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dezembro 14, 2017

Bury me, My Love (2017)

Um dos jogos que ficará deste ano será sem dúvida “Bury me, My Love” (2017) de Florent Maurin do estúdio francês The Pixel Hunt, que já nos tinha dado o interessantíssimo jogo de gestão de crises de comunicação. É apenas uma ficção interativa baseada em mensagens, com meia-dúzia de ilustrações, no entanto com tão pouco consegue fazer muito, consegue dar a sentir, em parte, o que sentem os refugiados sírios que partem para a Europa e os seus familiares que ficam a vê-los partir. O título é baseado num ditado popular árabe, usado por quem parte, para frisar “Nem penses em morrer antes de mim”. Como referência da jogabilidade temos "Lifeline" (2016), um dos jogos sensação do ano passado.



No campo da ideia e conceito, o autor realizou um extenso e interessantíssimo post-mortem que aconselho a ler depois de jogarem. Interessou-me particularmente a inspiração para o jogo que adveio por meio de um artigo no Le Monde “Le voyage d’une migrante syrienne à travers son fil WhatsApp" que usa uma abordagem na apresentação da informação muito próxima daquilo que viria a ser o jogo. Nesse sentido, Maurin refere mesmo que recorreu depois à jornalista para encontrar pessoas reais que tivessem passado pela situação, no sentido de desenvolver um guião o mais credível possível.

"Bury me, My Love" conta a história de Nour, durante a sua fuga da Síria para a Europa, colocando-nos no lugar de Majd, o seu namorado, que fica na Síria e vai comunicando com ela por SMS.

Relativamente ao desenho de mecânicas e experiência, apesar de ser ficção interativa, Maurin não se limitou a criar uma linha de diálogo com pontos de morte ou desistência, foi desenvolvida toda uma estrutura lógica de suporte ao jogo assente em quatro grandes variáveis: Moral, Relacionamento, Orçamento e Inventário. Desta forma, cada nova vez que jogamos, ou reiniciamos o jogo, podemos passar por eventos diferentes, mas mais importante é sentirmos o evoluir da nossa relação em função das nossas escolhas, o que contribui para nos aproximar do casal, tanto de Majd como de Nour. Sobre tudo isto, o jogo (se jogado no modo normal) condiciona a jogabilidade a tempo real, ou seja, vamos interagindo com Nour à medida que ela vai progredindo no terreno, o que pode levar horas ou dias.

No campo da narrativa, consegue conduzir-nos a estabelecer uma ligação com as personagens, enfatizada pelas nossas escolhas interativas que nos vão fazendo compreender melhor quem são aqueles personagens, e porque fazem aquilo que fazem. O mais relevante de tudo para mim, acabou por ser a proximidade que se desenvolve, obrigando-nos a "abrir os olhos" e a sentir aqueles refugiados como nós mesmos, porque apesar de virem de outro continente, pouco ou nada diferem de nós, partilhando culturas tão pouco diferentes das europeias. O jogo acaba assim por funcionar como um excelente medium na comunicação das diferenças mas acima de tudo das semelhanças, fazendo mais pela compreensão dos refugiados do que muito do jornalismo que vimos ao longo destes últimos anos.

dezembro 09, 2017

Nintendo Storytelling

Em 2017 a Nintendo lançou a sua nova consola Switch de que aqui dei conta com grandes expectativas, mas não é para falar da consola que escrevo já que com ela chegaram ao mercado neste mesmo ano, os seus dois novos títulos bandeira, “The Legend of Zelda: Breath of the Wild” que abriu as hostes e fez muitos de nós, eu incluído, correr a comprar, e “Super Mario Odyssey” que saiu agora mais perto do Natal. Interessa-me então neste pequeno apontamento sintetizar algumas ideias que tenho vindo a trabalhar em redor do design de jogo destes dois jogos, que simbolizam o design de excelência da Nintendo.



Começar por dizer que joguei ambos, Zelda e Mário, mas não terminei nenhum. No caso de Zelda, apesar do design inovador apresentado por força do novo modelo de mundo aberto, com um level design perfeito, uma progressão clara e apelativa, com todo um mundo muito bem orquestrado, não senti que o jogo puxasse por mim. Já com Mário, acho que nem sequer coloquei a hipótese de o terminar, pois nunca o fiz antes com nenhum da série. Joguei ainda menos que Zelda, apesar do design de jogo vir ainda mais artilhado, ou seja apresentando clara diferenciação face aos títulos anteriores, podendo classificá-lo mesmo como muito imaginativo, um hino ao fator divertimento, melhor do que qualquer parque temático.

Mas então porque não termino estes jogos? Julgo que o problema está no storytelling. Ou seja, a Nintendo utiliza o storytelling como mecânica de jogo, e não como meio para contar histórias. O modelo criado por Miyamoto, e que continua a servir a Nintendo até hoje, define o storytelling como mero condutor da ação para um fim, mas que nunca é afetado por essa ação, nem por esse fim. Ou seja os personagens evoluem nas suas capacidades de ação sobre o mundo, mas não mudam por dentro. E isto acontece porque Miyamoto não trabalha os personagens como pessoas, mas apenas como objetos. Atribui-lhes apenas capacidades de ação sobre o mundo, esquecendo as capacidades para sentir as ações desse mundo. No fundo, temos uma espécie de objetos semi-inteligentes, robôs, que nada mais sabem ou querem saber, além de circular por mundos em busca do seu fim (“a princesa perdida”), a quem vão sendo apresentados obstáculos que eles têm de resolver.

Ou seja, Miyamoto é magnífico no desenho dos obstáculos, e ainda mais no desenho das ações de resolução desses obstáculos, no modo como interliga todos os objetos e personagens na cena, mas não perde um segundo a pensar no que tudo isso representa para o seu personagem, e menos ainda para o seu jogador. Miyamoto joga tudo no fator divertimento, na criação de um sentido de fluxo pleno, por meio de ativação da lógica sobre o qual trabalha brilhantemente os ritmos de recompensa e punição, que garantem a emocionalidade, muitas vezes visceral. Mas nada do que se faz releva para o sentir dos personagens, nem o fim objetiva a dar qualquer significação aos esforços encetados.



E é por isso que quando comecei a jogar “The Legend of Zelda: Breath of the Wild”, apesar de sentir imensos avanços na lógica do design, não consegui deixar de sentir que estava a repetir a experiência vivida em “The Legend of Zelda: Skyward Sword” (2011). Zelda tem bastante mais lore que Mario, mas o lore serve de mera gratificação estética, não corresponde às necessidades de um contar de histórias, é preciso mensagem, é preciso existir algo para dizer, se não ficamo-nos pelo mero window dressing, indo pouco além do storytelling que qualquer ride de parque temático oferece.

Com tudo isto não quero dizer que os jogos são maus, ou irrelevantes, apenas constato o modo como são desenhados, acreditando que para esse desenho se tem em mente um público mais juvenil, que procura menos significação e mais gratificação emocional. O mesmo público que adora parques temáticos, sendo que existem muitos adultos que continuam a gostar dos mesmos. O mais interessante para mim é verificar que o storytelling é aqui uma mecânica, que serve ao lado das restantes mecânicas do design de jogos, para nos manter engajados no tempo, nada mais.

