de Ueda fazem é falar ao nosso ser, questionar a nossa condição humana, porque fazemos o que fazemos, todos os dias que acordamos e regressamos do estado de não-consciência! É isto que fazem todas as grandes obras da literatura, do cinema ou do teatro, e é por isso que os trabalhos de Ueda não se encerram sob a mera definição de entretenimento, de produto de design gerador de “fun”, são algo diferente, são obras de arte.

Design de jogo - a capacidade empática
No campo do design de jogo as obras de Ueda trabalham todas em redor dos NPC (personagens não jogáveis). Se em ICO tínhamos Yorda e em SOTC tínhamos Agro junto com os Colossus, aqui temos Trico. Em todos, temos a IA a dar vida aos NPC para que eles se tornem credíveis, mas acima de tudo para que eles proporcionem tudo aquilo que de jogo se trata. Se é da interação entre personagens que os jogos de Ueda vivem, é natural que os seus personagens tenham de ser não apenas bons, mas absolutamente perfeitos. Sim, não esqueçamos que é de arte que falamos, de uma representação do real, na qual os criadores podem recortar tudo aquilo que menos lhes interessa, mesmo que se trate de um jogo com ação passada em tempo real. Claro que para isso, foi preciso dotar Trico de um dos mais ricos repertórios de linguagem não-verbal que podemos encontrar no mundo dos videojogos.




Todos os seus movimentos foram criados, avaliados, e refinados até ao mais ínfimo detalhe para garantir um manancial comunicativo inestimável. Vai muito além de Yorda que na altura nos tinha tanto surpreendido. Diria que temos uma espécie de Yorda junto com um dos Colossus, mas imensamente mais vivo, mais, podemos dizer, humano. Mas se tudo isto é fascinante, mais ainda é quando percebemos que o propósito de tudo isso não é Trico, mas sim o nosso próprio personagem controlável, o Rapaz, atente-se nas palavras de Ueda que explicam:
“The main character is controlled by the player, so the main character is you, but because every single gamer is different, it’s very hard to give the player an exact definition of the protagonist: it’s up to you who the main character is going to be. As a developer, in order to form such a character you need assistance from that character’s surroundings – that’s where the role of the NPC, or opposite character in the case of our games, comes in. The secondary character helps shape the main character. That’s how we make our games.” Fumito Ueda 
Ou seja, Trico, tal como tinha acontecido com Yorda e Agro, comunicam em espelho aquilo que o protagonista sente, fazendo o jogador sentir-se como sente o protagonista. E é assim que surge toda a força do elemento que destaquei no início deste texto, a capacidade empática. E é exatamente aqui que TLG vai muito além dos seus antecessores, já que Trico é uma força da natureza, é verdadeiramente aquilo que o meu filho não parou de lhe chamar ao longo de todo o jogo, “o teu amigo”. E é por isso que me tenho rido sempre que leio pessoas a dizer que o TLG tem muitos problemas e bugs, nomeadamente no controlo de Trico. O que esses jogadores não perceberam é que Trico é um animal, um ser-vivo e não um robô, por isso nem sempre faz o que se lhe manda e isso é absolutamente brilhante.

Mundo história - Ambiente, Espaço e Arquitetura
Tudo o que vivemos com Trico, vivemos num mundo dotado de uma arquitectura absolutamente particular, que cria um ambiente distinto e imensamente atmosférico. Ou seja, um cenário de fantasia, fruto de uma grande mistura de variáveis próprias ao mundo de Ueda. Algo que é particularmente interessante, academicamente, já que Ueda tem dito em entrevistas, que estes mundos brotam apenas da sua imaginação, uma vez que ele dedica pouco tempo a procurar referências ou a viajar para conhecer locais. Inclusive, chegou mesmo a dizer nunca ter visitado um castelo, o que impressiona tendo em conta as estruturas presentes nos seus três jogos.

