outubro 02, 2013

biografia de Ayn Rand em banda desenhada

Nos últimos anos o nome Ayn Rand surgiu de novo com muita força, muito motivado pelo desastre financeiro de 2007. Nesse sentido trago aqui um magnífico trabalho, "Ayn Rand" (2013) de Darryl Cunningham, uma biografia em banda desenhada online, que utiliza como base as obras "Ayn Rand And The World She Made" de Anne C. Heller e "Goddess of the Market: Ayn Rand And The American Right" de Jennifer Burn.



A crise, que começou em 2007 nas praças financeiras americanas, foi apontada como o colapso esperado das teorias das economias de mercado, da total desregulação e liberalização do comércio. As leis e o estado, por não poderem antecipar todos os impactos das suas ações, deveriam ser retiradas da equação. O "laissez-faire" ou neo-liberalismo defendia que uma sociedade submetida à auto-regulação do mercado, seria capaz de garantir o melhor para todos, porque regulada em função dos "processos homeostáticos" da procura e oferta. Alan Greenspan, diretor da Reserva Federal Americana durante 20 anos, foi um dos maiores mentores desta desregulação que se iniciou nos anos 1980 com Reagan, e um fervoroso seguidor da "filosofia" de Ayn Ran.

Resumo do livro "The Fountainhead" de Ayn Rand [página 16 de "Ayn Rand" (2013) de Darryl Cunningham].

Deste modo podemos dizer que por detrás desta crise que ainda vivemos, existe um legado de Ayn Rand e por isso mesmo se torna extremamente relevante perceber melhor quem foi esta pessoa, o que pensava, como, e porquê. E este trabalho de banda desenhada faz um excelente trabalho respondendo a estas questões.

Antes desta crise o nome de Ayn Rand sempre me soou a culto, a seita. Depois de ler este opus de banda desenhada, fiquei com a certeza de que não se tratou de mais nada do que isso. Uma pessoa que passou por uma infância complexa, com momentos de grande stress, através da sua enorme capacidade de racionalização lógica do mundo, desenvolveu toda uma visão daquilo que o mundo deveria ser, como forma de resposta aos seus maiores medos e privações de infância. A sua argumentação lógica acima da norma, foi capaz de convencer muitos de que tudo aquilo fazia sentido.

A chamada filosofia de Rand, o "objectivismo", apresenta ideias muito fortes, e por isso atrai muitas pessoas, mas a sua argumentação está carregada de buracos, contradições, e problemas irresolúveis. Para alguém com capacidade para desenvolver ideias e argumentos tão lúcidos, acaba por ser decepcionante o facto de Rand não ter conseguido detectar ela própria esses problemas, o que inevitavelmente nos leva a questionar sobre a sua sanidade mental. Confronte-se o objectivismo com aquilo que nos diz Frans de Waal em "The Age of Empathy" [análise resumo] ou o que nos diz Paul Tough em "How Children Succeed: Grit, Curiosity, and the Hidden Power of Character" [análise resumo].

Podem ler as 63 páginas de  "Ayn Rand" (2013), na ACT.I.VATE.

outubro 01, 2013

cognição e biologia na base do sucesso

"How Children Succeed: Grit, Curiosity, and the Hidden Power of Character" (2012) de Paul Tough, procura respostas para o sucesso e insucesso das crianças nas sociedades modernas. Vem de encontro a muitos estudos que se têm feito nos últimos anos no campo cognitivo e biológico, apresentando algumas novidades a partir desse cruzamento de saberes. É um livro de divulgação jornalística que procura iluminar um pouco mais sobre a área, sem tentar dar respostas cabais, ou receitas, assumindo que modelos padrão para lidar com a individualidade das crianças, é coisa que não existe. O livro apresenta uma teorização interessante à volta da oposição entre as competências cognitivas, avaliadas pelos testes de QI, e os traços de personalidade como a curiosidade, a escrupulosidade, a auto-disciplina, ou a resiliência.


Assim o fundamento que suporta todo o livro, e é o seu contributo mais interessante, passa pela apresentação da provável razão pela qual as crianças falham na escola, acabando por fracassar nas suas vidas, incapazes de  concretizar os seus sonhos, contaminando as gerações que os rodeiam. Durante décadas acreditámos, e os estudos demonstravam isso mesmo, que as crianças provenientes de lares mais pobres tinham menor sucesso escolar. As razões prendiam-se com a falta de estimulação cognitiva em casa, tanto pela pobreza expressiva dos pais, como pela falta de acesso a cultura e abertura à diferença.

O grande problema desta análise é que ela estava baseada numa única causa do sucesso, aquilo que Tough, chama de "Hipótese Cognitiva". Esta hipótese assenta a causa do sucesso exclusivamente em competências cognitivas do tipo verbal, matemáticas, análise de padrões, no fundo aquilo que avaliamos nos chamados Testes de Inteligência. Aquilo que Tough aqui apresenta são vários estudos realizados nos últimos anos nos campos da psicologia, economia, educação e neurociência que vieram acrescentar um novo ingrediente a esta análise, o "carácter", e que é constituído por qualidades, ditas não-cognitivas, como a preseverança, consciência, otimismo, curiosidade e auto-controlo. Para suportar esta ideia, Tough apresenta dois estudos que por si só são suficientes para demonstrar toda a racionalidade por detrás desta teorização.

1 – A hipótese cognitiva: QI
O Programa GED, é um programa americano que permite aos alunos que desistiram no secundário, ter acesso a um diploma do secundário, mediante a realização de um exame que avalia se estes possuem as mesmas competências cognitivas dos alunos que frequentaram o secundário. O fundamento deste exame é a hipótese cognitiva, que acredita que um aluno que possua as mesmas competências cognitivas de um aluno do secundário, não deve perder tempo a fazer a escola, pode realizar o teste e obter o mesmo reconhecimento do estado que o outro aluno.

O que confere com os estudos realizados à posteriori, em termos de QI, que demonstraram que os alunos que fizeram o GED não se diferenciavam dos alunos que tinham feito toda a escola. O problema surge quando analisamos o desenvolvimento e progresso destas pessoas para além deste patamar. Nos estudos realizados por James Heckman, este encontrou que
“just 3 percent of GED recipients were enrolled in a four-year university or had completed some kind of post-secondary degree, compared to 46 percent of high-school graduate (..) that when you consider all kinds of important future outcomes—annual income, unemployment rate, divorce rate, use of illegal drugs—GED recipients look exactly like high-school dropouts, despite the fact that they have earned this supposedly valuable extra credential, and despite the fact that they are, on average, considerably more intelligent than high-school dropouts” (p.13)
Ou seja, o que podemos ver a partir daqui, é que os alunos que realizaram o ensino secundário, ao terem persistido na escola, obtiveram algo mais do que as competências cognitivas, que os levou a suceder no seu futuro. Heckman conclui que
“what was missing from the equation... were the psychological traits that had allowed the high-school graduates to make it through school. Those traits - an inclination to persist at a boring and often unrewarding task; the ability to delay gratification; the tendency to follow through on a plan - also turned out to be valuable in college, in the workplace, and in life generally” (p.13)
Visto apenas através deste estudo, estamos no reino da pura especulação, o número de variáveis não controláveis é demasiado grande. Contudo os estudos sobre esta hipótese, não se resumem a isto. São muitos os estudos conhecidos sobre a relação entre as competências de auto-controlo e de sucesso na vida, nomeadamente o experimento do Marshmellow de Walter Mischel, mas não só. Tough apresenta ainda vários estudos referentes ao carácter que suportam estas evidências. Mas antes de entrar nesses, quero apresentar o segundo ponto que foi para mim imensamente revelador desta hipótese, mas também daquilo que está em jogo na educação das crianças desde tenra idade.

2 – Hipótese Biológica: Stress
Um estudo realizado em 2009 por Gary Evans e Michelle Schamberg da Cornell University procurava estudar as diferenças entre as crianças provenientes de estratos diferenciados, tendo como metodologia testes das funções-executivas (as funções cognitivas responsáveis pelo planeamento e execução de atividades). Usaram como corpo de estudo, 195 jovens com 17 anos, que já seguiam desde que tinham nascido. Metade viviam em ambientes abaixo da linha de pobreza, e a outra metade em típicas casas de classe-média. O teste consistia no simples jogo “Simon Says” (na foto abaixo).