What Remains of Edith Finch (2017)

É uma experiência de sublimação. À medida que vamos jogando, vamos ficando a conhecer a família Finch, e quanto mais vamos sabendo mais nos vamos emocionando, como se aquela família pudesse de algum modo representar todas as famílias e nos pudesse dar um olhar para a realidade da vida, para aquilo que representa estar-se vivo. É história, é ficção, é um jogo mas podia ser um filme, ou melhor ainda, um livro, porque para quem gosta de literatura a casa dos Finch mais parece um paraíso na Terra (ainda que tivesse gostado de ver um melhor trabalho de curadoria dos livros em função das pessoas e partes da casa, nomeadamente evitando repetições).




Em termos de jogo, temos uma espécie de walking simulator munido de uma série de inventivos minijogos. À partida, os minijogos atirarmos-iam logo para sequências inconsequentes, ou mesmo irrelevantes, contudo em “…Finch” estes assumem um caráter de grande relevância, não apenas pelo engenho e imaginação, mas porque funcionam como mudança de ponto de vista, permitindo que a voz que narra se desdobre, alargando o nosso conhecimento daquela realidade e densificando a experiência. Podemos mesmo dizer que a partir do meio do jogo, começamos a sentir uma enorme vontade de encontrar esses pontos, na ânsia por descobrir como será a experiência, mas também por tudo aquilo que esses pontos representam na árvore genealógica foi Finch.

No campo da história, o primeiro impacto da nossa tentativa de compreender o que nos está a ser contado, é de incredulidade. Não é por acaso que Marty Silva, no IGN, classifica a mesma de realismo-mágico. Ultrapassada essa barreira, deixando-nos inebriar pela história, vamos seguindo o fio da mesma, aceitando o fantástico, mas ao mesmo tempo relacionando-o com a nossa realidade, compreendendo aquilo que se nos conta como exagero mas próximo, sentido e realista. Ou seja, temos uma universo profundamente trágico, mas ao mesmo tempo divertido, porque aceita a tragédia como parte daquilo que faz de nós seres-humanos.



Para que tudo isto funcione, ajuda imenso a arte visual e sonora. A narração é suportada por uma voz graciosa, que vai pautando o ritmo do jogo, por sua vez amplamente suportada por texto que surge diretamente no mundo virtual, intensificando aquilo que o jogo vai querendo dizer. Se em termos de design faz lembrar walking simulators como “Firewatch” (2016) ou “Gone Home” (2013), em termos de experiência estética, tanto no aspeto visual como pela personagem principal, aproxima-se bastante de “Life is Strange” (2015).

Ian Dallas já nos tinha dado antes o belíssimo “The Unfinished Swan” (2012), uma aventura surrealista movida por um game design de pura inventividade. Desta vez, provavelmente movido pela morte da sua mãe, Shirley Dallas (1948-2013), a quem dedica o jogo, seguiu uma abordagem de design mais simples, focando-se no contar de história, dotando-o de um discurso direto, assumido pelas vozes e textos, secundarizando em parte o game design, com o objetivo claro de ir mais ao fundo do sentir dos personagens do universo criado. Um criador para continuar a seguir.

Uma imagem que dá conta da qualidade da arte visual.

dezembro 03, 2017

Little Nightmares (2017)

“Little Nightmares” (2017) é um sidescroller 2.5D, feito de puzzles e plataformas, o género narrativo é o horror, e o estúdio produtor é sueco. No ano passado tínhamos tido “Inside” (2016) com os mesmos atributos, proveniente de um país vizinho, a Dinamarca.  Pode-se dizer que a história não é tão elaborada, apesar de intrigar não nos instiga nem questiona, dá-se mais claramente à ligeireza do género de horror, contudo trabalha muito bem a forma, com os puzzles embebidos no universo-história, e acima de tudo belíssimas atmosfera e animação.



É um pequeno jogo, com bom ritmo mas que se termina rapidamente, ainda assim morre-se muito, existem múltiplos casos em que temos de aprender por tentativa e erro, outros em que não somos suficientemente rápidos, ou ainda os casos mais complexos em que estacamos a tentar compreender como vamos fazer para sair dali. Mas nem por isso nos enfada. Li quem achasse que o jogo era pouco desafiante, outros que diziam que as mecânicas eram pouco conseguidas, não posso discordar mais, sim  alguns segmentos poderiam ter sido mais testados, mas o seu design é perfeito, no sentido em que sentimos a simbiose entre jogo e narrativa.

Quanto à história, consegue-se gerar mistério que vai alimentando a nossa sede por querer saber e chegar ao final, ainda que saibamos desde o início que aquilo que se vais desvelando acabará por não ser decifrado, nem ao chegar ao fim, e assim acontece. É um universo estranho, é um universo desenhado para nos fazer sentir desconfortáveis, para conseguir criar sensações de medo, mas ao mesmo tempo, talvez por estarmos a jogar como uma menina, vamos sentido que tudo contém um lado doce, em que existe esperança no final do túnel.

Uma página de "Little Nightmares Volume 1" da Titan Comics

A narrativa foi expandida por meio de uma banda-desenhada, inicialmente eram esperados 4 números, mas apenas 2 foram publicados. Lendo os dois primeiros percebe-se porquê, usa-se a mesma abordagem, andar em volta do mistério acabando por nada oferecer. Se funciona no jogo, pela recompensa que o próprio ato de jogar oferece, não funciona em banda desenhada, pois só a arte gráfica, ainda que boa mas não excepcional, não chega para sustentar o interesse dos leitores.


“Little Nightmares” acaba sendo uma pequena experiência interessante, tecnicamente muito conseguido, mas que provavelmente não deixará marca.

dezembro 01, 2017

Horizon Zero Dawn (2017)

Comecei a jogar "Horizon Zero Dawn" (HZD) como um simples jogo de aventura movido por fantástico, ao qual não faltavam magos, tribos e religiões, mas com o evoluir do jogo fui percebendo que não era nada sobre aquilo que o jogo queria falar, já que tudo aquilo que via, se ia desconstruindo de forma lógica, ligando toda a representação daqueles mundos ao nosso mundo real de hoje. Ou seja, HZD é ficção científica, e eu diria mesmo, Hard SF. Como se isso não bastasse, a obra é tecnicamente muito conseguida, plena de detalhe, constituída em cada dimensão por múltiplas camadas de elementos: da arte visual ao game design, do design de som à música, da atmosfera às batalhas, da arquitetura à moda, da tecnologia à IA, do storytelling à narrativa.
Ao fechar do pano não consegui deixar de voltar a impressionar-me, como tem sido hábito, com os créditos finais, vendo desfilar os nomes das centenas e centenas de pessoas necessárias para criar HZD. Tudo parece tão simples, tudo parece ter sido ali posto de forma plenamente natural, porque tudo faz pleno sentido, mas a verdade é que, e seguindo a discussão proporcionada pelo próprio tema de HZD, criar um artefacto destes está apenas ao alcance de uma sociedade evoluída o suficiente para dominar a imensa parafernália tecnológica e conhecimento necessários à sua construção. Aliás, basta ver a quantidade de produtores envolvidos na obra para se compreender a complexidade existente apenas ao nível da gestão dos recursos materiais e humanos.

