janeiro 21, 2016

Performance de telas vivas

E se a Rapariga com Brinco de Pérola de Vermeer saísse do seu quadro para se encontrar com Van Gogh? Esta foi a premissa para a realização da instalação e performance “Double V: Van Gogh & Vermeer” por parte de um grupo de alunos do Instituto de Belas Artes da Universidade Libanesa, efetuada no âmbito de um festival de artes organizado pela Universidade.




O trabalho consistiu na criação de um espaço e colocação aí de dois atores, tudo pintado seguindo os princípios de cada uma das telas, por forma a criar uma performance ao vivo das representações dos quadros. Impressiona a qualidade da pintura dos espaços, mas mais ainda dos atores que apesar de se moverem mantêm a aura dos quadros, nomeadamente quando em determinadas posições face à câmara.

Estudantes da Universidade Libanesa: Zeinab Al Maaz, Shaza Abou Shakra, Tharwa Zeitoun, Aya Abu Hawash, Zeinab Ayash, Zainab Ayoub, Iffa Mseileb, Fatima Fneish, Mariam Kamaleddin e Mohmd Hussein Mistrah.

A obra tem uma enorme capacidade de criar estranheza e ao mesmo tempo deleite pela fruição do aspeto impressivo oriundo dos quadros apropriados conjugado com a animação do movimento vivo dos atores que se movem e nos olham. É impossível não nos fixarmos no filme, ver e rever e voltar a ver, e admirar-se com a forma como tudo se mantém tão próximo das telas originais. Todo o trabalho de construção de cenário, guarda-roupa, maquilhagem e claro pintura são absolutamente fascinantes, pelo detalhe e modo como nos levam sentir na presença dos originais.

Double V: Van Gogh & Vermeer”, Novembro 2015, Líbano

janeiro 18, 2016

A última lição de Bowie (a morte criativa)

Acabo de ouvir, pela primeira vez completo, “Blackstar” (2016) e não consigo conter em mim todas as ideias que me surgem na interpretação do álbum, agora que ele já não está entre nós, nomeadamente sabendo que ele sabia no momento da sua criação que os seus dias estavam a terminar. Este álbum é o fecho do seu legado, mas mais do que isso é uma enorme fonte de inspiração.




Era miúdo nos anos 1980 quando ouvi e vi pela primeira vez Bowie na televisão, o impacto não foi grande, era apenas mais uma estrela pop do momento, cabelo loiro espetado tal como tantos outros. Foi mais perto do final dessa década que vi pela primeira vez “Christiane F.” (1981) e assim enquanto descobria os efeitos da droga que alimentava a vida noturna de Berlim, descobria também verdadeiramente Bowie com “Heroes” (1977). Desde então nunca mais deixei de o associar a este momento, a esta música, mas mais do que isso passou a fazer parte da minha paisagem cinematográfica, pois foram tantas as vezes que ele voltou a surgir para marcar essa arte, nomeadamente voltaria a conseguir o mesmo feito em mim, com "I'm Deranged" (1995) em “Lost Highway” (1997) de David Lynch.



Por sinal ao ver agora o teledisco “Blackstar” de 10 minutos não consegui deixar de o ligar a “Lost Highway”, tanto pela estética visual e sonora, como pelo surrealismo que impregna a mensagem e nos obriga a trabalhar na interpretação. Todo o álbum é profundamente cinemático, como se Bowie estivesse não apenas a compor música, mas antes um contínuo audiovisual na sua cabeça, sobre tudo aquilo que nos queria dizer antes de partir.


Quando Kornhaber tentava interpretar Blackstar para a revista The Atlantic, dois dias antes de Bowie morrer, as ideias que lhe surgiam, ainda livres do condicionamento da sua morte, eram bem clarividentes da mensagem de Bowie contida no álbum:
“a (..) voice in the background squeals “I’m a blackstar” and modulations on it: “I’m not a filmstar,” “I’m not a marvel star,” “I’m not a pop star.” There’s also this: “You’re a flash in the pan / I’m the great I Am.” To whatever extent these lyrics can be summarized, they are about worship, ambition, and ascendance — and, more than anything, the allure and power of being “at the center of it all”.

To me, it’s the sound of someone gaining significance by insisting upon their significance; someone hungering to be above, unique, and immortal; someone awing the rest of mankind by standing apart from it. It’s about ego, and about how indulging one’s ego can, paradoxically, inspire others to forget their own. (..)

Could the celestial body of the title be the same force that has animated a career as extreme, as willful, as self-directed, and as influential as the one he has led? Alternately, is he himself the blackstar? (..)


