Joguei apenas duas horas do primeiro tomo da série, "Dragon Age: Origins" (2009), que não me entusiasmaram, daí que não tenha tentado sequer jogar o segundo, "Dragon Age II" (2011), contudo depois de várias vezes me ter sido sugerido, acabei por aceder e começar a jogar o terceiro volume, “Dragon Age: Inquisition” (2014). Chegado ao fim da main quest, quero dizer que não é magnífico, raramente nos impacta, mas existe algo no seu desenho que nos atrai e mantém interessados, levando-nos a regressar sempre com vontade de continuar a progredir, de certa forma posso dizer que é um jogo dotado de excelente design, mas com uma narrativa fraca, uma escrita pouco inspirada.
Como RPG que é, assumimos o papel de Inquisidor, o governante de um mundo de fantasia, numa qualquer linha temporal alternativa à nossa. Os personagens e cenários assumem alguns traços medievais, mas misturados com algum renascentismo europeu, e por vezes até alguma arquitectura industrial. Em termos de ambientes, temos bons mundos, credíveis e belos, o pior da arte visual surge nas animações dos personagens, fracas quando comparadas com a atual geração de consolas.
A jogabilidade, ou interpretação do nosso papel, é suficientemente detalhada, permitindo-nos definir praticamente tudo aquilo que somos, desde a fisionomia ao perfil, podendo ao longo do jogo continuar a tomar decisões que vão contribuindo para definir e afinar o nosso perfil. Existe sempre muito para fazer, imenso para nos manter ocupados e interessados, e a progressão é não só contínua como efetiva, isto é imensamente visível ao nível dos combates, nomeadamente como vamos aprendendo a usar os sistemas de armas, armaduras, poções e do trabalho em equipa.
No campo da história temos a governação de um mundo e claro, um messias, salvador de um povo contra uma força poderosa do mal. O engodo é comum, e não é por este que me incomodo, o que se perde aqui, e comparando com “The Witcher 3”, é o aprofundamento dos personagens, que não passam de meros peões do enredo. O nosso personagem, o inquisidor é oco, mas todos os que à sua volta gravitam também o são. Falta-lhes dimensão humana, emocional e dramática, capaz de nos tocar de nos demover, de criar bases empáticas. Foram dezenas de horas com aqueles personagens, e chegado ao final, continuo a senti-los como estranhos. Cheguei a pensar que o problema seria meu, por declaradamente não gostar de fantasia, mas não é só isso (e não é completamente verdade já que adorei “The Witcher 3”), é mesmo uma falha de guião, da escrita dos personagens e seus diálogos, com uma aposta muito mais dirigida ao jogo que à história, esquecendo que um isco de enredo e uma boa base de jogo, não chegam para nos fazer apaixonar por um jogo que supostamente nos deve fazer afundar num universo ficcional.
Em síntese, temos uma obra mecanicamente equilibrada, coerente e consistente, mas falta-lhe garra, falta-lhe algo que a distinga dos restantes jogos, que marque a sua posição, e nos marque emocionalmente.
Um projeto de animação de fim de curso, da famosa escola francesa Supinfocom, apresenta-nos como protagonista, um personagem decalcado de Carlos Paredes. Em lado algum é dito o seu nome, a equipa de animação é francesa, mas a equipa responsável pela música original é constituída quase só por portugueses, ou lusodescentes (Philippe de Sousa, Sousa Santos, Nuno Estevens, Romain Debrie), e a música é cantada em perfeito português europeu, o que facilmente nos conduz ao compositor nacional. Como se não bastasse, o filme desenvolve-se à volta de uma sociedade ditatorial, o que inevitavelmente nos recorda a vida de Paredes e sua luta contra o Estado Novo.
O filme apresenta assim um guitarrista cantor, que por meio da sua arte consegue persuadir o público a revoltar-se contra o estado das coisas, e tão bem o consegue fazer que logo se vê envolvido numa tentativa de rapto para o obrigarem a reproduzir o mesmo efeito a partir das forças opositoras.
Carlos Paredes
A animação é boa, aliás como é apanágio dos alunos da Supinfocom, mas o mais interessante é mesmo a multiculturalidade envolvida, nomeadamente entre franceses e portugueses, e que como se pode ver nesta curta acaba funcionando na ampliação das possibilidades narrativas. Claro que a mim, e a todos os portugueses, diz ainda mais por tratar-se de um artista e herói nacional, e de um período da nossa história que não devemos esquecer.
Atualização: 31 Jul 2016, 15:47
Depois de partilhar o texto, o Leonel Morgado disse-me que a música não é original mas é antes uma composição e letra de Luis Goes intitulada "Homem só, meu irmão" do álbum "Canções do Mar e da Vida" (1969).