A primeira descoberta, foi que os miúdos que tinham passado mais tempo abaixo do limiar da pobreza, apresentavam menor desempenho no jogo. Ou seja, uma criança que tivesse vivido 10 anos abaixo do limiar, desempenhava pior do que um que tivesse vivido apenas 5 anos. Até aqui nada de novo. A novidade do estudo aconteceu quando eles levaram em conta a medição de variáveis biológicas – pressão sanguínea, índice de massa corporal, e níveis de hormonas ligadas ao stress, tais como o cortisol – que tinham realizado aos 9 anos de idade, e novamente aos 13 anos, para determinar os níveis de stress, ou em termos científicos, a "carga alostática" (“allostatic load”) das crianças. Interessava analisar os níveis de stress fortes, causados por situações como,
“physical and sexual abuse, physical and emotional neglect, and various measures of household dysfunction, such as having divorced or separated parents or family members who were incarcerated or mentally ill or addicted” (p.29)
Assim conseguiram correlacionar as três variáveis: os resultados dos testes do jogo; com o historial de pobreza; e com a carga alostática. Mas foi ao aprofundar a análise estatística, que se deu o choque: a variável de pobreza era irrelevante. Não era o fator do tempo vivido na pobreza que condicionava a capacidade cognitiva no jogo, mas antes era o stress vivido. Ou seja, até aqui podíamos pensar que a criança de classe média alta, apresentava melhores resultados na memorização de padrões, por ter genes provenientes de pais bem sucedidos, por estar numa escola melhor, por ter acesso a mais jogos, livros e informação. Mas o que descobrimos foi que uma criança que viva no seio de uma família pobre, mas tenha estabilidade emocional, proporcionada por uma família carinhosa e protetora, que não tenha de atravessar situações de grande stress na sua vida, pode apresentar o mesmo desempenho da criança dita rica.

O stress afecta o crescimento do nosso cérebro. Em confronto com uma situação stressante, o nosso cérebro manda libertar hormonas no sangue, que produzem emoções de ansiedade e medo. Quando estas ações acontecem muitas vezes, e nomeadamente com grande intensidade, sem qualquer atenuação por parte dos seres próximos, família, o corpo vai ganhando habituação a viver sob stress, ou seja passa a reagir de forma muito mais carregada, por não poder antecipar apaziguamento. Os sujeitos passam a conseguir controlar com menor eficácia os seus níveis de stress, e os seus impulsos descontrolam-se muito mais facilmente. Deste modo quando são confrontados com novas situações, como a realização de provas, testes, exames ou responder a um pedido ou ordem de um colega ou professor, tendem a reagir de forma mais impulsiva, já que a ansiedade sobe, e o medo toma conta das suas ações. Esta impulsividade nem sempre é exteriorizada, certos indivíduos tornam-se agressivos, outros simplesmente bloqueiam interiormente.

Assim, a carga alostática, torna-se na variável mais importante a controlar, para garantir o acesso ao estágio inicial, isto é a permanência e realização da escola por parte da criança. Num estudo no Cook County Juvenile Temporary Detention Center, encontraram-se as seguintes variáveis,
 “84 percent of the detainees had experienced two or more serious childhood traumas and that the majority had experienced six or more. Three-quarters of them had witnessed someone being killed or seriously injured. More than 40 percent of the girls had been sexually abused as children. More than half of the boys said that at least once, they had been in situations so perilous that they thought they or people close to them were about to die or be badly wounded” (p.49). 
3 – Treinando o Carácter
O resto do livro é passado a discutir formas, métodos e modelos para treinar o carácter. Tough acaba socorrendo-se da Psicologia Positiva, dos trabalhos de Martin Seligman. No livro Character Strengths and Virtues: A Handbook and Classification (2004) Christopher Peterson e Martin Seligman apresentam uma primeira abordagem para identificar e classificar os traços psicológicos positivos dos seres humanos. Aí são descritos os caracteres essenciais, categorizados em 6 grandes virtudes. Desse modo criaram uma tabela e testes que permitem apontar o carácter, e permitem definir objectivos a atingir, que como diz Tough, não são imbuídos de moral nem ética, mas antes de efeitos práticos de realização na vida. As seis virtudes aqui apresentadas, são fruto de vastos estudos através do tempo e de forma inter-cultural.


Tough investe bastante tempo a trabalhar dois exemplos de escolas americanas, uma delas a academia KIPP, reconhecida pela sua capacidade para pegar nos alunos e conduzi-los até a Universidade. A discussão em redor dos elementos essenciais que definem o caráter é grande, e sem consensos, no entanto todos reconhecem a sua enorme importância. Deixo aqui uma tabela de diagnostico de carácter aplicada na KIPP.

Nesta tabela da KIPP fica bem evidenciado que a solução para formar miúdos para seguirem um caminho bem sucedido, está longe de se determinar pela mera lecionação de disciplinas de matemática, línguas ou outras. A formação do ser humano, ao nível do carácter, é extremamente relevante para que este consiga potenciar o melhor de si. É claro que muito disto devia vir de casa. E eu continuo a acreditar que a função da escola, é educar a mente, enquanto a da família é educar o carácter. Mas sei também, que uma grande parte das famílias não está preparada para dar esta bagagem aos seus filhos. Não chega ter estudado, ter dinheiro, ter acesso, é preciso mais do que isso, é preciso compreender o mundo em que se vive, e acima de tudo, educar todos os dias para a vivência com o outro. Cada vez acredito mais, que tudo se resume à interação social, que é aí que reside o cerne que alavanca todo o nosso desempenho nas restantes áreas.

setembro 30, 2013

Year Walk (2013)

Simogo é um estúdio de jogos sueco, e um dos mais relevantes da plataforma iOS. Depois de Kosmo Spin (2010), Bumpy Road (2011) e Beat Sneak Bandit (2012) chega-nos agora Year Walk (2013). Para quem vem seguindo o seu trabalho, percebe-se de imediato que Year Walk não segue o mesmo lado colorido e divertido dos jogos anteriores, antes pelo contrário, a Simogo criou uma experiência completamente nova, com uma atmosfera pesada, para o ambiente iPad.



Year Walk tem dois atributos que fazem dele um dos melhores jogos de sempre, feitos para o iOS, o design de interação e o design de experiência. No campo da interação Year Walk apresenta-nos um sistema de navegação espacial extremamente rico, porque inventa a partir do potencial proporcionado pela interface de toque do iPad. A manipulação da navegação decorre do arrasto dos nossos dedos, mas a navegação decorre através de movimentos em paralaxe de várias camadas do cenário. Ou seja, utilizando uma técnica de movimento gráfico, a Simogo consegue criar uma ilusão bastante apurada de profundidade de campo, sem ter de se socorrer de criar ambientes em 3D.

Por outro lado é exatamente através do uso da ilustração em 2D que a Simogo consegue criar toda uma experiência estética particular. O ambiente pesado é gerado através da ilustração de cenários pouco saturados e escuros assentes em mitologia gótica, criando a ideia de que nos passeamos através de telas pintadas. A experiência é ainda tonificada pela interacção com navegação, que apesar de bastante intuitiva, nos mantém o tempo todo perdidos no espaço, gerando ansiedade, a emocionalidade pretendida pelo jogo. O design de som é também essencial no desenho da experiência (ex. os nossos passos sobre a neve) pois contribui para intensificar a credibilidade da navegação no espaço, e desenhar a emocionalidade pretendida.

A evolução no mundo do jogo segue um modo narrativo que vai densificando a história dando-nos mais conhecimento sobre os mitos e aumentando o nosso interesse sobre os mesmos. Ao mesmo tempo cada desvelamento na progressão narrativa vai aumentando o seu nível de complexidade, o que por vezes joga contra a nossa vontade de continuar a procurar responder aos puzzles. No campo dos puzzles, Year Walk relembra as dificuldades de Myst. Temos aqui um jogo de aventura gráfica, e não de ação-aventura moderno do tipo que nos habituou a ter ajudas cada vez que empancamos. Somos obrigados a ir buscar papel e lápis, tirar notas, construir ligações, apontar dados, símbolos, números, criar combinações para assim dar respostas aos enigmas que o jogo nos vai colocando.

Resoluções em papel dos enigmas (imagem de Ben Chudac)

Mas se quisermos obter o máximo do jogo, nomeadamente no campo narrativo, torna-se inevitável descarregar o Year Walk Companion, uma pequena aplicação que a Simogo criou com o intuito de nos dar mais informação sobre as mitologias por detrás de Year Walk. Inicialmente o Companion parece não nos dizer muito, mas à medida que vamos avançando no jogo, vamos começando a fazer sentido deste, e a informação que ele nos fornece torna-se essencial para uma experiência mais completa do jogo. Depois de jogarem leiam o making of na Edge.



