março 26, 2017

“Assassin's Creed”, o filme

Tirando o IMDB vi o filme ser trucidado em quase todo o lado, apesar de sem surpresa. Virou moda dizer que os filmes adaptados dos videojogos são maus, e por mais que se façam adaptações interessantes como “Warcraft” (2016) ou “Angry Birds” (2016), nunca serão bons suficientes. Em parte isto explica-se por uma confusão de expectativas, os críticos esperam filmes elaborados quando se fala de videojogos blockbusters, e os jogadores esperam que tudo o que viveram, ao longo de dezenas e dezenas de horas, possa surgir com ainda mais intensidade em apenas duas horas de filme.



Apesar de não querer alimentar expectativas à partida, o facto de o realizador ser Justin Kurzel deixou-me bastante interessado, mais ainda quando suportado por Michael Fassbender, Marion Cotillard e Jeremy Irons. Se tinha gostado de “Snowtown” (2011), foi com “Macbeth” (2015) que tive a certeza de estar perante um realizador relevante. O modo como capta a essência do que pretende relatar, comprime e intensifica, é excelente, mas depois como constrói o universo plástico, brilha completamente. O naturalismo de “Snowtown” com uma imagem de rudeza esbatida é impressionante, e no entanto em “Macbeth” opta por uma mudança de quase 180º, recorrendo a toda a maquinaria digital para construir um universo belo e sumptuoso de luz e textura.

Assim, “Assassin's Creed” segue em quase toda a linha “Macbeth”, desde a dupla de atores  — Michael Fassbender e Marion Cotillard — à componente visual pela cinematografia de Adam Arkapaw. Por outro lado, tanto “Macbeth” como “Assassin's Creed” são adaptações, com uma não pequena diferença, uma provém do Bardo, o que acarreta responsabilidade acrescida, mas ao mesmo tempo minora o esforço necessário para conseguir uma boa estrutura, assim como uma audiência conhecedora do contexto.

No entanto, é exatamente estrutura o que mais falta no mundo dos jogos de “Assassin's Creed”. Apesar de ter jogado todo os jogos principais da série, e ter levado cinco deles até ao final, continua a persistir um rol de dúvidas sobre o que sustenta o mundo do jogo. O melhor da série sempre foi o que se vivia dentro do Animus — as viagens ao passado, cidades e personagens históricas — sendo que a história do presente foi sempre muito pouco clara, a ponto de nos últimos jogos se tornar praticamente irrelevante. O interesse da Ubisoft em criar o filme parece ter tido um objetivo claro, esclarecer as dúvidas criadas pelos jogos.

“Assassin's Creed”, o filme, responde a essas dúvidas, torna claro quem são os Templários, quem são os Assassinos, e a importância da Maçã. Podemos argumentar que a Maçã é aqui simplificada, mas não é, é antes sintetizada à sua uma essência. Ainda que possamos objetar contra a real possibilidade do seu poder, não deixa de se apresentar como uma boa premissa. Contudo, uma premissa baseada num objeto, por mais filosófico que seja, não tem como ombrear com uma premissa baseada no íntimo do conflito humano, como acontece em “Macbeth”. A Maçã não é mais do que um Graal, e como tal, objeto de enredos de aventuras infinitos que não podem impactar verdadeiramente a condição humana. Deste modo, procurar em “Assassin’s Creed” um filme que vá além do filme blockbuster de aventuras, é ridículo. “Assassin’s Creed” é um filme de aventuras, tal como os videojogos, e enquanto tal, faz muito bem o seu papel. Por isso quando vejo análises ao filme a qualificar a história de "mero Dan Brown", só posso pensar que se enganaram na sala de cinema quando aceitaram escrever a crítica.


Kurzel consegue, mais uma vez, puxar pela sua capacidade de síntese e construir um objeto que incorpora grande parte dos traços distintivos da série de videojogos “Assassin’s Creed”, desde o parkour e realidade virtual, ao mistério e thriller, passando pelo cruzamento entre a tecnologia e a envolvente histórica, incluindo o "leap of faith", está lá tudo para quem quiser entrar no filme sem preconceitos.

Montagem, literal, de significados

Podia ser apenas mais uma animação a tentar dar vida a uma das telas do grande cânone ocidental da pintura. Podia ser apenas mais uma obra a relevar-se por conta do peso da obra trabalhada, "A Última Ceia" (1498) de Leonardo Da Vinci. Mas, "The Da Vinci Time Code" (2009) é algo diferente, a tela representada serve realmente de atrativo geral, mas o que verdadeiramente conta é a técnica, não per se, mas pelo modo como se torna expressiva.


