abril 06, 2020

A Odisseia está completa

"Assassin's Creed Odyssey" (2018) é um trabalho admirável de reconstituição histórica que usa os melhores ingredientes do entretenimento digital para nos manter imersos durante mais de 70 horas numa relação direta com a nossa Herança Cultural. Dos Jogos Olímpicos ao Teatro, da Política à Ciência, da Arquitetura à Natureza, das Histórias do Quotidiano à Mitologia, de Esparta à Atlântida, está tudo ao dispor de quem desejar mergulhar num mundo antigo completo e renovado que conhecemos apenas através de registos fragmentários. No domínio da jogabilidade agradará a todos os que gostam de narrativa e relações, assim como a todos os que gostam de combates e progresso, ou ainda a todos os que gostam de explorar e criar mundos à sua medida. É um jogo massivo, não apenas pela geografia — perdi a conta ao número de cidades, ilhas, montanhas, locais submersos assim como personagens e eventos que tudo ligam — mas também pela modelação do design que garante atributos para todos os perfis de jogadores. Não consigo imaginar o custo de produção de algo com esta magnitude, o número de pessoas envolvidas — do conceptual à finalização —, quantas vezes não dei por mim a pensar, "esta área apenas dava um jogo completo", mas depois percebia que essa área era apenas uma pequena parte de um todo gigantesco.
Foi uma viagem impressionante, muito mais do que visitar a Antiga Grécia em todo o seu esplendor, do Partenon aos belíssimos teatros, passando pela miríade de estátuas espalhadas por toda a Grécia assim como as magníficas ilhas mediterrânicas, tudo foi ainda mais impactante pelos encontros com os vários personagens da nossa história: Sócrates, Hipócrates, Herodotus, Aspasia, Péricles, Leonidas, Demérito, Protágoras, Sófocles, Eurípides, Aristófanes. E depois ainda, o envolvimento narrativo criado entre nós e todos estes personagens, nomeadamente tudo aquilo que aprendemos sobre a Democracia Ateniense, as guerras e a vida em Atenas. Sabiam que Péricles além de pai da democracia foi o mentor da construção do Partenon? Ou que Atenas foi fustigada por várias pestes e epidemias, tendo Hipócrates lutado contra as crenças para instituir práticas medicinais assentes na observação empírica? Ou que Esparta e Atenas passaram décadas a digladiar-se naquela que ficou conhecida como a Guerra do Peloponeso?

No campo mais técnico, pela primeira vez a série introduziu uma narrativa interativa, criando um sistema de personagens muito mais humanos, com relações dramáticas sobre as quais podemos verdadeiramente atuar. Não que a história ficcional seja brilhante, mas resulta, nomeadamente quando chegamos ao final e compreendemos que aquilo que temos é aquilo por que lutámos (existem múltiplos finais, ligados aos personagens que salvamos ou decidimos não matar). Por outro lado, o sistema de dificuldade está completamente transformado, desta vez, mesmo jogando no modo Fácil vão ter de repetir várias lutas e fazer muito level up, se quiserem progredir. O sistema usa um balanceamento que vai ajustando as dificuldades de cada área geográfica à nossa progressão em experience points. Por isso mesmo, os skill points são importantes e precisam de ser bem geridos. Mas o melhor é mesmo toda a gama de possibilidades de stealth que nos leva a ter de parar para pensar e decidir a melhor estratégia para resolver certos problemas, já que os nossos inimigos estão longe de serem meros bots em loop.

Deixo-vos 40 imagens para aguçar o vosso interesse.



abril 05, 2020

Interconexões criativas de Alien

“Memory: The Origins of Alien” (2019) é um documentário sobre um filme marcante do final do século XX, “Alien” (1979), mas mais do que isso, é um documentário sobre a arte cinematográfica, não tanto sobre produção, realização ou receção do público, mas essencialmente sobre o processo criativo, a sua ideação e design. Alexandre O. Philippe, o realizador, fez um trabalho notável na escavação de informação e geração de pistas e ligações que vão desde a infância do guionista, Dan O' Bannon, até às mais elaboradas personagens da Grécia Antiga. É uma hora e meia de descoberta e demonstração das interconexões e interdependências que se jogam no processo criativo, nas afinidades e sincronicidades entre indivíduos e suas relações com todo o imaginário colectivo. Obrigatório.
O documentário torna claro como Alien emergiu de um mundo de mitos e histórias, textos e imagens, sons e movimentos, filtrados por três mentes brilhantes: Dan O' Bannon, HR Gigger e Ridley Scott. Dan criou o ninho de onde brotou a semente que foi depois acarinhada por Giger e finalmente traduzida por Scott para a obra que hoje conhecemos. O filme desde sempre apelou ao nosso olhar contemplativo, obrigando-nos a ir ao fundo das nossas referências, mas vê-lo à luz de toda esta informação, ganha dimensões ainda maiores, e afunda-se ainda mais dentro de nós, parecendo querer tocar em quase tudo aquilo que somos, como se conseguisse de algum modo ser ele próprio um personagem, rico e multifacetado, um artefacto vivo, denso e infinitamente enredado em todos os pontos e momentos da sua geração.


Deixo-vos apenas uma lista do que fui apontado ao longo do filme: Dan O' Bannon, John Carpenter, H. P. Lovecraft, "Seeds of Jupiter" (1951), Série B dos anos 1950, “Dark Star” (1974), Roger Corman, “The Thing” (1951, 1982), HR Giger, imaginário do Antigo Egipto, Ridley Scott, “Fury” (1944) de Francis Bacon, "Oresteia" (458 a.C) de Ésquilo, imaginário da Antiga Grécia, “Narcissus” (1897) e “Nostromo” (1904) de Joseph Conrad, imaginário da disparidade entre classes, etc. etc. E muitas imagens.