Isto levanta-me um problema, porque se fazer referência a Carlos Paredes no caso da criação do personagem à sua imagem não me coloca reservas autoriais, embora ficasse bem a referência, no caso da música é diferente, não ficava só bem, como legalmente era obrigatório.
Lars Von Trier tem agora 60 anos, no entanto anda há mais de 30 anos a surpreender-nos, e se os seus filmes vão sendo sempre objeto de profundas análises e louvores, o que me surpreende verdadeiramente é mesmo a longevidade da sua carreira, nomeadamente por tudo aquilo que arrisca a cada nova obra.
Se quiserem passear através destes 30 anos, se quiserem voltar a sentir o brilho, a melancolia, mas também muita da alegria que foi experienciar estas obras nos primeiros visionamentos, não posso recomendar mais, o vídeo-ensaio em que Lewis Bond procura desconstruir o cinema de Lars Von Trier.
"Lars Von Trier - Deconstructing Cinema" (2016) de Lewis Bond
A arte serve um propósito muito claro que por vezes parecemos olvidar e que assenta na expressão pessoal. É isso que dá à arte toda a sua a vida, autenticidade, e interesse para os demais. No acesso a uma obra, o que se procura saber é, o que contém ela, que nos diz ou pretende dizer, e porque o faz. Ora é exatamente isto que temos em “Carnets de These”, um relato de uma experiência pessoal transformada numa sequência gráfica capaz de abrir um canal de comunicação entre autor e recetor.
"Quando uma jovem professora do ensino secundário deixa tudo para se lançar, eufórica, na realização de uma tese de doutoramento, está longe de imaginar o caminho da cruz que a espera."
Do lado da autora, a obra tem um propósito muito claro, funcionar como catarse, libertação da mágoa de uma experiência dolorosa. Do lado do leitor, temos a identificação por parte de académicos e de quem o tentou, ou tenta, ser. Quem por lá passou reconhece passo a passo, mas talvez o público mais importante, em minha opinião, sejam todos aqueles que olham com algum encantamento para a academia, deixando-se seduzir por esta, ou pelas imagens criadas sobre esta.
Como em todas as profissões, mundos ou culturas, existem momentos, pessoas e elementos, bons e maus, nalguns universos de trabalho os piores aspetos são evidentes e não requerem enfatização, noutros, como o mundo académico, isto é uma necessidade fundamental, não só porque se trata de um meio bastante fechado, com regras muito próprias, mas porque as poucas vezes que tem sido discutido em público, é-o a partir de um ponto de vista externo, o que só tem servido para gerar ainda maior misticismo à volta da profissão.
Não ajudam os Indiana Jones, nem os Robert Langdon’s de Dan Brown, assim como ajuda ainda menos as histórias dos professores e alunas de Philip Roth, mas no campo mais documental o contributo de obras sobre Einstein, Turing ou John Nash ficam ainda mais aquém. Mostra-se apenas um ponto-de-vista que sendo por isso já enviesado, é ainda por cima fortemente artificializado, embelezado, praticamente “photoshopado”. É verdade que o entretenimento não é arte, não procura a expressão interior dos autores, apenas e só a massagem dos recetores, mas com o passar dos anos e das obras vai-se criando na sociedade uma ideia errónea, e que vai servindo para atrair quem apenas conhece este mundo por essas vias.
Professor "Indiana Jones" em "Raiders of the Lost Ark" (1981)
Investigador Alan Turing em "The Imitation Game" (2014)
“Carnets de Thèse” funciona assim em contraciclo destas obras, desde logo porque é feita a partir do interior da própria vida académica, de alguém que largou tudo para investir três anos na construção de uma tese de doutoramento, sobre Kafka, e no final em vez de uma tese acaba a criar esta banda desenhada, que não fala sobre o seu motivo de tese, mas fala sobre o seu processo de construção dessa tese. São muitas as questões aqui levantadas, e algumas as respostas dadas. Pode existir, aqui e ali, algum exagero até porque o discurso se pretende dotado de alguma comicidade, mas na generalidade não está longe da realidade, em termos de orientadores, secretárias, família, namorados, políticos, no fundo caracteriza imensamente bem todo o desprezo humano e científico que envolve o processo, que acaba sendo penoso, e até doloroso.
Apesar de focado sobre o caminho e processo, a crítica não se limita a essa passagem e vai ainda no sentido de questionar o seu propósito, ou melhor, a sua valia para a sociedade, o reconhecimento, nomeadamente no momento de rentabilizar o esforço em termos de empregabilidade, uma realidade tantas vezes escamoteada, desculpada, atirada para debaixo do tapete, e que aqui é sarcasticamente bem apresentada pela defesa de "valores mais altos, da academia acima de todos os males, academia é ciência e nada de tão puro pode ser mau".