Again and again on Blackstar, Bowie sings as someone whose achievements have wowed mankind while separating him from it, and who regards that separation with a mixture of pride and pain.”
Ao ouvir Blackstar senti muito daquilo aqui expresso por Kornhaber, nomeadamente não conseguia deixar de ver Bowie como a blackstar, uma estrela em fim de vida, que brilhou intensamente, que deu tudo o que tinha para dar, e agora tinha chegado o momento de se extinguir. Como nos diz na última música de Blackstar, "I Can't Give Everything Away":
“I can't give everything
Away

Seeing more and feeling less
Saying no but meaning yes
This is all I ever meant
That's the message that I sent”
E no meio de tudo isto não consegui deixar de pensar: como foi possível? Alguém em fim de vida, passando 18 meses com o cancro, sabendo que ia morrer, em modo totalmente terminal, ter investido toda a sua última réstia de energia para construir mais um álbum, o 25º. O que o movia a fazer mais um? O que buscava? Acredito que era a sua necessidade intrínseca de comunicar, de se juntar a nós, e a única forma de o fazer bem, a forma que melhor conhecia era compondo e cantando. Quando se diz que escondeu a doença que não quis dizer a ninguém, não me parece, Bowie optou por dizê-lo através da sua música, não se escondeu. Blackstar é uma homenagem à sua arte, mas foi a sua forma de nos dizer que tinha chegado o momento, e que não desejava esconder-se, definhar, mas antes brilhar até ao final, ser uma estrela que só se extingue quando o último raio brilha.

Mas é mais, esta obra é uma homenagem a todos aqueles que sofrem desta doença, que a combatem todos os dias, é uma réstia de uma estrela que brilha e nos diz que o avistamento da morte não deve ser razão para fugir da sociedade. O cancro não é com certeza uma morte fácil e indolor, mas é a única, tal como disse Richard Smith que nos dá tempo para nos prepararmos, e foi por isso que este a considerou “a melhor morte”. Saber que vamos morrer em breve, pode debilitar a motivação e energia, mas se nos agarrarmos a esta ideia de que temos o tempo marcado, poderemos tentar fazer desses últimos dias o melhor que pudermos, dificilmente para nós, mas para quem fica. E nesse sentido Bowie mostrou como — fazendo, construindo, criando.

janeiro 16, 2016

"Habibi", criatividade épica

Craig Thompson está no meu Top 10 de sempre com "Blankets", por isso seria difícil superar-se, mesmo que para tal tenha investido sete anos de trabalho, e tenha construído uma banda desenhada de quase 700 páginas em que cada página parece uma tela. Ainda assim “Habibi” é um épico, porque nos conta uma história na senda de "As Mil e Uma Noites" envolvida por uma arte que obedeceria aos mais requintados requisitos dum sultão.


A narrativa centra-se nas arábias, seguindo nós duas crianças até à idade adulta, uma menina vendida para poder alimentar a sua família e um menino negro órfão, que se encontram e iniciam uma amizade eterna, num barco abandonado no meio de um deserto. O desenvolvimento das suas histórias vai focar-se sobre a sobrevivência humana, nomeadamente sobre as necessidades básicas do ser humano — comida, sexo, e segurança. Se a menina sofre fisicamente pela volúpia dos homens, o menino sofre mentalmente os efeitos dessa volúpia. O seu crescimento dá-nos o desenvolvimento da história que leva ambos a atravessar uma cordilheira de flagelos, que acaba por tornar o livro duro, por vezes doloroso, até roçar o insuportável.

Existe alguma crítica feita a Thompson, e que já tinha surgido com Blankets, com a forma como este lida com o sexo, uma espécie de culpa ou sofreguidão parece persegui-lo, no modo como este o descreve como a fonte de todos os males. Em Habibi isto é bastante mais forte, e se posso perceber essa crítica, percebo ainda melhor Thompson porque acho que aquilo que me aproximou tanto de Blankets foi exatamente essa sua visão peculiar do mundo, com a qual me identifico tanto. Aqui vai muito mais longe, mas o facto de o fazer numa realidade distante diminui em parte a negridão discursiva, porque lhe confere um certo traço de exageradamente específico da fantasia. A questão sexual não é apenas aqui trabalhada enquanto necessidade básica da espécie, Thompson serve-se dela para discutir todo um conjunto de outras questões que vão desde a religião, nomeadamente procurando juntar o Islamismo e o Cristianismo por via das parábolas do Corão e da Bíblia, aos efeitos do capitalismo, das suas lógicas de sobrevivência, da oferta-procura ao exagero do consumo e seus efeitos no planeta.

O que Thompson nos diz neste quadro está intimamente ligado ao que discutia há umas semanas atrás num texto para o IGN sobre as Preferências Sexuais do Entretrenimento 

Até aqui temos tudo aquilo que deveria fazer deste livro mais uma obra-prima, e assim seria não ocorressem vários problemas ao longo do livro, desde logo a extensão que se torna injustificada dada a repetição temática ao longo da narrativa, nomeadamente a repetição dos aspetos sexuais e religiosos que à medida que vão surgindo vão desgastando a nossa aceitação. Contudo o maior problema para mim surge do lado das indefinições de espaço e tempo, que acabam por não solidificar a argumentação. Percebo que ao criar um tempo em que as arábias medievais se cruzam com o industrialismo do século XX, estava a tentar desenhar um mundo fábula, sem fixação no real, contudo e em conjunto com as parábolas religiosas que vão surgindo, acaba por tornar tudo não só difuso mas confuso, perdendo em credibilidade narrativa. Provavelmente esta confusão que se gera advém mais pelo lado simbólico que suporta a narrativa central, mas ao qual só podemos chegar detendo o background correcto, que não é o meu caso. Falo das questões existenciais religiosas à volta do grande conceito dos 7 Céus que funciona como camadas de significado da nossa existência, e que o livro refere sem explicar, assumindo que o leitor já conhece.