O criador, Gil Alkabetz (1957), é professor na Filmuniversität Babelsberg Konrad Wolf (Alemanha), mas é antes disso alumni da Bezalel Academy of Art and Design (Israel), uma escola de referência no mundo da animação e que já aqui mencionei várias vezes. O design de som e música são de Alexander Zlamal, parte fundamental na edificação das ideias de Alkabetz para o modo audiovisual. Por fim, o interesse geral em redor da animação advém da potencial descoberta de novas interpretações sobre uma das obras de arte mais ultra-interpretadas da história, sendo a própria sinopse do filme a indicar isso mesmo:
"In the film “The Da Vinci Time Code” one picture is taken apart in order to create an animated film from its fragments. Different parts of this one picture, based on similar forms, allow us to discover secret movements.The people in the picture eat, dance, discuss and argue, until finally all are silenced."
Contudo, o que mais surpreende não é, de todo, o que se descobre, o que de novo se interpreta, mas antes o método que nos abre o acesso a essas novas significações. Alkabetz retalha a "A Última Ceia" em pequenas partes, coloca-as em movimento, e utiliza a técnica de montagem audiovisual para dar a ver novos mundos dentro da grande representação estática pintada. É isto que impressiona, a elevação no uso das diferentes técnicas, sem qualquer objetivo virtuoso, mas apenas em nome da expressividade, criando sentidos novos a partir de movimentos imaginados sobre elementos estáticos. O trabalho realizado assenta numa lógica de repetição e ritmo intenso que iniciando-se como mero atributo estético, imprimindo sensações no espectador, vai aos poucos ganhando forma própria, criando um mundo próprio a ponto de começar a produzir os seus próprios significados. "A Última Ceia" ganha assim uma completa nova dimensão, como que insuflada de nova atmosfera, produzida a partir de simples movimento visual e a adição de um ligeiro substrato sonoro.


"The Da Vinci Time Code", (2009), Gil Alkabetz

março 22, 2017

“O Idiota” (1868)

“O Idiota” vem catalogado como uma das cinco grandes obras de Dostoiévski, mas de grande só lhe encontrei as mais de seiscentas páginas. Não me revi, nem compreendi Míchkin, assim como a narrativa é pouco coesa o que acaba servindo mal a premissa de partida que tinha muito a dar ao texto. Com análises que invariavelmente ligam Míchkin a Jesus Cristo e D. Quixote, parece-me que isso se pode encontrar apenas na premissa, sendo necessário forçar a interpretação para se poder encontrar o seu lastro na obra. O meu problema com este livro de Dostoiévski assenta em dois vetores — a história e o discurso que a suporta — que passo a explorar nos parágrafos seguintes.


A história que Dostoiévski nos quer contar assenta na idea do “Homem Ideal” — bom, honesto e altruísta — e o modo como esse homem, a existir, nunca poderia funcionar numa sociedade que é corrupta e egoísta em todas as suas dimensões. Dostoiévski terá dito que pretendia “representar um ser humano completamente belo“. É realmente isto que podemos ver na história de Jesus Cristo, é isto que podemos ver em "D. Quixote", e até podemos dizer mais recentemente em “Forrest Gump”. Mas é aqui que começa o problema, Míchkin não se parece com nenhum destes personagens. Míchkin não é nenhum idiota, mas também está longe de ser o "Homem Ideal".

Vejamos. Conhecemos Míchkin no seu regresso da Suíça onde esteve em tratamento à epilepsia. No comboio encontra companheiros russos que lhe falam de uma mulher muito bonita, Nastássia Filíppovna, por quem um deles está apaixonado. O que faz Míchkin? Primeiro deixa-se apaixonar por Nastássia apenas a partir da sua aparência, a fotografia é tudo o que lhe não sai da cabeça. E o que vai fazer depois, mesmo antes de verdadeiramente a conhecer? Vai tentar roubá-la às pessoas de quem supostamente era amigo. Quando ela lhe pergunta se deve casar com o amigo, o que diz ele?, que não, porque quer ele casar com ela. Que idiota é este afinal que depois de ter visto uma fotografia se apaixona, sem querer saber mais quem é a pessoa. Torna-se obcecado por ela, a ponto de magoar muitas outras pessoas e outras mulheres, e vive todo o livro a tentar possuí-la (ainda que não sexualmente)! Ora isto não encaixa na minha visão do Homem Ideal. As mulheres que se digladiam por Míchkin são ambas fúteis, à sua maneira, mas são estas que o cercam, é por elas que ele se interessa! Podíamos dizer que é idiota, mas como é que um idiota, se o fosse, teria tanto para filosofar habilmente sobre a vida? Como é que alguém tão desinteressado em tudo se torna obcecado por uma mulher, embora seja uma obsessão que o vai sendo, na sua inconstância.