Declaração de interesses: Joguei uma cópia deste videojogo adquirida pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com os autores e editores.

setembro 25, 2013

o fascínio da profundidade visual num plano a preto e branco

Quando acabei de ver "Platinum Palladium Printing with Leica M Monochrom" (2013), do Luís Oliveira Santos, fiquei sem palavras. Dez minutos em que nada se conta, tudo se mostra, num contraste de luz tão apurado, que levou o meu âmago a se abrir por completo à vontade do filme.



Conheço o Luís, mas descobri este trabalho por acaso nos feeds do Vimeo. Vi uma imagem a preto e branco dentro da janela do Vimeo, e depois vi um nome português, e depois pareceu-me ser o do Luís, fiquei surpreendido porque não conhecia este seu trabalho. Entrei na página do Vimeo Staff Pick, carreguei em "play", e fiquei ali estupefato, imóvel, a olhar, e a sentir. O brilho, o contraste daqueles primeiros minutos são absolutamente hipnotizantes. Só me apetecia dar os parabéns a quem tinha criado aquela pequena pérola. Nesse sentido, devo dizer que é um privilégio para mim conhecer pessoas assim, tão dedicadas à arte que amam, e por isso não resisti a fazer-lhe algumas perguntas em jeito de entrevista que deixo abaixo, depois do filme.

O selo Vimeo Staff Pick é atribuído por uma equipa de curadores do Vimeo, e é apenas atribuído a filmes de elevada qualidade. Para além do que também já disse, restam poucas dúvidas sobre essa qualidade, mas para complementar esta garantia, digo ainda que nos comentários ao filme, podemos encontrar comentários distintos, como os de Nabil Elderkin, realizador de videoclips para os Artic Monkeys, James Blake, Daft Punk, Seal ou ainda do fantástico Cut the World dos Antony and The Johnsons.

"Platinum Palladium Printing with Leica M Monochrom" (2013) de Luís Oliveira Santos


1 - Como surgiu a ideia para o filme? É um trabalho pago, ou simples hobby, vontade de fazer e de dar a conhecer? Quais as maiores dificuldades na realização, e quanto tempo levou a fazer, desde pré-produção à pós-produção?
:: O Manuel Gomes Teixeira é um fotógrafo que conheço há muitos anos e com quem mantenho uma boa relação de amizade. Ele nos últimos anos tem-se especializado na impressão de platinotipia e tem uma página electrónica onde se podia ver um pequeno filme que demonstrava o processo em laboratório.
Entretanto o Manuel foi convidado pelo representante da Leica em Portugal a testar a Leica M Monochrome, a desenvolver com a máquina algumas fotografias impressas nesse processo de ampliação. Este teste culminava com a apresentação em Lisboa e no Porto, perante um público convidado da Leica, dos resultados do teste.
O filme surge então de um pedido e de um convite que o Manuel me fez no sentido de realizarmos um pequeno filme que mostrasse o processo de laboratório, processo esse que não poderia ser recriado ao vivo nas sessões de apresentação. Não foi um trabalho pago dada a amizade que nos une há muitos anos e dadas as sucessivas "contribuições" que ambos fazemos ao trabalho mútuo.
Uma das maiores dificuldades na realização prendeu-se com o tipo de luz existente. O processo de platinotipia pode desenrolar-se à luz (uma vez que a emulsão apenas fica velada com grandes quantidades de ultravioleta). Contudo o laboratório do Manuel Gomes Teixeira possui uma iluminação de fraca intensidade que emite numa frequência que cria interferência com a frequência de captação da máquina fotográfica. É como se se filmasse o écran de uma televisão em que a frequência de transmissão colidisse com a velocidade do obturador e a quantidades de frames por segundo da máquina.
O filme levou sensivelmente uns três a quatro dias a realizar desde as primeiras filmagens até à entrega, já que a data para a apresentação do filme em Lisboa e no Porto era muito curta. Foi quase tudo feito à primeira. Contudo houve uma boa preparação (mesmo que não escrita em papel) do que se pretendia fazer.

2 - Já conhecias o Manuel Gomes Teixeira? Como se deu o contacto? O que pensa ele do filme?
:: Como disse atrás, o Manuel Gomes Teixeira é um amigo de longa data, alguém com grandes conhecimentos na área da fotografia e é uma pessoa com quem eu já aprendi imenso. Para o Manuel (e para mim também) o filme poderia ter um ou outro detalhe melhorado, mas como ambos considerámos que respondia bem ao que era o objetivo considerámos deixar assim, já que não havia tempo para grandes alterações.

3 - Existe aqui uma clara mescla conceptual entre o objeto tratado, a fotografia, e o media escolhido para o tratar, o filme. Como vês essa relação, no sentido, em que a fotografia apresentada, só pode ser aquilo que o filme consegue dar a ver dela?
:: Há uma incapacidade, que se poderia dizer quase que metafísica, de retratar a realidade. Esta é uma discussão presente, cada vez mais, e que é ainda mais presente no cinema documental que, pela sua própria natureza, tenta retratar a realidade. Esta incapacidade advém do acto de que, por mais relatos que tenhamos da realidade, e por mais camadas que se sobreponham dessa realidade, nós nunca a conseguimos captar verdadeiramente por a sua natureza ser sempre mais complexa e mais completa do que as descrições possíveis captadas em cinema. Ora, é nesta aparente dificuldade e nesta "impossibilidade" que reside o enorme espaço de criação do cinema documental, a possibilidade de cada um poder retratar a realidade de forma diferente, quer do ponto de vista do seu conteúdo quer do ponto de vista conceptual.
A filmagem da fotografia cria uma relação de contiguidade entre ambas, uma vez que cria níveis de "teoria da mente". Toda a subjetividade de verdade e mentira presentes numa fotografia aumenta enquanto objeto fílmico, aumentando a complexidade labiríntica do seu significado.

4 - Como se consegue criar uma imagem tão cristalina em vídeo digital, com um contraste preto e branco tão detalhado, diria que se sente uma espécie de quase pureza nesse contraste? É apenas, uma questão de hardware? tratamento por software? ou também daquilo que é captado do real?
:: Eu penso que é um pouco de tudo. Por um lado houve a possibilidade em filmar com lentes de boa qualidade da Canon, todas da série L e, nalguns casos consideradas o state-of-the-art das óticas para fotografia. Por outro lado a Canon 5D Mark II tem sido amplamente reconhecida como um "patamar acima" na qualidade de filmagem em Full HD, quer pela dimensão do seu sensor quer pelos processadores da DIGIC. Por outro lado todos os ficheiros foram primeiramente convertidos para um formato mais "editável" através do MPEG Streamclip, um conversor de formatos de altíssima qualidade, curiosamente freeware. Todo o filme foi editado em 720p e exibido neste formato. Curiosamente a conversão a preto e branco foi através do Adobe Premiere CS 5.5, sem grandes artifícios. Apenas uma conversão direta e uma ligeira correção de luz quando necessário. Por último, os próprios meios de conversão e apresentação da Vimeo também penso que ajudam na qualidade final.

5 - Que tecnologias (hardware e software) utilizaste para criar o filme?
: O filme foi feito com meios muito reduzidos. Foi utilizada uma Canon EOS 5d Mark II, uma lente Canon EF 16-35mm f/2.8L II USM, uma lente Canon EF 70-200mm f/2.8L USM, anéis de extensão para fotografia macro, um tripé Gitzo e um carril para deslocação lateral de construção artesanal. A edição foi feita com o Adobe Premiere CS 5.5 num MacBook Pro. Para a conversão intermédia dos ficheiros foi utilizado um software designado Mpeg Streamclip que converte os ficheiros MOV originais Full HD para ficheiros 720p de menor tamanho (mantendo a qualidade).

6 - Analisando agora à distância, o que terias feito diferente? Nomeadamente no campo do slide rail e da música, mas também outros elementos do filme.
:: Todos os filmes são para mim exercícios de aprendizagem. Mas encerram-se enquanto objetos de dúvida no momento em que são publicados. Neste filme há, de facto, cenas que que o slide rail poderia ter sido utilizado de outro modo e, num plano em concreto, hoje não o incluiria de todo no filme. Mas isto apenas significa que nos próximos projetos isto será pensado de outra forma. Mike Figgis, num livro que li posteriormente, defende um princípio muito interessante. Ele diz que "sempre que estiveres a filmar e sempre que estiveres a movimentar a câmara, pergunta-te porque o fazes. Se não tiveres resposta, então deixa a câmara parada"! E eu penso cada vez mais que isto é uma verdade que me interessa explorar.
A música para mim é fundamental num filme. E quando falo de música refiro-me também aos silêncios, ou aos planos vazios, pretos, sem nada. Cada vez gosto mais que as pessoas parem, que sintam que há momentos em que o filme tem momentos de ausência, pois penso que isto potencía o que vem a seguir, cria cadências, ritmos, etc... A música tem que estar perfeitamente sincronizada com a imagem, não pode ser um mero pano de fundo. Tem que ser mais um personagem do que estamos a ver e, para mim, é fundamental que os tempos da música estejam rigorosamente sincronizados com os tempos dos planos.

