"Oxenfree" oferece uma história interativa extremamente intrincada e ao mesmo tempo fluída, gerando assim uma das experiências de narrativas interativas mais ricas dos últimos tempos. Não que a história seja excepcional, encaixa dentro dos parâmetros médios do género Young Adult, mas a sua estrutura não-linear e o design de interação que nos permite o acesso a essa estrutura, excedem muito daquilo que já conhecíamos.
“Oxenfree” conta a sua história por meio de diálogos, escolhas de diálogo, puzzles visuais e sonoros, tudo ambientado num sidescroller 2.5D. A principal referência no campo da história vai para “Poltergeist” (1982 & remake 2015), com a televisão a ser substituída pelo rádio, e a família por um grupo de adolescentes tipicamente americanos à procura de afirmação. Como jogo, a referência mais evidente vai para “Superbrothers: Sword & Sworcery EP” (2011), pelo tom do desenho de ambiente de jogo, já do lado da narrativa interativa a inspiração advém via “The Walking Dead” (2012), como referem os próprios criadores.
Com uma navegação que vai pouco além das cenas que vemos completas em cada momento no ecrã, e um mundo semi-aberto reduzido, tudo se foca na trama, nomeadamente na sua comunicação por meio de diálogos entre cada um dos 5 personagens e é aí que o brilho do jogo se acentua. O número de linhas de diálogo é verdadeiramente estonteante, sendo que podemos intervir por meio de quase todas elas, o que acaba tornando ainda mais alucinante imaginar toda a gestão de narrativa que se operou no design do jogo. Mas não é apenas a quantidade, é também o fluxo, ou seja a velocidade a que vão sendo debitadas, cambiando entre personagens, sendo dado tempos-limite ao jogador para fazer as escolhas, o que exige do jogador uma atenção constante aos diálogos e a quem está a falar em cada momento, para não se perder, mas que por isso mesmo acaba por funcionar como o foco principal de jogo, conseguindo praticamente secundarizar as componentes mais típicas de jogo (ex. puzzles).
Tudo isto funciona muito bem graças ao modo como foi concebida a interação com o mundo de jogo que segue de perto “Superbrothers: Sword & Sworcery EP” em termos de side-scrolling, e que permite a manutenção de todos os personagens em cena ao mesmo tempo e assim garante um acesso constante e imediato ao jogador a todos os diálogos. Por vezes sente-se que seria bom poder estar mais próximo dos personagens para os poder “sentir” mais, no entanto, apesar de apresentados à distância, a sua riqueza visual é tanta que conseguem exprimir linguagem corporal, claro que fortemente sugerida pelas vozes dos atores que são também muito boas. Por sua vez a atribuição das escolhas de diálogos a botões individuais facilita imenso todo o processo, já que automatização da ação física serve na redução da carga cognitiva, permitindo a concentração total no diálogo e nas escolhas.
Para fechar, é um jogo desenhado com o verdadeiro espírito narrativo, com uma enorme vontade de colocar o jogador no centro da história, oferecendo para tal um acesso direto por via dos diálogos. Toda a arte e jogo trabalham para garantir que este acesso funciona sem obstáculos nem atrasos, e o jogador acaba por tudo esquecer para passar a viver entre as conversas de todos aqueles personagens, querendo saber sempre cada vez mais o que lhes vai na cabeça em cada momento. A riqueza dos diálogos e o enorme número de acessos aos mesmos, garante um grau de rejogabilidade bem acima do expectável.
Videojogo criado pela Night School Studio, totalmente desenvolvido em Unity.
setembro 11, 2016
"Grandes Esperanças" (1861)
O que mais impressiona é a humanidade dos personagens, apesar de embrulhado por um aparentemente banal enredo de aventuras e amores impossíveis, à medida que vamos entrando no livro vamos percebendo como todo o detalhe tem fundamento, tudo se desenha em várias camadas de sentido, e os personagens que pareciam apenas motivar a progressão da história são bem mais do que isso, são veículos ideológicos que Dickens usa para desconstruir o mundo e dar a compreender a realidade.