No entanto, e apesar de Ueda dizer tal, isso não corresponde completamente à verdade. Ao longo das várias entrevistas, e um pouco tirado a ferros, foi deixando cair algumas referências que entretanto Gareth Martin coligiu para a Eurogamer. Assim, e seguindo as pistas destacadas por Martin — três artistas, De ChiricoTrignacPiranesi — podemos compreender como pôde a imaginação de Ueda germinar mundos tão estranhos, impenetráveis, misteriosos, e acromáticos. A nossa imaginação trabalha por meio da nossa criatividade que só funciona quando plena de experiências, ideias e mundos. Do vazio só brota vazio.

"The Nostalgia of the Infinite", 1913, Giorgio de Chirico

"Le vieux pont", 1980, Gerard Trignac 

"La tour du pendu", 1981, Gerard Trignac

"The Man on the Rack", 1761, Giovanni Battista Piranesi


Para fechar, ainda que exista tanto e tanto para dizer sobre TLG, podemos numa primeira impressão sentir uma certa limitação na obra, nomeadamente na sua capacidade para ultrapassar as obras anteriores do autor. Inicialmente podemos sentir que TLG é mais uma atualização técnica que se socorre de um mesmo conjunto de mecânicas, valores e ideias, mas isto é algo que rapidamente se desvanece, porque a obra e o jogo deixam de o ser, dando muito rapidamente lugar ao sentir para com Trico. O mundo torna-se natural aos nossos olhos e à nossa ação, passando nós a estarmos ali, participantes de uma realidade fantástica, focados apenas naqueles personagens, nos seus desejos, motivações e bem-estar. TLG desenvolve uma experiência única, e estando em linha com as obras anteriores não deixa de ser completamente autónoma.

novembro 18, 2016

“Rosalie Lightning: A Graphic Memoir” (2016), o luto

Perder um filho deve ser das situações mais desesperantes que um ser humano pode atravessar. É simplesmente contra-natura, temos filhos, de um ponto de vista biológico, para nos suceder, e quando isso não acontece, o corte é profundo, a dor surge por todos os poros, psicológicos e físicos. Acredito ainda que isto é tanto mais intenso, numa sociedade que elegeu ter apenas um, ou dois filhos no máximo. “Rosalie Lightning: A Graphic Memoir” fala-nos da dor, da vida após a perda, do luto.


Não esperava mais, mas esperava diferente, talvez mais pungente, quando na verdade o período de luto, que acaba por ficar imensamente bem retratado, apesar de intenso, acaba por sair algo desfocado, um conjunto de tentativas erráticas com sentido de fuga, abandono, liberação. Mas não será assim mesmo, sei bem que procuramos chegar perto, sentir a emoção à superfície da pele dos atingidos, mas o luto não é só emoção, é antes pelo contrário, na maior parte do tempo, anti-emoção.

Na verdade, o facto de não ter passado pela provação, e que dói apenas imaginar, torna difícil compreender como seria connosco. A empatia não é fácil, porque estamos muito longe de poder compreender o que seria de nós naquela situação. Comparo com o videojogo recente, “That Dragon, Cancer” (2016), e vejo muitas pontes, mas também vejo muitas distâncias, mas também sei que o sofrimento, sendo humano, é particular, específico de cada um.


Estas obras são fundamentais para os seus criadores, contributos para um luto mais efetivo, não apenas pelo que se expressa, verbaliza, externaliza, mas essencialmente pelo que se cria. O processo criativo pelo seu efeito sobre a realização pessoal e autoestima, é um dos processos mais relevantes na terapia dos modos depressivos. Por outro lado, serve ao mesmo tempo um outro processo, comunitário, de partilha de experiências que é também fundamental na manutenção de sanidade, para quem passa por situações similares. Dito isto, “Rosalie Lightning”, sendo arte, é talvez ante disso, terapia.

outubro 22, 2016

Espreitando pelo orifício da culpa

“Borrowed Time” surge a partir de um esquema interno da Pixar que permite que os seus empregados possam dedicar tempo e recursos da empresa a um projeto mais pessoal, sendo por surpreendente que pareça, a primeira animação a surgir do programa, até agora tinham sido todos curtas de imagem real.




