março 22, 2013

tecnologias da cor no cinema

A cada ano que passa a arqueologia das tecnologias apresenta mais evidências do facto de que raramente existe apenas uma data ou um sujeito a ser apresentado como o criador original. Quase tudo, é inventado de tecnologia em tecnologia, melhoramento em melhoramento. Neste sentido não me canso de citar Kevin Kelly dizer, que não existem invenções originais, o criadas do nada, antes são fruto "de uma inevitabilidade tecnológica". O caso do cinema é já um enorme clássico neste sentido como já tive oportunidade de discutir no texto Nascimento da Tecnologia do Cinema. O que trago agora diz respeito à criação do primeiro filme a cores.


Até agora acreditava-se que o primeiro processo de colorização, aparte os filmes pintados à mão, teria sido apresentado em Inglaterra em 1906. O Kinemacolor era apenas um processo de colorização a duas cores. O primeiro processo a três cores, como hoje o conhecemos, o Technicolor teria surgido apenas em 1932. Foram precisos 110 anos para descobrirmos que antes destes dois processos, existiu um outro, a três cores patenteado em 1899 - BP6202 Means for Taking and Exhibition  Cinematographic Pictures -, por Frederick Marshall Lee e Edward Raymond Turner. Mas Lee e Turner teriam de esperar até 1901 para que Alfred Darling fizesse a primeira câmara com o processo criado por estes, e 1902 para que Darling criasse o primeiro projector. Os primeiros filmes seriam rodados entre 1902 e 1903, e em 1903 Ed Turner morria. Com ele acaba o projeto. George Albert Smith é encarregue de continuar o seu desenvolvimento, mas acaba por se dedicar ao desenvolvimento de uma técnica mais simples, que viria a dar origem ao conhecido Kinemacolor.

Two Clowns (1906) a duas cores, em Kinemacolor

Em 1937 estes filmes foram entregues ao Museu de Ciência em Inglaterra, mas foi preciso esperar até 2012 para podermos descobrir toda esta história. A razão pela qual foram precisos esperar 110 anos é ridiculamente simples. No início do cinema não existiam ainda standards de película. Desse modo a película utilizada por Lee e Turner tinha 38mm, enquanto o standard das máquinas que existiam em 1937 e depois disso se baseavam todas nos 35mm. Deste modo as fitas acabaram por ficar nas caixas até 2012.

O primeiro processo de colorização cinematográfico. Processo a três cores. Criado em 1901.

Todo o processo de construção da cor a partir de três cores está explicado no excelente vídeo realizado pelo National Museum, que podem ver aqui abaixo, e no qual se pode também ver os vários excertos dos filmes a cores encontrados.

março 21, 2013

"Hitchcock" e Alma Reville

Hitchcock (2012) não foi muito bem recebido pela crítica essencialmente porque todos esperavam o clássico Biopic com dados sobre os feitos e as visões artísticas de Hitchcock. Mas o filme centra-se num momento muito específico da sua carreira, e pior do que isso discute mais a sua humanidade do que a sua arte. Talvez por isso mesmo eu o tenha adorado.

"Aliás como se pode ver pelo poster, ao fim de décadas, podemos ver uma imagem icónica de Hitch em que este não é apenas uma silhueta do homem isolado, o único criativo."

O filme é fascinante porque traz ao conhecimento público uma realidade que já se ia discutindo em termos académicos, a força e a importância de Alma, a sua primeira e única mulher durante 54 anos. Muito do que se sabe foi trazido para o conhecimento público através de um livro da filha de ambos, Pat Hitchcock O'Connell, Alma Hitchcock: The Woman Behind the Man (2004). Na realidade o filme funciona como a verdadeira encarnação do ditado "por detrás de um grande homem está sempre uma grande mulher". Mas é mais do que isso porque Alma não foi apenas um suporte emocional, Alma esteve verdadeiramente presente como colaboradora criativa no trabalho de Hitchcock. Julgo que isso incomodará mais as pessoas, mas como ela diz a uma certa altura no filme, eles conheceram-se no mundo do cinema, e partilhavam a mesma paixão pela arte. Aliás só isso explica que Psycho (1960) tenha sido levado por diante, produzido com as economias do casal.