7 - Onde é que o filme foi exibido? Como têm sido as reacções?
:: O filme foi exibido em primeiro lugar nas apresentações públicas que o Manuel Gomes Teixeira fez em Lisboa e no Porto a convite do representante da Leica em Portugal. Após essa apresentação o filme foi colocado no Vimeo e neste momento apresenta mais de 64 mil visualizações e mais de 1800 "likes". Curiosamente o Manuel Gomes Teixeira foi contactado inúmeras vezes de países tão díspares como o Uruguai e a Itália para poder fazer workshops de platinotipia.

8 - Porquê lançar a obra em creative-commons?
:: A minha primeira preocupação em colocar o filme em creative-commons prende-se com o respeito pela licença de utilização das músicas envolvidas na realização. A utilização de músicas que se encontram neste domínio de livre utilização pressupõe, em muitos casos, que o produto final deva ficar também no mesmo domínio de utilização. Por outro lado, na realização deste filme, houve claramente a vontade de criar um produto que pudesse ser de livre utilização, para fins didáticos, científicos etc... Como não houve qualquer relação comercial na realização deste filme era um pressuposto que ele iria ficar em creative-commons.


Para fechar esta entrevista, devo dizer que o Luís está neste nomeado para os prémios Sofia, da Academia Portuguesa de Cinema na categoria, Melhor Curta-Metragem Documental, com o belíssimo filme, "A Luz da Terra Antiga" (2012) [trailer].

setembro 24, 2013

Moonbot, publicidade, e comida biológica

A Moonbot Studios, estúdio responsável por obras como "The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore" (2011) e "Numberlys" (2012), traz-nos mais uma belíssima animação 3D. Scarecrow (2013) pretende ser um PSA (public service announcement), mas é aqui suportado por uma grande empresa privada, a Chipotle, o que desencadeou toda uma reação online contra o filme da Moonbot. Embora esta não seja a primeira animação da Chipotle sobre o tema. Para quem anda atento ao universo da animação online, ainda não se deve ter esquecido de "Back to the Start" (2011) com música dos Coldplay, interpretada pelo Willie Nelson.



The Scarecrow apresenta-se como uma animação belíssima, denotando claramente a marca dos criativos da Moonbot, ex-Pixar, tanto na leveza e suavidade dos cenários e personagens, como na forma como conta a história, com muito cuidado e detalhe. Não estando ao nível de Fantastic Flying Books, para anúncio publicitário tem uma qualidade extraordinária. A Moonbot lançou ainda um pequeno making of que vale a pena ver. Mas para não ficar por aqui, o filme utiliza como banda sonora, a música “Pure Imagination”, do filme “Willy Wonka & the Chocolate Factory” (1971), interpretada por Fiona Apple. E ainda... para suportar e fazer durar a ideia foi feito um pequeno jogo para iPad, algo em que a Moonbot se especializou. Sempre que realiza uma curta, lança em conjunto um artefacto interactivo de suporte, ou vice-versa.

The Scarecrow (2013) Moonbot para a Chipotle

No campo do tema, o assunto que aqui é trazido, é novamente o da produção biológica versus produção industrial. O filme mostra o lado negro da industrialização, das condições de produção, do processamento da comida, algo que neste momento já ninguém pode ignorar, e muito mais haveria a explorar sobre tudo isto. Fá-lo de um modo bastante informativo, mas procura atingir sobretudo o lado sentimental da questão, explorando a nossa empatia pela natureza. Ao ponto de alguns críticos acharem que se foi longe demais, e que o filme pode acabar por não conseguir promover o que se pretende, mas antes afastar as pessoas e levá-las a pensar em tornar-se vegetarianas. Por outro lado, outros alertam, que se queremos verdadeiramente mudar as coisas, não é substituindo uma alimentação por outra que vamos lá, precisamos de mudar os nossos comportamentos em termos de alimentação a um nível bem mais profundo que isso.

Outra grande questão que se colocou na rede, logo após o lançamento do filme, foi o facto de que a Chipotle pouco se diferencia das demais marcas que pretende aqui criticar, utilizando a mesma linguagem que estas, apenas subvertendo algumas ideias aqui e ali para assim procurar convencer um nicho específico de público. Ou seja, a sua preocupação não é a natureza, como nos quer fazer crer, mas a faturação. Por isso em poucos dias surgiu na rede um filme, Honest Scarecrow, que realiza uma paródia a The Scarecrow.


Honest Scarecrow (2013) de Funny or Die

Seja como for, a comida processada e alterada geneticamente é uma realidade com que temos de viver nos dias de hoje, e tudo o que pudermos fazer para nos afastar dela, será em nosso proveito. Basta ver a incidência de cancro, com Sobrinho Simões um dos mais respeitados especialistas internacionais na área do cancro, a apontar que nos próximos anos em Portugal, um em cada três portugueses sofrerão de um qualquer tido desta doença! Outro exemplo que lia agora pela manhã, os adoçantes provocam uma perturbação do modo como os nossos corpos reagem ao mundo externo em termos de gratificação. A ilusão do doce, é apenas isso uma ilusão da percepção, mas tal como acontece ao nível de todos as ilusões da percepção, podem acarretar enormes problemas para nós.

Ou seja, quando mudamos algo no universo natural, é sempre impossível prever todas as consequências dessas nossas ações. Na natureza é tudo de tal forma interligado e interdependente, que a mais pequena variação, provoca ondas de transformação onde menos se espera. Por vezes estas ondas são sofríveis, outras vezes são superáveis, mas quase sempre acarretam custos para alguém, que tem de sofrer para dar os primeiros sinais de alerta.

setembro 23, 2013

o rádio-documentário

Numa destas noites de sábado, estava eu deitado na cama, com os auscultadores à procura de uma estação de rádio que me ajudasse a adormecer, e parei na Antena 1... uma senhora falava, muito emocionada, do tempo em que era angolana, antes de Angola ser um país independente... o programa de rádio chamava-se “Começar de Novo”.


Não tenho sido um grande defensor do meio da rádio, passei uma fase em que não percebia já a sua utilidade, questionava-me porque continuava a existir... Hoje, e cada vez mais, acredito na máxima dos Estudos dos Media que diz, "os media não morrem, apenas se transformam". Este programa da RDP é uma prova disso mesmo.

"Começar de Novo", apresenta-se como uma dramatização para rádio dos eventos ocorridos entre 1975 e 1976, com a deportação de milhares de pessoas das colónias portuguesas – Angola, Moçambique, Timor, Cabo Verde - para Portugal. Muitas destas pessoas nunca tinham estado em Portugal, nem sequer portuguesas se consideravam. Na verdade, se os meus pais, e avós tivessem nascido noutro país, provavelmente sentiria o mesmo. Os portugueses não foram para as colónias no século XX, antes começaram a chegar ali no século XVI. É natural que, para muitos dos que se viram envolvidos na confusão destes anos, não se tratou de qualquer regresso à pátria, mas antes, apenas e só, de fugir à guerra, de ser expulso de um país em guerra.


Durante décadas ouvi, em surdina, a palavra Retornados. Hoje, e depois de conhecer este programa de Rádio, fiquei a compreender melhor, o que se passou nesta fase da história de Portugal. Na generalidade, estas pessoas de retornados tinham pouco, eram antes refugiados de guerra, que Portugal, enquanto responsável pelas colónias, necessitou de acolher.


"Começar de Novo" é um programa da RDP criado por Iolanda Ferreira, Inês Lopes Gonçalves, Madalena Balça e Manuela Silva Reis. São 15 26 rádio-documentários, de uma hora cada um, muito emocionantes e informativos. Cada episódio assenta a sua base na entrevista de uma pessoa, que revive os momentos mais marcantes do processo de vir para Portugal, deixando aquilo que possuía numa das ex-colónias. A construção sonora em redor da entrevista, é bastante rica, tanto utilizando música da época, como sons marcantes que acompanham cada um dos relatos. As revelações dos entrevistados são confrontadas com fatos da história, e ainda com historiadores a quem se pede confirmação e reflexão sobre essas revelações, enriquecendo assim tremendamente cada um dos episódios. É um trabalho de excelência que merece ser aplaudido, e discutido.