Podemos antes dizer que Míchkin era um louco, e é por aí que o livro parece muitas vezes querer enveredar, mas até aí me perturba. Como pode Dostoiévski, que era ele próprio epilético, caracterizar alguém que sofre de epilepsia de louco, ou mesmo idiota. Sei bem que estamos no século XIX, mas custa-me ler uma caracterização destas, de alguém que sabia muito mais do que aquilo que mostra nas linhas desta obra. Mais para o final, quando a loucura começa a tomar conta do texto, surge a referência a “Madame Bovary”, mas Bovary além de ser mulher, e de carregar esse fardo numa sociedade completamente dominada por homens, tinha várias motivações para chegar ao estado a que chega. E aqui, é a epilepsia?

Não me parece. E a prova surge nos cadernos que Dostoiévski foi escrevendo à medida que foi desenvolvendo o romance, e que mostram de onde vêm a maior parte dos problemas de que aqui falo,  as inconsistências. A escritora A. Susan Byatt que adora o livro, não deixa de lhe apontar criticas e numa parte da sua análise diz o seguinte:
“Anna [mulher de Dostoiévski] preservou os cadernos de notas, que mostram como tanto o enredo como os personagens estavam num estado fluído e num caos vulcânico, mesmo na altura em que o livro já estava a ser publicado como seriado. O bom príncipe aparece nas notas iniciais como orgulhoso e demoníaco, e como o violador da sua irmã adotada (que seria um protótipo de Nastássia Filíppovna). Bota fogo de forma criminosa e mata a própria esposa. Esta primeira parte, como parece, deveria ter sido poderosa. Mas Dostoiévski parecia não ter ideias muito claras sobre como proceder. A segunda parte seria fantasmagórica e divagante, sem estrutura mas agilmente enérgica.” A. S. Byatt, 2004, in The Guardian 
Este parágrafo explica todos os meus problemas com o “O Idiota”. As inconsistências e o personagem estão explicados, assim como a própria Nastássia ganha uma nova consistência, com a colagem a uma potencial ideia de paixão pela irmã. Ou seja, todo o livro parece ter nascido de uma ideia com traços profundamente góticos, dos quais ainda existem alguns resquícios mais para o final do livro. A uma determinada altura começamos a sentir a fantasmagoria, por vários momentos pensei mesmo que os personagens não existissem, fossem fantasmas, ou invenções das alucinações da cabeça do Príncipe. E em parte foi isso que me levou até ao final do livro. No meio de tanta insanidade e de um final do mais puro gótico que li nos temos recentes, esperava encontrar, até à última linha, uma qualquer explicação paranormal para tudo aquilo que Míchkin representava. Mas não, nada.

No final fiquei imensamente desconsolado. O que mais recordo da obra são personagens constantemente a entrar e a sair de cena, com mexericos atrás de mexericos, rumores atrás de rumores, diz que disse. Os personagens parecem estar todos a olhar uns para os outros à espera de algo, mas nunca nada chega a acontecer, nem se espera que aconteça. Vamos seguindo e vendo o Príncipe vaguear sem rumo, sem interesse por nada. Mesmo quando se lembra de Nastássia, logo a seguir já a esqueceu. E depois, de 100 em 100 páginas, aparece um diálogo mais profundo, com alguma discussão filosófica até interessante, mas que surge de modo extemporâneo em relação ao restante texto. Não, não o vejo como um grande livro, vejo-o como uma manta de retalhos, e ainda que alguns desses retalhos apresentem grande qualidade, não chegam para fazer uma grande obra. Pelo menos para mim não chegou.

"Strange Beasts": Uma app para o futuro próximo?

Fantástica curta, ou talvez reportagem, ou ainda anúncio! O melhor será mesmo caracterizar de mockumentary, já que é um pouco de tudo, ou talvez bastasse dizer que é um trabalho do género "Black Mirror", fica tudo mais claro! Mas não é por isso que o trago aqui, embora também, é pelo seu conteúdo, o que tem para nos dizer ou melhor questionar, seguido da belíssima execução, tanto discursiva como plástica.




"Strange Beasts" foi criada por Magali Barbe, uma especialista em VFx baseada em Londres, que tem no seu CV trabalhos pela Passion Pictures, Framestore e TheMill, o que só por si garante à priori um trabalho de topo. Mas como disse acima, não é apenas a execução plástica que é deliciosa, o discurso narrativo é modelado de forma brilhante. Desde o momento em que somos introduzidos ao universo, ao momento em que nos despedimos, a crença é completa em tudo o que se apresenta, porque o storytelling é absolutamente perfeito no ritmo, na causalidade, na verossimilidade e familiaridade. Barbe usa os diferentes discursos do storytelling para nos envolver, focar a atenção e criar o modo de humor próprio, para depois nos tirar o tapete. Belíssima execução.