Alfred Hitchcock e Alma Reville

Muito interessante verificar que a carreira de Alma em termos de registo apareça apenas durante a fase inglesa de Hitchcock. Porque na verdade Hitch e Alma funcionavam como uma verdadeira dupla criativa, ele na visão geral, na escolha das grandes ideias e realização, e ela no detalhe, na afinação de toda a ideia do guião à montagem. Impressiona conhecer os promenores em que ela foi fundamental na criação do cinema de Hitchcock, porque não bastam grandes ideias, a arte é feita nos detalhes. Por acaso Alma foi a sua mulher, mas podia ter sido outra pessoa qualquer, porque no fundo a arte cinematográfica é uma arte profundamente colectiva.

Alfred Hitchcock e Alma Reville, na fase inicial em Inglaterra

Só é pena que Alma na sua condição de mulher do grande artista, tenha escolhido resignar-se à sua sombra. Embora perceba, e como ela diz a uma determinada altura, "não estou preocupada que todos saibam, só me interessa que quem me importa saiba". Na verdade ela poderá não ter escolhido, porque o apelo de um homem misterioso para os mass media era e continua a ser muito maior, do que o de uma dupla marido e mulher. Isso fica para a história, para a análise do passado, e é o que este filme faz muito bem. Aliás como se pode ver pelo poster, ao fim de décadas, podemos ver uma imagem icónica de Hitch em que este não é apenas uma silhueta do homem isolado, o único criativo.

Helen Mirren como Alma Reville e Anthony Hopkins como Alfred Hitchcock

Quanto à arte de Hitchcock, o filme acaba por se focar sobre o seu poder de controlo dos produtores. Perspicaz e muito inteligente não apenas na manipulação das audiências mas de toda a máquina financeira e censória que circundava o cinema. Hitchcock foi verdadeiramente brilhante não apenas na sua capacidade criativa de escolher e realizar os melhores filmes, mas também na sua capacidade para liderar e levar até ao final os seus projetos. Como disse uma vez Orson Welles, fazer cinema, é passar 98% à procura de dinheiro para o fazer, e 2% do tempo a fazê-lo. Hitch fez-me lembrar Orson Welles, assim como Steve Jobs. Em termos obsessivos e com a uma enorme capacidade para fazer com que todos o seguissem, desde os financiadores às massas.

março 20, 2013

"The Cave", inteligente mas pouco emocional

The Cave (2013) é um jogo de design inteligente que apela muito mais à componente intelectual do que à emocional. Passamos a maior parte do tempo a resolver puzzles e enigmas e demasiado pouco tempo a apreciar os aspectos sociais e psicológicos dos nossos personagens.


The Cave é um jogo de género, encaixa no modelo de aventura gráfica, no qual todos os objetos têm um propósito, e em que a combinação de um ou mais objetos nos pode conduzir à satisfação final. Mas perde neste campo por ter pouco para oferecer como história. Temos bastantes personagens (7), podendo jogar com apenas três de cada vez, mas ficamos a saber muito pouco sobre eles, apesar de colecionarmos itens ao longo do jogo que dizem respeito exatamente às suas narrativas. Faltou claramente uma capacidade para interligar todos os elementos e dar vida dramática e emocional aos seus propósitos. A caverna é aqui o narrador e quem conduz, de forma muito pouco ortodoxa diga-se, mas em linha completa com o espírito de Ron Gilbert e Tim Schaffer e os seus jogos anteriores. Aliás é este condimento de uma caverna sem escrúpulos morais que serve para atenuar o nosso sentimento de vazio emocional.

Em termos de design, o jogo é brilhante, no sentido em que temos sete personagens, e podem funcionar todas com todas num sentido de interdependência e colaboratividade. Ao longo do jogo dei por mim imensas vezes a questionar-me sobre a quantidade de interligações intrincadas que existem entre cada uma e que permitem que o jogo funcione. O que só por si deverá ter sido a maior dor de cabeça do desenvolvimento de todo o jogo. Aliás muito provavelmente à custa de desenvolver algo assim complexo para um pequeno jogo, terá acabado por se ficar por isso mesmo, por um virtuosismo de design, deixando a experiência de jogo um pouco ao abandono. Como só podemos jogar com 3 personagens de cada vez, passar por todos os níveis implica realizar o jogo mais do que uma vez, já que alguns dos níveis estão reservados a alguns dos personagens. A razão para isso está no facto de cada um estar dotado de determinadas capacidades, e que só essas permitem atravessar determinados níveis. Fica aqui o mapa de todos os níveis.