Todos os 15 26 episódios podem ser ouvidos na página da RDP e mais informação pode ser obtida na página Facebook do programa.
"Mais de meio milhão de pessoas chegou, de repente, a Portugal. Essas pessoas, porém, de uma forma notável,  conseguiram integrar-se na sociedade portuguesa sem conflitos de maior. Do número de retornados recenseados pelo INE em 1981, 61% eram oriundos de Angola, 34% de Moçambique e apenas 5% das restantes colónias."

setembro 19, 2013

Entrevista com Luís Belerique, environment artist de "RiME"

Conheci o Luís Belerique (35) há uns anos, quando lhe pedi para lecionar um workshop de Blender na Universidade do Minho. Na altura soube que era Licenciado em Astronomia, e que o 3d era uma coisa autodidata. Na semana passada descobri que estava agora em Madrid a trabalhar, como environment artist na Tequila Works, num dos jogos mais ambicionados para a PS4, RiME, e por isso não resisti a fazer-lhe algumas perguntas. Aqui ficam, juntamente com as respostas que ele teve a amabilidade de responder.

RiME (TBD) da Tequila Works para PS4

1 – Como é que foste parar à Tequila Works? Há quantos anos estás na empresa, e que funções já desempenhaste? 
:: Vim para Madrid estagiar ao abrigo do programa Inov-Art, e quando acabei o estágio aproveitei para melhorar os meus dotes artísticos, porque, embora antes já tivesse alguma experiência como artista e formador, sentia que o meu trabalho poderia e deveria ser melhor.
Então entrei num curso de escultura digital, para aprender a usar ZBrush, e também estive alguns meses numa academia de arte, para praticar desenho a carvão e assim obter uma fundação artística mais sólida.
Tinha o objectivo de trabalhar como artista 3D em jogos, e eventualmente fiz um teste de arte para Tequila Works, gostaram do que fiz e tenho tido a honra de ser um "hellworker" (o nome carinhoso que os trabalhadores da Tequila Works têm) desde 2011. Trabalho principalmente como "environment artist", modelando e texturizando objectos para colocar nos cenários e também como "world builder", montando esses elementos de modo a fazer os níveis. Mas também tive a oportunidade de trabalhar em coisas diferentes, desde fazer storyboards para cinemáticas até arte conceptual.

2 - Podes explicar-nos o que faz um editor de níveis? E de que forma o teu percurso académico tem servido para o trabalho que desenvolves?
:: A edição de níveis de um jogo envolve vários departamentos, principalmente os designers de jogo, que definem a jogabilidade, layout do mapa, navegação, etc, criando um mapa básico com caixas. Depois, entram os artistas, para revestir com assets gráficos (como paredes, mobiliário, edifícios, plantas, etc)  e assim contextualizar o mapa; se é uma autoestrada, um hospital ou uma refinaria abandonada. E é nessa fase onde entro, quer modelando os vários objectos e módulos gráficos, quer colocando esses elementos no mapa e trabalhando na iluminação dos mapas, já dentro do editor de jogo, que na Tequila é o editor do motor Unreal.
A minha formação académica (Astronomia) normalmente não é muito relevante, porque são trabalhos de naturezas muito diferentes, mas ocasionalmente é útil.
Por exemplo, em Deadlight (2011), usei alguns conceitos básicos de astronomia para unificar a iluminação de alguns níveis, alinhando a posição do Sol de acordo com a hora do dia, pois esses níveis decorriam ao longo de uma noite e um dia, e a iluminação deveria reflectir esse avanço no tempo.

RiME (TBD) da Tequila Works para PS4

3 – Os videojogos são o teu interesse principal, ou são apenas um dos meios no qual tens a oportunidade de desenvolver o teu trabalho?
:: Quando era mais novo, jogava imenso, mas agora não jogo tanto, talvez algum jogo casual no telemóvel ou na tablet. Talvez porque agora tenha menos tempo livre, aproveito para regenerar energias vendo séries, filmes, desenhando ou (tentando) trabalhar em projectos pessoais. Além dos jogos, tenho outros interesses, como ilustração e banda desenhada, onde tive a sorte de trabalhar com vários artistas em projectos muito interessantes e indies, como Murmúrios das Profundezas (2008) e Voyager (2011).

 Murmúrios das Profundezas (2008), banda desenhada do colectivo R'Lyeh Dreams

4 - Quantas pessoas trabalham na empresa? São de que nacionalidades? Conheces mais portugueses aí em Espanha na área de jogos?
:: Trabalham cerca de 20 pessoas, entre trabalhadores que estão no escritório e trabalhadores à distância. A grande maioria são espanhóis, mas também temos pessoas dos EUA, Suécia, Alemanha e Argentina. Cá em Espanha não conheço mais portugueses a trabalhar em jogos.

5 – A Tequila trabalha apenas com financiamentos privados, ou também concorre a financiamentos públicos (ex. do governo espanhol ou da comunidade europeia)?
:: A Tequila é uma empresa autofinanciada, e RiME é um jogo first-party da Sony.

6 – Trabalhaste no primeiro jogo, Deadlight. Apesar deste apresentar um gameplay de plataformas 2d, todo o restante ambiente era notável em termos de arte 3d. Porque é que nessa altura não optaram por um gameplay que aproveitasse todo o investimento realizado na criação dos cenários?
:: Bem, quando entrei na Tequila já estavam no último ano de produção de Deadlight, e portanto já essas decisões já tinham sido tomadas há muito tempo, mas pelo que depreendi, uma das inspirações para Deadlight foram jogos antigos como Flashback (1992) e Another World (1991), na Tequila queriam fazer um jogo recuperando o espírito desses clássicos.
O estilo visual desde o princípio era muito marcado pelo contraste entre as silhuetas negras e o fundo mais claro e detalhado, mas era muito mais simples que o atual, e ao longo do tempo evoluiu para um aspecto mais hiperrealista, para melhor mostrar a "beleza" de um mundo decadente e pós-apocalíptico.

Deadlight (2011) da Tequila Works

7 – Em RiME parece que deixaram para trás o plano, no caso do gameplay, e avançaram para um jogo completo 3d em terceira-pessoa. O que é que isto representa em termos de valores de produção? O estúdio aumentou o seu número de pessoas, ou é a mesma equipa? 
:: Houve algumas mudanças na equipa, reforçámos o departamento de programação, mas no geral a equipa não cresceu muito mais do que era em Deadlight. Por isso, a produção de Rime é mais exigente que Deadlight, e para compensar o facto de construirmos um cenário mais aberto em 3D, escolhemos um estilo visual um pouco mais minimalista (mas não menos interessante), além de querermos fugir ao estilo hiperrealista que é muito comum hoje em dia. Afinal, um dos lemas da Tequila Works é fazer coisas pequenas mas com bom gosto.

Young girl in Silvery Sea (1909) de Joaquin Sorolla

8 – A Kotaku já disse que RiME é o jogo mais bonito até agora revelado para PS4. Mas também muito se tem falado no facto de RiME estar muito colado a ICO. O que é pensas sobre isto, em termos de estética e jogo? 
:: É um motivo de orgulho para a equipa que compararem RiME com ICO (2001) mostra como existem muitos jogadores que anseiam por experiências diferentes e mais evocadoras. Talvez seja por isso que se compare com ICO, o facto de haver poucos jogos com este tipo de ambientação, é um género muito pouco saturado, ao contrário de outros, como os FPS.
Contudo, a inspiração para o aspecto visual de RiME vem dos filmes de Hayao Miyazaki, por exemplo, Porco Rosso (1992), e de artistas como Joaquín Sorolla, muito conhecido pelos seus quadros onde captura a luz e ambiente da costa Mediterrânica espanhola.
Quanto a jogabilidade, quando tornarmos pública mais informação, vão ver que RiME será um jogo diferente, com uma identidade muito própria.


9 – Vais continuar pela Tequila, e por Madrid, ou tens intenções de voltar a Portugal?
:: Vou continuar pela Tequila, o ambiente é fenomenal e ainda parece um sonho trabalhar com colegas tão experientes e profissionais. Além disso, ver a reação a RiME também é muito motivador! Eventualmente gostaria de voltar a Portugal, as saudades da família e de conviver com amigos de longa data são muitas, mas a situação atual do país infelizmente faz com que o regresso seja algo mais longínquo. Pelo menos, Portugal está mesmo aqui ao lado e de vez em quando, dá para matar essas saudades.