Podemos desejar acreditar em tudo isto, mas não devemos nunca esquecer que a academia é um mundo de trabalho, não é um lugar imaginário protegido das agruras do quotidiano, pior ainda, que não é habitado por heróis ou messias mas por seres humanos como todos nós. Como tal, se tem muitas coisas boas, não deixa de ter muitas más, e que o caminho que se faz depende de cada um, do seu empenho, mas por vezes, talvez mais, das incertezas e da sorte, que decorrem de escolhas feitas pelo indivíduo, mas muito dos gostos subjetivos daqueles que o rodeiam, assim como ainda de estar no sítio certo no momento certo.
Neste caso, apesar da verdadeira Tiphaine Rivière não ter chegado ao fim da sua tese, fico imensamente contente de ver e ler este seu trabalho, fruto do blog que começou na sua caminhada e que acaba compensando totalmente a ausência de uma tese, não apenas pela acutilância e profundidade analítica do seu processo, mas também pelo enorme sucesso que já conheceu, com traduções para espanhol, italiano e inglês (sai em Novembro), a demonstrar que as pessoas se reconhecem nestas caricaturas.
A Naughty Dog é hoje, de entre as grandes empresas de videojogos a mais relevante, não só porque nos tinha dado dois dos mais significativos jogos da história do meio — "The Last of Us" (2013) e "Uncharted 2" (2009) — mas, e em virtude destes, porque reúne uma das equipas de desenvolvimento mais talentosa do planeta, capaz de dar conta do melhor que os videojogos têm para oferecer nos seus distintos domínios — tecnologia, design e arte. Ao contrário da Ubisoft soube crescer sem dispersão, nomeadamente soube acarinhar o enorme talento que foi construindo e adquirindo, transformando-se num selo de qualidade, tornando obrigatório qualquer obra que venha a colocar no mercado nos próximos anos.
Como referi, nesta série em concreto, “Uncharted 2” é uma referência, e sabendo nós como as séries são parcas em progressão de excelência, soa estranho dizer que “Uncharted 4”, depois de um terceiro tomo bom mas apenas isso, supera. Existem algumas potenciais razões para explicar esta questão, desde logo aquelas que já usei para explicar porque muitos dos segundos videojogos são melhores, mas não só, neste caso em particular existe um processo interno à própria empresa, que produziu variações nas equipas responsáveis pela série e que ajudam a explicar o ocorrido.
Falo nomeadamente da dupla Bruce Straley e Neil Druckmann, o coração daquele que continuo a considerar o melhor jogo do meio, “The Last of Us”. Podemos muito rapidamente verificar que ambos fizeram parte da equipa de “Uncharted 2”, Straley na direção juntamente com Amy Hennig, e Druckmann no design com Richard Lemarchand, mas nenhum dos dois fez parte de “Uncharted 3”, porque nessa altura a Naughty Dog resolveu criar duas equipas para poder produzir em paralelo “The Last of Us”, juntando assim pela primeira vez Straley e Druckmann. Ou seja, analisado este historial, poderíamos dizer que “Uncharted 4” é uma espécie de sequela de “The Last of Us”, em termos de construção sobre conhecimento de equipa acumulado de uma primeira experiência, seguindo toda a lógica de design evolutivo dos segundos jogos de que falava acima. Apesar de soar estranho, dizer que “Uncharted 4” é uma sequela de “The Last of Us”, porque não o é em termos narrativos, julgo que a grande maioria das pessoas que jogou ambos, sentiu muitas pontes na experiência, nomeadamente estética e de flow.
Tendo dito tudo isto, quase que me poderia limitar a dar conta da história de "Uncharted 4" e terminar por aqui, já que muito do que haveria para dizer eu já o teria dito sobre "The Last of Us", o que não está longe da verdade, ainda assim, considero que “Uncharted 4” apresenta particularidades de que vale a pena falar, enfatizar e mesmo louvar. Por isso darei conta aqui apenas das componentes que mais se distanciam de “The Last of Us” e dos anteriores “Uncharted”.
Tecnologia
Em termos tecnológicos, "Uncharted 4" vai além de qualquer um dos jogos anteriores, não só porque estamos a falar do primeiro jogo da Naughty Dog desenvolvido de raiz para a PS4, assim como todas as tecnologias de computação gráfica progrediram entre os anteriores e este, mas também porque a equipa de desenvolvimento ao trabalhar mais tempo junta, criou maior experiência e domínio elevando assim aquilo que consegue obter da tecnologia. Isto pode ser visto na excelente análise realizada pela Digital Foundry que rotula o jogo como "o melhor alguma vez testado por eles em consolas", uma afirmação que não me impressiona de todo.