Mapa dos níveis de The Cave (2013). A laranja estão os níveis que podem ser visitados apenas se na posse de cada um dos 7 personagens. (Imagem de Games Radar)

Finalmente a arte de todo o jogo é adorável, e em certa medida acaba por em conjunto com o design compensar a nossa experiência. Os personagens são belíssimos, individualizados e autênticos, e os cenários fazem-nos desejar por mais e mais. Apesar do esforço de resolução de cada puzzle, a atmosfera estética criada mantén-nos interessados pelo que se deverá suceder a seguir e até ao final. Cada área é mais detalhada e trabalhada que a anterior. Por outro lado a atmosfera pesada própria de uma caverna entra constantemente em choque com o humor amoral da própria caverna o que contribui para a nossa gratificação e imersividade. Não sendo um jogo de excelência, apresenta enormes atributos técnicos.







Declaração de interesses: Joguei uma cópia deste videojogo adquirida pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com os autores e editores.

março 19, 2013

OffBook: "The Rise of Web Comics"

Esta semana a OffBook dedica o seu episódio quinzenal aos webcomics, uma forma de expressão recente potenciada pela internet. É um dos movimentos de nicho cultural e estético mais relevantes no meio web no que toca ao desenvolvimento de novas linguagens gráficas e interactivas, por isso tenho pena que o documentário se tenha ficado por três ou quatro exemplos apenas, e que tenha relegado para segundo plano tanto a componente interactiva como de animação.


Julgo que os editores quiseram claramente realizar uma separação entre os Web Comics, os Motion Comics e os Interactive Comics, mas no final acabamos por ficar com a ideia de que os webcomics, não são mais do que comics tradicionais em formato digital. Do meu ponto de vista isto é errado, porque web comics deveria servir para juntar tudo num mesmo patamar, já que um web comic pode ser qualquer um dos outros formatos. Além de que me parece que o meio se torna muito mais rico, e diria mesmo autónomo face à linguagem dos comics impressos.



O documentário acaba por se focar mais sobre a liberdade de expressão que o suporte web permite face ao suporte papel, à possibilidade de criação de nichos delimitados por gostos estranhos e "fora da caixa". Nesse sentido é muito interessante, e vale a pena investir os sete minutos. Por outro lado ficam de fora projectos excepcionais que mereciam destaque no sentido de serem impulsionados, no sentido de nos trazerem mais do que a mera aplicação em distintos suportes, a geração de novos modos de expressão e comunicação. Deixo-vos um trabalho nessa linha que vale a pena conhecerem depois de verem o documentário: The Random Adventures of Brandon Generator (2012).

Coreografia e velocidade na primeira-pessoa

Insane Office Escape 2 (2013) de Ilya Naishuller é simplesmente uma das melhores curtas de ação realizadas para a rede. Temos essencialmente muita velocidade, muitos VFX, muito parkour, e tudo filmado em câmara subjectiva, ou seja primeira-pessoa. Só um aviso, o filme é extremamente violento, por isso não aconselhado a menores, nem a pessoas mais sensíveis.


Como se pode ver pelo título este é o segundo filme realizado por esta equipa, com o mesmo tema e a mesma forma. O primeiro Insane Office Escape (2011) surgiu há dois anos e conseguiu mais de 2.5 milhões de visualizações no YouTube, acredito que este vá superar, porque a qualidade técnica subiu muitíssimo. Não é apenas a velocidade, mas os efeitos são dignos de qualquer filme de Hollywood. O que mais impressiona em tudo isto é mesmo a vertigem da velocidade imprimida pela montagem inteligente e pela força da câmara subjetiva. Insane Office Escape 2 estimula sensações perceptivas a que só estamos habituados quando andamos nas atrações dos parques de diversões, tal é a intensidade imprimida. Além da componente perceptiva da forma, impressionou-me muito toda a componente coreográfica do filme, é de elevada qualidade no que toca a criação de realismo nas cenas de ação, funcionando ainda numa sincronização perfeita com os efeitos especiais. Ficamos agora à espera do making of.