Obrigado pelo interesse numa entrevista, sinto-me lisonjeado. Quero acabar agradecendo a Raúl Rubio, chefe da Tequila Works, e José Luis Vaello, director de RiME, pela colaboração dada nas respostas a esta entrevista.

setembro 17, 2013

Porque é inovador, "The Last of Us"?

"The Last of Us" (2013) é uma obra-prima, constituída por brilhantes momentos de cinematografia, jogo, e interatividade, que nos oferecem uma das melhores experiências dramáticas alguma vez apresentadas no formato de videojogo. É provavelmente o videojogo mais bem desenhado até hoje em termos de storytelling, com enorme coerência e unidade criadas através dos três arcos, perfeitamente delineados, de um conjunto de personagens fortes, dimensionais e extremamente empáticos. É tudo isto, mantendo a história encerrada, não permitindo qualquer controlo por parte do jogador, que assume um lugar de testemunha da história, próximo do espectador ou leitor, mas diferentemente acedendo de modo participativo à representação dessa história.

"The Last of Us" (TLOUS), é o natural sucessor de "Uncharted 2" (2009), e supera-o porque em termos dramáticos vai aonde "Uncharted 2" não tinha conseguido ir. Aqui temos aventura, mas temos essencialmente um conjunto de pessoas que vive e experimenta uma situação complexa, cheia de conflitos, dilemas e contradições, sendo capaz de nos fazer sentir por eles, e com eles. Temos aquilo que sempre nos prometeram, a emoção mais pura do drama misturada com a emoção da interatividade.

É uma obra carregada de pequenos detalhes, que criam momentos de deslumbramento deliciosos, que nos tocam e ficam colados ao nosso imaginário, muito depois de termos deixado de jogar. Não vou entrar na discussão dos detalhes, porque o jogo foi já amplamente dissecado pelos restantes media. Deixarei apenas algumas notas breves sobre alguns dos momentos técnicos mais impressionantes abaixo, e centrarei a minha análise na tentativa de enquadrar o videojogo no seio dos media interativos.

A primeira grande questão que nos colocamos é, será que TLOUS vai para além da perfeição? É meramente perfeito, ou existem aqui novas conquistas para o meio dos videojogos? Uma segunda questão passa por discutir o modo como o jogo permite a participação do jogador. De que tipo de interatividade estamos a falar? É este o tipo de storytelling interativo que queremos para os videojogos? Não era suposto os videojogos irem além?

Respondendo à primeira questão, julgo que se torna inevitável relembrar o último grande jogo da PS2, "God of War" (2005). Os discursos em redor de GoW e TLOUS assemelham-se bastante. GoW representou na altura, em termos técnicos, uma superação da tecnologia disponível, assim como TLOUS agora em relação à PS3. GoW foi aclamado, não por inovar o meio dos videojogos, mas por fazer tudo de forma perfeita, principalmente por seleccionar um conjunto de excelentes mecânicas de gameplay do género acção-aventura da época, e integrá-las de forma coesa e harmoniosa. Nesse sentido, lendo a maior parte do que se disse sobre TLOUS, julgo que se está a dizer o mesmo, embora em épocas diferentes, com diferentes tecnologias, e novas mecânicas entretanto desenvolvidas no meio. E se eu concordo com esta caracterização, tanto de GoW como agora de TLOUS, não concordo que TLOUS se tenha ficado pela mera da integração do conhecimento existente. TLOUS vai para além de GoW, vai para além de Uncharted 2, vai para além de Heavy Rain. TLOUS representa o atingir de um novo patamar para o meio dos videojogos. De que forma?

A inovação de TLOUS realiza-se na forma como este potencia a criação de uma experiência interativa profundamente dramática no jogador, algo que até agora só podíamos encontrar no cinema ou literatura. Não falo apenas da história, da forma como nos é contada nas cutscenes, falo do todo. O que impressiona e surpreende em TLOUS, é a forma como os criadores conseguiram pegar em todas as dimensões do meio dos videojogos e as conseguiram unificar para trabalhar para um mesmo fim. A história, o enredo, os personagens, os diálogos, a direção de atores, o design de som, os cenários, a música, a interatividade, o gameplay, a cinematografia, a atmosfera, a IA, a modelação, a animação... Todas estas dimensões foram desenvolvidas segundo altíssimos padrões de qualidade. Mas essencialmente todas estas dimensões foram desenvolvidas com um mesmo objectivo, e integradas para atingir esse mesmo objectivo, contar uma história permitindo ao receptor que participasse na descoberta dessa história. Como é que o videojogo realiza isto?

O principal indicador da qualidade da inovação na experiência advém de um dos principais motores da linguagem dos videojogos, o sentimento de progressão, que aqui trabalha em total sincronia com a progressão dos arcos narrativos da história. Chegamos a um mundo novo, desconhecido, e ainda nem percebemos do que se trata e já nos tiraram o tapete com um prólogo devastador, a nós e ao nosso personagem, Joel. Damos assim início ao jogo a partir do zero, sem grande destreza, sem grande resistência, sem grandes competências, sem grandes armas, e tal como o nosso personagem, vamos ser obrigados a evoluir, a aprender, a crescer. Assim a história contextualiza e cria a motivação para as nossas ações, enquanto a jogabilidade condiciona e guia o nosso processo de aprendizagem e progressão. A história avança, e o nosso personagem vai-se abrindo, amadurecendo na sua relação com o companheiro, a personagem de Ellie. As nossas ações tornam o personagem mais forte, a história em seu redor adensa-se, ele cresce no jogo, e nós crescemos com ele. Ellie assume as nossas interrogações, espantos e expectativas para com Joel, dá-lhes corpo, conduzindo-nos através da dimensão psicológica de Joel. No final Joel é um homem novo, mais confiante, mais capaz, ultrapassou um vale de emoções negativas, e nós com ele. Ellie cresceu, ao tentar socorrer Joel das suas amarguras, passou de menina indefesa a mulher de armas, capaz de enfrentar as amarguras de uma vida cheia de condicionantes, como aquela que se vive nesta realidade alternativa.

Se existe algo em que TLOUS se afirma, e contribui para desenvolvimento do meio, é ao assumir que a progressão da jogabilidade deve ser síncrona com a progressão narrativa. O jogador precisa de sentir que progride nas suas competências de mestria do jogo, e precisa de sentir que estas se traduzem, de alguma forma, na progressão da narrativa. E isto só é possível, e tão efetivo em TLOUS, porque não se trata de uma mera aventura, como em "Uncharted 2" (2009) ou "Tomb Raider" (2013), em que é o enredo (plot) que comanda a progressão narrativa, mas antes é um drama, em que predominam as complexidades dos personagens, sendo estas a conduzir a progressão da narrativa.

Sobre a ausência de interactividade com a história, é verdade que TLOUS ao contrário de "The Walking Dead" (2012) não permite que o jogador participe em decisões narrativas. O jogador é muito mais testemunha do que criador da realidade narrada. Isso não torna TLOUS um videojogo menor. Um videojogo não é obrigado a proporcionar interação com a história, porque isso não o torna mais interativo per se, e certamente não o torna mais capaz de expressar as ideias que pululam na mente dos seus criadores. O medium dos videojogos pode perfeitamente seguir uma via em que proporciona interação apenas ao nível da representação da história, que é o que aqui temos, e temos na maior parte dos videojogos narrativos. Uma história linear, inalterável, a que nós acedemos por via da representação audiovisual, participando e contribuindo para a definição do seu modo de desvelamento, aproximando-nos, dessa forma, mais da mensagem que se quer contar.

Uma das áreas em que podemos apreciar a nossa interactividade a funcionar no desvelamento audiovisual da história, é exactamente no grau de violência experienciado no jogo. A violência gráfica apresentada é bastante elevada, acredito que poderia ser mais contida, apesar de compreender que garante um outro nível de realismo, que consegue criar um nível de imersão superior. Mas esta compreende uma escolha da nossa parte. Existe a opção de passarmos a maior parte dos inimigos sem os confrontar, em modo stealth, e posso dizer que por vezes, nesse modo, a ansiedade consegue ser superior à tensão dos momentos de luta. A violência está nas mãos do jogador, apesar de não poder mudar o rumo da história, o modo como participa nela, pode ser completamente diferente.