Arte
Mas é claro que para que a tecnologia possa ser levada a este ponto não chega a engenharia, e foi por isso mesmo que intitulei este texto como o zénite da tecnologia mas também da arte, porque só ela poderia demonstrar aquilo de que a tecnologia é verdadeiramente capaz. “Uncharted 4” resulta neste sentido, em termos do almejo de quem trabalha os mundos multidisciplinares entre arte e tecnologia, numa das maiores conquistas, não só pela grandiosidade da obra criada, mas especialmente por demonstrar cabalmente que a tecnologia sem arte não existe, assim como a arte sem a tecnologia não progride. A quantidade de detalhe artístico, potenciado pela tecnologia, presente neste jogo é absolutamente impressionante, e algum deste é discutido no artigo da Foundry, mas eu gostaria de deixar aqui um pequeno vídeo que realiza uma demonstração com excertos de partes do jogo que mostra muito desse trabalho, nomeadamente no campo da ilustração e animação interativas. Foram imensas as vezes que parei no jogo para apreciar, para literalmente contemplar o mundo virtual de "Uncharted 4", para admirar e sentir o efeito total da surpresa e admiração por todo o talento humano que contribuiu para a sua criação.
Design
Dos cinco componentes que resolvi aqui destacar — Tecnologia, Arte, Design, Direção e História —, este é talvez o menos revolucionário, e isso foi também uma marca de “The Last of Us”, o que aqui temos é inovação de tipo incremental, que não tem nada de mal, e que no fundo eu próprio venho defendendo ao longo da última década. Porquê? Porque se trata de um blockbuster, porque é um investimento colossal que não se pode dar ao luxo de revolucionar no design. Mas também porque é uma obra, que tal como "The Last of Us", estava mais preocupada em criar uma experiência nos jogadores, do que em chamar a atenção sobre si. “Uncharted 4” é arte, mas é arte-entretenimento, é uma obra produzida com um fim concreto, produzir experiências nos jogadores, não é arte no mesmo sentido de um jogo indie, à procura de novos modelos expressivos, capazes de transformar o meio em si.
Apesar disto, o talento por detrás do design da obra demonstra um domínio absolutamente estonteante da técnica, assim como um conhecimento muito apurado do que ela pode fazer pela experiência de jogo. Deste modo o design de "Uncharted 4", pode não apresentar inovação expressiva, mas apresenta uma tal coerência, uma integração de todos os componentes que laboram para o design da obra como um todo, capaz de produzir no jogador em poucos segundos de contato com o jogo um alheamento do seu meio circundante. A tecnologia, a arte, e a história são centrais, mas é o design que une tudo isto num só objeto, que o torna uno, coerente e integrado, um verdadeiro todo, que faz o jogador sentir-se acolhido no seio do jogo, sentir-se parte do mundo virtual e interativo, e desejo de ali continuar, ou rapidamente ali regressar novamente.
Direção (narrativa e storytelling)
Quanto terminei o jogo escrevi no facebook, “Não me consigo lembrar da última vez que vi aventura e profundidade misturadas tão bem, graças ao impressionante trabalho de storytelling”. Aproveito essa frase, para elaborar sobre o que experienciei, já que essa impressão de fim de jogo tornou-se, passados dois dias de distanciamento da experiência, ainda mais verdade.
Como disse acima, o design é responsável por tudo integrar, mas em jogos profundamente narrativos e complexos como “Uncharted 4”, não chega, existe uma camada acima, que fica a cargo da direção de jogo, e que é no fundo responsável pela leitura da obra, por garantir os signos e significados, ou seja por garantir que a história que se quer contar chega aos jogadores, por entre tantos outros elementos que gritam por atenção. Ou seja, a direção balanceia o todo em busca da experiência global, mas essa experiência deve obedecer a uma ideia que se quer transmitir, normalmente uma história que se quer contar. “Uncharted 4” é exímio nisso, ou melhor a dupla Straley e Druckmann são exímios nesta arte, na capacidade de ir além do design, e criar uma verdadeira direção que garante que o todo trabalha para uma visão.
Ou seja, Straley e Druckmann pegam no melhor da linguagem audiovisual, desde os primórdios do cinema aos dias de hoje — principalmente cinematografia, colocação em cena e direção de atores — ao que juntam o melhor da linguagem interativa em termos de interação com representação, da aventura gráfica de Robinett aos walking simulators de hoje — principalmente a terceira-pessoa, o espaço virtual, e a interação por objetivos — e constroem um artefacto capaz de contar uma história a partir do melhor que a comunicação audiovisual interativa nos pode oferecer. Sempre que entramos no videojogo sentimos as amarras com a realidade a diminuir e o mundo ficcional envolver-nos, o design de jogo é tão bem entrançado com o design da narrativa, que a clássica divisão entre a resolução de problemas e o contar de histórias está praticamente ausente aqui.