A narrativa é básica, mas interessante, porque não temos violência pela violência apenas, existe um propósito concreto, um objetivo, e temos até um fechamento. Neste filme Ilya Naishuller conseguiu juntar o melhor da forma da ação gráfica com ideias da ficção-científica. Diria que temos aqui o exemplo perfeito da mistura entre as linguagens cinematográfica e dos videojogos.

Insane Office Escape 2 (2013) de Ilya Naishuller 

Pelo que percebi ambas as curtas funcionam como videoclips de músicas da banda russa Biting Elbows. E realmente revendo o primeiro filme, parece mais videoclip que curta, já o segundo filme é bastante mais autónomo, principalmente porque o filme não prescinde de toda a sonorização de efeitos sonoros.

março 18, 2013

"Out of Nowhere", da escola Bezalel

Out of Nowhere (2012) é o filme de graduação de Maayan Tzuriel e Isca Mayo e é mais uma animação excepcional a surgir da escola Bezalel, Israel. Fiquei impressionado com a iluminação, mas mais ainda com o controlo narrativo e a criação de atmosfera emocional.




No campo visual a animação é soberba, e totalmente dentro da linha daquilo que a Bezalel nos tem habituado, que passa por importar para o visual 3d os tons pastel, pouco regulares neste tipo de tecnologia. A lógica pastel não é muito vista essencialmente porque está no oposto do 3d em termos de brilho difuso, se existe coisa em que o 3d se singulariza é na sua capacidade de atribuir brilho plastificado. Ora seguir uma corrente estética que está no oposto dessa capacidade torna-se de algum modo anti-natura. Mas é exactamente esse o caminho que a Bezalel tem seguido nos vários projectos que vêm sendo apresentados, servindo isso para singularizar as suas criações de todas as outras.

Mas este filme não se fica pelo trabalho estético, temos aqui ao contrário de outros trabalhos que eram mais abstractos no campo narrativo, um caminho muito bem definido, uma personagem com um sentir, e uma progressão e crescimento desse mesmo personagem. Mais ainda é que toda a atmosfera é construída em função deste personagem, o seu sentir espalha-se pela imagem e som. Toda a forma nomeadamente a planificação, evolui para dar sentimento à progressão do sentir do nosso personagem, De certo modo Tzuriel e Mayo conseguiram, neste pequeno filme, projectar completamente as emoções do seu personagem sobre toda a palete formal do filme.

Finalmente no campo da história é brilhante e extremamente atual. Mas sobre isso deixo apenas a ideia subjacente ao filme que os autores escreveram,
How do we face an existence in which one is no longer relevant? How can we continue to live in an illusion?
Two seemingly opposite characters meet in a peculiar situation. When their similarities are revealed, the protagonist is forced to reexamine his life and choose between living a life of sterile existence or stepping outside of his world to discover new horizons.

Out of Nowhere (2012) de Maayan Tzuriel e Isca Mayo

março 15, 2013

"Proteus", viagens irrepetíveis

Proteus (2013) é uma experiência interactiva de grande qualidade estética. Criado por duas pessoas, Ed Key na programação e arte e David Kanaga na música. Apesar de desenhado a 8bits apenas, rapidamente esquecemos a baixa resolução e nos deixamos escapar e imergir totalmente pelo mundo de Proteus. O mais interessante acaba por surgir a partir do seu lado procedimental, ou seja do facto de não se tratar de um mundo pré-desenhado, mas antes de um algoritmo. O mundo e a paisagem sonora em que entramos são geradas a cada re-início de jogo, e nesse sentido, cada jogo é sempre uma experiência única e irrepetível.


