janeiro 08, 2014

Cartazes de cinema: o medo da criatividade

Os cartazes de cinema já foram um ex-líbris da ilustração e composição visual, estampas de imaginação, sonho, magia, e muita criatividade. Com a transformação de Hollywood numa máquina de satisfação de massas à escala global os cartazes não poderiam ficar imunes. Assim aquilo que hoje temos, nomeadamente em termos de filmes de grande orçamento, são cartazes básicos, simplistas, que apenas servem a venda, restando pouco, ou nada, para sonhar.

"Atores de costas" de Christophe Courtois

"Lado a lado de costas" de Christophe Courtois

Para demonstrar isto podemos ver o trabalho do francês Christophe Courtois que se tem dedicado, ao longo dos últimos anos, a reunir cartazes em função da semelhança visual: cor, lettering e motivo. Este trabalho foi entretanto convertido num vídeo, "WTF Happened to Movie Posters?" (2013) por Cecil Trachenburg do canal YouTube GoodBadFlicks, que poderia no mínimo ter citado a fonte no final do mesmo. Se descobri a fonte foi graças ao The Awesomer.

"WTF Happened to Movie Posters?" (2013) por Cecil Trachenburg

Se Christophe Courtois no seu trabalho de colagem visual apenas se dedicou a tornar evidente as semelhanças, Cecil Trachenburg procurou no vídeo explicar a razão por detrás das semelhanças. E para Trachenburg a causa é apenas e só, falta de tempo e dinheiro!!! Será? Mas alguém acredita que um filme que passa mais de um ano em produção (por vezes chega aos três anos) para o qual são desenvolvidos materiais artísticos da mais elevada qualidade visual, em que se investe para cima de 100 milhões de dólares, não tenha tempo nem dinheiro para criar um bom cartaz?!!

Não querendo ser dono da verdade, e tendo em conta o pouco que percebo de marketing e de Hollywood, para mim a razão está enraizada mais no âmago da produção deste tipo de cinema. Estamos a falar de filmes extremamente caros, que precisam de ser vendidos em todo o planeta para gerar retorno suficiente para se pagarem. Estamos a falar ainda de um tipo de produto que é impossível de prever a aceitação das pessoas, pode funcionar muito bem e gerar imenso lucro, ou pode levar um estúdio inteiro à falência. Deste modo, quando se trata de promover o filme, nomeadamente fazer um cartaz, quem é que tem a última palavra? Será o artista ou o marketeer?

"Texto sobre caras" de Christophe Courtois

"Fogo e chamas sobre preto e branco" de Christophe Courtois

A dúvida não existe, o artista aqui é apenas um técnico às ordens do marketeer (formado em gestão), que quer maximizar a venda do seu produto. Para tal um cartaz tem de obrigatoriamente ter os nomes das estrelas, já que são elas o garante da venda. Mas como a venda tem de ser feita em larga escala, o ideal é que apareçam as caras dos atores, e não apenas o texto, porque as massas conhecem as caras, não os nomes. Além disso é muito mais fácil veicular emoções, facilmente compreensíveis prontas a digerir, por via de caras e corpos humanos, do que através de detalhes de ilustração ou fotográficos. Quanto ao resto do cartaz, torna-se quase irrelevante, umas letras por cima das caras pode ser suficiente, ou então encaixá-lo no género. Ou seja na família de modelos que têm sido feitos para os filmes do género, seja acção ou outro. O objetivo é convencer as pessoas de que o filme será tão bom como o outro que viram, já que a capa lhes faz lembrar o anterior.


Desta forma seguindo a familiaridade evita-se o risco de afastar as pessoas pela capa do filme, claro que o reverso da medalha é a erradicação do rasgo criativo, e a ausência de qualquer identidade no cartaz. Para quem hoje quiser sentir essa centelha criativa ligada ao cinema, o melhor será procurar os cartazes feitos por fãs de forma independente. E foi por isso mesmo que Matthew Chojnacki resolveu coligir no livro "Alternative Movie Posters: Film Art from the Underground"(2013) cerca de 200 cartazes de filmes alternativos. Se for do vosso interesse, preparem-se para perder horas a ler (olhar e interpretar) alguns dos mais belos cartazes de cinema alguma vez criados.

janeiro 06, 2014

"Abita", crianças de Fukushima

Fukushima foi palco de um enorme desastre radioativo após um tsunami que varreu a costa do Japão em 2011. A discussão em redor da libertação de radiotividade da central nuclear e os seus efeitos na população tem sido bastante limitada. Nesse sentido Shoko Hara, japonesa a residir na Alemanha, resolveu fazer o seu filme de fim de curso em Media Design na Universidade Estatal Cooperativa de Baden-Württemberg (DHBW), juntamente com o seu colega de curso Paul Brenner, sobre as crianças de Fukushima que não podem brincar na rua.