O conceito é referido por Thompson em entrevista como base estrutural da narrativa, mas apesar de perceber o objetivo, nada me move a ir em busca da sua definição, ou da tentativa de compreender em maior profundidade o alcance do seu simbolismo. Poderia com esse conhecimento chegar a uma compreensão mais completa das intenções de Thompson, mas uma conceptualização do mundo que é pura mitologia, sem qualquer base de sustentabilidade científica, não é capaz de gerar em mim qualquer curiosidade para ir atrás e tentar saber mais.


Em suma Habibi é um portentoso trabalho de arte gráfica que luxuosamente serve uma história de contornos épicos, profundamente investigada e caracterizada, que vale a pena ser experienciada, ainda que carregue alguns excessos de simbolismo e flagelo humano.

janeiro 15, 2016

"Information Doesn't Want to Be Free: Laws for the Internet Age"

Cory Doctorow é sobejamente conhecido pela sua luta contra o copyright, com formação em tecnologia e editor de um dos blogs internacionais mais influentes — Boing Boing — assim como com vários livros publicados, muitos de forma independente, é uma pessoa com uma visão alargada do estado do copyright assim como das tecnologias que dão vida à atual web. Este seu novo livro surge num tom bastante retórico sustentado pela sua experiência pessoal, acumulada ao longo das últimas duas décadas.


Do lado positivo, além da sua experiência e amplo envolvimento no debate internacional, o livro vem carregado de analogias que nos permitem facilmente ganhar uma compreensão do que está em causa em toda esta discussão. O cerne do seu argumento não se foca na abolição do copyright, de todo, antes na proposta de uma nova regulação para o mesmo, estando o verdadeiro problema, para Doctorow na grande indústria de entretenimento. Doctorow ataca sem dó nem piedade tudo o que ela representa desde a música, cinema às editoras livreiras.

Diga-se que o foco é bem definido e sustentado, se fossemos aceitar tudo o que essa grande indústria deseja, viveríamos hoje debaixo de uma autêntica ditadura, totalmente amordaçados, tudo em nome de algo que nunca foi consagrado na lei do copyright. É contra isto que Doctorow se move, e toda a sua argumentação está cheia de casos recentes que conferem enorme força à sua luta, e digo mesmo que era bom que fosse ouvido.

O problema é que o livro acaba por sofrer desta abordagem, de pura retórica, mais tipo TED Talk ou post de blog, estendidos num livro, sem metodologia de fundo que sustente toda a argumentação, acabando por surgir caso a caso, mais anedotário do que cientificamente sustentado, conferindo-lhe assim baixa credibilidade. Doctorow mete os pés pelas mãos ao misturar assuntos imensamente mais complexos — banca, terrorismo, pedofilia — do que aquilo que a indústria de entretenimento anda a tentar fazer com o PIPA, a SOPA ou a ACTA. Doctorow tenta tocar em tudo aquilo que a internet toca, e ao fazê-lo perde-se, porque apesar de eu concordar com o facto de esta ser o sistema nervoso da sociedade contemporânea, isso não quer dizer que não tenha de existir regulação, como ele próprio acaba por admitir por entre frases ao longo do livro.

Por outro lado, e talvez por ser um discurso sentido e quase confessional com o leitor, que se espera serem os novos criadores, Doctorow acaba fazendo um discurso muito relevante para todos aqueles que pretendam entrar no mercado da cultura criativa. Sempre que apresenta alguma coisa boa que a internet pode fazer pelo artista independente, nunca se esquece de apresentar o reverso da medalha, explicitando bastante bem os problemas, as armadilhas, mas sem deixar de incentivar sempre à criação. Aliás, o modo como termina o livro vai exatamente nesse sentido quando diz simplesmente:
If I have to choose between twenty hours’ worth of blockbusters every summer and sixty hours of “personal” video every second on YouTube, I’ll choose the latter (..) I think we can tell a good copyright system from a bad one by what kind of work gets made under its rules. A bad copyright system has fewer creators making fewer types of work, enjoyed by fewer people. A good copyright system is one that enables the largest diversity of creators making the largest diversity of works to please the largest diversity of audiences.

janeiro 13, 2016

O longo caminho criativo

Adam Westbrook voltou ao tema com que lançou o seu projeto Delve Video Essays em 2014, o longo caminho dos criativos, com a terceira parte do ensaio "The Long Game" dedicada a Vincent Van Gogh. Para recordar vale a pena reverem a Parte 1 e Parte 2, focadas em Da Vinci.




Desta vez Adam confronta o momento atual em que vivemos rodeados de métricas de feedback, nomeadamente as ferramentas sociais e os seus números de "likes", "views", "comments", "reshares", etc., e um tempo em que Van Gogh durante 10 anos teve como único interlocutor e audiência, o seu irmão Theo. Daí que nos questione:
"In a world obsessed with popularity would we do our work regardless of the consequences? Would we still make our art, even if nobody is watching?"
Ao longo do ensaio vários conceitos da psicologia são repescados para dar explicação destes processos, em particular o "flow" que Adam usa para sustentar a motivação intrínseca de Van Gogh, o que sabe a pouco, e ficaria melhor servido com a "teoria da autodeterminação" de Deci. Por outro lado aquilo em que mais refleti ao ver este ensaio, para além da motivação intrínseca, foi a faceta de enorme persistência, um claro traço de personalidade que nos últimos tem vindo a ganhar relevo nos estudos de educação, "grit", uma espécie de faceta dotada de: resilência, aspereza, ambição e busca por resultados. Passar 10 anos na pobreza, a viver em casa dos pais, sem ninguém a quem mostrar o trabalho que se vai desenvolvendo, requer um compromisso consigo mesmo praticamente insustentável, uma perseverança e obstinação inquantificáveis.