História
Para terminar, não posso deixar de falar daquele que é tema principal de qualquer obra narrativa, ou seja, o que se diz, o que se conta. Para tal devemos partir de um dado concreto definido pela Naughty Dog, de que este tomo 4, seria o último, algo que é de certa maneira bem evidente ao longo de todo o jogo. O protagonista surge como alguém dotado de uma história, com três tomos passados, nunca os esquecendo para nos relembrar que é passado, e que chegou o momento de deixar para trás esse mesmo passado. Assim, o facto do protagonista, o arquétipo herói, surgir como resignado ao real, cansado da fantasia que dava corpo a aventuras em mero modo de repetição, coloca “Uncharted 4” desde logo noutro patamar, alheio ao blockbuster tipo.
Mas “Uncharted 4” vai ainda mais longe, não se limita a refletir criticamente sobre as histórias de aventuras, por meio da idade e vida do protagonista, da parecença com o target mais hard-core dos videojogos (jogadores com cerca de 35 anos), reflete e obriga a refletir o próprio jogador, sobre a sua própria vida, sobre os seus sonhos, fantasias e a contrapô-los ao real. Leva-nos de volta à infância e confronta-nos com a idade adulta, questionando-nos sobre aquilo que fomos e aquilo que somos. Seremos nós Nate, ou ainda estaremos presos à utopia de Sam?
Straley e Druckmann reescrevem totalmente “A Ilha do Tesouro” (1883), apresentando-a como uma efemeridade, necessária nas nossas vidas, mas com um tempo de vida finito. Quase me atreveria a dizer que “Uncharted 4” ao pé de “Piratas da Caraíbas” (2003), parece uma autêntica obra de autor, dotada de reflexão, ideias e visão. Não se está aqui meramente à procura de produzir uma experiência de escapismo, mas também de um retorno para o jogador que marque a diferença entre um antes e um depois da experiência.
É tudo isto e muito mais, é uma grande obra que pode ser comparada a par com a literatura e o cinema sem desmerecer em qualquer dimensão. É um digno zénite da junção entre arte e tecnologia, mas é também a demonstração das enormes capacidades artísticas, enquanto linguagem expressiva, de um meio.
Mark Brown apresenta mais uma masterclass de game design na sua série Game Maker's Toolkit, fazendo uma brilhante análise do design do ainda mais brilhante “Downwell” de Ojiro Fumoto, um dos jogos sensação de 2015.
“A good idea is something that does not solve just one single problem, but rather can solve multiple problems at once” Shigeru Miyamoto
Este conceito de Miyamoto serve de mote à análise para demonstrar como é que que Fumoto consegue a partir de tão pouco fazer tanto, ou seja, a essência do bom design. Aquilo que parece deve sê-lo, mas pode ser mais do que apenas aquilo que parece, e basta para tal imaginação e muita lógica.
Brown escalpeliza em detalhe o design, estruturando a análise a partir dos seus componentes centrais, ou mais imediatamente visíveis — gunboots, inimigos, aterragem, gemas, sub-salas, armas, saúde, estilos, e estética — para demonstrar como cada um deles serve várias camadas do design, trabalhando as dimensões de tempo, movimento e interdependência.
“Downwell” teve muito boa recepção pelo facto de ser um pequeno jogo indie mobile, feito por uma pessoa apenas, mas essencialmente pela sua enorme capacidade de produzir enormes doses de flow nos jogadores, algo que se deve totalmente ao brilho do design. Interessante perceber que Fumoto não era estudante de design quando se lançou na criação de videojogos mas de artes, em particular de canto na Universidade de Tokyo!
"Downwell's Dual Purpose Design" (2016) Game Maker's Toolkit
Começo por advertir os mais sensíveis, nomeadamente à violência sexual, para passarem ao lado do filme, embora considere que o seu visionamento possa servir a reflexão sobre o tema. Apesar de criticado e até apupado, o filme acabaria por ganhar dezenas de prémios incluindo o Grande Prémio do Ottawa International Animation Festival 2014.
“Hipopotamy” é uma daquelas obras que dificilmente aqui traria dado o modelo de choque usado para trabalhar o tema em questão, mas se o faço é porque não só apresenta uma elevada qualidade formal, mas também porque essa mesma qualidade acaba por nos obrigar a todo um diferente posicionamento face ao tópico e ao que no fundo nos é apresentado.
