Asghar Farhadi (1972)
Em 2003 realizou a sua primeira longa-metragem, “Raghs dar ghobar” (Dancing in the Dust), que tive o prazer de visionar na semana passada. É um primeiro filme, nota-se que existe ali algo pronto a emergir, mas isso nunca chega verdadeiramente a acontecer na tela. É uma obra inicial em que Farhadi está claramente mais preocupado em ser capaz de dar conta da história em termos audiovisuais, do que propriamente em inovar ou aprofundar o meio. Apesar de tudo, o filme indicia desde logo os temas de fundo que movem a escrita de Farhadi, o amor e as divisões sociais, os sacrifícios que este impõe e o modo como a cultura islâmica o aprisiona.
“Raghs dar ghobar” (Dancing in the Dust) (2003)
O cerne do trabalho de Farhadi está centrado sobre a moral, essencialmente sobre os seus dilemas, capazes de levar os seus personagens ao extremo de si próprios, colocando-os à prova e obrigando-os a reagir. Neste sentido Asghar Farhadi aproxima-se bastante de Krzysztof Kieslowski, sendo que aquilo que os diferencia é apenas a camisa moral que vestem, uma de fundo cristã, a outra de fundo islâmica.
"Shah-re Ziba" (Beautiful City) (2004)
Se em 2003 Farhadi procurava apenas pôr-se à prova enquanto realizador, em 2004 a sua segunda longa-metragem, “Shah-re Ziba” (Beautiful City), surge já com toda a força da sua veia narrativa e exposição audiovisual. “Shah-re Ziba” põe em cena personagens que começam por parecer tão simples, discretos e fáceis de compreender, mas à medida que progridem com a narrativa vão-se densificando, enfrentando questões que parecem abrir-se para outras ainda mais complexas. Os personagens vão-se abrindo, como camadas de uma cebola em direcção centro, sentimos com o evoluir da história que estamos cada vez mais próximos dos seus âmagos, até que deixam de ser meros personagens e passam a ser pessoas de carne e osso na nossa frente, com as quais não conseguimos deixar de empatizar.
Isto acaba resumindo o modo de trabalho de Farhadi que se propaga através de todas as suas obras seguintes, "Fireworks Wednesday" (2006), "About Elly" (2009), "A Separation" (2011) e "Le Passé" (2013). Sobre este último e como já tinha dito antes, acredito que o facto de ter sido a primeira experiência de Farhadi fora do Irão, não tenha resultado tão instigante. Aliás basta ler as suas entrevistas para compreender o quanto do que está nos seus filmes está ligado à cultura do local que habita. Em certa medida, nota-se, tal como se notou na sua primeira longa “Raghs dar ghobar”, alguma preocupação maior em fazer bem e perfeito, e com isso acaba-se perdendo alguma arte e mestria. Mas estas duas obras denotam ainda mais toda a sua qualidade enquanto artista, como alguém que precisa primeiro de respirar o mundo que quer verbalizar, de o sentir na sua essência para então dar conta dele em imagens, sons e textos. Farhadi está assim bem distante do mero realizador de serviço, do técnico que marcha em função do predeterminado.
Julgo que aquilo que esta sua forma de trabalhar - viver, escrever e realizar - permite-lhe chegar a níveis que dificilmente se poderiam atingir de outra forma. O que podemos sentir nas suas obras é algo extremamente impregnado no todo, numa narrativa sempre densa com personagens sempre bastante complexos, tudo envolvido por uma realização muito próxima das questões, preocupada em transmitir os dilemas, secundarizando totalmente o acessório, encaminhando o espectador para o interior das suas personagens. Farhadi cria em cada uma das suas obras, momentos de profunda análise do que é ser-se humano, do que é viver-se com o outro, depender-se do outro, formar um todo com o outro.
Cada um dos seus filmes tem sido bastante fértil em prémios nos vários festivais internacionais de topo - Cannes, Veneza, Berlin - incluindo o primeiro oscar para o Irão em 2011. Fico agora ansiosamente a aguardar pelo seu próximo trabalho.
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