"Painting in the Dark: The Struggle for Art in A World Obsessed with Popularity" (2016) da série The Long Game, Part 3, por Adam Wetbrook

No fundo esta é uma mensagem que conhecemos, que estamos cansados de ouvir, mas que pelo confronto diário com as métricas da popularidade, temos tendência a esquecer, a deixar-nos levar pelo imediatismo do que vemos na televisão, no cinema ou no Youtube, a fama imediata. A arte, o amor pela arte, nunca se coadonou com tal, e continua a funcionar como cola fundamental da manutenção da intenção do artista de subir às maiores montanhas para chegar ao destino almejado.

janeiro 12, 2016

Da visceralidade da tinta a óleo

A materialidade da pintura plastificada pela macro cinematográfica. "Tone" é um pequeno filme de Trent Jaklitsch, no qual parece estar à procura de um acesso à essência da pintura por via de grandes planos da forma e dinâmica dos óleos. A momentos parece desejar penetrar a tinta, agarrar e plasmar através da objetiva para nos dar a sentir numa montagem imensamente dinâmica envolvida por uma música eletrónica que lhe confere o ritmo perfeito.





O efeito é simplesmente hipnotizante. Depois do vídeo vale a pena uma visita a Alyssa Monks.

"Tone" (2015) de Trent Jaklitsch

janeiro 10, 2016

O escritor desenrasca qualquer coisa

Se quiserem saber como decorrem as reuniões de trabalho durante a produção de um videojogo AAA (embora sirva de exemplo para reuniões de trabalho em múltiplos outros contextos), recomendo vivamente que experienciem a ficção interativa "The Writer Will Do Something" (2015).

"The year is 2012. You are the lead writer for the third game in the wildly popular ShatterGate™ franchise. Expectations are through the roof: fans of the series are waiting for the biggest, most bad-ass entry in the series yet, and your publisher is expecting the best-selling title in its history. But the game's development hasn't gone as smoothly as planned. One morning, just a couple months before E3 and six months before ship, an emergency meeting is called..."

É um artefacto simples, mais focado no relato do que na participação do leitor, ou seja os aspectos de agência são um tanto descurados, e se podemos por vezes sentir que somos ouvidos, nas poucas vezes que somos chamados a decidir, o efeito sobre o progresso narrativo é reduzido. Ainda assim, vale pelo conteúdo do relato, pelo modo como dá conta do vazio de que são feitas tantas reuniões de alto-nível, quando não se sabe propriamente o que se está a tentar fazer, porque já tudo saiu do controlo dos envolvidos.

Talvez, e aqui já sou eu em regime de interpretação do artefacto, os autores tenham desejado fazer-nos sentir alguma da importância do escritor nestas reuniões, do modo como não é ouvido, como procura a maior parte do tempo responder afirmativamente aos desejos de cada um dos responsáveis, para no final se ver como bode expiatório. Não sei se foi pensado assim, mas se o foi, é de génio, já que é isto que acabo por sentir no final por falta de mais agência.


Criado no Twine por Tom Bissel e Matthew S. Burns, ambos com experiência de escrita e produção em vários jogos AAA. Já aqui referenciei várias vezes Bissel, mais recentemente a propósito do seu livro "Extra Lives". Para quem não sabe o que é o Twine, é uma ferramenta open-source de criação rápida de ficção interativa, altamente recomendada para todos os que desejam iniciar-se na exploração da escrita interativa.


Experienciar "The Writer Will Do Something"

Até ser mau demais...

Until Dawn” é o típico jogo-filme, na senda de “Heavy Rain” (2010), um objeto quase-cinematográfico servido por um conjunto de escolhas dramáticas, às quais se acopla esparsamente alguma navegação e alguns “quick time events”, sendo que a jogabilidade se foca nas lógicas da estrutura narrativa. Até aqui tudo dentro do género, e para quem não gosta do mesmo o melhor será escolher outro género de jogo, mas para quem como eu adora, “Until Dawn” deixa imenso a desejar, talvez menos pela jogabilidade narrativa, e mais por tudo aquilo que a suporta.





Ou seja, o grande problema está no vazio dramático, uma história focada no decalcar do típico cinema de horror teenager, que apesar de constituído por muito lixo, tem bons títulos, tais como “Scream” (1996), “Final Destination” (2000), “The Cabin In The Woods” (2012) ou exemplos mais pesados, mas ainda assim focados em grupos de jovens, “Hostel” (2005), “Frontier(s)” (2007) ou até o mais recente “It Follows” (2015). Talvez “Until Dawn” tenha procurado ir mais no sentido de um “Evil Dead” (1981) ou de um “A Nightmare on Elm Street” (1985), ao qual tentou colar um pouco de “The Butterly Effect” (2004), mas o seu grande problema é mesmo originalidade, ou seja ausência de criatividade. Não existe aqui nada, absolutamente nada de novo a acrescentar ao género.