Se dúvidas houvesse, bastaria dizer que não há “happy ending” para dar conta da presença de marca autoral, da vontade de expressar um sentir sobre a áspera realidade. Dickens usa a sua arte de contar histórias para traçar uma análise crítica de vários temas, da família à amizade, da orfandade ao amor, acentuando fortemente as emoções de culpa e vergonha, sem nunca explorar o sentimentalismo junto do leitor. Por outro lado, todo o cerne do texto está permeado pela questão financeira, base do contraste de classes sociais, dando amplo espaço a Dickens para digladiar ideologias e tecer a crítica ao modelo capitalista que progredia com a Revolução Industrial nesse tempo.
Interessante como seguindo esta base relacional tripartida — família, amor e dinheiro — Dickens constrói o fundamento do título, "Grandes Esperanças", consubstanciando-o nas três vertentes, não deixando de garantir o sentido particular em cada uma dessas dimensões mas forçando-as numa confluência interpretativa no sentido de elevar as "esperanças" a motor da volição humana, sustentando assim a sua ideia fundamental da defesa do progressismo por oposição ao conservadorismo.
Para primeiro livro de Dickens, fiquei bem impressionado com a sua escrita elaborada e poética, mas ao mesmo tempo com a enorme facilidade com que simplifica o complexo. Os personagens surgem como objetos narrativos simples, muito empáticos, verdadeiros livros abertos, mas ao mesmo dotados de enormes complexidades motivadas pela constante contradição humana, que os leitores reconhecem em sede do seu íntimo e raramente tornado público.
Edição: Penguin/Companhia de Letras, trad. Paulo Henriques Britto, 2012
Se dúvidas houvesse, bastaria dizer que não há “happy ending” para dar conta da presença de marca autoral, da vontade de expressar um sentir sobre a áspera realidade. Dickens usa a sua arte de contar histórias para traçar uma análise crítica de vários temas, da família à amizade, da orfandade ao amor, acentuando fortemente as emoções de culpa e vergonha, sem nunca explorar o sentimentalismo junto do leitor. Por outro lado, todo o cerne do texto está permeado pela questão financeira, base do contraste de classes sociais, dando amplo espaço a Dickens para digladiar ideologias e tecer a crítica ao modelo capitalista que progredia com a Revolução Industrial nesse tempo.
Interessante como seguindo esta base relacional tripartida — família, amor e dinheiro — Dickens constrói o fundamento do título, "Grandes Esperanças", consubstanciando-o nas três vertentes, não deixando de garantir o sentido particular em cada uma dessas dimensões mas forçando-as numa confluência interpretativa no sentido de elevar as "esperanças" a motor da volição humana, sustentando assim a sua ideia fundamental da defesa do progressismo por oposição ao conservadorismo.
A decadência da estagnação, uma das metáforas mais elaboradas do livro.
Para primeiro livro de Dickens, fiquei bem impressionado com a sua escrita elaborada e poética, mas ao mesmo tempo com a enorme facilidade com que simplifica o complexo. Os personagens surgem como objetos narrativos simples, muito empáticos, verdadeiros livros abertos, mas ao mesmo dotados de enormes complexidades motivadas pela constante contradição humana, que os leitores reconhecem em sede do seu íntimo e raramente tornado público.
“De fato, o frescor de sua beleza se havia desvanecido, mas uma indescritível majestade e um indescritível encantamento permaneciam. Esses seus atributos eu já vira antes; o que eu jamais vira era aquela luz suavizada e melancólica nos olhos outrora orgulhosos; o que jamais sentira antes era o toque simpático da mão outrora insensível.”Assim, apesar de se poder ler como jornada de amadurecimento e relato de aventuras, não se oferece a tal com suficiente atratividade, já que Dickens não explora o fantasioso, mantendo as peripécias algo contidas, como que delimitadas pela sua sede de realismo. A leitura obriga a alguma predisposição à reflexividade, correndo o risco de se passar ao lado do essencial e que garantiu ao texto o lugar de clássico incontornável.