Podemos avançar a ideia de que Proteus nao é um jogo por falta de objectivos claros, mas isso é aquilo que se percebe apenas à superfície, porque na verdade Proteus apresenta um início e um fim, assim como uma progressão perfeitamente delineada. A chegada ao final, é no fundo o objectivo último, e depende da nossa acção sobre o mundo para acontecer. Cada experiência completa leva-nos a atravessar as quatro estações, fazendo-nos sentir o frio e o calor de cada uma. A experiência é visualmente muito conseguida principalmente na selecção de cores, é aquilo que nos faz esquecer os 8 bits, de tão harmoniosas e em sintonia com o espírito de cada estação. No entanto acredito que a componente musical acaba por ser aquilo que contribui com maior singularidade para o jogo. Os nossos movimentos, aproximações e distanciamentos de determinados elementos e locais cria faixas musicais próprias, que podemos fazer variar com a nossa acção no espaço. Por vezes damos por nós a parar, ou a voltar atrás, apenas para poder apreciar o som que se produziu à nossa volta.






Em termos das quatro estacões, posso dizer que não me entusiasmou particularmente, aqui mais por defeito profissional. Passei vários anos a estudar o desenvolvimento emocional em ambientes virtuais, e o que posso dizer, é que isto apesar de ser limitado em termos de palete emocional, o problema não é propriamente dos designers, mas antes da opção tomada para o desenho de Proteus. Como tenho discutido ao longo do meu trabalho e venho avançando nessas conclusões com doutorandos, a estimulação de emoções a partir de ambientes é bastante limitada. Temos aqui as quatro estações, sentimos que percorremos uma palete diversa de emoções, mas se pararmos para pensar sobre o que se passou, não conseguimos ir além da contemplação, bem-estar, tranquilidade, surpresa e curiosidade. Tudo o resto, tudo aquilo que verdadeiramente nos marca, as emoções combinadas, estruturadas e complexas não estão ao alcance de um mero ambiente. Para chegarmos a este tipo de emoções precisamos de personagens, precisamos de empatia. Sem estes não temos como nos ligar ao artefacto, e senti-lo, porque este é no fundo um artefacto desprovido de vida.

Sei bem que o jogo tem o poder de nos encantar, e de nos fazer escapar do nosso mundo durante os 45 minutos que por lá passamos, mas terminados, ficamos sem saber porquê, nem o que fica. Comparando com Dear Esther que também era mais ambiente do que personagens, tínhamos uma narrativa que nos conduzia, e tínhamos personagens, tínhamos inclusive um narrador que nos guiava, a quem nos "colávamos". Aliás o mesmo se passava em Myst, outro jogo que nos fazia deambular por um mundo deserto, apesar dos puzzles, a força estava nos dois irmãos e o seu pai, na narrativa que se desvelava a cada nova etapa. Em Proteus, cada etapa corresponde a um novo universo visual e sonoro, e ficamos verdadeiramente desejosos de continuar a experienciá-lo, mas no final, é só isso mesmo, nada mais nos resta.

Diria que Proteus funcionaria muito bem como instalação, uma peça de arte digital num museu, com a qual pudéssemos interagir e escapar do espaço circundante, saborear novas planícies, novos horizontes sonoros. É uma obra experimental que se apodera de uma das melhores características dos ambientes tridimensionais, a interacção através da navegação em conjunto com a música adaptativa.



Declaração de interesses: Joguei uma cópia deste videojogo adquirida pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com os autores e editores.

março 14, 2013

Hobbit, tão pequeno e tão longo

The Hobbit: An Unexpected Journey (2012) é longo, muito longo. Como se não chegasse, não consegui extrair absolutamente nada de novo face à trilogia The Lord of the Rings (2001, 2002, 2003) que vimos antes. Mas o que me impressionou verdadeiramente foi o final do filme, quando descobri que estas três horas eram apenas as primeiras de três partes!!! Peço desculpa aos fãs de Tolkien, mas está aqui a acontecer algo inacreditável. Como é que três volumes de 500 páginas cada um, dão 3 filmes de 3 horas, e depois um pequeno livro de 300 páginas dá sozinho, mais 3 filmes de 3 horas?!



Primeiro, é um desrespeito pela obra do autor. Não se espera que eles vão além do que Tolkien deixou escrito, o objectivo de uma adaptação deste género, seguindo o que foi feito antes, não é pôr-se a especular. Mas o desrespeito maior surge porque como dizia alguém na IMDB, isto é uma atitude puramente mercenária. Pegar neste livro e esticá-lo para três filmes, tem apenas e só um objectivo, criar máquinas de fazer dinheiro.