Em termos críticos, antes de jogar tinha apenas presente “Far Cry Primal” (2016), em termos de cenário e aparentemente temático, bastante próximo. Tendo jogado e terminado ambos e contrastando-os, FCP é um simples brinquedo, é divertido, a jogabilidade cria bom “flow”, mas é totalmente desprovido de “alma”, ou seja, de intenção artística, não tem nada para dizer, ficando a anos-luz de HZD. Se quisermos encontrar no terreno dos jogos algo que se aproxime de HZD teremos de procurar jogos que visualmente nem nos lembraria, tendo em conta a aposta promocional de HZD que se cingiu demasiado aos aspetos pré-históricos e tribais do universo de jogo.
"Num mundo pós-apocalíptico no qual a natureza verdejante se alastrou pelas ruínas de civilizações perdidas, a humanidade continua a resistir em pequenas tribos de primitivos caçadores-coletores. O seu domínio desta nova área selvagem foi usurpado pelas Máquinas – criaturas mecânicas ferozes de origem desconhecida."

Assim, as obras que mais rapidamente se podem associar às ideias que sustentam o mundo de HZD são as que têm trabalhado ficção-científica em ambientes pós-apocalípticos ou dominados por máquinas, para o que podemos buscar referências em jogos como “Fallout 3” (2008), “Mass Effect 3” (2012) ou “Enslaved: Odyssey to the West” (2010) que até acaba por se aproximar visualmente, embora o seu lado mais aventureiro o afaste um pouco do campo mais cerebral que é aqui explorado. Aliás, relativamente a este último ponto, diria que HZD se aproxima mais da minúcia argumentativa de “SOMA” (2015). Claro que isto se deve ao investimento no guião, mas sem dúvida ao investimento em design de narrativa, tendo para o efeito sido escolhido John Gonzalez, que antes nos tinha dado “Fallout: New Vegas” (2010), daí a natural proximidade entre os universos-história.

Tendo em conta o modo brilhante como o desenho de narrativa foi articulado, acabei por esta semana dedicar-lhe uma parte de uma palestra que dei na conferência ErgoTrip Design 2017, a que podem aceder, em parte, via slides, que deixo aqui abaixo.


Assim, tendo passado da discussão do Conteúdo para a da Forma, posso agora realizar a comparação que mais se me apresentou ao longo de HZD, nomeadamente a partir do meio, e falo de “The Witcher 3: Wild Hunt” (2015). Sim, a mensagem, a história contada, está nas antípodas, mas a forma, o design de narrativa está bastante próximo. Temos o mundo aberto, temos as “main quests”, ou nós globais, temos as “side-quests”, ou nós tribais, e depois as pequenas “errands”, ou tarefas individuais, não que não se tenha visto em outros jogos, mas a funcionar deste modo estruturado, intrincado e interdependente é algo raro de ver.

É verdade que HZD tem menos diálogo e logo menos escolhas narrativas, consequentemente o jogador não consegue jogar propriamente com a mensagem, como acontece em “Witcher 3”, mas compensa por toda a história que espalhou pelo terreno e pelas diferentes quests, por meio de mensagens texto, áudio e hologramas. À medida que vamos progredindo, e apesar de ansiarmos por chegar ao final (não tendo feito todas as "side-quests" e "errands", e tendo jogado no modo mais fácil de luta, acabei mesmo assim por precisar de 30 horas), as mensagens dispersas vão-nos atraindo cada vez mais, não só porque estão imensamente bem escritas, ou são apresentadas por meio de boas performances, mas porque vamos compreendendo o quanto da história elas têm para nos oferecer. Pode-se mesmo dizer que todos aqueles fragmentos parecem quase janelas para um passado daquele universo, um universo que dá muito prazer ler e experienciar ao longo de todo o jogo.

Em jeito de fecho, dizer apenas que HZD é uma experiência muito estimulante, tanto do ponto de vista da ação e jogo, como do ponto de vista intelectual. É mais uma obra que ultrapassa as barreiras do seu meio, e passa a figurar nos panteões da ficção-científica. Isto diz-nos também que todos aqueles que gostam do género, precisam de começar a sair dos seus meios de eleição, a literatura ou o cinema, e olhar para os videojogos, ou correm sério risco de perder muito daquilo que o género vai tendo para nos oferecer.

setembro 18, 2017

"Heavy Rain" analisado em artigo

Foi por estes dias publicado um artigo em que vinha trabalhando há algum tempo, relativo ao design de narrativa no videojogo "Heavy Rain". Apesar de ser um jogo de 2010, as questões de análise académica não estão tão preocupadas com o quando, se é o grito acabado de publicar, mas mais efetivamente com o que faz, como e porquê. As obras não envelhecem todas da mesma forma, e "Heavy Rain" continuará a ser um caso de estudo por muito tempo dentro do meio dos videojogos.



Neste caso foquei-me num dos pontos que mais chamou a minha atenção quando o joguei e que tem que ver com o modo como o jogo trabalha a emocionalidade do jogador, em particular a melancolia e tristeza. O que mais me impressionou na altura foi verificar o quão se aproximava de propostas que eu próprio vinha propondo ao longo da década anterior (entre 2003 e 2007) em várias conferências e artigos. Desse modo, neste artigo o que procurei fazer foi verificar o quão de perto seguiu o design de narrativa de "Heavy Rain" dessas minhas propostas da década anterior. Neste sentido, e apesar de não o poder provar, nem sequer estar interessado nisso, o que me impressionou foi verificar a proximidade das opções dos designers do jogo das minhas propostas. É bom verificar que temos razão, mas mais importante que isso, "Heavy Rain" funciona como um demonstrador da eficácia das propostas de design que apresentei.

Se a questão do vínculo entre personagens e sua quebra será facilmente reconhecida por qualquer pessoa que se preocupe com o design emocional narrativo, o mais entusiasmante é mesmo o design de interatividade passiva, ou seja do modo como o videojogo precisa de se comportar após provocar uma situação de tristeza para que o jogador possa chegar a sentir essa tristeza, já que o maior problema dos videojogos era exatamente não saber lidar com esses momentos do ponto de vista interativo. Para compreender tudo isto convido-vos a ler o artigo.




O artigo foi publicado pela revista científica Journal of Science and Technology of the Arts editada pelo Jorge Cardoso, tendo sido incluído num número especial dedicado à Narrative and Audiovisual Creation, que teve como editores convidados a Maria Guilhermina Castro, o Jorge Palinhos, o Daniel Ribas e o Carlos Sena Caires, sendo produzida pela Universidade Católica Portuguesa. É uma revista indexada, mas mais do que isso é uma revista focada nas discussões que atravessam a arte e a tecnologia, para além de ser publicada em modo aberto.