Edição: Penguin/Companhia de Letras, trad. Paulo Henriques Britto, 2012
setembro 09, 2016
Mundo Novo das Memórias
Li "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley nos anos 1990, tendo perdurado em mim fortes memórias que me permitiam recordar a obra como maior, pela sua qualidade e visão. No entanto, depois de ter voltado ao seu universo, por ter visto o filme homónimo de Burt Brinckerhoff (1980), e ter relido alguns capítulos do livro, concluo que as minhas memórias eram melhores que a realidade.
"Admirável Mundo Novo" é um livro interessante que se sustenta no valor histórico, tendo surgido antes de "Mil novecentos e oitenta e quatro" (1949) de George Orwell, ainda que depois de "Nós" (1921) de Yevgeny Zamyatin. A escrita não é muito atrativa e o enredo é um tanto ingénuo, segurando o nosso interesse mais pelo modo como vai apresentando a vida do "mundo novo" e contrapondo os seus valores aos nossos.
Por outro lado, a abordagem pela sátira acaba por ser contraproducente, no sentido em que evidencia fortemente uma das suas maiores fragilidades, os personagens. Na ânsia por colar os mesmos a figuras políticas da altura, e de lhes tecer críticas, acaba por criar personagens sem identidade, volúveis e inverossímeis, com os quais temos dificuldade em nos relacionar. Se não surge a densidade de um Winston ("Mil novecentos e oitenta e quatro") com quem empatizar, os restantes parecem apenas fazer parte do cenário, nunca funcionando como efetivo contrapoder.
Diria que o melhor, e aquilo que continua a fazer o texto sobreviver ao tempo, além do aspeto histórico, assenta na ideia, na sua vanguarda especulativa, nomeadamente na clarividência em relação ao futuro da ciência e dos media, o que tem mantido a obra como boa referência de estudo e reflexão académica.
O filme, apesar de datado, funciona bastante bem em termos de fidelidade de adaptação, mais porque sendo telefilme permitiu-se uma extensão de três horas, garantido assim tempo para o desenrolar dos detalhes enunciados no livro. Por outro lado, o facto de ser um telefilme, torna o acesso ao mesmo mais difícil, tendo apenas conseguido ver o mesmo por meio de uma velha cópia VHS.
Livro de 1932 e filme de 1980
Filmes de síntese capazes de incorporar o espetador na trama durante o seu visionamento, levando-o a sentir como se fosse verdadeiramente o personagem na tela.
Diria que o melhor, e aquilo que continua a fazer o texto sobreviver ao tempo, além do aspeto histórico, assenta na ideia, na sua vanguarda especulativa, nomeadamente na clarividência em relação ao futuro da ciência e dos media, o que tem mantido a obra como boa referência de estudo e reflexão académica.
O filme, apesar de datado, funciona bastante bem em termos de fidelidade de adaptação, mais porque sendo telefilme permitiu-se uma extensão de três horas, garantido assim tempo para o desenrolar dos detalhes enunciados no livro. Por outro lado, o facto de ser um telefilme, torna o acesso ao mesmo mais difícil, tendo apenas conseguido ver o mesmo por meio de uma velha cópia VHS.
setembro 07, 2016
“Por Quem os Sinos Dobram” (1940)
“Por Quem os Sinos Dobram” (1940) é um bom livro, nada de admirar sendo o seu criador um dos mais famosos escritores de sempre, mas é apenas isso. É um livro que faz tudo muito bem, diria mesmo na perfeição, mas que nunca surpreende, nunca verdadeiramente chega debaixo da nossa pele. “Por Quem os Sinos Dobram” retrata uma missão miliciana durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939).