Quanto ao que se discute no filme, não quero entrar em pormenores, já que vos estragaria a surpresa. Mas que não vos deixará indiferentes, disso não tenho dúvidas. As questões despoletadas são absolutamente centrais em face da realidade que a tecnologia atual nos providencia.

"Strange Beasts" (2017) de Magali Barbé

março 19, 2017

“Breaking Bad - O Filme”

5 anos em exibição, de 2008 a 2013, resultaram em 5 temporadas, 62 episódios, 48 horas contínuas de filme. Em 2017 podemos finalmente ter acesso a toda a saga de “Breaking Bad” por meio de um filme que totaliza apenas duas horas e sete minutos. Se se pode dizer que a experiência é igual? Não, é totalmente impossível, mas permitiu-me conhecer a história completa depois de ter desistido no 3ª episódio.




Dois franceses, Gaylor Morestin (designer gráfico) e Lucas Stoll (realizador), resolveram dedicar grande parte do seu tempo livre, ao longo de dois anos, para criar um filme completo a partir das 48 horas de série, que conseguisse conter a nata da narrativa e da experiência de “Breaking Bad”. É um trabalho insano, pelas múltiplas linhas narrativas presentes na série e a multiplicidade de personagens, pelas temporadas filmadas com diferentes realizadores, pela variação de recursos de produção, do guarda-roupa e da maquilhagem. Mas também porque trata-se de recriar algo a partir do que existe apenas, sem hipótese de filmar o que quer que seja para dar conta de aspetos menos claros.

No final das duas horas posso dizer que compreendi a razão do sucesso da série, compreendi o que a tornou tão relevante, consegui gizar os traços gerais dos personagens e conflitos, mas tenho perfeita noção que passei ao lado de muito daquilo que gera a verdadeira experiência de “Breaking Bad”. O filme cria a sensação de estarmos a ver detrás de alguém, captando apenas partes do que vai acontecendo, dando sentindo ao todo, mas percebendo que nos falta contexto, que cada conflito aparece e desaparece sem chegarmos a compreender a essência do seu desenvolvimento.

“Breaking Bad - O Filme” é uma obra interessante para quem viu a série e quer agora rever os momentos altos, pode servir a quem como eu nunca viu, mas saiba que tem de se comprometer em aceitar que ver o filme não é o mesmo que ver a série. Que a experiência que vai viver, não é aquela que foi pensada por quem criou a série. A experiência está adulterada, funciona, mas não oferece o pleno. Serve para conhecer a história, para compreender o fenómeno e apaziguar as ânsias de quem não quer dedicar 48 horas a conhecer o universo da série.

Para ver o filme precisam de procurar no submundo da web, já que a Sony fez o favor de mandar retirar o trabalho do Vimeo e do YouTube, apesar de catalogado como Fair Use. Por antecipar isso mesmo, fiz download do mesmo no dia em que saiu, contudo deixo um link para quem não se importar de ver online.

março 18, 2017

“The Undoing Project”, 12/2016

O novo livro de Michael Lewis, autor do enorme sucesso “Moneyball” (2003) passado a filme homónimo em 2011 com Brad Pitt, é uma montanha russa de emoções. Usando como tema de fundo a amizade entre dois cientistas que revolucionaram a psicologia, Lewis leva-nos a conhecer o duo, dando conta de toda a sua genialidade sem descurar todas as fragilidades humanas. As páginas viram-se por si porque Lewis conta como poucos sabem contar uma boa história. É verdade que embeleza, que temos de ir colocando algum sal nos heroísmos, sonhos e facilidades que tão a jeito se colocam para nos lançar nos turbilhões emocionais, mas isso faz parte da arte do storytelling. Lewis não é um historiador, não está à procura da certeza absoluta, nem da total evidência daquilo que diz, Lewis é um contador de histórias, e usa toda a sua arte para nos inebriar e interessar pelo mundo da investigação científica.

Amos Tverski e Daniel Kahneman, nos anos 1970

Daniel Kahneman tem hoje 83 anos, fugiu, com a sua família de Paris, ao Holocausto e chegou a Israel em 1946. Licenciou-se, com um major em Psicologia e um minor em Matemática, praticou psicologia e aprendeu a arte da investigação nas forças armadas israelitas. Nos anos 1960 iniciou o seu trabalho científico de fundo com um outro psicólogo matemático, Amos Tverski. Juntos, de Israel à Ivy League americana, transformariam a Psicologia e em consequência a Economia, levando ao desenvolvimento de uma área científica totalmente nova, a Economia Comportamental. Tverski morria de cancro em 1996 deixando Kahneman sozinho para receber o Prémio Nobel de Economia em 2002. Esta é a história que nos conta Michael Lewis, e que pelos ingredientes facilmente se poderá depreender que não faltam conflitos, medos e alegrias para criar interesse na leitura.