Para ler o artigo, basta aceder ao JSTA e descarregar o PDF.

setembro 10, 2017

Mass Effect: Andromeda (2017)

A trilogia Mass Effect (2007-2012) é um dos maiores legados culturais dos videojogos, pela força da sua história mas acima de tudo pela inovação operada através da singularidade do meio, a interatividade narrativa. Se o cinema nos deu algumas das maiores epopeias da ficção científica, a literatura e a banda desenhada não lhe ficaram atrás, mas nenhum destes meios podia ter oferecido aquilo que apenas está ao alcance das artes narrativas interativas, agência, ou a responsabilização do recetor pelo desenrolar do imaginário ficcional. Por tudo isto, criar um quarto videojogo foi sempre um grande risco, a Bioware, ao contrário da Valve, resolveu arriscar. O resultado é um trabalho menor, ainda que tecnicamente mais evoluído.


O tema de “Mass Effect: Andromeda” (ME:A) não traz nada de novo, antes aproveita um dos imaginários mais presentes na atualidade da ficção-científica como trampolim para os seus desenvolvimentos. Num espaço tão curto de anos foram várias as obras a socorrer-se da ideia de largada de grandes naves carregadas de seres-humanos criogenados em busca dos chamados “Golden Worlds”, ou seja planetas semelhantes à Terra, em que possamos refazer a vida enquanto espécie humana.


No cinema, tivemos um romance FC com “Passengers” (2016) de Morten Tyldum, poucos anos antes tínhamos tido um dos mais eficazes filmes de FC desta recente geração, “Interstellar” (2014) de Christopher Nolan, e até a própria série Alien se socorreu do tema para este seu último tomo, “Alien: Covenant” (2017) de Ridley Scott. Na literatura tivemos também uma trilogia, “The Wayward Pines” (2012-2014) de Blake Crouch, entretanto convertida numa série de televisão homónima, de imenso sucesso. Este imaginário não é alheio à realidade que nos circunda: a superpopulação e consequente drenagem de recursos do planeta; as alterações climáticas e a potencial destruição do ecossistema que possibilita a vida na Terra; a visão apocalíptica providenciada pelos receios dos avanços da inteligência artificial ou a recuperação dos receios do nuclear; ou ainda, os avanços na compreensão da física quântica e as teorias dos mundos possíveis e paralelos, que nos colocam a sonhar com alternativas ao planeta.

Apesar do tema não ser novo, o tema é vasto e de potencial praticamente inesgotável, como se vai vendo pelas obras que vão surgindo. Contudo, é preciso não esquecer que um tema não é uma história, é apenas um pano de fundo, e é desde logo aqui que ME:A começa mal. A história, ou conflito escolhido para ser representado, assenta numa luta entre espécies, com vilões e super-vilões, que apesar de esforçado nunca chega a gerar conexão com os jogadores. O cruzamento com alguns dos grandes temas da trilogia até são aflorados, chegando a criar-se pontos que nos agarram, como a descoberta da origem da espécie Angara, mas nunca chegam a ser devidamente explorados, e por isso perdem-se no meio de tudo o resto.


O problema dos nós narrativos relevantes em ME:A é talvez o maior demonstrador da incompetência da obra. O universo representado é enorme e muito detalhado, criando no jogador uma completa dispersão da atenção, que não apenas se perde entre missões mas nunca se chega a realizar. No final do jogo, ou melhor da realização da main quest, que engloba apenas as missões “Priority Ops”, fiquei a pensar o quanto desse falhanço não se deve também a uma má estruturação entre missões obrigatórias e opcionais, nomeadamente lendo várias recomendações online. Para quem jogar de modo tradicional, seguindo a linha de obrigatoriedades criadas pelas missões Priority Ops, tem 16 missões pela frente, mas o que fica de fora, a julgar pelos números, é imensamente maior: “Allies and Relationships”, 33 missões, “Others” 12 missões, “Heleus Assignments” 98 missões, e “Additional Tasks” 61 pequenas missões.

Os mundos abertos são a norma atual nos grandes jogos de ação-aventura RPG, mas são também imensamente complexos por tudo o que necessitam de produzir para serem considerados enquanto tal, e acima de tudo pelo balanceamento entre o que deve ser considerado obrigatório e aquilo que deve ser secundário, ou opcional para que o jogador possa sentir um verdadeiro efeito de liberdade e autonomia durante o jogo. Se todas as missões consideradas relevantes para o jogo forem consideradas obrigatórias, e rodeadas de precedências, fica complicado fazer sentir ao jogador que está num mundo verdadeiramente aberto, que se dá à sua agência. Por outro lado, se não se colocam obstáculos ou freios que guiem o jogador ao longo das missões, o mais certo é a narrativa nunca se chegar a erguer. Por fim, mesmo quando se garante que as missões principais estão alinhadas e elas trabalham para o desenvolvimento de um arco narrativo delineado, é preciso não esquecer que missões menores, nomeadamente de desenvolvimento dos personagens são fundamentais para criar o imaginário, e acima de tudo aproximar o jogador da “vida” do jogo.


Neste sentido, considero que a maior falha de ME:A acaba por estar no subdesenvolvimento dos seus personagens e seus conflitos, ou então no modo inarticulado como foi desenhada a estrutura de missões, a julgar pela existência de uma enorme quantidade de missões secundárias a realizar com os personagens que circundam o protagonista. A main quest está apenas focada num objetivo narrativo, e os personagens servem quase de meros peões. Não há espaço para o desenvolvimento dos personagens, e mesmo as pequenas sequências que nos vão sendo oferecidas, até de conflitos hierárquicos, são sempre a correr, com medo de perder o ritmo do enredo. Interessa apenas chegar ao “golden world” e para tal é preciso ultrapassar os obstáculos, ou seja, os vilões que surgem por todo o lado.


Ao seguir este caminho ME:A acaba por perder o bem mais preciso que tinha sido desenvolvido pela trilogia, as tomadas de decisão narrativas. Ao contrário do que acontece em todos os anteriores três jogos, não existem momentos intensos em que tenhamos de tomar decisões, não que eles não surjam, o problema é que o jogo não desenvolve suficientemente as nossas ligações afectivas com os personagens para garantir impacto. Na verdade, isto não tem que ver apenas com a falha na estrutura das missões, já que ao longo de toda a main quest, nunca chega a existir um conflito, digno do nome, entre personagens. Mesmo quando os superiores estão chateados connosco, ou algum personagem está preocupado com algo, tudo parece seguir um rumo meramente declarativo, pejado de neutralidade, como se nos estivessem a testar, a ver se queremos ou não deixar-nos enredar por aqueles sentimentos.

Isto leva-me a questionar o novo sistema de conversação desenvolvido para este jogo. Se na trilogia tínhamos o modelo — Paragon / Renegade — em parte criticado pela suposta binariedade emocional e moral, agora temos quatro polos — Emocional / Lógico / Profissional / Casual. Em teoria enriquece-se as relações entre os personagens, amplia-se o escopo de tomada de decisão, mas na prática não funcionou. Digo mesmo que funcionou mal, já que raramente, ou nunca se vê ou sente o impacto dessas escolhas, ficando a dúvida se têm verdadeira relevância. Por outro lado, acabam por gerar todo um tipo de questionamento sobre as decisões que retira espaço ao pensar sobre o que verdadeiramente está acontecer no jogo, já que nos focamos mais na forma do que no conteúdo. Não tenho uma opinião completamente negativa sobre o sistema, julgo que ele pode até funcionar, desde que a narrativa, em especial a escrita seja boa, já que não raras vezes me senti decepcionado com a trivialidade de algumas respostas. Contudo, não me parece que tenha sido a decisão de design correta, já que o sistema desenvolvido para a trilogia era muito bom, exatamente por não ser binário como alguma má crítica apontou, ou seja, apesar de dual o sistema tratava as nossas decisões num plano dimensional e não discreto.