Ao ler o texto, considerado um dos maiores de Hemingway, tendo mesmo recebido o voto favorável e unânime de todo o comité do Pulitzer, não lhe tendo sido atribuído apenas por birra do presidente do mesmo por o considerar ofensivo (!), senti um conjunto de sensações que reconheci das minhas experiências com o cinema clássico de Hollywood (anos 1940-50). São obras que usam os meios (imagens ou palavras) de uma forma irrepreensível, capazes de contar histórias com a perfeição de relógios suíços, mas que por mais realistas que se apresentem, surgem camufladas por uma enorme capa de artificialidade que impede a crueza do real de verdadeiramente emergir. Os autores têm o cuidado de nos manter suficientemente à distância, para que nos sintamos em porto seguro, assistindo ao drama de bem perto mas sem perigo de mazelas.
Por outro lado, entrando no estilo da escrita de Hemingway, do texto muito directo, seco, sem enfatização, apesar de ser suficientemente forte para me envolver no ambiente, para me fazer sentir perto dos personagens e da ação, raramente me aproxima das pessoas, do humano. Sinto a falta da dramatização, os personagens não vivem sem esta, que é quem os ergue de entre o enredo, bem sei que é ela que os torna mais heróis, vilões, arquétipos, e assim menos naturais, mas isto é ficção, é realidade ficcionada, não é relato noticioso do real. Compreende-se o estilo, a influência da veia jornalística de Hemingway, compreende-se também que tenha gerado sensação na altura, pela diferença, mas hoje sinto-o ultrapassado.
É estranho, bem sei, dizer primeiro que soa a artificial e logo a seguir acusar de demasiado natural, mas é exatamente por isso que o naturalismo sucumbiu ao realismo. Ao querermos ser naturais de forma tão completa na produção artística, perdemos a capacidade mais relevante da arte que assenta na enfatização do detalhe que constrói o real.
Ao ler o texto, considerado um dos maiores de Hemingway, tendo mesmo recebido o voto favorável e unânime de todo o comité do Pulitzer, não lhe tendo sido atribuído apenas por birra do presidente do mesmo por o considerar ofensivo (!), senti um conjunto de sensações que reconheci das minhas experiências com o cinema clássico de Hollywood (anos 1940-50). São obras que usam os meios (imagens ou palavras) de uma forma irrepreensível, capazes de contar histórias com a perfeição de relógios suíços, mas que por mais realistas que se apresentem, surgem camufladas por uma enorme capa de artificialidade que impede a crueza do real de verdadeiramente emergir. Os autores têm o cuidado de nos manter suficientemente à distância, para que nos sintamos em porto seguro, assistindo ao drama de bem perto mas sem perigo de mazelas.
Por outro lado, entrando no estilo da escrita de Hemingway, do texto muito directo, seco, sem enfatização, apesar de ser suficientemente forte para me envolver no ambiente, para me fazer sentir perto dos personagens e da ação, raramente me aproxima das pessoas, do humano. Sinto a falta da dramatização, os personagens não vivem sem esta, que é quem os ergue de entre o enredo, bem sei que é ela que os torna mais heróis, vilões, arquétipos, e assim menos naturais, mas isto é ficção, é realidade ficcionada, não é relato noticioso do real. Compreende-se o estilo, a influência da veia jornalística de Hemingway, compreende-se também que tenha gerado sensação na altura, pela diferença, mas hoje sinto-o ultrapassado.
É estranho, bem sei, dizer primeiro que soa a artificial e logo a seguir acusar de demasiado natural, mas é exatamente por isso que o naturalismo sucumbiu ao realismo. Ao querermos ser naturais de forma tão completa na produção artística, perdemos a capacidade mais relevante da arte que assenta na enfatização do detalhe que constrói o real.
setembro 06, 2016
“Firewatch" (2016), o anti-catártico
“Firewatch” não é o jogo que tinha idealizado, mas talvez por isso mesmo me tenha surpreendido tão intensamente. “Firewatch” demonstra, como tem vindo a demonstrar uma boa parte dos videojogos narrativos recentes, que o meio dos videojogos tem ainda muito caminho a desbravar no campo do storytelling, e que vai bem, muito bem até.