Apesar de acreditar no livro como um excelente relato de proezas científicas, preenchido por uma boa componente humana que lhe confere grande empatia, recomendaria a qualquer leitor, se quiser extrair o máximo desta leitura, a ler primeiro “Pensar, Depressa e Devagar” (2011). Este é o livro que Daniel Kahneman e Amos Tverski tinham decidido escrever juntos, mas só acabaria por acontecer já depois da morte de Tverski e depois do Nobel. É um livro de divulgação científica, que abre o conhecimento complexo à leitura de leigos. E é um livro que não tenho parado de recomendar e recomendar a todos, porque é um livro que muda a forma como vemos o mundo, desde logo como nos vemos a nós mesmos. Daí que compreendendo melhor o alcance do trabalho de Kahneman e Tverski e admirando-o, aumenta consideravelmente o prazer desta leitura. Em “The Undoing Project” Lewis dá conta das principais teorias desenvolvidas e sua relevância, mas é no livro de Kahneman que podem encontrar uma porta segura para se iniciarem.

De forma muito resumida, Kahneman e Tverski são responsáveis por uma mudança de 180º na forma como passámos a encarar os seres humanos, de seres racionais a seres emocionais, nomeadamente em tudo o que tem que ver com o modo como se processa a tomada de decisões. Até ao surgimento do trabalho desta dupla, os modelos dos economistas criavam previsões partindo do princípio de que os seres humanos eram profundamente racionais, que agiam baseados em conceitos probabilísticos, capazes de quantificar os ganhos e as perdas, e tomar decisões lógicas nas suas vidas. Kahneman e Tverski demonstraram que os seres humanos são tudo menos isso, que a racionalidade não está nunca separada da emocionalidade, e que existe um conjunto de processos que toldam e enviesam o modo como vemos e compreendemos o mundo.

Lewis ao longo do livro vai usar toda a psicologia da dupla para nos dar conta da história de amizade que os levou a manterem-se juntos por mais de uma década, e depois novamente na hora da morte de um deles. Lewis podia ter-se focado sobre os processos de criação em duo, algo que sabemos bem ser imensamente complexo, contudo acabou por se concentrar mais sobre a amizade entre ambos, sobre o modo como se entendiam e aceitavam, sobre o como os opostos se atraem. Lewis cria uma quase história de amor, carregada de poética, beleza e sonho, capaz de produzir uma intensa carga inspiracional em quem lê. Não poderia recomendar mais.

março 12, 2017

Switch, mais uma revolução Nintendo

2017 viu nascer não apenas uma nova consola, mas o renascer da esperança nas consolas de videojogos. Com a evolução tecnológica — aumento de processamento, sistemas cloud e novas plataformas (telemóveis, tábletes, Steam, etc.) — as consolas pareciam estar condenadas ao definhamento. Muito se escreveu sobre o seu fim, sobre a sua irrelevância. Contudo o lançamento da Nintendo Switch pôs um ponto nesta discussão, ainda que possa ser temporário, ao tornar-se na consola que mais rapidamente vendeu em mais de 30 anos. Como é que as previsões falharam tanto?



Interessa-me menos explicar o que falhou nas previsões, já que as previsões apenas existem para gáudio mediático e financeiro. As previsões tecnológicas ou outras, como nos demonstrou a astrologia, estão condenadas às regras do acaso e coincidência. Daí que conduzir as nossas expetativas na certeza de previsões seja pouco saudável e nada recomendável. Interessa-me mais perceber o que desencadeou todo este interesse nesta consola especificamente, e acima de tudo, tentar compreender o que ela representa para o meio expressivo dos videojogos. Faço-o enquanto investigador que estuda o meio, mas faço-o também enquanto mero consumidor, já que em 30 anos de historial nunca tinha comprado uma consola em pré-venda.