Sim, não é um filme, e poderia estar a inovar no seio dos videojogos, mas não chega, esperava-se mais, muito mais. No final o que vemos é apenas uma brincadeira interativa, uma espécie de artefacto que serve apenas o propósito de experimentar com a interatividade, nada mais. Ou seja, a história é profundamente básica, com clichés aos molhos, não conseguindo nunca surpreender-nos, ou sequer fazer-nos questionar, “o que irá acontecer a seguir?”, tal o enfado.

A juntar a um enredo fraquíssimo, como seria de esperar os personagens, que não são o forte do género, estão completamente ausentes. Como não há um bom enredo, e os personagens neste género são invariavelmente peões, fica-se sem nada. Como se não bastasse, a machadada final advém pela brincadeira com a agência, que na ânsia por sustentar a diferença face ao cinema, nos coloca no controlo de todos os personagens principais, indiferenciando-os ainda mais, tornando impossível qualquer construção de empatia, simpatia ou antipatia com o grupo. Sim posso fazer escolhas, até posso de certo modo escolher o destino de cada um deles, que é o no fundo o que seria o forte desta proposta, mas pergunto, se não sinto nada por nenhum deles que me interessa os seus destinos?

Na estética, apesar dos ambientes bem construídos, seguindo todas as lógicas do horror cinematográfico, a tradução para ambiente interativo falha completamente, já que de tão obcecados com os artifícios audiovisuais do cinema, se esquecem completamente dos artifícios próprios dos videojogos para criar horror. Sendo o pior a cinematografia em conjunto com a navegação. Percebe-se o que pretendiam, mas falham em toda a linha. Ou seja, temos uma câmara estática e uma navegação rígida, que deveria conduzir à emoção de medo. A nossa incapacidade de poder mover a câmara, a incapacidade de mover rapidamente os personagens, tudo é dirigido para uma resposta emocional de medo, mas acaba por em sua vez fazer surgir a frustração e o aborrecimento.

A título de exemplo, é horrível ver a câmara ficar parada enquanto me movo no espaço em profundidade, por mais que deseje manter-me atento ao personagem e ao que lhe pode acontecer, só consigo focar-me no facto de o jogo não me aproximar do mesmo, sentir-me irritado e não com medo, não funciona, e é por isso que o género “survival horror” abandonou estas técnicas, existem tantas outras que o género possui muito mais eficientes.

Until Dawn” é provavelmente um dos primeiros jogos que me obrigo a levar até ao fim só para justificar o dinheiro que me custou, tão chateado estava comigo próprio de não ter conseguido interpretar as críticas que li a respeito do mesmo. A demonstrar claramente que não basta tentar uma formula diferente, se não houver nada de novo para dizer mais vale ficar calado.

janeiro 09, 2016

Videojogos por uma cinéfila

Shannon Strucci é autora da série web "So You Wanna Be a Film Nerd", tendo decidido fazer uma pausa no seu louvar da arte que tanto adora, o cinema, para dedicar um episódio aos videojogos, na expectativa de convencer os seus seguidores de que, os videojogos não são em nada menos interessantes que o cinema.



Cheguei a este vídeo através de Philip Kollar do Polygon, que referencia o trabalho de Strucci por lhe ter feito recordar as razões porque gosta tanto de videojogos, estando eu em total sintonia com ele. Senti particularmente toda a discussão que Strucci faz à volta de "Silent Hill 2" (2001) porque juntamente com "Ico" (2001) foram responsáveis por eu voltar a interessar-me por videojogos, em vez de apenas me focar no cinema. Não esperem um trabalho em profundidade, é um documento vídeo, como tal discute vários outros jogos como "The Stanley Parable" (2013), "Papers, Please" (2013) ou "The Walking Dead" (2012) ligando-os com excertos do documentário de Charlie Brooker "Como os videojogos mudaram o mundo" (2013), sempre de uma forma fluída e informativa.

"Why you should care about video games" (2016) Shannon Strucci

“Debt: The First 5,000 Years”

Brilhante, incisivo e ao mesmo tempo angustiante. David Graeber é um antropólogo especializado em economia, o que lhe dá uma visão bastante distinta do comum economista, já que coloca lado a lado o humano e as finanças, estudando em profundidade as suas implicações e dependências. O facto de ter sido professor em Yale e agora na London School of Economics, apenas possível pela qualidade do seu trabalho, garante sustentabilidade ao que afirma ao longo de todo este livro, mesmo quando se afirma como anarquista. Graeber foi um dos principais mentores do movimento Occupy Wall Street, nomeadamente da sua premissa de partida, "We are the 99 percent”.


Debt: The First 5,000 Years” é um trabalho de fundo sobre os papéis do dinheiro e poder na organização das sociedades humanas que explica o modo como toda a nossa civilização se sustenta em processos de dívida. Graeber dá conta dos primeiros registos escritos que dão conta dessas mesmas dívidas, algo que não me surpreendeu já que essa é uma percepção que fui construindo com a visita a vários museus arqueológicos, nos quais vi alguns dos primeiros registos em pequenas pedras, tendo percebido que na generalidade se tratavam de inventários, heranças ou sentenças judiciais de pagamentos de dívidas.

