“Os Buddenbrook” é antes de mais a primeira obra de Mann, publicada com apenas 25 anos, mas iniciada com 22 anos, o que só por si é verdadeiramente impressionante. Custa a perceber como é que alguém, tão novo, consegue o registo de elevação acima identificado, mas também como é que consegue o grau de amadurecimento para chegar às análises sociais e psicológicas apresentadas. Lobo Antunes estava claramente errado, quando criticou o prémio Leya 2014 dado a "O Meu Irmão" de Afonso Reis Cabral, com apenas 24 anos. São idades tenras para se criar com fôlego, mais ainda em literatura, mas as excepções existem, e Mann foi único. Não é por acaso, que apesar do Nobel (1929) lhe ter sido atribuído já depois de publicado “A Montanha Mágica” (1924), que o texto da Academia Sueca faça menção explícita ao seu primeiro livro, dizendo que o prémio lhe era atribuído, “principalmente pelo seu grande romance “Os Buddenbrook”, que conquistou crescente reconhecimento como um das obras clássicas da literatura contemporânea”.
"E o resto do dia obedecia a um ritmo livre e despreocupado, seguindo o rumo de uma vida maravilhosa dedicada ao ócio e ao bem-estar, sem sobressaltos nem preocupações: de manhã, enquanto lá em cima a banda executava o seu programa matinal, Hanno permanecia à beira-mar, deitado ou sentado aos pés da cadeira de praia, entretido, no seu jeito sonhador e distraído, com a areia fina e pura, os olhos, sem esforço ou dificuldade, vagueando e perdendo-se na imensidão verde e azul, os ouvidos envoltos num doce rumor que se desprendia, com liberdade e desembaraço, das ondas infinitas, uma brisa poderosa, fresca, selvagem, portadora de um perfume divino, apta a aturdir, a inebriar suave e subtilmente os sentidos, produzindo um mudo e aprazível esbatimento da noção do tempo, do espaço e de todas as fronteiras…" (p.528)“Os Buddenbrook” é como poderão saber das sinopses, um épico familiar, seguindo uma influência de final do século XIX, à semelhança do nosso “Os Maias” (1888). Mann por sua vez, mais do que concentrar-se sobre as relações de amor, concentra-se especificamente sobre as relações que unem a família — avô, pai, irmãos, e laços de casamento — analisando a sucessão geracional, começando pelo auge do bem estar e terminando na perda de tudo. A obra é muitas vezes definida simplesmente pela história de decadência da família Buddenbrook, uma decadência que ultrapassou as fronteiras da literatura, e serve hoje áreas como a história e a economia, para identificar o que ficou conhecido por “efeito Buddenbrook”, ou seja, o facto de que a riqueza acumulada através dos negócios tende a declinar ao longo de um período de três gerações.
Mann procura alguma neutralidade no modo como apresenta a família e sociedade que a envolve, não tomando partido pela religião ou política, deixando no entanto emergir aquilo que em sua opinião marca as nossas vidas, opondo o materialismo ao espiritualismo, nomeadamente a oposição entre a vida burguesa (Thomas, pai e avô) e a vida de artista (o irmão Christian, e o filho Hanno). A primeira com as suas regras e rituais que obrigam a casamentos combinados em função do bem de toda a família, ao respeito das normas e complacência com o funcionar da sociedade. A segunda que a nada obedece, a ninguém segue, e tudo rechaça, baseada na frugalidade material, buscando apenas a imaterialidade das ideias. O momento que marca esta clivagem acontece quando Hanno toma contato com o diário da família, uma espécie de jornal-diário das várias gerações de Buddenbrook, e resolve deixar ali o seu testemunho, é algo tão simples mas tão poderosamente significante que nos arrepia e obriga à reflexão e aprofundamento do choque entre estas duas visões do mundo.
Dito tudo isto, pergunto, como se pergunta a responsável pela belíssima tradução no posfácio, Gilda Lopes Encarnação, porquê ler “Os Buddenbrook” mais de 100 anos depois? A realidade retratada é-nos distante, em nacionalidade e mesmo mecanismos sociais ou negociais. Julgo que a resposta está exatamente na forma, na beleza da obra, no brilhantismo do seu criador, na recompensa pela boa progressão da narrativa, e que não poucas vezes nos surpreende, mesmo sendo tão regrada. Mas essencialmente porque ler duas páginas de Mann, mesmo que pouco avance na história, é como insuflar ar em estado puro, faz-nos sentir vivos, ajuda-nos a compreender a força e relevância da arte literária, verdadeiramente estruturante para o modo como pensamos e nos edificamos enquanto seres conscientes.