Precisamos de nos deixar do purismo da interatividade total, da liberdade total, porque uma história é sempre algo que alguém conta a outro alguém. A essência do ato narrativo, da produção de uma obra de arte, fundamenta-se na expressividade, no facto de alguém comunicar algo a outro. Quando entramos no reino da interatividade narrativa com a história, em que as nossas ações passam a moldar a história contada, começamos a abandonar o modo de recepção, e começamos a passar para o modo de criação. Passamos a querer testar, experimentar diferentes cenários e hipóteses, e analisar os seus resultados, entramos num modo criativo. Sendo este um modo que não só se afasta da ideia de história, como se afasta da ideia de jogo, para entrar no campo do brincar.

Não querendo dizer que é errado, de forma alguma, os videojogos são uma arte com um espectro estético muito alargado. Mas ao criarmos os nossos próprios mundos de história (ex. deambulando entre missões em Grand Theft Auto IV, 2008) ou mesmo universos completos (ex. Minecraft, 2011), tal como o fazíamos em criança no cantinho do nosso quarto com Playmobil ou Lego, passamos de receptores a criadores. Criamos novos sentidos, mas não podemos nunca esquecer, que o fazemos a partir do mundo de experiências que recepcionámos previamente. Por isso, para mim, a essência dos videojogos narrativos assume como principal função, o dar a experienciar novos mundos e ideias, no fundo contar uma história, de alguém para alguém. Experimentar com opções narrativas, agir sobre as motivações da história, decidir o caminho dos dilemas dos personagens, deve ser visto, não como videojogo narrativo, mas como brinquedo narrativo.

Isto não deve ser lido como algo de pejorativo, nem pouco mais ou menos, mas apenas e só como duas atividades distintas, da nossa forma de aceder ao mundo. Por um lado utilizamos as histórias dos outros, para aceder ao mundo exterior, para o compreender, para alargar a nossa compreensão do outro. Por outro lado, criamos histórias, brincando com as ideias, para nos obrigar a verbalizar o que se passa na nossa mente, e assim compreender aquilo de que somos feitos. São dois momentos distintos, receber e criar, e ambos de extrema relevância para os processos de aprendizagem e crescimento do ser.

Sobre as cutscenes. Tal como podemos parar e ler uma carta, parar e ouvir uma conversa num gravador de audio, também podemos parar para ver uma sequência cinemática, sem interação, que tal como o texto ou áudio, nos proporciona mais informação sobre o fundamento da história em questão. Aliás, TLOUS pode ser uma experiência completamente diferente se não pararmos para sorver esses elementos de história que nos vão sendo dados nas várias formas. A experiência foi desenhada como um todo, e é verdadeiramente multimodal, espera-se que o jogador entre no jogo, e o viva, tenha curiosidade em ler as notas, em ouvir os depoimentos, assim como parar para ouvir o que os personagens têm a dizer.

No final, TLOUS é um videojogo do género drama realista, que utiliza o subgénero das realidades alternativas como figura central, para encenar a dramatização da sobrevivência. E fá-lo de um modo sóbrio e maduro, abrindo uma enorme avenida para o futuro do storytelling, e principalmente do drama, nos videojogos.



Notas soltas finais, sobre alguns dos aspectos mais impressionantes: 

- No primeiro contacto com as imagens e vídeos do jogo, podemos sentir que a sua apresentação visual, detalhe, cor e luz, são de uma beleza absolutamente extasiantes. 20 anos depois do desastre, como estaria o planeta... É fácil sentir vontade de querer entrar por aquele universo adentro, em qualquer uma das estações... Mais detalhes no vídeo The Last of Us Development: Ep. 2 "Wasteland Beautiful", e para os interessados na concept art do jogo vejam o EP. 6 "The Beauty of Abandonement".

- O modo como o personagem responde à nossa interação. Poderá parecer até que ele não é 100% reativo, que reage mais lentamente por exemplo que Lara Croft. Mas isso é propositado. Pela simples razão de que visualmente é muito mais realista. Enquanto que Lara Croft parece um boneco de plástico a reagir às nossas interações, Joel, reage como se se tratasse de uma pessoa real, de carne e osso, com peso e inércia. Ainda há um ano tinha referido os problemas da animação de personagens jogáveis e agora a Naughty Dog parece estar a responder a esses problemas.

- O mesmo se pode dizer do modo como a câmara segue atrás do personagem, se coloca no lugar certo para dar indicações. A câmara aqui não está simplesmente ligada ao personagem seguindo-o para todo o lado, ela é autónoma, ela balança-se constantemente, contribuindo para o stress que o próprio jogo quer imprimir. É todo um trabalho de minúcia, cena a cena, jogando com as possibilidades dadas ao jogador, com aquilo que queremos garantir que ele vê, e com a emocionalidade que se quer passar em cada momento do jogo.

- Um outro campo em que TLOUS consegue criar alguns dos momentos de jogo mais sublimes é na Inteligência Artificial dos nossos companheiros (seja a Ellie, Tess, Bill, o irmão de Joel, ou Henry e o seu irmão Sam). Algo que me fez lembrar Yorda em "Ico" (2001), que por acaso foi utilizado como fonte de inspiração. Alguns desses momentos são discutidos no The Last of Us Development: Ep. 4 "Them or Us".

- A complexidade e maturidade narrativa em TLOUS fica em total evidência quando se arrisca a realizar auto-crítica dentro do próprio jogo. Falo de uma cena inicial em que Ellie se passa com a leitura de um livro de banda desenhada porque ele termina abruptamente com a expressão “To be Continued”, e ela diz que detesta “ganchos” narrativos. Algo que naquele momento faz todo o sentido, já que atravessamos uma fase em que somos levados de gancho em gancho, na história.

- Não sendo um jogo de espaço aberto, em muitas situações ao longo do jogo são-nos dadas várias opções de caminhos a seguir, não que tenham impacto na narrativa, mas servem para criar uma maior credibilidade e realismo espacial. Não sentimos tanto o confinamento artificial natural dos jogos lineares, que nos obrigam sempre a seguir um caminho único. Comparando com o excesso de marcas brancas largadas no espaço, para nos guiar em "Tomb Raider" (2013), só podemos concluir que o design do espaço em TLOUS é absolutamente perfeito.

- Um momento de interatividade de excelência acontece logo no início, quando passeamos pela cidade de carro à noite, e controlamos a cena a partir da filha de Joel. É brilhante, o modo como o mundo decorre à nossa volta e nós vamos passando por ele, mantendo a interatividade, decidindo o que ver, como ver e quando ver. É algo que já tínhamos visto em Uncharted, mas continua a impressionar.

- Mais perto do final temos uma outra sequência interativa, que apesar de parecer menos importante, é do melhor que o jogo tem para oferecer. Primeiro o jogo transfere-nos de um personagem jogável para outro, sem pedir licença, nem avisar, numa atitude pós-moderna em que dá por adquirido um jogador evoluído capaz de processar as descontinuidades. Aqui inicia-se a narrativa paralela que depois nos vai atirar para um espaço labiríntico, com visibilidade reduzidíssima pela neve que cai. Nesse ramo da narrativa, sentimos que estamos num espaço aberto, mas somos acossados por todo o lado, apesar de podermos ir em qualquer direção, desejamos que o jogo nos indique o caminho, nos dê alguma pista como parece ter dado até ali, mas sentimos que aqui estamos entregues a nós próprios, sentimos que o jogo nos abandonou. Estamos sós, o nosso personagem está só. À medida que avançamos, os diferentes ramos da narrativa paralela, vão-se aproximando, reunificando no final ambos os personagens jogáveis, fazendo-nos compreender que estes são o centro do nosso jogo, que são eles quem mais importa, e não o enredo.


Atualização 20.12.2013
"The Last of Us" é o jogo do ano no Top 10 Virtual Illusion, publicado na Eurogamer Portugal. Os restantes jogos jogados este ano podem ser vistos aqui.

Declaração de interesses: Joguei uma cópia deste videojogo adquirida pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com os autores e editores.

setembro 16, 2013

The Art of Stop Motion

A web série, OffBook, dedicada às novas tendências artísticas, da PBS, publicou recentemente um interessantíssimo episódio sobre a Arte do Stop Motion. Ao longo dos 8 minutos podemos reviver uma arte "antiga" criada pelo meio do cinema, que nunca deixou propriamente de ser moderna. Hoje, mais que nunca, o stop motion é um sinal de evidência de valor estético.