Ou seja, o filme trata de forma sintética a violação sexual associada ao domínio de espécie, chegando a incluir o infanticídio, posicionando-se a partir da condição biológica. Neste sentido, pela frontalidade e assunção do condicionalismo humano acaba por retumbar num aparente niilismo, e é isso que mais choca. Por outro lado, o modo como o tema é trabalhado em termos visuais, de movimento e musical cria em nós um estado de tão grande atenção e foco, que torna impossível ficar apenas por essa camada da aparência. A força estética da animação obriga-nos a trabalhar, obriga-nos a procurar sentido, a dar significado, impede-nos de nos resignar como aparentemente o filme nos parece pedir, e é aí que acaba por residir talvez o grande segredo da sua força, originalidade, e no fundo acaba tornando o filme numa obra maior.
Para chegar a este ponto contribuem vários fatores, desde logo o realizador, Piotr Dumala, autor da adaptação para animação de “Crime e Castigo” (2000) de Dostoyevsky, que desenvolve todo um cenário e conjunto de ações de tom minimal, no qual explora os temas sem vulgaridade, criando algo mais próximo de um bailado do que de um mero relato. Este bailado acaba sendo fortemente enfatizado por toda a composição musical, operática, de Alexander Balanescu, o mentor do célebre Balanescu Quartet que têm trabalhado com Michael Nyman e Philip Glass.
"Hipopotamy" (2014) de Piotr Dumala
Fecho voltando ao que disse no início, não é uma obra fácil apesar de toda a sua beleza, mas é uma obra que não nos deixa indiferentes, capaz de mexer com o nosso interior, de nos obrigar a reagir e a rever muito daquilo que somos enquanto frutos da herança biológica mas também cultural e social.
Depois de ainda ontem aqui ter trazido uma das primeiras curtas de Spielberg a propósito do seu valor pedagógico, hoje trago um documental também de caráter pedagógico, que procura elencar uma lista de dez exemplos cinematográficos que quebraram as convenções fílmicas.
As convenções são essenciais na criação da linguagem de qualquer arte já que são o edifício expressivo da arte, o meio através do qual qualquer criador pode operar o sistema de signos e criar sentidos. Por outro lado qualquer grande artista tem sempre como grande motivação ir além dessas convenções, subvertê-las, quebrá-las, e criar novas formas de expressão. Daí que não surpreenda que as dez obras aqui apresentadas sejam praticamente todas grandes filmes da história do cinema. Cada uma à sua maneira ficou na história por ter apresentado algo novo, por nos ter desafiado, ter conseguido criar o novo e ser aceite.
Entre as convenções quebradas aqui analisadas temos — 4ª parede, montagem, 180º, visualização, fusão de géneros, morte de protagonista, narrativa anti-estrutura, vida sem edição, surrealismo, e pensamentos em imagens. Para isto os criadores do documental recorreram a obras como: Dogville; Breathless; Tokyo Story; Enter the Void; From Dusk till Down; Psycho; Last Year at Marienbad; Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles; The Discreet Charm of the Bourgeoisie; e The Mirror.
"Top 10 Favorite Rule Breaking Films" (2016) de Cinefix
São 15 minutos repletos de conhecimento que abrem uma pequena janela sobre a essência daquilo que constitui a arte cinematográfica.
Já o vi há alguns anos, e anda na rede há quase uma década, trago-o só agora porque enquanto via um pequeno documental sobre a evolução do cinema de Spielberg revi imagens e lembrei-me de ter gostado deste primeiro trabalho de Spielberg em 35mm. Não sendo nenhuma obra-prima, dá conta do talento latente que Spielberg vinha desenvolvendo com experimentos mais caseiros como “Firelight” (1964).
“Amblin” tem 26 minutos, algo longo para curta, nomeadamente uma primeira filmada em 35mm e com um orçamento de apenas 15 mil dólares, mas seria este o filme a abrir as portas de Hollywood a Spielberg, nomeadamente a servir de nome a sua futura produtora que hoje se socorre também da imagem do filme “E.T. the Extra-Terrestrial” (1982) para logotipo.
O seu valor hoje serve mais o âmbito pedagógico do que o entretenimento, ou seja “Amblin” é um filme altamente recomendável a estudantes de cinema e audiovisual em geral, interessados em começar a criar as suas primeiras obras. Os principais pontos a destacar são o facto de termos apenas duas personagens, não termos diálogo, não termos som direto, fazer uso de câmara simples sem gruas ou qualquer outra tecnologia complexa, ou seja, temos a essência do audiovisual totalmente ao serviço do contar de história.
Spielberg demonstra neste curto filme como sempre se preocupou mais como os humanos na tela, com a construção da empatia e a geração de experiências ricas para os espectadores, e que apesar de ser reconhecido como um mago do espetáculo, a sua força enquanto autor tem estado mais ligada à capacidade de construir e dar a experienciar histórias com que qualquer ser humano se consegue conectar.