O melhor do jogo é, sem dúvida, os ambientes criados por onde podemos viajar. Os cenários, o espaço, a possibilidade de aí construir, criar, lançar colonos, e avançar com novas civilizações. Em termos de ações, podemos agora dar saltos impulsionados pelo fato, temos um novo veículo ágil e rápido que nos oferece uma boa perspectiva dos mundos por onde viajamos. A colonização pode ser diferenciada entre desenvolvimento de ciência ou militar. Mas é a fluidez audiovisual que envolve tudo isto que nos faz sentir em harmonia com os lugares e vontade de continuar a voltar ao jogo, ainda que todo o sistema de crafting acabe sendo desnecessariamente complexo, e de difícil gestão.



Em jeito de conclusão, findada a main quest, existe tanto ainda por explorar e fazer no jogo que acredito poder fazer as delícias de quem resolver dedicar-lhe esse tempo, ainda que estejamos já no domínio dos fãs hard-core do jogo, nomeadamente por todas as potencialidades técnicas adicionadas ao que se conhecia da trilogia. Contudo, para quem vem à procura de uma experiência Mass Effect, ligação a personagens, tomada de decisões, perplexidade e dilemas narrativos, não a vai encontrar, e por isso não admira a fraca receção que o jogo teve. Ainda que muita da crítica se tenha focado em problemas técnicos como as expressões faciais, entretanto completamente refeitas nos novos patches, nada nessas transformações consegue disfarçar os vários problemas de escrita e narrativa apontados ao longo deste texto.


Ler mais
Processos de escolha em Mass Effect, VI, 2014
"Witcher 3": indústrias criativas e escrita de narrativa interativa, VI, 2015

julho 02, 2017

“Pry”, artefacto multimédia (livro/jogo/filme)

Esta semana participei num júri de doutoramento na UALG a propósito de Literatura Digital, em que a obra “Pry” (2015) foi utilizada como objeto principal do estudo de caso da tese. Apesar da abordagem multimédia de “Pry”, a promoção, pelos seus criadores Danny Cannizzaro e Samantha Gorman, tendeu a apresentar o mesmo como um novo tipo de livro e um potencial modelo para toda uma nova literatura. No caso da tese, versando sobre Literatura Digital, seguiu-se essa abordagem no sentido de tentar trazer para a teoria da literatura novo conhecimento. Do meu lado pareceu-me que "Pry" deveria continuar a ser visto apenas como artefacto multimédia.


Devo começar por declarar que me movo na área da Multimédia desde há décadas. Comecei pelo cinema, mas o meu interesse pelos videojogos fez com que me interessasse pela tecnologia, o que acabou por me levar a interessar por todo o tipo de experimentos tecnológicos com o cinema, nomeadamente cruzamentos com os videojogos. Aliás isso mesmo viria a ser o centro da minha própria tese. Assim tendo para algum proteccionismo da área e suas obras.

“Pry” é uma obra de grande excelência, desde logo porque apesar de procurar inovar o modelo de livros digitais através da apetecível plataforma que é o iPad — tendo em atenção que a obra começou a ser pensada em 2012, pouco depois do lançamento da plataforma, e de todo o deslumbramento criado na sociedade com as novas possibilidades que se apresentavam para todo o domínio do impresso, dos livros à imprensa — não se deixou seduzir pela “magia” da tecnologia, tendo colocado acima desta as ideias e a comunicação.


Como substrato narrativo temos um soldado retornado do Iraque, 6 anos depois da primeira invasão em 1993, a lidar com as suas memórias, e com o modo como as encaixa no seu dia-a-dia, como se relaciona com as pessoas, age e reage a diversos conflitos e como tudo isso o afeta interiormente. Temos assim um universo narrativo facilmente reconhecível que é depois trabalhado em diferentes media — texto, imagem e vídeo — e integrados numa obra multimédia. A tecnologia presente rapidamente se esvanece, torna-se transparente para que o recetor se possa focar apenas e só na história e nas suas motivações para participar na mesma.

Em sentido lato, a obra multimédia não obriga a existência de interatividade na sua relação com o recetor mas obriga a uma interação entre media processada por computador, de outro modo a multimédia sem interação com o recetor não passaria de cinema. “Pry” não se apresenta como novo meio de comunicação, é uma obra multimédia, diga-se bastante próxima das obras do meio lançadas na vaga dos anos 1990. Aliás, como muitas das Apps que foram lançadas com o iPad que fizeram surgir todo um revisitar dos anos de ouro do CD-Rom Multimédia, agora com muito melhor qualidade vídeo, imagem e som, tudo num suporte imensamente móvel, sem necessidade de ratos ou teclados, criando por meio da interface de toque a impressão de uma interação quase-transparente.


Mas aquilo em que “Pry” se destaca relaciona-se ainda assim com a discussão dos media, pela estrutura narrativa interativa desenhada para dar conta dos estados de consciência da personagem que automaticamente nos coloca frente a frente com a discussão das capacidade expressivas específicas dos meios: literatura e cinema. Assim: a literatura é reconhecida pela supremacia em dar a conhecer o não-consciente dos seus personagens, algo que foi extremamente enfatizado por movimentos como o modernismo e autores como Joyce e Woolf, naquilo que ficaria conhecido como “fluxo de consciência”; por outro lado o cinema apresenta dificuldades em dar conta desses estados interiores dos seus personagens, pela simples razão de que não pode deixar de se focar no visível, tendendo a centrar-se na consciência e suas ações externas realizadas pelos personagens.

Storyboard da interação, na qual se pode perceber como o gesto de abrir pinça, permite aceder à realidade visível (olho), e o gesto de fechar pinça, permite aceder ao não-consciente. 

“Pry” é assim uma obra multimédia que apesar de não inovar o meio, apresenta uma interativdade prenha de sentido. A relação entre a experiência literária e cinematográfica faz-se destacando a relevância do consciente e não-consciente para a compreensão dos personagens e da história, acontecendo apenas graças à interatividade. Ou seja, os autores não se deixaram levar por uma abordagem simplista de dar a experienciar cada uma das camadas da consciência por meio de cada um dos media (literatura para o não-consciente e filme para o consciente), antes o fazem de forma completamente transmediada, passando a ação de diferenciação entre os planos de consciência para a interatividade, empoderando o interactor, tornando-o responsável por aceder às camadas de consciência em função das partes da história necessárias à compreensão do arco dramático completo.