Começando pelo lado do consumidor. Comprei a Nintendo Switch influenciado por apenas um elemento comercial, o primeiro trailer “First Look at Nintendo Switch”. Assim que o vi, em Outubro 2016, fiquei apaixonado, e tomei a decisão de a adquirir. Pouco mais li sobre a mesma até a adquirir. Contribuíram para essa decisão vários fatores: 1) não tinha adquirido a Wii U, e com isso tinha perdido a oportunidade de jogar alguns jogos da Nintendo, vi assim na Switch a oportunidade de recuperar alguns desses jogos; 2) a saída de um novo Zelda, e o desejo de voltar ao fantástico universo de "Skyward Sword" (2011), agora num mundo completamente aberto; 3) e por último o potencial de jogabilidade demonstrado pelo trailer. Este último ponto foi decisivo porque se ligava ao meu trabalho de forma mais concreta, acabando por ser o gatilho fundamental para a compra.

A Nintendo Switch revelou-se distinta do que vi no trailer. Primeiro porque ainda falta um claro investimento em jogos que rentabilizem todo o seu potencial, muito daquele que surge no trailer, falo em concreto da jogabilidade social, assimétrica e física. Temos uma clara evolução face à Wii, porque é claramente mais social. Os dois comandos pedem de imediato dois jogadores, e com isso a construção de toda uma relação social muito mais intensa (que consegui observar diretamente cá em casa). A Wii apesar de ter esta mesma capacidade, continuava ainda muito agarrada à ideia do jogador individual, com o ecrã a marcar o centro de toda a experiência. O videojogo “1-2-Switch” abre todo um leque de experiências de jogo até aqui deixadas por explorar pelas consolas, nomeadamente todas as que secundarizam o ecrã e colocam os jogadores fisicamente no centro da ação.



Insisto no campo social, por contrapeso à Realidade Virtual, que tomou conta do mundo dos videojogos nos últimos dois anos. Os jogos, antes de serem digitais, foram sempre sociais. Os jogos só se tornaram individualizantes com a presença das máquinas, porque estas passaram a simular a existência de um outro, permitindo a gratificação de jogo a solo. O ato de jogar não é relevante sem a componente social. Podemos até jogar sozinhos algumas bolas ao cesto, mas a gratificação é efémera se não pudermos competir, ou pelo menos demonstrar as nossas competências a quem nos dê feedback. Neste sentido, a Nintendo Switch poderia chamar-se Nintendo Social, porque é um dos seus maiores atributos, porque recolocou a essência do jogo no centro da atividade, e  finalmente porque o fez remando contra toda a maré individualizante da Realidade Virtual.

Mas talvez não tivesse escrito estas linhas, se não tivesse encontrado outro fator que me marcou ainda mais na experiência desta consola, por ter superado completamente aquilo que o trailer apresentava, falo da portabilidade. Muito honestamente, do trailer não tinha compreendido que a consola era essencialmente portátil, e que a componente de sala era apenas um modo de carregamento e ligação à televisão, por isso a surpresa foi ainda maior. Ou seja, a consola no seu modo portátil está completa, na presença de todo o seu poder de processamento, apenas com um ecrã menor. Por outro lado, o processo de conexão e desconexão da televisão é imediato, automático e completo. Passar de um jogo na televisão da sala para o sofá do escritório, demora apenas o tempo de levantar de um sofá e sentar no outro. Isto não é impressionante, isto muda tudo.


Podemos dizer que a Nintendo Switch superou todas as previsões sobre o futuro das consolas porque pegou nelas e simplesmente revolucionou o conceito de consola de sala. Percebe-se também a partir do design da Switch o porquê da Nintendo ter começado a investir em jogos móveis para telemóveis e tábletes. Porque a essência do design da Switch diz-nos que as consolas como caixas grandes, fixas e inamovíveis no centro da sala terminaram mesmo. Afinal os futurólogos acertaram em parte nas suas previsões. A evolução tecnológica permitiu miniaturizar de tal modo as capacidades de processamento, que tudo aquilo que precisamos para jogar os nossos videojogos pode estar contido num simples táblete, e em breve num simples telemóvel. Mas! Se assim é, porque é que ainda precisamos de uma consola, porque precisamos de uma Switch quando temos tantos modelos de tábletes?


A Nintendo podia ter lançado apenas um táblete, mas isso nunca seria uma consola. Uma consola é um sistema de jogo dedicado. Pode até fazer tudo o que faz um táblete, mas tem de oferecer mais, e a Switch oferece. Da portabilidade entre televisão e táblete, à essência do ato de jogar que assenta numa dupla de comandos como interface entre o mundo digital e o mundo físico. Tudo isto pode tornar-se rapidamente num standard copiado por várias empresas para uso com diferentes sistemas móveis. E mesmo o leque de jogos pode rapidamente ser ultrapassado pelos milhares de criadores independentes que desenvolvem para Android ou iOS. Mas no final do dia, o que conta é quem chegou primeiro, ou melhor, quem teve a visão, quem deu liberdade à criatividade e arriscou, e isso é aquilo que a Nintendo ainda nunca parou de fazer, por isso se mantém no mercado, e enquanto assim for continuaremos a ter sempre consolas.