"Na minha morte enterrem-me na minha terra natal do Mississipi", este é o motivo central de que deriva toda a ação, conduzindo-nos numa travessia dura e austera junto dos filhos e marido. Faulkner é aqui Faulkner, com um registo próximo de “O Som e a Fúria” (1929), evoluindo o experimentalismo, nomeadamente pelo minimalismo que desenvolve a partir de uma forma particular de contar histórias e que se serve de relatos entrecortados de vários narradores (15), o que obriga o leitor a construir o todo a partir dos interstícios que ligam os discursos de cada um desses narradores.
Em termos pessoais, por várias vezes viajei até às minhas memórias de “Silent Souls” (2010) de Aleksey Fedorchenko, um filme em que o marido atravessa um território vasto da Rússia para cremar a sua mulher num rio, seguindo as tradições de um povo quase desaparecido. Já no campo da austeridade e do vazio dos cenários não me consegui desligar das deambulações entre terras que decorrem ao longo das 7 horas de “Santantango” (1994) de Bela Tarr.
Faulkner, como muitos outros escritores, apesar de todo o sucesso não pôde dedicar-se em exclusivo à escrita, mesmo depois de “O Som e a Fúria”. “Na Minha Morte” foi escrito enquanto fazia o turno da noite numa estação de energia da Universidade do Mississipi, entre a meia-noite e as quatro da manhã, ao longo de seis semanas, Faulkner diria ainda que tal como escreveu assim ficou, sem qualquer edição. Admire-se a proeza, mas o facto de se tratar de uma obra experimental torna mais fácil não se sentir tentado voltar atrás mexer e remexer até ficar perfeito, além de que Faulkner precisava do dinheiro dos editores para viver.
Em termos comparativos, não posso colocar este texto ao nível de “O Som e a Fúria”, não pela dimensão mas pela imensidão de mundo, de variação emocional e estética conseguida nessa sua obra-prima. O que não faz deste menos, é um belíssimo texto, uma viagem forte que se impregna em nós, mas que deve ser visto mais como experimento, uma tentativa de elevar o seu labor a novas dimensões literárias, sofrendo, para mim, de alguma incompletude.
52, é o número de dias que levou Stendhal a escrever “A Cartuxa de Parma”, um total de 10 páginas diárias que dão bem conta da capacidade, quase infinita, de recursos conceptuais e cognitivos do autor para lhe fornecer um fluxo ininterrupto de ideias. Falo nomeadamente da capacidade de visualizar sequências num detalhe suficiente para as descrever, não apenas nas suas ações, efeitos e reações mas também no detalhe dos seus cenários, interiores e exteriores, mais ainda no imaginar, ou personificar, dos seus personagens atribuindo-lhes vidas completas — passado, presente e expetativas futuras. Absolutamente impressionante.
O livro poderia ter-se tornado relevante apenas como marca do virtuosismo do autor, contudo tem mais do que isso para nos dar, longe da excelência de “O Vermelho e o Negro” (1830), segue-o de muito perto como thriller romanesco, envolvido por aspetos históricos reais, entre os quais a batalha de Waterloo, na qual Stendhal participou e que serviria de descritivo a Tolstoi. Provavelmente o melhor surge mesmo na abordagem que faz da intriga política e como a suporta muitíssimo bem na psicologia da condição humana.
Muitos consideram o livro ainda fundamental pelo modo como se afasta do romantismo, dando-nos a sorver puro realismo, o que fez com que o livro tivesse de esperar quase meio-século para ser aceite. Apesar de reconhecer esse feito, considero que ele surge mais da necessidade descritiva, do que propriamente de uma vontade artística, ou seja do curto tempo e do modo torrencial como foi criado. Aliás, muito do que aqui temos, em termos realistas, está já presente em “O Vermelho e o Negro”, se bem que nesse caso, por ter sido uma obra mais trabalhada, com boa edição, o realismo não é tão cru.
“A Cartuxa de Parma” é um livro que se lê sem necessidade de grande bagagem, lê-se rápido pela linguagem direta e muito acessível, e começando de forma algo desfocado acaba por a meio do livro revelar toda a sua força de enredo e agarrar a curiosidade do leitor. Dito isto, não o consigo catalogar como clássico obrigatório, apesar de lhe reconhecer imensos atributos, do reconhecimento que outros autores lhe têm — Balzac, Italo Calvino ou Lobo Antunes — porque Stendhal foi mais alto antes, nomeadamente no desenho e caracterização psicológica de personagens, daí que aproveite para voltar a recomendar vivamente a leitura de “Vermelho e Negro”.
“O Cosmos do Nosso Interior”, assim se poderia chamar “The Brain: The Story of You” (2015), porque assume proximidade com a série “Cosmos”, desde logo por surgir como série (6 episódios), seguindo-se como livro, e ainda por contar com um cientista que, à semelhança de Carl Sagan, é também um brilhante comunicador. Não fosse tudo isto suficiente, acaba por ser ainda mais relevante o facto de se dedicar a dissecar um mundo de factos e conhecimentos que nos permite ganhar noção daquilo que somos, mas agora a partir do nosso interior, da matéria orgânica que permite a criação de vida conceptual.