São vários os mitos desmontados por Graeber ao longo do livro, um dos mais gritantes, o da economia de troca, algo que existe no nosso imaginário como uma cultura existente anterior ao dinheiro, e que por isso mesmo vimos florescer nos anos recentes como tentativa de resposta aos efeitos da austeridade, mas que aqui ao longo de muitas páginas, dezenas de exemplos, e muita história vamos perceber como nunca tendo passado de mero desejo do nosso imaginário. Seria insustentável desenvolver a civilização até ao ponto de complexidade que chegámos, baseado numa economia desse género, já que a possibilidade de trocas entre indivíduos seria imensamente mais lenta e reduzida na ausência de um qualquer registo (dinheiro) que garante a troca entre todos e em qualquer momento.

Graeber começa o primeiro capítulo de forma brilhante tocando o âmago da discussão do momento, a crise das dívidas soberanas, explicando como se chegou a este ponto, como evoluiu a sociedade por meio de uma obsessão quantitativa suportada por um moralismo judicial, no qual o FMI é o píncaro global, o grande cobrador de dívidas. Nos vários capítulos que se sucedem vários momentos da história da evolução da civilização são apontados como basilares, nomeadamente processos de exploração, desde os Romanos à expansão colonial europeia, ao tráfico de escravos, tráfico sexual, etc.. Tudo processos de poder e domínio por via da dívida permanente entre partes, que serve de justificativa moral na exploração do mais fraco pelo mais forte.
"Why debt? What makes the concept so strangely powerful? Consumer debt is the life-blood of our economy. All modern nation-states are built on deficit spending. Debt has come to be the central issue of international politics. But nobody seems to know exactly what it is, or how to think about it.
The very fact that we don’t know what debt is, the very flexibility of the concept, is the basis of its power. If history shows anything, it is that there’s no better way to justify relations founded on violence, to make such relations seem moral, than by reframing them in the language of debt — above all, because it immediately makes it seem like it’s the victim who’s doing something wrong." p.5-6
“It is the secret scandal of capitalism that at no point has it been or­ganized primarily around free labor. The conquest of the Americas began with mass enslavement, then gradually settled into various forms of debt peonage, African slavery, and "indentured service" that is, the use of contract labor, workers who had received cash in advance and were thus bound for five-, seven-, or ten-year terms to pay it back (.. ) This is a scandal (..) because it plays havoc with our most cherished assumptions about what capitalism really is­ particularly that, in its basic nature, capitalism has something to do with freedom.” p.350 
Concordando com muito, ou toda a forma como Graeber desconstrói e critica o desenvolvimento e estado da nossa civilização, o encanto deste seu livro esvai-se quando chega o momento de propor alternativas. Mas seria expectável que um homem só, no tempo de uma vida pudesse chegar a propor tal alternativa? Ou mesmo recuando a Marx e ligando ao mais recente trabalho de Piketty? O que acaba por ser imensamente angustiante é perceber que se estes que tiveram a capacidade de destrinçar a malha que nos encurrala, tal prisão invisível, não conseguiram ver como, que podemos então nós esperar? Existirá mesmo alternativa?

Acredito que sim, mas só num nível de consciência e autocontrolo muito superior ao que temos atualmente enquanto sociedade. O grande problema é que se somos profundamente gregários, cooperativos e colaborativos, não somos menos profundamente dependentes uns dos outros para sobreviver, daí que a dívida seja a base da civilização, porque ela é no fundo a base da classe mamífera, que ao contrário da dos répteis, não consegue sobreviver individualmente, apenas em grupo.

"The Last of Us: Left Behind" (2014)

É um dos poucos DLC que joguei, e não fossem as ramificações narrativas brotarem de um primeiro jogo maior, poderia perfeitamente funcionar como um pequeno jogo autónomo, tendo em conta o seu arco e intensidade dramáticas. Aliás chegou a ser vendido em modo stand alone, mas a sua força comunicativa, nomeadamente o seu final, está umbilicalmente ligada ao jogo original, "The Last of Us" (2013), sem o qual não se consegue chegar a essência do seu desfecho.




"Left Behind" não inova com o duplo enredo, mas ainda vai sendo algo que os videojogos não aproveitam completamente. O DLC surge num momento cronológico da história de "The Last of Us" para estender e explicar em maior detalhe os eventos decorridos, ao que acopla um segundo enredo por via de recordações da personagem principal, Ellie. No friso do tempo presente enfrentamos o jogo, obstáculos e ação, no passado temos acesso ao mundo interior da personagem, revivendo momentos de uma amizade marcante da sua adolescência.

Como já acontecia com TLOUS, mais do que inovar LB faz muito bem o contar de história, com uma sensibilidade imensamente apurada, capaz de construir e densificar personagens que nos emocionam, falam conosco. Ficamos a conhecer melhor Ellie, ficamos a compreender ainda melhor as suas angústias, de forma íntima e cuidada as personagens são apresentadas com vidas próprias, medos e alegrias, entre romance e melancolia.

Posso dizer que foi um choque para mim jogar LB enquanto jogava "Until Dawn" (2015), dois videojogos focados em adolescentes, mas tão longe um do outro em termos dramáticos, narrativos, comerciais e acima de tudo maturidade criativa. LB pode ser apenas um DLC ou um pequeno videojogo, mas aquilo que tem para nos contar leva a que seja mais do que isso, é uma experiência dramática completa.

janeiro 06, 2016

“Jogo de Influências”, um jogo sério e dramático

Jeu d'influences” é um serious game muito interessante pela forma como consegue traduzir os recursos dramáticos em proveito do jogo e do assunto que pretende tratar. Sendo um jogo sobre processos de gestão de comunicação de crise, consegue colocar o jogador no centro da crise e fazer com que este seja levado a agir e decidir em função dos vários interesses — financeiros, políticos e morais.