Comecei por adorar o prelúdio em que se mistura ficção interativa com walking simulator, ou seja em que nos é dado a conhecer o personagem, nomeadamente a construção de uma relação, e sua vida no passado, por meio de diálogos textuais, intercalados com o presente e a nossa chegada à floresta. É algo simples, minimal, mas muito bem ritmado, com uma abordagem e perspectiva imensamente adultas, ao nível do melhor que se faz em literatura. Acredito que exatamente por ser tão conseguido, me tenha gerado tanta surpresa o que veio depois a ser o jogo em si, com uma mudança de tom tão distinta, mas que acaba justificando-se plenamente, e que espero conseguir explicar neste texto sem detalhar a história.
Assim, em face de uma perda dramática apresentada no prelúdio, somos apresentados a um ambiente de solidão, no meio de uma vasta floresta, mas dominado por um tom humorístico, por vezes negro, num sentido de clara fuga à realidade. Na verdade é a isso mesmo que o jogo almeja, ou melhor, é essa uma das razões que usa para explicar porque existem pessoas capazes de se desligarem das suas vidas por 3 meses, e isolarem-se no meio de uma floresta no alto de uma torre, sem cortinas, televisão, telemóveis, nem mesmo chuveiros.
Nós somos Henry, e passaremos 3 meses isolados numa torre de vigia de incêndios, apenas em contacto via rádio portátil, ou walkie-talkie, com Delilah, a colega da torre mais próxima. Ao longo desse tempo acabaremos por conhecer melhor ambos, e construir entre estes uma relação. Tal como no prelúdio, a gestão narrativa é muito conseguida, fazendo-nos acreditar na existência de ambos os personagens, desejando-lhes o melhor.
Neste sentido “Firewatch” acaba abrindo mais uma forma de explorar os walking simulators, ou seja, se “Gone Home” (2013) contava a sua história por meio do ambiente, “Firewatch” conta a sua história por meio de diálogos em off, que apesar de se aproximar do narrador em off, muito bem explorado em “The Stanley Parable” (2014), funciona diferentemente porque permite acesso a todo um manancial de técnicas da ficção interativa para nos induzir um sentido participatório mais intenso, e é aqui que acaba por residir a essência de todo jogo.
Ou seja, tendo em conta toda a história, percebemos que o objetivo de ir para o meio da floresta por tantos meses é a solidão, mas é também uma forma de lidar com um drama interno, acreditando que por meio da introspeção se realizará uma espécie de cura. Contudo sabemos bem que a cura não surge do isolamento, isso é uma ilusão que a depressão desenvolve em nós, já que o isolamento só afunda ainda mais, ainda que seja requerido em certos momentos para lidar connosco mesmos. Neste sentido, “Firewatch” praticamente obriga-nos a lidar com o outro, ainda que apenas por via rádio, mas obriga-nos a despertar para o real que nos circunda, impedindo a entrada no mundo da divagação e alheamento. E por isso o diálogo em off, e o tom menos sério do mesmo, e até mesmo a ação detetivesca e conspiratória, assumem tão grande relevância, sendo subtilmente tão nevrálgicos.
Admito que inicialmente não percebi isto. Inicialmente não gostei de me obrigarem ao diálogo, menos ainda da conspiração à lá "área 51", por estarem a brincar com os “meus” sentimentos, eu pretendia explorar toda aquela natureza bela, senti-la no isolamento do som da natureza, mas o jogo impediu-me, como quem impede o bêbedo de aceder a mais álcool. Poderia parecer uma ultra-interpretação esta leitura que faço, mas se olharmos ao twist narrativo final, para quem já jogou, se pensar no que se passou com Ned e porquê, verá como funciona em total contraponto com a aquilo que se permite a Henry, para evitar que Henry se transforme em Ned. Este twist, apresentado em muitas análises como anti-catártico, é-o porque a isso se objetiva em termos emocionais, ou seja, busca-se a construção de um conhecimento sobre o personagem que implica reflexão e não o mero murro emocional, aristotélico, diria mesmo que “Firewatch” consegue desta forma ser um dos jogos mais brechtianos que tivemos até agora em termos emocionais.