“Borrowed Time” socorre-se do principal ingrediente do sucesso da Pixar, o storytelling. Para além de ter uma premissa muito forte, que assenta sobre a emoção complexa da culpa, trabalha tudo de um modo absolutamente perfeito, como tudo o resto que temos vindo nascer nesta empresa de animação. Os primeiros embates e twists são por demais referenciais a toda a história da empresa, que tem sabido gerir emoções fortes, desde a mãe de Nemo à fundição de Toy Story.

Em termos de inovação temos pela primeira vez o desvio do público infantil para um público maduro, algo que foi claramente assumido como objetivo pelos criadores, e algo que podemos dizer totalmente conseguido.  Comprová-lo estão as dezenas de prémios em festivais, o que também me leva a relembrar que esta colocação online, integral e gratuita, do filme é algo limitado no tempo, por isso é aproveitar para ver agora.

O facto do score estar a cargo de Gustavo Santaolalla eleva todo registo dramático a um nível que contribui intensamente para o esquecimento do formato, de animação, ligando-nos apenas à personagens e ao que estas sentem. Tudo em conjunto desenvolvem uma curta de animação que prefiro definir através das palavras do colega Albertino Gonçalves: "Há algo de cósmico nesta curta-metragem. Abarca o mundo e a vida com um punhado de pormenores." 


"Borrowed Time" (2015) de Andrew Coats e Lou Hamou-Lhadj

Esta curta vem amenizar a espera que ainda temos pela frente para entrar no mundo de “Red Dead Redemption 2”.

março 11, 2016

"That Dragon, Cancer"

Esta semana aproveitei o texto para o IGN para escrever sobre um dos videojogos que há muito tempo aguardava poder jogar, "That Dragon, Cancer" (2016). Tendo sido anunciado em 2013, demorou a finalizar já que pelo meio foi necessário ainda encontrar financiamento, enfrentar o desaparecimento da criança, e terminar o jogo. Tudo isto foi sendo seguido pela rede, aumentando a cada nova informação mais e mais a expectativa, que agora posso dizer que não defrauda.




Sendo pai, talvez seja mais fácil entrar no jogo, do que para quem não é, ainda assim arrisco que o jogo tem capacidade para tocar todos, a integração de todos elementos da comunicação audiovisual e interativa é tão coesa e dirigida que dificilmente se consegue escapar ao tema e à mensagem.


O texto pode ser lido integralmente no IGN, sob o título, O Luto nos Videojogos (IGN 8.3.2016).

outubro 05, 2015

Jogos educacionais que funcionam

Apesar de grande parte do tempo sentirmos dúvidas sobre o potencial dos jogos educacionais, por vezes surgem exemplos que individualmente são capazes de nos iluminar, e acender uma forte centelha de esperança. O que temos em "Neurotic Neurons" (2015) é a interatividade, o jogo e a simulação ao serviço de uma verdadeira pedagogia lúdica.



Nick Case criou um pequeno artefacto interativo que se socorre em parte de jogo mas que está essencialmente direcionado para a exposição, por via da simulação, do modo como funcionam os nossos neurónios, nomeadamente como geram e perdem memórias. O seu objetivo com este trabalho assenta num fim muito concreto, conseguir levar as pessoas que sofrem de ansiedade, traumas ou fobias, a compreender como funcionam as suas mentes, e o que podem tentar fazer para sair dessa situação. A base científica de suporte assenta na "terapia de exposição", e o resultado é admirável, não apenas por conseguir envolver-nos e motivar-nos a interagir e a querer saber mais, mas porque a mensagem passa verdadeiramente.

Case percebeu que face a um assunto de grande complexidade, como é o caso da ansiedade, precisava de realizar uma abordagem simples se o queria fazer por meio de comunicação audiovisual, e foi isso que fez, focou-se apenas num dos elementos da questão, pesquisou e investigou a informação factual, e criou. Diga-se, em toda a linha com aquilo que ainda ontem aqui dava conta a propósito do último filme da Pixar, "Inside Out" (2015).