Em síntese, somos colocados no lugar de um diretor de uma empresa de sucesso, acarinhada por políticos e banca devido à criação de um novo tipo de betão ecológico, contudo uma noite o nosso sócio mais próximo, o investigador por detrás desse novo betão, comete suicídio. É aí que a crise começa, como gerir a comunicação das razões dessa morte? Motivos profissionais ou familiares? Em que estava ele a trabalhar nessa altura? Como é que os média estão a lidar com o assunto? Como é que lidamos com os média? E os bloggers, como lidamos com eles? E a verdade deve prevalecer, ou a mentira faz parte? E o rumor alimenta-se ou cria-se?

Tudo questões que veremos surgir na nossa frente, muito bem dissimuladas como parte da narrativa, e que nos farão questionar sobre tudo aquilo que fundamenta a gestão da comunicação de crise. Diga-se que com a evolução para o modelo atual de Sociedade de Informação em que vivemos, os assessores e estrategas de comunicação tornaram-se tão ou mais importantes que os jornalistas. Se até aqui a comunicação era toda controlada pelas redações, existia aquilo que chamávamos de gatekeeping, controlo do que se publica e não publica, hoje tudo isso se democratizou, não apenas porque o número de órgãos de comunicação social explodiu via web — blogs, facebook, twitter, etc — mas também porque quem está do outro lado deixou de ser ingénuo, ganhou uma nova literacia e passou a saber gerir aquilo que quer comunicar. No fundo o espaço mediático deixou de ser aquele domínio de aparente transparência, de aparente acesso direto à pura verdade, para se transformar numa arena de luta entre as múltiplas verdades. Isto porque como diz Christophe Reille, gestor de comunicação: "A verdade é aquilo em que a maioria das pessoas acredita."

Durante seis capítulos somos conduzidos por uma narrativa bem desenhada, bem ilustrada e com excelente performance de vozes, tudo sendo complementado por pequenos documentários vídeo que servem para ilustrar os conceitos mais complexos, que podemos decidir ver ou não em função do conhecimento que já detemos sobre o tema. As questões vão surgindo e à medida que vamos agindo e decidindo, três medidores vão contabilizando o nosso desempenho: UBM (unidade de medida de ruído média), isto é, a importância que o caso está a assumir nos média; a Confiança do nosso gestor de comunicação; e o nosso Stress. Se deixarmos o UBM chegar aos 100, o jogo termina; se o nosso gestor de comunicação deixar de confiar em nós (chegar a 0), o jogo termina; e por fim, se ficarmos demasiado stressados durante o processo (chegar a 100) o jogo é terminado também. No fundo temos de fazer um gestão interna das nossas ações, tendo em conta estas três variáveis. A experiência vai levar-nos a situações de dilema moral, criando pressão para a realização de atos potencialmente reprováveis, cabendo-nos decidir ir atrás do nosso gestor ou seguir os nossos modelos mentais do real.

O interessante — e a aprendizagem acontece nestes momentos — surge quando os nossos modelos mentais do que achamos que seria melhor colide com aquilo que o jogo nos apresenta, e faz com que percamos. Aí começamos a perceber que o mundo que pintamos interiormente pode diferir daquele que uma boa gestão de comunicação requer, e é aí que começamos a ganhar noção do que está em jogo nesta literacia dos media.

Jeu d'influences” (2014) foi criado pela francesa The Pixel Hunt para a cadeia de televisão France 5, com um orçamento incrivelmente magro de apenas 90 mil euros, mais ainda para os níveis franceses, mas que resulta num trabalho surpreendente, nomeadamente no design de jogo, a sua sintonia com o tema retratado, assim como no detalhe artístico e extensão do jogo. O jogo está online e é gratuito, mas está em francês, podem experienciar em “Jeu d'influences”.

janeiro 05, 2016

“O Meu Nome é Vermelho”

Magnífica viagem pela história das civilizações através do choque entre as suas filosofias da arte. Localizado em Istambul no auge do império Otomano, em 1591, numa altura em que a arte Otomana se debatia com a chegada das inovações do renascentismo italiano, nomeadamente a Perspectiva e o Retrato, tudo isto é envolvido numa história de crime e mistério que nos mantém agarrados à narração até à última página.