Em síntese, “Firewatch” apresenta uma das melhores histórias jogáveis dos últimos anos, não pelo fantástico que é a sua apresentação, mas antes o contrário, pela forma sublime com faz passar a essência da sua mensagem, fugindo totalmente ao in-your-face hollywoodiano, obrigando-nos a pensar não apenas no que é dito e mostrado, mas por tudo o que isso nos obriga a sentir e refletir, construindo à posteriori um sentido do todo.
Comecei por adorar o prelúdio em que se mistura ficção interativa com walking simulator, ou seja em que nos é dado a conhecer o personagem, nomeadamente a construção de uma relação, e sua vida no passado, por meio de diálogos textuais, intercalados com o presente e a nossa chegada à floresta. É algo simples, minimal, mas muito bem ritmado, com uma abordagem e perspectiva imensamente adultas, ao nível do melhor que se faz em literatura. Acredito que exatamente por ser tão conseguido, me tenha gerado tanta surpresa o que veio depois a ser o jogo em si, com uma mudança de tom tão distinta, mas que acaba justificando-se plenamente, e que espero conseguir explicar neste texto sem detalhar a história.
Assim, em face de uma perda dramática apresentada no prelúdio, somos apresentados a um ambiente de solidão, no meio de uma vasta floresta, mas dominado por um tom humorístico, por vezes negro, num sentido de clara fuga à realidade. Na verdade é a isso mesmo que o jogo almeja, ou melhor, é essa uma das razões que usa para explicar porque existem pessoas capazes de se desligarem das suas vidas por 3 meses, e isolarem-se no meio de uma floresta no alto de uma torre, sem cortinas, televisão, telemóveis, nem mesmo chuveiros.
Nós somos Henry, e passaremos 3 meses isolados numa torre de vigia de incêndios, apenas em contacto via rádio portátil, ou walkie-talkie, com Delilah, a colega da torre mais próxima. Ao longo desse tempo acabaremos por conhecer melhor ambos, e construir entre estes uma relação. Tal como no prelúdio, a gestão narrativa é muito conseguida, fazendo-nos acreditar na existência de ambos os personagens, desejando-lhes o melhor.
Neste sentido “Firewatch” acaba abrindo mais uma forma de explorar os walking simulators, ou seja, se “Gone Home” (2013) contava a sua história por meio do ambiente, “Firewatch” conta a sua história por meio de diálogos em off, que apesar de se aproximar do narrador em off, muito bem explorado em “The Stanley Parable” (2014), funciona diferentemente porque permite acesso a todo um manancial de técnicas da ficção interativa para nos induzir um sentido participatório mais intenso, e é aqui que acaba por residir a essência de todo jogo.
Ou seja, tendo em conta toda a história, percebemos que o objetivo de ir para o meio da floresta por tantos meses é a solidão, mas é também uma forma de lidar com um drama interno, acreditando que por meio da introspeção se realizará uma espécie de cura. Contudo sabemos bem que a cura não surge do isolamento, isso é uma ilusão que a depressão desenvolve em nós, já que o isolamento só afunda ainda mais, ainda que seja requerido em certos momentos para lidar connosco mesmos. Neste sentido, “Firewatch” praticamente obriga-nos a lidar com o outro, ainda que apenas por via rádio, mas obriga-nos a despertar para o real que nos circunda, impedindo a entrada no mundo da divagação e alheamento. E por isso o diálogo em off, e o tom menos sério do mesmo, e até mesmo a ação detetivesca e conspiratória, assumem tão grande relevância, sendo subtilmente tão nevrálgicos.
Admito que inicialmente não percebi isto. Inicialmente não gostei de me obrigarem ao diálogo, menos ainda da conspiração à lá "área 51", por estarem a brincar com os “meus” sentimentos, eu pretendia explorar toda aquela natureza bela, senti-la no isolamento do som da natureza, mas o jogo impediu-me, como quem impede o bêbedo de aceder a mais álcool. Poderia parecer uma ultra-interpretação esta leitura que faço, mas se olharmos ao twist narrativo final, para quem já jogou, se pensar no que se passou com Ned e porquê, verá como funciona em total contraponto com a aquilo que se permite a Henry, para evitar que Henry se transforme em Ned. Este twist, apresentado em muitas análises como anti-catártico, é-o porque a isso se objetiva em termos emocionais, ou seja, busca-se a construção de um conhecimento sobre o personagem que implica reflexão e não o mero murro emocional, aristotélico, diria mesmo que “Firewatch” consegue desta forma ser um dos jogos mais brechtianos que tivemos até agora em termos emocionais.