Podem interagir e jogar em Neurotic Neurons, ou ainda ler uma entrevista de Case ao Kill Screen. No site do jogo, o autor providencia ainda uma listagem de vários links para compreender em maior profundidade o assunto tratado na sua obra.

outubro 04, 2015

Pixar: E se, as Emoções tivessem Emoções

"Inside Out" é o resultado do deslumbramento final da Pixar com a arte do storytelling. Depois de terem otimizado toda a técnica e arte de contar histórias, restava apenas dar conta do modo como as histórias mexem com os seus ouvintes, leitores e espetadores. "Inside Out" é o resultado de mais de duas décadas a contar histórias com um elevado padrão de inteligência, capaz de tocar crianças e adultos.





Abaixo transcrevo um dos memes que começou a circular na rede, que foi entretanto melhorado, e acabei por traduzir e transformar ligeiramente também. A partir deste meme que resume todas as longas-metragens da Pixar, excetuando as sequelas, podemos entender a base de partida do storytelling da Pixar, e fundamentalmente uma das razões do seu sucesso ao longo de 20 anos. Tudo assenta na emoção, desde logo porque "animar é dar vida", mas também porque o sucesso do 3D esteve no seu inicio muito contaminado pela incapacidade expressiva, o que obrigou a que a Pixar tivesse especial cuidado com essa componente em toda a sua história. "Inside Out" funciona assim como uma espécie de coroação de tudo o que a Pixar representa, de tudo aquilo que importa para a Pixar no momento de contar uma nova história.
Pixar, 1995: E se, os Brinquedos tivessem emoções
Pixar, 1998: E se, os Insectos tivessem emoções
Pixar, 2001: E se, os Monstros tivessem emoções
Pixar, 2003: E se, os Peixes tivessem emoções
Pixar, 2004: E se, os Super-heróis tivessem emoções
Pixar, 2006: E se, os Carros tivessem emoções
Pixar, 2007: E se, os Ratos tivessem emoções
Pixar, 2008: E se, os Robôs tivessem emoções
Pixar, 2009: E se, as Casas tivessem emoções
Pixar, 2012: E se, a Mulher medieval tivesse emoções
Pixar, 2015: E se, as Emoções tivessem Emoções
Numa outra vertente de análise tocou-me profundamente o facto de Pixar ter, mais uma vez, realizado um enorme esforço de pesquisa e investigação sobre o assunto a ser tratado, para poder dar vida, atribuir representações visuais, a entidades puramente abstratas. Muito longe do registo documental, o filme vai mais longe do que muitos dos documentários sobre o assunto. Por meio de entretenimento, do desenho e da animação, construiu-se todo um universo capaz de dar conta das condições fundamentais que regulam a emocionalidade humana. "Inside Out" não pretende ser um paper científico sobre neurobiologia ou neurofisiologia, mas segue em toda a linha os princípios base das ciências cognitivas, suportadas por dados empíricos das neurociências, sobre o fundamento das emoções, memórias, personalidade e sono.

A Pixar sabia que não podia fazer um documentário, que a complexidade do funcionamento do interior do nosso cérebro comportaria demasiada informação para ser apresentada num filme de animação, e em menos de duas horas, ainda para mais com um público alvo maioritariamente composto por crianças. Por isso é natural que tenham sido utilizados alguns atalhos que passam ao lado daquilo que conhecemos do modo de funcionamento biológico do cérebro, nomeadamente os homunculus (personagens de cada emoção), a central de comando, as áreas do cérebro dedicadas, a individualização das emoções e dos contentores de memórias, etc.

Apesar de apresentadas de forma individual, na realidade o filme dá conta da necessidade das emoções trabalharem conjuntamente.


O que não é natural é ver colegas das neurociências a atacar o filme, por este não ter apresentado corretamente todos os modelos atuais de funcionamento do cérebro. Percebo que se possa realizar algum trabalho pedagógico na desmontagem do filme, no sentido de se evitar por parte da população um acreditar em tudo o que ali se representa. Mas isso não pode dar carta branca para deitar por terra tudo de bom que o filme alcança, nomeadamente no tornar mais claro para as crianças, e população em geral, as razões e funções das nossas emoções e memórias.