"Abita", animated short film about Fukushima children who can't play outside because of the radioactivity. About their dreams and realities.

"Abita" (2012) foi apresentado em vários festivais de animação, e continua a concurso em vários outros. Em 2013 ganhou o prémio de Melhor filme de Animação no International Uranium Filmfestival, Rio de Janeiro, 2013. Em termos técnicos temos uma brilhante fusão entre 3d e ilustração a aguarela, o que lhe confere um caráter atual mas tradicional ao mesmo tempo. As pequenas fragilidades de câmara e de animação de personagem são fortemente compensadas pela animação do traço a aguarela. Por outro lado a mensagem que o filme transporta, de tão forte faz-nos esquecer por momentos que estamos a ver uma simples animação, convertendo-nos àquele universo, àquela idea, empatizando com aquela, e milhares de outras crianças, que vivem hoje naquela cidade.
"O simbolismo japonês foi uma fonte de inspiração em nosso filme. A Libélula representa a primeira ilha japonesa, por causa de sua forma. A libélula também simboliza a esperança, a perspectiva, o sonho, a energia no Japão e une todos os elementos naturais como água, terra e ar. O desastre de Fukushima acabou destruindo estas energias positivas, contaminando a água, terra e o ar - assim deixando as crianças sem qualquer perspectiva para o futuro. As libélulas no Japão são portadores de fertilidade - agora comprometida pela radioatividade." Shoko Hara

"Abita" (2012) de Shoko Hara e Paul Brenner

janeiro 03, 2014

Como será o storytelling no final do século XXI?

No World Science Festival pergunta-se a um conjunto de académicos e escritores, "como será o storytelling no final do século XXI?" e assistimos a mais um momento de alguma perplexidade. Tenho participado em algumas discussões e reuniões deste tipo, por exemplo especular sobre tecnologias e áreas de investigação para daqui a 30 ou 50 anos, e o que se verifica é que temos muita dificuldade em sair do contexto que nos rodeia. Funcionamos numa base sempre incremental, e quando algum de nós "sai demasiado da caixa", ficam todos a olhar para nós com ar de incredulidade e por vezes até de alguma reprovação. É fácil obter aprovação quando se percebe o que outro está a dizer, e de onde parte o seu discurso, quando ele corta demasiado com o estado das coisas, quem nos ouve não consegue lidar com o assunto, e por isso a primeira fase é de refutação. Ou seja, é extremamente difícil perspectivar o futuro, e por isso o caminho proposto por este grupo de pensadores, "Podem os Videojogos ser o Futuro do Storytelling" não é o futuro, mas o presente, como ainda na semana passada tive oportunidade de escrever na Eurogamer, "A forma de expressão mais relevante do século XXI".

Could Video Games Be the Future of Storytelling? (2013)

No grupo temos Jonathan Gottschall, mais conhecido pelo livro “The Storytelling Animal: How Stories Make Us Human” (2012), temos Paul Bloom conhecido por todo o seu trabalho à volta da ciência do prazer, "How Pleasure Works: The New Science of Why We Like What We Like" (2011), temos Keith Oatley conhecido por toda a sua investigação em redor da emoção nas histórias, "The Passionate Muse: Exploring Emotion in Stories" (2012) e ainda os escritores Jeffrey Eugenides, vencedor do Pulitzer Prize, e Joyce Carol Oates vencedora de inúmeros prémios literários. Ou seja, um belíssimo grupo de pensadores sobre os assuntos da narrativa, storytelling, seus efeitos e impactos.