“Mas os quadros deles são muito mais persuasivos, aproximam-se mais da verdadeira vida. Em vez de pintarem como se estivessem no alto de um minarete, de uma altura suficiente que os faça desdenhar aquilo que os ocidentais chamam perspectiva, eles põem-se, pelo contrário, ao nível da rua, ou no interior do quarto de um príncipe, para pintarem a cama, a colcha, o escritório, o espelho, o seu leopardo, a sua filha, as suas moedas de ouro. Eles põem lá tudo, como sabes. Aliás, nem tudo o que eles fazem me seduz. Indispõem-me e acho mesquinha, sobretudo, aquela maneira de quererem a todo o custo representar o mundo tal como parece. Mas há tanta sedução no resultado que eles obtêm com esse método! Porque eles pintam o que vêem, o que o seu olho vê, exactamente como a visão o recebe, enquanto nós pintamos o que contemplamos.” 
"Siege of Rhodes" (~1564) Pintura em miniatura otomana, sem recurso a perspectiva.
"Deus quis certamente que a pintura exista como forma de arrebatamento, de maneira a mostrar que, para quem sabe olhar, o mundo é também um arrebatamento."
"Mona Lisa" (~1591), retrato em perspectiva de Leonardo da Vinci

Toda esta nova forma de representar o mundo assustou as pessoas, mais ainda numa sociedade em que a representação de certas figuras era considerada blasfémia, ao que se juntava o receio da criação de figuras de adoração. Pamuk pega em tudo isto, bem caracterizado historicamente, e cria um universo seu de grande beleza expressiva e intelectual. Como que cose todos estes ingredientes, à partida tão distantes, num único novelo, garantindo-nos acesso a todo um mundo de ideias por meio de um aparente simples romance detetivesco.
Quanto às técnicas de pintura europeias, os jesuítas portugueses já as introduziram lá [na Índia] há muito tempo, como por todo o lado.p. 457
Ao longo de todo o livro sentimos esta tensão entre representar de modo natural ou formal, uma discussão que se tornou central com a chegada da fotografia muitos anos depois e acabou dando origem ao modernismo e toda a sua força criativa. Mas ainda hoje continuamos a discutir tudo isto, já não subjugados a visões esotéricas do mundo, nem mesmo a conceitos do que objetiva a arte, mas subjugados à impossibilidade da verdade científica.

Mas Pamuk mais do que centrado na verdade, está centrado no humano. O facto de ter estruturado o romance em capítulos atribuídos a cada um dos personagens, que falam cada um na primeira pessoa, parece inicialmente apenas uma abordagem estilística, mas é muito mais do que isso, é uma afirmação da sua visão do mundo, do modo como critica essa tentativa de então, de aniquilar o indivíduo, aniquilar a expressão pessoal, o Estilo, conceito da estética que se torna central e acaba estando no cerne da investigação do romance.

O livro de Pamuk grita pela força do indivíduo, pelos seus anseios, desejos, e vontades. Mais do que saber se é a verdade que enfrenta, o ser humano quer sentir-se. Cada um de nós é um ser, e por mais que gostemos e dependamos uns dos outros, estamos enredados em nós mesmos, buscamos compreender-nos antes de tudo o mais. Mais do que conhecer o real, precisamos de nos conhecer a nós mesmos, para assim podermos fazer os outros à nossa volta felizes.

O Meu Nome é Vermelho” recordou-me por várias vezes Saramago e o seu “Memorial do Convento”, não por serem duas obras históricas, ou terem ambos um Nobel (2006 e 1998), mas pela força expressiva que imprimem ao ambiente e personagens, como as estruturam e tornam credíveis num tempo passado, tão real e tão cru, mas também porque em ambos o centro roda em redor da grande arte dos seus monarcas de então, a demonstrar mais uma vez que se alguma coisa perdura de todo o nosso esforço nestas vidas, é a arte que deixamos em legado.

janeiro 04, 2016

Fotografia do fragmento

O fotógrafo Alexander Yakovlev tornou-se conhecido pelo seu trabalho de fotografia dinâmica de dança, tendo recentemente adotado a técnica de adicionar farinha em movimento às imagens garantindo-lhes assim uma dinâmica impossível de conseguir de outra forma em imagens estáticas.


Inevitável ver nestas imagens resquícios do trabalho de Vhils, embora construídos a partir de técnicas completamente diferentes, resultando em objetos finais totalmente distintos, conseguem por momentos tocar-se e fazer-nos sentir a força do fragmento, da sua relevância no conjunto, capaz de formar um todo dos muitos fragmentos, fascinando o nosso olhar.






Podem ver uma enorme coleção de imagens no site de Alexander Yakovlev.

janeiro 02, 2016

"É assim que começa"

Trago mais uma curta da Bezalel, a escola de animação israelita que continua a oferecer-nos, ano após ano, curtas dos seus estudantes, com enorme cunho autoral e poder impressivo. A curta "This is How it Starts" de Shahaf Ram já ganhou vários prémios em vários festivais, entre os quais a competição de estudantes na Monstra 2015.





Nesta obra Ram propõe-se dar conta de uma viagem à infância e sua inocência por meio de cassetes antigas de vídeo. O trabalho de rotoscopia realizado para algumas imagens captadas dessas cassetes é tão detalhado que nos deixa em dúvida se realmente estamos perante material previamente criado em vídeo, ou se é ilustração animada a imitar o movimento e os defeitos do vídeo. Uma abordagem que segue no resto do filme, por via de um uso barroco da texturização sobre o qual projeta verdadeiros excessos de exposição que depois dessatura, oferencendo-lhe assim uma tonalidade vítrea, tudo em busca de uma espécie de mundo irreal, fantasmagórico.

O texto é fragmentado e nem sempre seguimos Ram, mantendo-se o interesse mais colado ao virtuosismo da plástica, conseguindo contudo no final imprimir em nós um forte traço de melancolia.

"This is How it Starts" (2014) de Shahaf Ram 
[contém imagens de teor adulto]