A Pixar vai aonde nenhum outro filme tinha ido antes no tratamento das emoções, e fá-lo mesmo contra os estereótipos mais marcantes da cultura americana, nomeadamente no tratamento dado à relação entre a Alegria e a Tristeza, que evolui ao longo do filme, de uma relação de dominância do objetivo único, a felicidade, para a compreensão da necessidade humana do conjunto das emoções. Algo que é bem espelhado na progressão da relação entre Alegria e Tristeza, assim como na exploração da sua ausência, mas que é feito de uma forma muito mais subtil, mas muito mais profunda, com as esferas de memórias emocionais, inicialmente marcadas por cores únicas que no final passam a ostentar mesclas de cores.

Este é o filme mais inteligente, ou seja elaborado e detalhado com conhecimento factual, da Pixar, assim como o mais relevante em termos formativos. "Inside Out" resulta muito concretamente num crescimento intelectual e emocional das crianças, que aprendem ao longo de duas horas a conhecer-se melhor a si próprias. No final do filme, as crianças passam a deter uma ideia muito mais clara do modo como funcionam, como agem e reagem em face do mundo externo. O filme é uma metáfora poderosa daquilo que nós somos, daquilo que faz de nós seres humanos, daquilo que nos torna seres individuais, mas também daquilo que partilhamos todos uns com os outros.

julho 20, 2015

"Alien: Isolation" (2014)

Desisti no sexto nível, apesar de representar uma experiência muito interessante, nomeadamente na recuperação do ambiente do primeiro “Alien” (1979), acaba por ser, ora repetitivo, ora demasiado tenso. O videojogo faz um belíssimo trabalho de simulação de uma estação espacial abandonada, dominada pela presença de um xenomorfo, sendo que os problemas não advêm do jogo, mas do próprio universo simulatório. Os designers quiseram colocar-nos verdadeiramente na pele da filha de Ripley, e conseguem-no por várias vezes, mas a um custo emocional tremendamente elevado. Provavelmente falta ficção, de modo a atenuar a intensidade da simulação, que é aquilo que o cinema, ou as imagens/esculturas de HR Giger, nos dão. Perde-se capacidade para contemplar o belo do grotesco ao sermos cilindrados pelo medo, restando-nos apenas a atenção contínua, sempre engajados na resposta ao próximo evento.




O mais interessante de tudo isto, em termos de análise do design, é que o grande problema do jogo acaba por advir do elemento que mais contribui para a inovação do mesmo, a inteligência artificial (IA). Como vem sendo notado, esta geração está demarcar-se da anterior não pelos gráficos, mas pela IA. Deste modo o que temos em “Alien: Isolation” é o primeiro xenomorfo com IA capaz de lhe garantir autonomia, quase a 100%. Assim sendo, o jogador é como que atirado aos leões quando chega a Sevastopol. A filha de Ripley está por sua conta, e nós com ela, pois temos de enfrentar um ser indestrutível, com sentidos auditivos e visuais imensamente apurados, capaz de nos matar em 2 segundos, e ao mínimo deslize. Morremos muito, muito mesmo, mas não é daí que advém o drama, este surge nos momentos anteriores, na escuridão, no medo que se apodera de nós e nos questiona, segundo a segundo: “posso mexer-me?”; “o sensor estará a funcionar bem?”; “a escotilha será segura?”; “a porta não se fecha atrás de mim?”; “não adianta correr?”; “o sensor parou mas continuo a sentir que ele está ali fora?”.



De cada vez que encontramos um "telefone de emergência" (pontos de gravação dentro do jogo), sentimos mesmo que estamos a ser socorridos, servindo de pequena vitória que nos dá prazer, e mais algum elã para continuar. Mas voltando à ficção, a sua falta acaba por se denotar na própria jogabilidade que é destituída de objetivos que nos retirem a atenção do xenomorfo. Na estação espacial pouco ou nada podemos fazer, para além de jogar ao gato e rato, abrir portas, ligar a electricidade, procurar códigos nos terminais para abrir mais portas. Os andróides que poderiam ter servido o efeito de desviar o nosso foco, pelo menos por momentos, são quase tão horripilantes como o próprio xenomorfo, de modo que estamos totalmente sós, e rodeados de inimigos. A lembrar-me um dos maiores problemas que apontava aos videojogos há uma década atrás, a existência quase exclusiva de inimigos, sendo que a ausência de amigos impede que ocorra empatia, e por sua vez um envolvimento aprazível com o artefacto.