“In a cubic centimeter of brain tissue there are as many connections as stars in the Milky Way Galaxy. Our thoughts, our hopes, and our dreams are contained in these three pounds of wet biological material.”
Assumido este figurino percebe-se que “The Brain: The Story of You” não é um livro académico no seu sentido formal mas um livro de comunicação de ciência. Ou seja, não é expectável que David Eagleman entre no detalhe, que vá além do state-of-the-art, mas antes e tal como Sagan, seja capaz de apresentar as melhores metáforas para a compreensão do modo como o nosso cérebro, e nós, funciona.
Neste sentido, talvez seja a escolha da metáfora computacional a maior crítica que tenho ao livro, embora Eagleman apresente várias outras metáforas, como a dos "flocos de neve", e se redima no final. É verdade que em termos de comunicação é a melhor abordagem, já que é o sistema complexo mais próximo das pessoas, e mais presente na atualidade, mas por vezes sinto-o demasiado preso à metáfora, incapaz de se desligar e ir além. No final quando se lança na explicação dos possíveis futuros que no esperam, então Eagleman assume que todo este posicionamento é apenas uma hipótese, a chamada “computational hypothesis of the brain”. Assumindo que como tal pode simplesmente falhar no momento em que depois de desenvolvida a primeira simulação do cérebro, o objeto do projeto europeu “Human Brain Project”, se perceba a impossibilidade de criar a simulação de uma mente sem a presença de um corpo orgânico.
Se apresento esta crítica é por ser cada vez mais evidente esta distanciação, que apesar de ir sendo reconhecida e discutida continua sendo enunciada e defendida sem a devida reflexão. Este problema aconteceu antes, quando defendemos o cérebro como sistemas maquínicos de rodas dentadas, depois como sistema elétrico, ou ainda como sistema comunicacional do tipo do telégrafo. O cérebro, à semelhança do cosmos, é complexo, imensamente difícil de compreender, de abarcar o todo através da limitação da nossa compreensão, e por isso necessitamos constantemente de recorrer a metáforas para baixar o nível de complexidade e assim podermos conceber, ainda que abstractamente, os seus objetos, elementos, forças, no fundo a sua base funcional.
Assumida a crítica, que não pretende retirar força ao livro, nem ao trabalho de Eagleman, quero deixar alguns dos pontos altos do livro que valem a pena, apesar de não serem novos, estão muito bem apresentados e suportados, e valem por si só a leitura do livro. Falo dos pontos sobre a Ilusão e a Socialidade do Eu. No primeiro Eagleman assume o posicionamento que já vem de Platão, mas é bastante mais incisivo, direto, suportado com muita investigação empírica, conseguindo-nos demover do nosso conforto. No segundo ponto dá conta daquilo que faz de nós seres humanos, assumindo a base da construção do cérebro, do Eu, na relação com os outros, afirmando mesmo que não existe um Eu sem um Outro.
A Ilusão do Cérebro
“How does the biological wetware of the brain give rise to our experience: the sight of emerald green, the taste of cinnamon, the smell of wet soil? What if I told you that the world around you, with its rich colors, textures, sounds, and scents is an illusion, a show put on for you by your brain? If you could perceive reality as it really is, you would be shocked by its colorless, odorless, tasteless silence. Outside your brain, there is just energy and matter. Over millions of years of evolution the human brain has become adept at turning this energy and matter into a rich sensory experience of being in the world. How?”
“Your brain serves up a narrative – and each of us believes whatever narrative it tells. Whether you’re falling for a visual illusion, or believing the dream you happen to be trapped in, or experiencing letters in color, or accepting a delusion as true during an episode of schizophrenia, we each accept our realities however our brains script them. Despite the feeling that we’re directly experiencing the world out there, our reality is ultimately built in the dark, in a foreign language of electrochemical signals. The activity churning across vast neural networks gets turned into your story of this, your private experience of the world”
A Dor Social
“In the early weeks and months of solitary confinement you’re reduced to an animal like state. I mean, you are an animal in a cage, and the majority of your hours are spent pacing. And the animal-like state eventually transforms into a more plant-like state: your mind starts to slow down and your thoughts become repetitive. Your brain turns on itself and becomes the source of your worst pain and your worst torture. I’d relive every moment of my life, and eventually you run out of memories. You’ve told them all to yourself so many times. And it doesn’t take that long.”Palavras de Sarah Shourd, presa no Irão em 2009, colocada em prisão solitária, com a excepção de dois períodos de 30 minutos diários, durante 410 dias.