Na pequena discussão Gottschall lança o mote dos videojogos, e os restantes seguem atrás. Nesse sentido acabam sendo discutidos dois modos, supostamente novos, de aceder às histórias, a participação e a colaboração. Em ambas coloca-se em causa a questão da autoria da história, seja pelo lado da participação no desvelar da narrativa, seja pelo lado da criação em modo colaborativo muito em voga nos tempos da Web 2.0. Ambos os modos nunca deixaram de estar entre nós. A participação existe desde que contávamos histórias junto à fogueira, e íamos comentando o que se dizia, nos ríamos, chorávamos, e em tempo real o contador adaptava-se ao modo como o público reagia. Quanto ao colaborativo, e como é referido por Joyce Carol Oates, "originalmente as histórias não tinham um autor", eram de todos, e todos podiam acrescentar, cortar, e fazer evoluir as histórias. Os grandes mitos, lendas ou contos de fadas que hoje temos são fruto dessa teia humana de grande co-criação, da colaboração selecionada pelos processos naturais da evolução das civilizações.

Ou seja, é natural que a natureza da narrativa sofra transformações, mas no final o que conta é aquilo que cada criador pretende expressar. Todos os media criados serviram sempre para comunicar ideias, a forma como o fizeram tem sido quase sempre submetendo-se ao espartilho da narrativa. Mas esse espartilho foi sempre sendo posto a prova. Podemos dizer que existem muitos lugares comuns, muitos padrões que se repetem neste enquadramento que nos ajuda a organizar a informação, mas aquilo que cada autor faz é sempre uma tentativa de se expressar de uma forma pessoal.

Para tornar essa expressão mais pessoal, mais original e única, pode fazê-lo contando algo totalmente novo, que nunca ninguém tenha ouvido. Ou se o que tem a dizer não é propriamente original, pode criar uma forma de organizar aquilo que quer contar de uma forma totalmente nova - deslinearizando, fragmentando, intertextualizando, etc. Por fim, se aquilo que tem para dizer e a forma como o vai dizer não são novas, pode ainda socorrer-se dos elementos plásticos, ou seja do tipo de media e das suas convenções - literatura, cinema, videojogos, transmedia, etc. - para gerar a diferença.

O que será da narrativa daqui a 100 anos? Não faço a mais pequena ideia. Mas tenho ideia que as diferenças não serão tão grandes como pensamos como diz, um dos meus académicos preferidos da atualidade, o Paul Bloom. Elas existirão, e a forma de contar histórias continuará a mudar, mas ao ritmo da nossa capacidade de as experienciar, e não ao ritmo das tecnologias. Apesar de todo o interesse sobre o tema que as tecnologias têm feito despertar nos últimos anos - veja-se os cursos online, assim como as iniciativas online para descobrir o novo storytelling, ou ainda as tentativas do jornalismo de se reinventar.

Human history is rich with stories, and as our culture and technology changes, so do the ways we tell stories. For example, from its roots in oral tradition, storytelling branched off into literature, artwork, and film. Where are narratives headed next? Depending on your hobbies, the answer may or may not surprise you. Literary scholar and author Jonathan Gottschall believes that video games will be (and arguably already are) the next step in storytelling in this digital age. He cites video games' ability to allow people to play an active role in narratives to be their greatest strength.

[Vídeo enviado por David Mota]

janeiro 02, 2014

iPhone: A inovação criativa não é mero remix

Adoro a série Everything is a Remix de Kirby Ferguson, mas desta vez acabou metendo os pés pelas mãos com o trabalho “Everything is a Remix Case Study: The iPhone” (2013). Ferguson é licenciado em Inglês, e se isso lhe deu background para realizar comparações entre filmes e músicas, assim como analisar em parte a história do copyright, está longe de lhe ter garantido as ferramentas necessárias para proceder a uma análise de um objecto tão complexo, na sua inovação, como o iPhone.


É verdade que tudo no nosso planeta é fruto do remix, porque a ação essencial de criação assenta no remix, mas a inovação criativa não brota apenas da realização de remix (por engenhosa, trabalhosa ou brilhante que seja), ela exige mais, exige um corte com o antes, um rasgar das convenções estéticas e sociais. A inovação criativa exige mais do que um mero incremento a partir daquilo que já antes existia. A inovação criativa é um risco, é um tiro no escuro, e pode funcionar muito bem, sendo capaz de criar caminhos completamente novos para quem vem a seguir, ou simplesmente afundar e arrastar para o buraco quem por aqui se arrisca. Deste modo ser capaz de arriscar no caminho da inovação criativa, não é algo que está ao alcance de todos, nem sequer daqueles que realizam remix, porque requer além de visão, muita obstinação, requer uma atitude de afronta constante ao mundo, uma insatisfação para com o que ele nos apresenta, e isso nem sempre nos traz o melhor do mundo (leiam People don’t actually like creativity, 2013).