O facto de ser feito à mão, de requerer do ser humano uma dedicação excepcional, continua a provocar um enorme fascínio nas pessoas. Porque na verdade, o que procuramos na arte, não é o objecto em si, mas uma relação com o seu criador. E o facto deste ter investido tanto tempo na sua produção, e não ter sido uma mera máquina a processar o objecto final, cria essa sensação de proximidade, de compreensão, de ligação directa àquilo que a obra tem para nos dizer.

setembro 13, 2013

Em defesa das Guildas

Este texto surge no seguimento da leitura de The Craftsman” de Richard Sennett. As Guildas surgem na Idade Média alta (século XI) e vão durar até à Revolução Industrial. Em Portugal ficaram conhecidas como Mesteirais ou Mesteres (de mestres). As Guildas eram organizações que ligavam os criadores de cada arte ou profissão, por um juramento de entreajuda e de defesa mútua. Uma espécie de confraria, associação profissional, ou aquilo que hoje podemos designar de Ordem (Ordem dos Arquitetos, etc.).

The Sampling Officials (1662) de Rembrandt. Retrato dos oficiais de uma guilda de desenho de roupas de Amsterdão.

As guildas tinham vários objectivos, mas essencialmente garantiam a estabilidade da arte. Para isso definiam regras para a relação entre Mestre e Aprendiz, tal como a duração da aprendizagem, o seu custo, NDAs, e as provas a prestar no final. As provas finais consistiam na criação da chamada Obra-Prima, ou seja no melhor que estes conseguiam desenvolver após os 5 anos de aprendizagem, e que era depois avaliado pelos oficiais da guilda. Esta avaliação tinha efeitos para o aprendiz, assim como para o mestre. Esta relação de proximidade, estabelecida ao longo do tempo, permitia que o conhecimento acumulado de modo tácito pelo mestre, pelo saber-fazer, fosse passado através do exemplo e da imitação. Por outro lado, as guildas impediam que quem não lhes pertencesse pudesse praticar a arte. Deste modo garantiam que fazia sentido investir anos na relação com um Mestre, para depois conseguir o seu próprio meio de subsistência.

Carta de Ligação entre Mestre e Aprendiz, regulamentada pela guilda “The Goldsmiths’ Company”, criada em 1300 e ainda existente hoje em UK.

A duração da aprendizagem
A média de 5 anos instituída desde a Idade Média, responde à questão que recentemente foi levantada por vários estudos (Ericsson, 1993), e que tem sido amplamente citado por vários autores, como Gladwell, Colvin, e Sennett. Ou seja, para se poder pertencer a uma guilda, precisávamos de passar 5 anos no nível de Aprendiz, já estávamos a falar das 10 mil horas. No final destes anos, o Aprendiz passava à condição de Assalariado, podendo exigir dinheiro ao dia, pelo seu trabalho, para tal tinha de partir em busca de trabalho por outras cidades. Precisaria de realizar trabalho consecutivo durante mais 3 anos, dando provas no terreno, da sua arte, que eram avaliadas pelos oficiais da guilda, para poder então assumir o lugar de Mestre, ou seja abrir o seu próprio estabelecimento, e passar a ensinar outros.

O nascimento da universidade europeia
Ao mesmo tempo que surgem as Guildas, vão também surgir as Universidades, que mais não eram do que Guildas Escolásticas (Bolonha 1088, Coimbra 1288). As guildas escolásticas tinham como objectivo, alargar o pensamento crítico. Baseavam-se na análise conceptual em profundidade de ideias, construindo-se numa base de racionalidade dialéctica. O seu fundamento ficou conhecido como o Trivium - gramática, retórica, e lógica – ao qual se juntaria mais tarde o Quadrivium - a aritmética, a geometria, a música, e a astronomia – perfazendo assim as 7 artes base da Universidade Medieval.

As Sete Artes da Universidade Medieval (Ilustração do manuscrito Hortus Deliciarum de Herrad von Landsberg, do século XII)

Como guilda, a Universidade adotaria a mesma duração das demais. O primeiro grau de Bacharelo seria atribuído após provas públicas, ao fim de 5 anos, e permitia praticar cada uma das áreas escolásticas – Teologia, Direito e Medicina. Para se poder tornar num mestre, e ensinar na Universidade, era preciso fazer mais 3 anos, e assim obter o grau de Mestre.

O declínio das guildas
As guildas entraram em declínio em 1700, com o surgimento da revolução industrial. O conhecimento detido pelos artesãos foi traduzido para processos mecânicos, que eram depois realizados por máquinas de modo repetitivo e contínuo. Assim deixava de ser necessário a um ser humano, investir 5 anos a aprender uma arte, para além de que se podia produzir muito maiores quantidades.

Nos anos 1970 o mesmo aconteceria com o surgimento da computação. O conhecimento começava a ser traduzido para sinais digitais, com grandes capacidades de computação, o que permitia que muitas artes que ainda não tinham sido afectadas pela mecânica, fossem afectadas pela computação.

Atualmente atravessamos uma nova fase de revolução, com a robótica, automação em conjunto com a IA, a atingir níveis de processamento e de precisão muito superiores ao que tínhamos no passado. (ex: e-David)

Porque deveríamos preservar o espírito das Guildas?

1 - Porque, apesar da mecânica, da computação e da robótica, continuamos a precisar de ter pessoas altamente qualificadas, com grandes níveis de competência. A diferença entre uma sociedade desenvolvida, e uma subdesenvolvida, está exactamente na quantidade de competências detidas pela sua população.
A Alemanha foi o único país que não aboliu as guildas com o advento da Revolução Industrial. Talvez não seja por acaso que a Alemanha seja o país que manteve até hoje o sistema escolar mais entrosado com o sistema produtivo. Já aqui falei amplamente dos seus ganhos, nomeadamente da qualidade dos seus produtos, reconhecida mundialmente. Ainda recentemente estive a trabalhar em Moçambique, e pude verificar in loco, que o maior problema da sociedade, é a falta de competências. Por isso continua a ser tão verdade, o ditado, “não dês peixe, ensina antes a pescar”.

2 - Porque apesar de termos sido capazes de proceder ao registo de muito conhecimento tácito, continua a faltar-nos muito daquilo que está implícito nesse conhecimento. Começámos por registar o conhecimento sob linguagem escrita, e vimos quão difícil era fazê-lo (ver as 4 receitas de 4 chefs, em Sennett). É verdade que o surgimento da linguagem audiovisual no final do século XIX, resolveu muitos dos problemas da linguagem escrita. E não menos verdade, que o surgimento da linguagem de interactividade resolveu muitos dos problemas da linguagem audiovisual. Mas nada disto pode substituir a relação Humano-Humano.

3 - Porque nas profissões criadas depois do desaparecimento das guildas, como por exemplo quase todas as Indústrias Criativas baseadas em Tecnologias de Comunicação (Design, Animação, Programação, etc.) as pessoas têm sido exploradas e desprezadas pela sociedade. A ausência de uma forma de comungar os mesmos valores, seja Guilda, Ordem, Aliança, Confraria, conduz o sujeito individual à condição de descartável da sociedade (ver os problemas atuais dos profissionais de criação de VFX). É assim necessário, não apenas algum tipo de instituição que regule o trabalho, mas mais do que isso que regule a aprendizagem, os fundamentos base, assim como os modos de acesso à profissão.

Claro que existem problemas. Uma guilda, tal como um sindicato, procura além do melhor para a profissão, o melhor para os seus praticantes, e nem sempre isso coincide com o melhor para a sociedade como um todo. Basta relembrar o episódio dos Ludditas que destruíam durante a noite as máquinas da revolução industrial, porque queriam impedir o avanço tecnológico e a modernização dos hábitos. E em Portugal, quantos se têm levantado contra os poderes das várias Ordens existentes, acusando-as essencialmente de corporativismo.

Mas não é por acaso que chamamos pontos de Revolução aos vários momentos de mudança na nossa história, porque as transformações são dolorosas. Aquilo que está neste momento a acontecer com a Robótica, que já rouba empregos à mão de obra mais barata do globo, é uma revolução que já começou. A Organização Mundial do Trabalho, fala numa escassez de 200 milhões de empregos. Esta crise que Portugal atravessa, não é uma crise criada por políticos portugueses (apenas), é antes fruto dos impactos de mudanças mundiais, que atingem primeiro, e mais violentamente, os menos bem preparados.

Mas esta revolução, tal como as outras estabilizará, e dará lugar a novos momentos de abundância. E cada um de nós encontrará novas formas de se tornar útil, e necessário. Neste sentido, defendo as guildas, como uma necessidade, mas guildas capazes de evoluírem, e de se adaptarem à evolução do conhecimento humano.