 




Apesar de tudo, o que mais importa para mim em The Hobbit é a arte visual. Sinto uma sensação estranha ao ver este filme, no qual se mistura claramente a arte da pintura e ilustração com o cinema. Ver Hobbit é como ver uma tela em movimento. Não é animação, nem é filme de imagem real clássica, é um novo meio de expressão. Os mundos e personagens criados em CGI juntos com os atores reais e as paisagens da Nova Zelândia, criam uma espécie de novo universo mágico, mas plausível e crível. Como se tívessemos um meio de expressão intermédio, entre o formato do Livro e do Filme. Um formato que permite representar toda a abstração contida num texto quando esta é impossível de representar em imagens da realidade visível. Não é que tenhamos aqui nada de muito novo, já vimos isto antes, não só na trilogia, como em Avatar entre outros, contudo aqui reforcei esta noção do novo meio de expressão de forma ainda mais clara. Acredito que em breve teremos de criar novos prémios para reconhecer este trabalho, nomeadamente na criação de universos e interpretação de personagens virtuais.

março 13, 2013

a Felicidade segundo o budista Matthieu Ricard

Matthieu Ricard tornou-se mundialmente conhecido depois de ter participado em vários testes com MRI (ressonância magnética) na Universidade de Wisconsin–Madison e se ter verificado que a sua serenidade ou capacidade para controlar as emoções estava completamente fora dos parâmetros normais. A partir daqui Ricard tornou-se conhecido como o "homem mais feliz do mundo". Isto é apenas um detalhe sobre a sua pessoa, saber mais sobre o seu passado, as suas origens e o que tem feito é muito mais impressionante e é isso que se pode descobrir no seu livro Happiness (2007).


Matthieu Ricard é hoje um monge budista e vive na zona dos Himalaias - entre a Índia, Nepal, Tibete e Butão - há mais de 40 anos. Ricard nasce num berço dedicado à arte e à filosofia, filho do reconhecido filósofo francês Jean-Francois Revel e da pintora Yahne Le Toumelin, o que lhe daria acesso às mais altas esferas intelectuais em França. Realiza toda uma primeira fase da sua vida dedicada à ciência terminando com um doutoramento em Genética Molecular no Instituto Pasteur em 1972. Terminado o doutoramento, larga tudo o que tem e que conseguiu fazer, e vai viver para o Nepal para se dedicar totalmente aos ensinamentos do budismo.


Claro que o facto de ter tantos contactos no ocidente, lhe permitiu ao longo de todos estes 40 anos realizar a ponte através de seminários, palestras e livros. Um dos mais interessantes livros que escreveu, foi feito a meias com o seu pai, The Monk and the Philosopher (1997). Um livro escrito a partir de uma dezena de conversas ocorridas entre ambos em Katmandu aquando duma visita do seu pai. No livro ambos discutem, e colocam em confronto as posições ocidente e oriente, a propósito da essência do ser humano. Outros livros foram escritos, entretanto mais testes foram realizados por alguns dos mais renomeados cientistas e autoridades no campo da psicologia cognitiva. E é aqui que chegamos ao cerne do livro.

Este livro fala-nos da Felicidade, mas não é um mero livro de auto-ajuda. Aqui procura-se entender o que é a felicidade, de que é feita, o que a constrói e o que a destrói. Para muitos este é um tópico banal sem interesse, e Ricard passa boa parte do livro a explicar a importância do tópico. Não vou detalhar aqui a importância, porque falei já disto no texto Acções para a Felicidade. Aliás como diz Ricard na sua TED,
"As a Frenchman, I must say that there are a lot of French intellectuals that think happiness is not at all interesting. I just wrote an essay on happiness, and there was a controversy. And someone wrote an article saying, "Don't impose on us the dirty work of happiness." "We don't care about being happy. We need to live with passion. We like the ups and downs of life. We like our suffering because it's so good when it ceases for a while."
Este texto demonstra muito claramente o entendimento que grande parte de nós tem sobre o que é a Felicidade, os altos e baixos, os momentos de sofrimento que depois de passarem conduzem ao que acreditamos serem os momentos de Felicidade. E o interessante é ver Ricard explicar, que esta ideia, está errada, porque não define felicidade, define apenas o prazer. Como explica Ricard, o prazer não é felicidade, no sentido em que este é limitado no tempo e se refere a um objeto ou lugar. O prazer consome-se. Eu adoro gelado, mas se tentar comer cinco Magnum de chocolate branco, o prazer irá transformar-se em nojo.