Deste modo o iPhone (2007) assim como o Macintosh (1984), representam grandes revoluções de inovação criativa no mundo da computação, marcas deixadas por Steve Jobs. É claro que são fruto de remix, mas são bastante mais do que isso, o remix é apenas a base de partida. Aliás para chegar a esses produtos, para rasgar e vingar, é preciso falhar, ninguém inova sobre inovação, a aprendizagem e evolução acontece com o erro. A Apple e Jobs tiveram vários fracassos, como uma consola de jogos (PipPin), um PDA (Newton), ou ainda a própria companhia NeXT que Jobs criou quando esteve fora da Apple. Ou seja, não existem pessoas criativas por defeito, existem pessoas que de tão obstinadas pelo diferente, e não pelo remix, de vez em quando quebram o status quo, e fazem a sociedade avançar.

Tudo isto para dizer que o filme de Ferguson é uma mão cheia de nada. Dizer que a interface do iPhone é uma cópia de coisas da realidade, e usar uma palavra complexa, skeumorphism, para o definir, em vez de simplesmente falar em metáforas, só me dá vontade de rir. Demonstra que não percebeu nada daquilo que esteve na origem da inovação do iPhone, porque lhe falta conhecimento nas áreas da tecnologia, do design, e ainda mais no design de interação. Aconselho-o vivamente a ler o texto “The Day Google Had to 'Start Over' on Android” (2013) na The Atlantic para ter apenas um pequenino insight sobre aquilo que o iPhone representou em 2007.

Porque não basta ter o dom da palavra e da edição audiovisual. Fazer um trabalho como este que nos é aqui apresentado requer uma enorme bagagem do campo que só pode ser conseguida com vários anos de pesquisa. Não basta ler uns textos na internet e fazer meia dúzia de pesquisas na Wikipedia. Além de que fica muito mal apresentar todas estas ideias como se fossem dos autores do filme. Não são eles a dizer que tudo é um remix, então a partir de onde fizeram o seu remix? Porque o fizeram, basta seguir os links na wikipedia para perceber de onde vieram estas ideias. Depois não deixa de ser estranhíssimo ver no final toda uma lista de referências das imagens, vídeos e sons que foram utilizadas do istock.com e não ver qualquer referência aos textos e vídeos utilizados para compilar as ideias apresentadas. Será que o reconhecimento das fontes na cultura do remix só deve funcionar quando existe financiamento em questão?

Everything is a Remix Case Study: The iPhone (2013) de Kirby Ferguson

Filmes de Dezembro 2013

Passei o mês de Dezembro a tentar terminar alguns videojogos de 2013 para poder fechar as minhas escolhas deste ano, desse modo sobrou muito pouco tempo para cinema. Ainda assim consegui surpreender-me com "Don Jon", um filme na forma bastante tradicional mas com uma abordagem temática de fuga ao tradicional embelezamento da realidade, uma comédia com substrato. Por outro lado fiquei um tanto desiludido com os últimos Tornatore e Blomkamp.

xxxx The Attack 2012 Ziad Doueiri Lebanon

xxxx Don Jon 2013 Joseph Gordon-Levitt USA

xxx The Best Offer 2013 Giuseppe Tornatore Italy

xxx Elisyum 2013 Neill Blomkamp USA

xxx Now you see Me 2013 Louis Leterrier USA

xxx Stoker 2013 Chan-wook Park USA

dezembro 30, 2013

A explicação de “engage”

Para quem segue este blog já percebeu que o conceito de empatia é aqui bastante importante. Assim como quem leu o meu livro "Emoções Interactivas", percebeu todo o fascínio que nutro pelo poder e alcance desta propriedade do comportamento humano. Quando em 2009 criámos o engageLab, o seu nome foi bastante discutido, mas acabou por prevalecer a ideia de “engagement”. Desse modo definia-se como objectivo central da nossa investigação o desenvolvimento de tecnologias, processos e modelos capazes de ampliar as propriedades empáticas entre a máquina e o humano. Para explicar melhor o que andamos a tentar fazer no engageLab, deixo um pequeno filme da RSA que ao explicar a diferença entre Empatia e Simpatia, define na perfeição, e de modo visual, aonde se pretende chegar no engageLab.