Trailer de "Pry" (2015)

Apesar de todo este meu posicionamento, acredito que as terminologias artísticas são tudo menos exatas e as suas fronteiras nunca estão encerradas. Na verdade a AppStore começou por catalogar "Pry" como Livros, só passados alguns meses é que resolveu mover a aplicação para a secção de Jogos. Contudo, nenhuma destas categorias serve o objeto bem. "Pry" é livro e mais do que livro, é jogo e mais do que jogo, é filme e mais do que filme, por isso talvez tentar reduzi-lo a qualquer uma dessas áreas seja simplesmente ingrato para com todo o trabalho multidisciplinar envolvido e o resultado final, um híbrido que espelha o fundamento da transdisciplinaridade que é no fundo o desígnio da multimédia.

março 12, 2017

Switch, mais uma revolução Nintendo

2017 viu nascer não apenas uma nova consola, mas o renascer da esperança nas consolas de videojogos. Com a evolução tecnológica — aumento de processamento, sistemas cloud e novas plataformas (telemóveis, tábletes, Steam, etc.) — as consolas pareciam estar condenadas ao definhamento. Muito se escreveu sobre o seu fim, sobre a sua irrelevância. Contudo o lançamento da Nintendo Switch pôs um ponto nesta discussão, ainda que possa ser temporário, ao tornar-se na consola que mais rapidamente vendeu em mais de 30 anos. Como é que as previsões falharam tanto?



Interessa-me menos explicar o que falhou nas previsões, já que as previsões apenas existem para gáudio mediático e financeiro. As previsões tecnológicas ou outras, como nos demonstrou a astrologia, estão condenadas às regras do acaso e coincidência. Daí que conduzir as nossas expetativas na certeza de previsões seja pouco saudável e nada recomendável. Interessa-me mais perceber o que desencadeou todo este interesse nesta consola especificamente, e acima de tudo, tentar compreender o que ela representa para o meio expressivo dos videojogos. Faço-o enquanto investigador que estuda o meio, mas faço-o também enquanto mero consumidor, já que em 30 anos de historial nunca tinha comprado uma consola em pré-venda.

Começando pelo lado do consumidor. Comprei a Nintendo Switch influenciado por apenas um elemento comercial, o primeiro trailer “First Look at Nintendo Switch”. Assim que o vi, em Outubro 2016, fiquei apaixonado, e tomei a decisão de a adquirir. Pouco mais li sobre a mesma até a adquirir. Contribuíram para essa decisão vários fatores: 1) não tinha adquirido a Wii U, e com isso tinha perdido a oportunidade de jogar alguns jogos da Nintendo, vi assim na Switch a oportunidade de recuperar alguns desses jogos; 2) a saída de um novo Zelda, e o desejo de voltar ao fantástico universo de "Skyward Sword" (2011), agora num mundo completamente aberto; 3) e por último o potencial de jogabilidade demonstrado pelo trailer. Este último ponto foi decisivo porque se ligava ao meu trabalho de forma mais concreta, acabando por ser o gatilho fundamental para a compra.

A Nintendo Switch revelou-se distinta do que vi no trailer. Primeiro porque ainda falta um claro investimento em jogos que rentabilizem todo o seu potencial, muito daquele que surge no trailer, falo em concreto da jogabilidade social, assimétrica e física. Temos uma clara evolução face à Wii, porque é claramente mais social. Os dois comandos pedem de imediato dois jogadores, e com isso a construção de toda uma relação social muito mais intensa (que consegui observar diretamente cá em casa). A Wii apesar de ter esta mesma capacidade, continuava ainda muito agarrada à ideia do jogador individual, com o ecrã a marcar o centro de toda a experiência. O videojogo “1-2-Switch” abre todo um leque de experiências de jogo até aqui deixadas por explorar pelas consolas, nomeadamente todas as que secundarizam o ecrã e colocam os jogadores fisicamente no centro da ação.



Insisto no campo social, por contrapeso à Realidade Virtual, que tomou conta do mundo dos videojogos nos últimos dois anos. Os jogos, antes de serem digitais, foram sempre sociais. Os jogos só se tornaram individualizantes com a presença das máquinas, porque estas passaram a simular a existência de um outro, permitindo a gratificação de jogo a solo. O ato de jogar não é relevante sem a componente social. Podemos até jogar sozinhos algumas bolas ao cesto, mas a gratificação é efémera se não pudermos competir, ou pelo menos demonstrar as nossas competências a quem nos dê feedback. Neste sentido, a Nintendo Switch poderia chamar-se Nintendo Social, porque é um dos seus maiores atributos, porque recolocou a essência do jogo no centro da atividade, e  finalmente porque o fez remando contra toda a maré individualizante da Realidade Virtual.

Mas talvez não tivesse escrito estas linhas, se não tivesse encontrado outro fator que me marcou ainda mais na experiência desta consola, por ter superado completamente aquilo que o trailer apresentava, falo da portabilidade. Muito honestamente, do trailer não tinha compreendido que a consola era essencialmente portátil, e que a componente de sala era apenas um modo de carregamento e ligação à televisão, por isso a surpresa foi ainda maior. Ou seja, a consola no seu modo portátil está completa, na presença de todo o seu poder de processamento, apenas com um ecrã menor. Por outro lado, o processo de conexão e desconexão da televisão é imediato, automático e completo. Passar de um jogo na televisão da sala para o sofá do escritório, demora apenas o tempo de levantar de um sofá e sentar no outro. Isto não é impressionante, isto muda tudo.


Podemos dizer que a Nintendo Switch superou todas as previsões sobre o futuro das consolas porque pegou nelas e simplesmente revolucionou o conceito de consola de sala. Percebe-se também a partir do design da Switch o porquê da Nintendo ter começado a investir em jogos móveis para telemóveis e tábletes. Porque a essência do design da Switch diz-nos que as consolas como caixas grandes, fixas e inamovíveis no centro da sala terminaram mesmo. Afinal os futurólogos acertaram em parte nas suas previsões. A evolução tecnológica permitiu miniaturizar de tal modo as capacidades de processamento, que tudo aquilo que precisamos para jogar os nossos videojogos pode estar contido num simples táblete, e em breve num simples telemóvel. Mas! Se assim é, porque é que ainda precisamos de uma consola, porque precisamos de uma Switch quando temos tantos modelos de tábletes?


A Nintendo podia ter lançado apenas um táblete, mas isso nunca seria uma consola. Uma consola é um sistema de jogo dedicado. Pode até fazer tudo o que faz um táblete, mas tem de oferecer mais, e a Switch oferece. Da portabilidade entre televisão e táblete, à essência do ato de jogar que assenta numa dupla de comandos como interface entre o mundo digital e o mundo físico. Tudo isto pode tornar-se rapidamente num standard copiado por várias empresas para uso com diferentes sistemas móveis. E mesmo o leque de jogos pode rapidamente ser ultrapassado pelos milhares de criadores independentes que desenvolvem para Android ou iOS. Mas no final do dia, o que conta é quem chegou primeiro, ou melhor, quem teve a visão, quem deu liberdade à criatividade e arriscou, e isso é aquilo que a Nintendo ainda nunca parou de fazer, por isso se mantém no mercado, e enquanto assim for continuaremos a ter sempre consolas.