Neste sentido Ricard procura trabalhar a Felicidade como algo para além das meras sensações e emoções de prazer. Ricard aborda a felicidade como um estado interior de serenidade e preenchimento, um estado capaz de se ocupar de todas as emoções e sensações que possamos sentir, e nesse sentido capaz de controlar os nossos altos e baixos, mantendo-nos num estado de maior constância de bem-estar. Isto parece algo absurdo, porque na verdade a nossa interacção constante com o mundo impossibilita esta constância. Por outro lado o que Ricard defende, e essa é a essência deste seu livro, é que assim como podemos treinar 10 mil horas para ser um grande violinista, também podemos treinar para controlar as nossas emoções. Ao contrário do que acreditávamos há 20 anos atrás, o cérebro  não é uma matéria fixa e imutável, é antes maleável, podemos adaptar-nos e transformar as nossas capacidades. Na sua TED Ricard dá um óptimo exemplo desta busca interior, a propósito da visita do Dalai Lama a Portugal
"The Dalai Lama was once in Portugal, and there was a lot of construction going on everywhere. So one evening, he said, "Look, you are doing all these things, but isn't it nice, also, to build something within?" And he said, "Unless that -- even you get high-tech flat on the 100th floor of a super-modern and comfortable building, if you are deeply unhappy within, all you are going to look for is a window from which to jump." So now, at the opposite, we know a lot of people who, in very difficult circumstances, manage to keep serenity, inner strength, inner freedom, confidence."
Ao longo do livro Ricard ajuda-nos a construir uma nova ideia do Eu e do Meu, através do definição do Ego. Ajuda-nos a compreender que a essência do Ego como o construímos, está numa constante busca por conseguir tudo o que deseja a qualquer custo. A ideia do prazer, advém desta constante satisfação do nosso Ego. Nesse sentido deixamos de ser o Eu para estarmos constantemente centrados no Meu. Deixo dois belíssimos exemplos dados no livro, na página 84,
"A friend of mine had come to Nepal from Hong Kong to attend some teachings. Thousands of people had gathered and were jam-packed on the floor of our monastery's vast courtyard. As my friend was moving back and forth trying to seat herself a bit more comfortably, cross-legged on her cushion, someone punched her in the back. As she told me later: "I felt irritated for a whole hour. How could someone attending Buddhist teachings behave in such a rude and uncompassionate way toward me, who had come so far to receive these teachings! But after a while I realized that although my irritation had been long-lasting, the actual physical pain had faded quickly and had soon become imperceptible. The only thing that continued to hurt was my wounded ego! I had one minute of body pain and fifty-nine minutes of ego pain!" When we see the self as a mere concept and not as an autonomous entity that we must protect and satisfy at all costs, we react in completely different ways."
"Here is another example to illustrate our attachment to the idea of "mine." You are looking at a beautiful porcelain vase in a shopwindow when a clumsy salesman knocks it over. "What a shame! Such a lovely vase!" you sigh, and continue calmly on your way. On the other hand, if you had just bought that vase and had placed it proudly on the mantle, only to see it fall and smash to smithereens, you would cry out in horror, "My vase is broken!" and be deeply affected by the accident. The sole difference is the label "my" that you had stuck to the vase. This erroneous sense of a real and independent self is of course based on egocentricity, which persuades us that our own
fate is of greater value than that of others."
O que precisamos é de ser capazes de desligar do objecto externo, e olhar directamente para dentro, para o sentimento que nos acossa, para assim o controlar e evitar que este se auto-perpetue sobre a nossa consciência, contaminando todo o nosso ser e eliminado o bem-estar. E é a esta capacidade de auto-controlo cognitivo que Ricard refere como o aspecto que o treino pela meditação nos pode garantir. Ou seja,
"So the whole point of that is not, sort of, to make, like, a circus thing of showing exceptional beings who can jump, or whatever. It's more to say that mind training matters. That this is not just a luxury. This is not a supplementary vitamin for the soul. This is something that's going to determine the quality of every instant of our lives."
No fundo é um livro que nos dá a visão budista do mundo, dada a necessidade de estabelecer a ponte com o pensamento ocidental, fá-lo pela discussão da felicidade, um tema que se tornou bem visto na academia recentemente. Mas em certa medida é um livro mais de introdução ao budismo, do que de discussão sobre a ciência da felicidade. Para quem quiser mergulhar um pouco mais na discussão da Felicidade, pode ver os links no meu post anterior sobre o assunto, quem quiser avançar um pouco mais no budismo aconselho vivamente a leitura de O Livro Tibetano da Vida e da Morte (1992) de Sogyal Rinpoche. Entretanto se quiserem um acesso rápido ao conteúdo do livro, vejam a TED talk de Ricard de 2004, porque é um bom resumo do que podem encontrar no livro.