O filme “The Power of Empathy” é uma visualização animada de um excerto de uma talk de Brené Brown, investigadora da Universidade de Houston na área da vulnerabilidade humana. Ou seja, o filme fala-nos de propriedades humanas, da sua relevância para a manutenção da nossa espécie. O que eu faço aqui neste post é pedir-vos para verem além dessa relevância, para irem além da ligação humano-humano e olharem para ligação humano-máquina. Claro que isto não é algo simples, longe disso, mas a investigação científica só vale a pena quando os objetivos a atingir são difíceis e por vezes nos parecem mesmo impossíveis.
“The truth is, rarely can a response make something better - what makes something better is connection.” Brené Brown

dezembro 28, 2013

A poesia da chuva

“Rain” (2013) é uma espécie de conto de fadas transformado em videojogo. De um lado o mal, o Desconhecido e seus lacaios, do outro o bem, duas crianças, um menino e uma menina que se perderam numa cidade Europeia à noite, e procuram o caminho de volta a casa. O fantástico surge porque os “nossos” meninos são invisíveis, tornando-se apenas visíveis quando estão à chuva. Desta forma terão de utilizar o espaço para controlar a sua invisibilidade e assim fugir aos monstros.


Como conto de fadas “Rain” tem quase tudo que é preciso, desde o perigo e medo ao atmosférico mágico-poético. É fácil entrar pelo universo adentro e sentir-se envolvido pela forma e trama. O pior surge no desenho de jogo, com situações apenas resolúveis por tentativa e erro, uma câmara que apesar de quase sempre bem posicionada cinematograficamente, falha demasiado nas aproximações à acção dificultando a percepção do que se espera de nós. Mas talvez o pior esteja no desenho de um final de jogo em certa medida feito à pressa que falha em passar para o ecrã tudo aquilo que se pretende dizer sobre o que se está ali a passar. Fiquei com a sensação que o final do jogo terá sido feito um pouco a correr, provavelmente para cumprir deadlines editoriais.

Apesar dos vários problemas aqui apontados, a experiência de "Rain" é bastante impressiva. A arte visual é muito rica começando e terminando a história com um conjunto de belíssimas aguarelas, sendo que o resto do jogo nos faz sonhar como devem fazer os contos de fadas, por meio do tratamento gracioso dado aos meninos quando visíveis à chuva. Para complementar o aspecto visual, as performances de ambos os personagens são de uma enorme ternura, tornando a sua presença no ecrã quase sempre uma delícia. Por outro lado no campo sonoro, além da constante presença do som da chuva, que contribui fortemente para todo o tom de melancolia, somos presenteados com uma banda sonora trabalhada a partir da serenidade de "Claire de Lune" de Debussy.


“Rain” é a pequena jóia de 2013 da Sony Playstation que sucede a “The Unfinished Swan” (2012). Ambos se baseiam em mecânicas inovadores, simples mas visualmente forte, e ambos se socorrem da fantasia dos contos de fadas para criar os seus universos. São videojogos que saem do enquadramento clássico de jogo, que procuram explorar as fronteiras entre o jogo e a contemplação interactiva. Ambos criam motivação nos jogadores pelo envolvimento com a experiência audiovisual interactiva, deixando de lado os mecanismos próprios de gestão e manutenção de atenção das correntes clássicas de jogo.

É uma experiência curta, 3 a 4 horas, mas é um dos meus 10 videojogos de 2013.

dezembro 27, 2013

Os melhores textos de 2013

Este ano resolvi fazer uma filtragem dos 15 textos mais vistos em função da sua relevância para mim, em termos de produção de pensamento. Ou seja, mantive a ordem dos mais vistos, mas eliminei os textos que me pareceram menos relevantes. A razão principal é que por vezes certos textos adquirem demasiada visibilidade, não pelo seu valor, mas pelas palavras-chave que os motores de busca “gostam” de indexar. No final podem encontrar também links para todos os criadores que entrevistei este ano aqui.