Declaração de interesses: A consola e os videojogos aqui discutidos foram adquiridos pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com as marcas envolvidas.

março 04, 2017

Media Lab, formalismo vs. criatividade

MIT e Media Lab são hoje duas marcas da ciência. A primeira, uma Universidade em Boston, a segunda, um grande centro de investigação dessa universidade, pioneiro nos estudos que cruzam Arte e Ciência. Sendo Joi Ito o atual diretor desse mesmo Media Lab, faz de “Whiplash: How to Survive Our Faster Future” (2016) um livro obrigatório para quem quer que trabalhe no domínio. Contudo, e tendo em conta as expetativas, tenho de dizer que ficaram muito longe de se cumprir.


Joi Ito lidera o Media Lab desde 2011 mas está longe de ser uma pessoa consensual no cargo que ocupa, desde logo porque não é doutorado, tal como não é mestre, já que nem sequer licenciado é. Isto não deve ser por si só um indicador de competência, mas ser líder de um dos laboratórios de investigação mais avançados, no qual trabalham algumas das mentes mais educadas e brilhantes do planeta dá que pensar. Mas se Ito é o atual diretor deve-o a Nicholas Negroponte, o fundador do Media Lab nos anos 1980, e o seu mais carismático líder em toda a sua história. Foi ele, pessoalmente, que tudo fez para o colocar na direção. Porquê?

Grupos de Investigação do Media Lab

As razões essenciais prendem-se com a essência filosófica do Media Lab: fazer tudo aquilo que ainda ninguém fez. E não estou a falar de ter líderes sem educação formal, mas de procurar nestes líderes, diferentes visões do mundo que sirvam o objetivo de fazer diferente. Ou seja, encarregar a direção a mais um doutorado brilhante, poderia ser bom ou mau, contudo encarregar a alguém fora do sistema, habituado a edificar-se a si mesmo e a tudo o que o rodeia, poderia à partida potenciar todo um mundo de diferença e inovação, porque traria consigo formas diferentes de estar na vida.

Tenho a dizer que concordo com Negroponte, porque concordo com esta visão de que alguém capaz de vingar e chegar ao topo sem os alicerces da educação formal, só está ao alcance de alguém muito combativo, resiliente e criativo. Aliás, Ito enquadra-se na categoria do típico aluno brilhante que nunca se encaixou na formatação escolar, entrou em três licenciaturas diferentes, mas nunca se sentiu realizado e por isso desistiu de todas. Um perfil que conhecemos, e que tem como exemplo próximo Steve Jobs.

Se estas histórias fazem as delícias de muitos de nós, que vemos nestas pessoas forças da natureza, capazes de muito daquilo que nós nem imaginar conseguimos; como todas as restantes histórias, mais comuns e banais, possuem também lados menos bons. Porque ser-se muito bom em algo não pode significar ser-se bom em tudo. E assim se Steve Jobs foi fabuloso na criação e liderança de inovação da Apple, e Joi Ito foi um grande ativista de causas da sociedade de informação que o fez chegar à liderança do Media Labs, isso não fez deles grandes cientistas. O que podemos dizer de ambos, mentes enormemente criativas, sedentas de conhecimento, imparáveis na persecução de marcar a diferença, é que funcionam melhor na condução e na transmissão de conhecimento por exemplo. Jobs nunca escreveu um livro, escreveram muitos sobre ele. Ito escreveu este, e não foi sozinho, trabalhou com Jeff Howe, especialista em escrita jornalística, mas disse muito pouco, disse muito menos do que tudo aquilo que a sua visão e liderança representam.

Ou seja, a leitura de “Whiplash”, para quem não conheça o Media Lab, ou não esteja a par da história e cultura do domínio da Interação Humano-Computador, pode até contribuir como introdução às atuais abordagens dos laboratórios que trabalham na área. Contudo, para quem trabalha na área, acaba sendo uma leitura triste, porque nada de novo se diz, quando tanto se esperava de alguém que ocupa o cargo que ocupa, e tem as capacidades que tem. Soa muito curto o que está no papel, soa distante, não colam as ideais aqui plasmadas com o verdadeiro potencial de quem as proclama. E na verdade, talvez nada disto nos deva surpreender. Ito nunca se encaixou num sistema de ensino formal, Ito nunca conseguiu compreender a razão do funcionamento de um sistema com tais características, talvez porque o modo como vê o mundo seja tão diferente que acaba por o condicionar quando este tenta fazer o caminho inverso, ou seja tornar-se o professor.

março 03, 2017

"Passengers", a arte de questionar

"Passengers" (2016) é uma espécie de Robinson Crusoé com duas modificações narrativas essenciais que enriquecem imensamente o seu sentido: a primeira, é o facto de que estando completamente sozinhos temos à nossa volta 5000 pessoas em modo hibernação; a segunda é que o facto de estarmos no espaço, e não numa ilha contida pelo planeta Terra, impossibilita a ideia de esperança, de se poder ser avistado e salvo por outro qualquer ser. Estas variações da ideia central, de estar sozinho, permitem ao filme lançar várias questões de grande alcance e profundidade, em termos daquilo que nos define como seres humanos.