março 12, 2013

a partir de um ponto de vista

Trago o videoclip, My Other Love, vencedor do concurso internacional organizado pelo produtor Numonics para o lançamento do seu mais recente album Stream The (Instru)Mentalist. O filme foi realizado por Pedro Zimann, estudante de Design Gráfico no IPCA, e contou com a participação de António Soares, Nuno Ferreira e ainda da Dalila Fernandes, uma ex-aluna minha que já tinha dado provas de enorme maturidade na criação de videoclips no âmbito da licenciatura.


O concurso surgiu como forma de promover online o trabalho de Numonics, um produtor da Florida. Inicialmente foram disponibilizadas as músicas online, e cada concorrente pôde escolher a faixa com quis trabalhar, com a condição de o fazer no formato de "short story". O vencedor levava além da promoção online, 500 dólares. Não sendo muito, e ficando barato para o produtor, ajuda a ambos os lados, se estiverem todos em início de carreira. O trabalho de Zimann foi o escolhido de entre as várias dezenas submetidas. A música escolhida, era curta, dois minutos apenas, facilitando a produção que assim se quedou por um total de seis dias apenas. Um dia para storyboards, dois dias para filmagens, três dias de edição e pós-produção. Sobre o concurso em si Pedro Zimann diz-nos que faz
"muita pesquisa sobre este tipo de concursos, tento escolher projectos de dimensão pequena, tipo este, porque ainda estou a começar nesta área e quero ganhar alguma bagagem técnica digamos."
Não podia estar mais de acordo com esta atitude, pró-activa e criativa. Aliás em total sintonia com tudo aquilo que escrevi aqui no blog há pouco tempo sobre Universidade e Emprego, nas Áreas Criativas. A participação em concursos é algo que recomendo constantemente aos alunos no sentido de darem a conhecer o seu trabalho e criarem uma identidade reconhecida no meio. Porque participar em concursos contribui não só para o reconhecimento do trabalho pelos pares, como contribui para a fixação de objectivos e deadlines, o que resulta na manutenção de uma actividade criativa mais constante.



Em termos estéticos este videoclip apresenta várias dimensões de excelência. Na montagem destaca-se por conseguir sincronizar de forma quase simbiótica com o ritmo musical, o que contribui para que em momento algum se pense que o filme apenas adorna a música. Depois a luz difusa e o preto e branco contribuem para a criação de uma atmosfera que serve para adensar o mistério sobre o que nos vai sendo apresentado. A cereja visual surge a partir do ponto de vista, o acesso ao mundo é limitado a um plano único ao longo de todo o filme. Desta forma limita-se a visão do espectador obrigando-o a imaginar constantemente o que está fora de campo. O lado sugestivo desta forma de filmar mantém o espectador focado na tentativa de desvendar o que se passa, e ao mesmo tempo interessado pelo que vai acontecer a seguir. Tudo em conjunto - montagem, luz, planificação e música - contribuiu para a criação de um projecto audiovisual forte, capaz de nos manter colados até ao último frame. Sobre o plano único, Zimann diz-nos que
"O meu intuito era contar uma história através de um único ângulo, uma câmara, um ponto de vista. É um exercício bastante complicado manter um ritmo narrativo usando somente uma visão, foi um bom teste, penso que correu bem."
Julgo que sim, que correu muito bem, o resultado é uma experiência interessantíssima que quando acaba nos deixa, literalmente, a desejar por mais.