Deixo-vos estes textos de 2013 com votos de um excelente 2014.

1 - Indústrias criativas num mar de iliteracia, é possível?, Novembro 2013

2 - Porque é inovador, "The Last of Us"?, Setembro 2013

3 - "Eu tornava os jogos obrigatórios", Janeiro 2013

4 - Universidade e emprego, nas áreas criativas, Fevereiro 2013

5 - Criar o próprio emprego, sim ou não?, Junho 2013

6 - "Pensar, depressa e devagar", Maio 2013

7 - A exploração dos criativos digitais, Março, 2013

8 - Criatividade colaborativa contra o bullying, Março 2013

9 - Viés do storytelling contemporâneo, Janeiro 2013

10 - O lado negro da moral, Fevereiro 2013

11 - Do humanismo ao mercantilismo. Arte, desporto e universidades, Junho 2013

12 - Educação e criatividade, Maio 2013

13 - Educação é água, Maio 2013

14 - A felicidade segundo o budista Matthieu Ricard, Março 2013

15 - "Shadow of the Colossus", perfeição do balanceamento de emoções, Abril 2013


Entrevistados em 2013

Bruno Telésforo, artista VFX
Luís Belerique, artista 3d
Luís Oliveira Santos, realizador documentários
Mario Costa, realizador videoclips
Nuno Plati, ilustrador Marvel

dezembro 26, 2013

Além dos Múltiplos Finais

“Beyond: Two Souls” (2013) é um videojogo de David Cage e isso fica bem evidente pelo modo como a fusão entre história e jogo é trabalhada, nomeadamente pelo uso de longas cutscenes e múltiplos finais, assim como pelo uso de ambientes e personagens melodramáticos à lá Hollywood. No campo temático, a morte volta a estar presente, mas desta vez a reflexão é sobre o que está para além desta. Interrogações despoletadas pela perda de alguém muito próximo de Cage que não encontrando respostas na religião resolveu escrever um videojogo para verbalizar aquilo que sentia.



Cage pretendia que nos questionássemos sobre a morte, sobre o além, mas para o fazer optou por evocar o fantástico. A morte que era também um tema forte em "Heavy Rain" (2010), era vista mais como consequência, ou seja analisada a partir das emoções e sentimentos de quem fica ("o pai que perdeu o filho"). Aqui a morte é o motivo principal, não interessando tanto as suas consequência sobre os vivos, sendo visualizada através de um canal de acesso proporcionado pelo paranormal. Nesse sentido, quando comparado com "Heavy Rain" perde em capacidade de nos demover emocionalmente, já que se afasta do reduto da objetividade, evocando abstrações e premissas com as quais podemos não estar de acordo e assim falhar a ligação empática. Para agravar a abordagem por via do paranormal, o tratamento dado ao conceito de morte não é propriamente muito elaborado, já que as posições apresentadas são bastante simplistas, trabalhando ideias do senso comum sobre a morte e o chamado além.

Apesar do tratamento dado ao tema não estar dentro do meu comprimento de onda, o trabalho da equipa da Quantic Dream é soberbo no que toca ao desenvolvimento de toda a experiência de interação e storytelling. Cage passou a última a década a trabalhar esta mescla, e tem melhorado de jogo para jogo. Beyond apresenta nesse campo uma evolução significativa, porque simplificada, e muito mais próxima das ações narrativas que em qualquer jogo seu anterior. Deixámos de ter de cumprir repetições de cores no ecrã (uso da interface do jogo “Simon Says” em “Fahrenheit”, 2005), assim como deixámos de tentar imitar as ações visuais no analógico que tornavam a nossa ação complexa e mais centrada sobre si própria do que sobre o que decorria no espaço diegético (em “Heavy Rain", 2010).

Em Beyond, Cage conseguiu encontrar formas simples, como por exemplo através da câmara lenta consegue conduzir-nos a realizar ações sem qualquer suporte visual informativo no ecrã. Por outro lado, o fato de um dos personagens ter uma condição fantástica e fantasmagórica, com ausência de peso, ajudou a construir toda uma interface muito mais próxima das convenções de jogo, embora sempre com um tratamento muito “realista” conferido pelo constante tremer da câmara e alguma latência na resposta às nossas ações.