Declaração de interesses: A consola e os videojogos aqui discutidos foram adquiridos pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com as marcas envolvidas.

dezembro 22, 2016

“1979 Revolution”, um videojogo documental

Não é todos os anos que podemos ver um jogo sério/educativo alcançar o interesse das revistas da especialidade. Conhecemos imensamente bem os problemas que têm advindo da tentativa de juntar aspetos pedagógicos e videojogos, algo que já aconteceu antes com o cinema. Deste modo, se não fosse pelo interesse no jogo em si, valeria sempre a pena questionar o que tem “1979 Revolution” que faz com que funcione.





A resposta não é difícil, nem sequer complexa. “1979 Revolution” foi feito por uma equipa de pessoas com experiência na indústria clássica de videojogos (Navid Khonsari, John Malaska, etc.), ou seja, pessoas que sabem o que constitui um videojogo, e o que esperam os jogadores. Por outro lado, em termos educativos, em vez de professores a equipa possui documentaristas de cinema (Vassiliki Khonsari, Adam Neuhaus, etc.), ou seja, pessoas com um conhecimento profundo da arte de contar histórias. Juntando os dois, temos um objeto capaz de comunicar sem defraudar o meio, temos um artefacto que em vez de se preocupar com o ensinar, conta uma história. Diria neste sentido, que temos um videojogo documental.

Claro que se tudo isto funciona é também porque detrás de todo o desenvolvimento existe muita paixão. O criador Navid Khonsari viveu no Irão esta revolução. Pouco depois da mesma, e com 10 anos, o seu pai, médico em Teerão, resolveu emigrar para o Canada. Ou seja, muito do que podemos experienciar neste jogo surgiu a partir de memórias reais desses tempos, e do próprio criador. Por isso não surpreende ler na rede, muitos comentários de pessoas que sentem uma espécie de regresso ao passado ao jogar o jogo.

Em termos de valores de produção, outro dos problemas dos jogos não especificamente destinados ao grande domínio do entretenimento, "1979" não possui financiamento de milhões, e por isso nota-se um esforço de reflexão sobre o modo como ainda assim se poderia manter um nível de características capazes de tornar o jogo atrativo em 2016. Para tal, foram tomadas várias decisões técnicas que resultaram imensamente bem. Uma dessas é a animação toda criada com recurso a motion capture, o que evita a necessidade de equipas gigantescas de animação, e apesar de não ter a qualidade final de uma grande produção, funciona muitíssimo bem. Claro que funciona porque temos bons atores, boa direção desses mesmos atores, assim como bons diálogos e cinematografia.

Por outro lado, a jogabilidade baseada no modelo desenvolvido, ou melhor consagrado, pela Telltale Games para jogos como “The Walking Dead” (2012), reduz também imenso as necessidades de desenho e desenvolvimento de interação mais complexas no próprio ambiente de jogo. Com o cerne da jogabilidade a centrar-se nos diálogos e escolhas em texto, oferecendo-se além disso, quase como bónus, pequenas interações com eventos, pequenos mini-jogos e quicktime events, passear em espaços pequenos, ou tirar fotografias.

Sobre o jogo. Reza Shirazi, é o nosso personagem principal, tem apenas 18 anos, acabado de regressar ao Irão, depois de ter estado a estudar na Alemanha, vindo encontrar um país em ebulição. Filho de boas famílias, vai perceber que algo de estranho se passa na sociedade do Irão, desde logo a diferença tida entre os cidadãos de primeira e os de segunda. Começa a ouvir discursos de líderes no exílio, vai a manifestações, assiste a momentos chave da verdadeira revolução de 1979, e de repente damos por nós, enquanto jogadores, a fazer parte dessa revolução. Somos chamados pelo jogo a tomar em mãos o nosso destino, o de Reza, e para isso, a ter de refletir sobre que tipo de revolução queremos, ideologicamente onde nos posicionamos.

É exatamente neste ponto que o jogo vai brilhar, porque se usa toda a linguagem cinematográfica para contar a sua história, recorre à jogabilidade para nos colocar no local. Em vários momentos somos chamados a agir: devemos lutar ou pacificar uma discussão que envolve comunistas contra religiosos; devemos atirar pedras à polícia do governo ou seguir uma abordagem pacifista; devemos defender um irmão entretanto inscrito na polícia secreta, ou deixá-lo cair com o governo, etc. Ou seja, “1979” não conta apenas a história do que aconteceu no Irão, coloca-nos lá, e conduz-nos a participar nos seus eventos, torna-nos de uma certa forma responsáveis pelo que acontece(u). Ao contrário do cinema, não podemos apenas testemunhar a revolução, temos de a sentir por dentro, e assim a compreensão do sucedido deixa de ser meramente informacional passando para um plano mais experiencial.

Tecnicamente, esta experienciação tem falhas, nomeadamente de balanceamento e ritmo, e teria ganho com mais investimento em UX. Por outro lado, o jogo é bastante curto, são apenas 2 horas, o que não dá muito tempo para construir toda a imersão, mais ainda para uma cultura tão distante e complexa. Ainda assim, e como disse, estamos perante um jogo com financiamento reduzido o que torna complicado atingir a excelência a todos os níveis.

Em termos da experiência geral, adorei o confronto sentido com uma cultura muito pouco difundida no ocidente. Permite-nos conhecer um pouco mais de um país tão rico culturalmente, e perceber o quão próximos todos estamos, o quanto as ideologias se aproximam independentemente do ponto geográfico e até mesmo das religiões. Por outro lado, permite ainda compreender como já em 1979 os problemas face à influencia dos EUA se registavam. Contudo, é com muita pena que vejo o atual governo do Irão a banir um jogo que acredito servir imenso no dar a conhecer do país.

dezembro 17, 2016

“The Last Guardian” (2016)

“ICO” saiu em 2001, “Shadow of the Colossus” (SOTC) saiu em 2005, e este ano chegou a vez de “The Last Guardian” (TLG). São os três únicos videojogos criados por Fumito Ueda, três grandes visões oníricas e peculiares que dão acesso a um género próprio que opto por apelidar aqui de humanismo fantástico. Dito isto, fica claro que não podemos cingir a interpretação de TLG a si próprio, temos de olhar ao contexto do autor e suas criações prévias. Não sabemos se Ueda nos dará mais algum jogo mas esta é, desde já, uma das trilogias mais relevantes na definição da arte dos videojogos.



Podemos começar pelo que uniu ICO (analisado em 2004) e SOTC (analisado em 2013) dizendo que é o mesmo que os une a TLG, e que assenta em dois grandes pilares: a capacidade empática; e o mundo história. Nos três videojogos, os mundos são enigmáticos, nos seus sentidos mais herméticos e obscuros, ao mesmo tempo que os seus personagens são profundamente humanos, nas suas expressões mais sensíveis e de compreensão do outro.

Por outro lado, em todos os três jogos, a história é mais tema e menos trama. Ou seja, surge como pano de fundo que alimenta um enredo mínimo, estimulando o interesse e a envolvência dos jogadores pela performance e interação dos seus personagens. Temos aquilo que na academia definimos como, narrativas orientadas por personagens (character-driven narrative). Assim, não é saber quem criou aquele mundo e aqueles seres (problema ou conflito) que nos agarra, mas é antes saber como vai terminar a relação entre aqueles seres que nos move (personagens).