Em termos visuais os cenários são detalhados, do melhor que o jogo tem para nos oferecer, mas pecam por falta de interatividade, ou seja, tanto detalhe tanto objeto e praticamente todos de nada servem, a única coisa com que podemos interagir em abundância são os armários para nos escondermos! Por outro lado, o xenomorfo, não está mal concebido, mas vê-lo movimentar-se é um tanto cómico, como já acontecia nos filmes com Predator. Julgo que o problema deriva da tendência recente de apresentar o xenomorfo em pé, que acaba por lhe dar um ar humanoide, perdendo o lado ofensivo da posição tradicional de agachado.

Para fechar não deixa de ser interessante analisar algumas das análises que foram feitas ao jogo, e verificar como as impressões se dividem, entre aqueles que não gostaram do excesso de emoção afunilada, e aqueles que adoraram exatamente por toda essa emoção. Pode-se defender que é um jogo de "stealth", ou que é um "survival horror", é verdade, ainda assim, e compreendendo ambos os géneros aqui em conjunto, sinto que mais se poderia ter feito para agradar a um público mais diversificado. Como está, serve apenas a quem adora sentir fortes batimentos cardíacos e jorros de adrenalina, e eu já não pertenço a essa franja da audiência.

junho 17, 2015

Os recreios do mundo

Depois de há dois anos aqui ter deixado uma série fotográfica, de Gabriele Galimberti, sobre Brinquedos de crianças de várias partes do globo, agora trago uma nova série fotográfica, com um tema próximo, os Recreios (Playground) em várias partes do globo, por James Mollison. Esta série de Mollison, à semelhança da de Galimberti, é poderosa emocionalmente porque toca de forma muito direta memórias que todos possuímos, e por outro lado ao obrigar a um processo de comparação, instiga-nos a ir ainda ao fundo dessas memórias, para poder comparar em detalhe. Claro que podemos ler aqui componentes políticas e sociais de cada país, mas antes desse nível de significado temos, em essência, as crianças, as suas relações, e as suas vidas em cada um daqueles momentos. Aliás, é o próprio Mollison que o refere como objecto de partida para a série.

Dechen Phodrang, Thimphu, Bhutan

Stonyhurst College Lancashire, Uk

St. Mary of the Assumption Elementary School, Brookline, Massachusetts
"When I conceived this series of pictures, I was thinking about my time at school. I realized that most of my memories were from the playground. It had been a space of excitement, games,bullying, laughing, tears, teasing, fun, and fear. It seemed an interesting place to go back and explore in photographs.I started the project in the UK, revisiting my school and some of the other schools nearby. I became fascinated by the diversity of children’s experiences, depending on their school. The contrasts between British schools made me curious to know what schools were like in other countries.

Most of the images from the series are composites of moments that happened during a single break time—a kind of time-lapse photography. I have often chosen to feature details that relate to my own memories of the playground. Although the schools I photographed were very diverse, I was struck by the similarities between children’s behavior and the games they played.
"
James Mollison
Cadet School of the Heroes of Space, Moscow

Kroo Bay Primary, Freetown, Sierra Leone

Utheim Skole, Kårvåg, Averøy, Norway

Holtz High School, Tel Aviv, Israel

Aida Boys School, Bethlehem, West Bank

He Huang Yu Xiang Middle School, Qingyuan, China

Shohei Elementary School, Tokyo

Valley View School, Mathare, Nairobi, Kenya

Inglewood High School, Inglewood, California

Pilgrim’s School, Winchester, UK

Seabright Primary School, London

Affiliated Primary School of South China Normal University, Guangzhou, China

Seishin Joshi Gakuin School, Tokyo