Posto tudo isto, interessa-me agora analisar em maior detalhe o tratamento realizado sobre o storytelling interactivo. Se nos jogos anteriores Cage se baseou muito nos múltiplos personagens fragmentando a perspectiva mas ampliando a abordagem da mesma, aqui deixou tudo isso para trás. Talvez Cage tenha receado adicionar confusão ao facto de já termos de controlar dois personagens durante quase todo o jogo (Jodie e o seu “amigo imaginário” Aiden), mas na verdade o que acaba por fazer é tornar muito mais forte a nossa ligação com  a personagem de Jodie, já que Aiden nunca é suficientemente caracterizado para ganhar autonomia face a Jodie, tirando o final do jogo.

Mas se no caso dos personagens jogáveis a opção assentou na focagem e concentração num único protagonista, fortalecendo a nossa ligação, já no caso do fechamento da narrativa, Cage optou por manter os tradicionais múltiplos finais. Muito sinceramente, por mais que procure compreender o que se pretende com o desenho de vários finais, não consigo atribuir-lhes lógica nem mais valia. Tenho cada vez mais a certeza de que estes apenas acontecem porque tecnologicamente é possível, e porque o público tem essa expectativa. De resto, nada nesta obsessão pelos múltiplos finais faz sentido. A começar pelo próprio David Cage quando diz,
“Play it once and then don’t replay it. You can if you want, but I think the best way to experience the game is really to make choices and then never know what would have happened if you’d made a different choice. Because life is like this, and Beyond is the life of Jodie Holmes.” [link]
Percebo e concordo, mas se é assim que quer que joguemos, porquê criar os múltiplos finais. Isto é um videojogo, e se é possível tecnologicamente criar múltiplos finais, assim como aceder a eles, não é expectável nem lógico, pedir às pessoas que experienciem apenas um final. A curiosidade é a alma do ser humano, é impossível jogar um jogo destes e não querer saber como acabaria a história se tivesse tomado outra decisão. Aliás basta refletir um mínimo sobre isto para perceber que é exatamente esta mesma curiosidade que faz com que as Sequelas e Prequelas tenham tanto sucesso. As pessoas querem saber, porque faz parte da lógica do storytelling. Enquanto contadores de histórias passamos todo o tempo a convencer as pessoas de que aqueles personagens são importantes, desenhamos formas de gerar empatia, e no final pedimos-lhe que esqueçam!? Cage diz ainda,
“For me, it’s more interesting to have players defining the life of Jodie – this is your version of the life of Jodie. And you can talk to other people and see their versions, and compare what you did, what you missed, what you saw, but never know what would have happened if… I think that’s the beauty of the thing.” [link]
Isto é um paradoxo. Pedem-me que construa a personagem, mas depois pedem-me que a limite, que a castre na sua amplitude. Se é minha, quero saber tudo o que ela pode ou poderia fazer. Julgo que é aqui que está o grande erro de toda esta abordagem aos múltiplos finais. É de uma ingenuidade descomunal acreditar que se pode dar um bombom a uma criança e depois se pode pedir de volta a meio. Não faz o menor sentido, porque a Jodie não é criada por mim, é uma criação de Cage, que eu quero conhecer, quero saber mais. Não quero ser eu a construí-la, a dar-lhe vida, eu quero apenas participar da sua vida, inteirar-me do que ela é capaz, ajudá-la, acompanhá-la, ser co-responsável pelas suas ações mas não quero ser eu quem decide por ela. A Jodie é uma pessoa, tem uma personalidade, tem uma identidade, a Jodie não sou eu. Apenas me identifico e empatizo com ela, sinto com ela e sinto por ela, mas não me sinto ela.

Neste sentido, a Jodie deve tomar as suas decisões, deve principalmente decidir como termina a sua história, e não eu ("Beyond" tem pelo menos 10 finais marcadamente distintos, e com pequenas variações pode ultrapassar os 20). Faz sentido eu decidir se o meu personagem morre ou vive no final de um videojogo? Eu quero viver uma história, não quero contar uma história.


Apesar das objecções e problemas levantados, "Beyond: Two Souls" é um videojogo com vários momentos inesquecíveis tanto no campo emocional como estético, e por isso é um dos meus videojogos de 2013.