"ICO" (2001)

"Shadow of the Colossus" (2005)

"The Last Guardian" (2016)

Em 2001 tivemos o Rapaz e a Rapariga, em 2006 o Jovem e o Cavalo, e agora de novo o Rapaz, mas junto com uma criatura do fantástico (fusão gigante de cão, gato e pássaro). Podemos tentar explicar o que une estas três relações, e se nos esforçarmos serão múltiplas as interpretações que poderemos desenvolver, até mesmo, criar as devidas progressões e evoluções entre os três volumes. Contudo o seu criador não o fez com esse intuito, de modo que fazê-lo será estar apenas a dar azo as nossas próprias fantasias. Para mim, é suficiente reconhecer que os universos dos três videojogos se cruzam, formam um todo coerente, profundo e impactante do ponto de vista sócio-político, emocional e claro, estético. Ainda assim, arrisco a deixar a minha leitura: temos a fragilidade humana que dita a sua condição colaborativa e cooperativa; temos o instinto de sobrevivência emocional que nos empurra para o outro, para a compreensão desse outro, e obriga ao colaborativo e cooperativo; e temos, todo um mundo exterior que nos coage pela sua grandeza, pela sua estranheza e seu segredo, que nos encosta à parede e nos obriga a gritar pelo outro, a recorrer ao colaborativo e cooperativo. E assim temos um humanismo fantástico.

Não admira que durante quase uma década “ICO” tenha surgido invariavelmente citado como o videojogo mais emocional, em termos de emoções introspetivas — empatia e melancolia — já que no que toca a emoções expansivas — tensão e euforia — sempre estiveram presentes desde o primeiro videojogo. O que as obras de Ueda fazem é falar ao nosso ser, questionar a nossa condição humana, porque fazemos o que fazemos, todos os dias que acordamos e regressamos do estado de não-consciência! É isto que fazem todas as grandes obras da literatura, do cinema ou do teatro, e é por isso que os trabalhos de Ueda não se encerram sob a mera definição de entretenimento, de produto de design gerador de “fun”, são algo diferente, são obras de arte.

Design de jogo - a capacidade empática
No campo do design de jogo as obras de Ueda trabalham todas em redor dos NPC (personagens não jogáveis). Se em ICO tínhamos Yorda e em SOTC tínhamos Agro junto com os Colossus, aqui temos Trico. Em todos, temos a IA a dar vida aos NPC para que eles se tornem credíveis, mas acima de tudo para que eles proporcionem tudo aquilo que de jogo se trata. Se é da interação entre personagens que os jogos de Ueda vivem, é natural que os seus personagens tenham de ser não apenas bons, mas absolutamente perfeitos. Sim, não esqueçamos que é de arte que falamos, de uma representação do real, na qual os criadores podem recortar tudo aquilo que menos lhes interessa, mesmo que se trate de um jogo com ação passada em tempo real. Claro que para isso, foi preciso dotar Trico de um dos mais ricos repertórios de linguagem não-verbal que podemos encontrar no mundo dos videojogos.




Todos os seus movimentos foram criados, avaliados, e refinados até ao mais ínfimo detalhe para garantir um manancial comunicativo inestimável. Vai muito além de Yorda que na altura nos tinha tanto surpreendido. Diria que temos uma espécie de Yorda junto com um dos Colossus, mas imensamente mais vivo, mais, podemos dizer, humano. Mas se tudo isto é fascinante, mais ainda é quando percebemos que o propósito de tudo isso não é Trico, mas sim o nosso próprio personagem controlável, o Rapaz, atente-se nas palavras de Ueda que explicam:
“The main character is controlled by the player, so the main character is you, but because every single gamer is different, it’s very hard to give the player an exact definition of the protagonist: it’s up to you who the main character is going to be. As a developer, in order to form such a character you need assistance from that character’s surroundings – that’s where the role of the NPC, or opposite character in the case of our games, comes in. The secondary character helps shape the main character. That’s how we make our games.” Fumito Ueda 
Ou seja, Trico, tal como tinha acontecido com Yorda e Agro, comunicam em espelho aquilo que o protagonista sente, fazendo o jogador sentir-se como sente o protagonista. E é assim que surge toda a força do elemento que destaquei no início deste texto, a capacidade empática. E é exatamente aqui que TLG vai muito além dos seus antecessores, já que Trico é uma força da natureza, é verdadeiramente aquilo que o meu filho não parou de lhe chamar ao longo de todo o jogo, “o teu amigo”. E é por isso que me tenho rido sempre que leio pessoas a dizer que o TLG tem muitos problemas e bugs, nomeadamente no controlo de Trico. O que esses jogadores não perceberam é que Trico é um animal, um ser-vivo e não um robô, por isso nem sempre faz o que se lhe manda e isso é absolutamente brilhante.

Mundo história - Ambiente, Espaço e Arquitetura
Tudo o que vivemos com Trico, vivemos num mundo dotado de uma arquitectura absolutamente particular, que cria um ambiente distinto e imensamente atmosférico. Ou seja, um cenário de fantasia, fruto de uma grande mistura de variáveis próprias ao mundo de Ueda. Algo que é particularmente interessante, academicamente, já que Ueda tem dito em entrevistas, que estes mundos brotam apenas da sua imaginação, uma vez que ele dedica pouco tempo a procurar referências ou a viajar para conhecer locais. Inclusive, chegou mesmo a dizer nunca ter visitado um castelo, o que impressiona tendo em conta as estruturas presentes nos seus três jogos.

No entanto, e apesar de Ueda dizer tal, isso não corresponde completamente à verdade. Ao longo das várias entrevistas, e um pouco tirado a ferros, foi deixando cair algumas referências que entretanto Gareth Martin coligiu para a Eurogamer. Assim, e seguindo as pistas destacadas por Martin — três artistas, De ChiricoTrignacPiranesi — podemos compreender como pôde a imaginação de Ueda germinar mundos tão estranhos, impenetráveis, misteriosos, e acromáticos. A nossa imaginação trabalha por meio da nossa criatividade que só funciona quando plena de experiências, ideias e mundos. Do vazio só brota vazio.

"The Nostalgia of the Infinite", 1913, Giorgio de Chirico

"Le vieux pont", 1980, Gerard Trignac 

"La tour du pendu", 1981, Gerard Trignac

"The Man on the Rack", 1761, Giovanni Battista Piranesi


Para fechar, ainda que exista tanto e tanto para dizer sobre TLG, podemos numa primeira impressão sentir uma certa limitação na obra, nomeadamente na sua capacidade para ultrapassar as obras anteriores do autor. Inicialmente podemos sentir que TLG é mais uma atualização técnica que se socorre de um mesmo conjunto de mecânicas, valores e ideias, mas isto é algo que rapidamente se desvanece, porque a obra e o jogo deixam de o ser, dando muito rapidamente lugar ao sentir para com Trico. O mundo torna-se natural aos nossos olhos e à nossa ação, passando nós a estarmos ali, participantes de uma realidade fantástica, focados apenas naqueles personagens, nos seus desejos, motivações e bem-estar. TLG desenvolve uma experiência única, e estando em linha com as obras anteriores não deixa de ser completamente autónoma.