Enquadramento: Uma nave que transporta 5000 pessoas para um outro planeta, a 120 anos de distância, sofre um problema ao fim de 30 anos, e um dos sistemas de hibernação avaria acordando um passageiro, com cerca de 30 anos, a 90 anos de distância do destino. Os sistemas na nave não permitem voltar a hibernar, por isso terá de viver o resto dos seus dias naquela nave, em trânsito, sabendo que nunca chegará vivo ao destino. E é assim que começam as questões:

1 - O que faríamos se nos encontrássemos sozinhos num mundo, rico de experiências materiais e experienciais proporcionadas pelos mais avançados sistemas digitais e robóticos de entretenimento, mas sem acesso a contacto com qualquer outro ser humano?

O filme explora a questão inicialmente, podia ter feito muito mais, mas optou por não se centrar na resposta, preferindo adicionar novas camadas de questionamento.

2 - Sabendo da existência de 5000 pessoas a dormir ali ao lado, e podendo acordar uma delas, seria ético fazê-lo? Mais ainda sabendo que essa pessoa seria privada de tudo aquilo que tinha planeado fazer ao acordar, ou seja, seria privada da SUA vida para viver a MINHA vida?

O filme não dá grandes respostas. A escolha do passageiro a acordar não é alvo de grande explicação, nem intenção, desde logo porque nem sequer é tentada qualquer comparação entre os milhares de passageiros existentes. O que só por si daria para anos de ponderação, tendo em conta que na nave existem registos vídeo, com explicações das razões de cada pessoa para ter embarcado na viagem. Aliás, as diferenças de interesses, ou de classe social apresentadas não são nunca exploradas.

3 - Mudando o foco de personagem. Se descobríssemos que a vida miserável que estamos a viver foi completamente criada pela pessoa com quem estamos a dormir, e por quem nos deixámos apaixonar, o que faríamos? 

Mais uma vez a resposta é frágil, embora aqui tenhamos de aceitar a enorme habilidade de Jon Spaihts, guionista de “Prometheus” (2012), na forma como desenha a resposta, ao passar o foco dos envolvidos para uma mais ampla responsabilização, ou seja, retirando a ênfase do Eu, passando-a para o Nós, Todos. Aceito que o filme tente uma lógica enfabulatória do Síndrome de Estocolmo, embora esta mudança de pesos de responsabilidade atenue imensamente essa leitura, criando uma multiplicidade de outras significações.

Dito tudo isto, o que sobra? As perguntas. Sim, são o melhor do filme, inegavelmente superiores às respostas. Mas o que pergunto a todos os críticos é o seguinte: existiria alguma forma de responder a estas questões? Aliás, este foi o problema apontado a "Prometheus", o que dá conta de um padrão na escrita de Spaiths, a sua capacidade para enquadrar e lançar grandes questões, não sendo depois capaz de responder à altura.

Porque toda a essência e beleza do argumento do filme assenta no desenho das perguntas. No modo como nos consegue colocar na situação, a tentar imaginar o que faria eu perante aquelas condições? Não é essa a essência de qualquer base filosófica, a capacidade de nos questionarmos? As respostas pertencem a cada um. E por isso no final do filme, apesar de todas aquelas respostas, eu dei a minha, sobre o que senti, nomeadamente sobre aquilo a que o filme me levou no questionamento daquilo que me define:
:: O contato humano. O outro. É a única coisa que conta, a única coisa sem a qual não podemos absolutamente viver. Precisamos de espelhos, precisamos de cooperar, precisamos de colaborar, precisamos de nos complementar para nos completar.
Podemos criar algoritmos, robôs, brinquedos sexuais. Podemos adicionar-lhes cognição, emoção, toque suave e quente, mas eles nunca serão humanos. Eles nunca enfrentarão a extinção da carne. Eles nunca enfrentarão dilemas morais. Eles nunca se sentirão submissos ou dominantes. Eles nunca vão sentir necessidades, desejos e urgências impossíveis de cumprir. Eles nunca estarão sozinhos.