Em síntese, “Firewatch” apresenta uma das melhores histórias jogáveis dos últimos anos, não pelo fantástico que é a sua apresentação, mas antes o contrário, pela forma sublime com faz passar a essência da sua mensagem, fugindo totalmente ao in-your-face hollywoodiano, obrigando-nos a pensar não apenas no que é dito e mostrado, mas por tudo o que isso nos obriga a sentir e refletir, construindo à posteriori um sentido do todo.
setembro 05, 2016
O belo debaixo de gelo
Johanna Nordblad detém o recorde de mergulho em profundidade debaixo de gelo, 50 metros. Ian Derry tem fotografado de grandes celebridades a publicidade de topo, incluindo fotografias para alguns dos cartazes da série "Game of Thrones". Derry descobriu Nordblad através da sua irmã, que é também fotógrafa. Da colaboração entre Johanna e Ian surgiu um dos mais poderosos trabalhos vídeo deste ano, "Johanna Under The Ice" (2016).
O filme seduz pela cinematografia absolutamente majestática, pelo minimalismo na forma, cor e movimento. Seduz porque a ação se passa num lugar inóspito, inalcançável para muitos de nós, e por isso mesmo cativante por mostrar o desconhecido. Mas o filme não é apenas um conjunto de imagens num lugar remoto, existe um trabalho minimalista de storytelling que dá o toque final, derrubando os mais céticos, capaz de gerar um forte laço de empatia para com a pessoa que surge no ecrã, e assim estabelecer uma ponte emocional que eleva a experiência à transcendência.
O filme seduz pela cinematografia absolutamente majestática, pelo minimalismo na forma, cor e movimento. Seduz porque a ação se passa num lugar inóspito, inalcançável para muitos de nós, e por isso mesmo cativante por mostrar o desconhecido. Mas o filme não é apenas um conjunto de imagens num lugar remoto, existe um trabalho minimalista de storytelling que dá o toque final, derrubando os mais céticos, capaz de gerar um forte laço de empatia para com a pessoa que surge no ecrã, e assim estabelecer uma ponte emocional que eleva a experiência à transcendência.
"Johanna Under The Ice" (2016) de Ian Derry
setembro 04, 2016
"Livro do Desassossego” (1982)
É magistralmente difícil definir a experiência de ler "Livro do Desassossego”, tanto quanto a intensidade do que se sente enquanto se lê, já que ao ler nos separamos de nós e nos juntamos ao autor, para com ele sentir e compreender, assumindo a nossa inabilidade de o explicar, menos ainda definir. Só o próprio Fernando Pessoa compreendeu a envergadura daquilo a que se propôs, tendo para tal construído um segundo eu, Bernardo Soares, para por seu intermédio se poder olhar a Si de fora, e assim escavar e desconstruir a Alma. E por isso a definição da experiência desta leitura só podia ser dada pelo próprio Pessoa ao dizer-nos: "Quero que a leitura deste livro vos deixe a impressão de terdes atravessado um pesadelo voluptuoso.”
“Quem sou eu?” é o motor do texto, ou centenas de textos, que compõe “Livro do Desassossego”, sinto contudo que o autor na sua ânsia por responder à questão, se manifesta como uma espécie de metafísico esteta, alguém com um sentido analítico de investigador, dotado de uma curiosidade científica profunda, capaz de o conduzir por entre os caminhos mais recônditos da sua busca, e por outro lado, alguém com um sentido artístico entranhado, mais interessado na busca, nos caminhos, processos e componentes, e menos nas suas explicações, sem preocupações de formular categorias, definições ou respostas. Se Pessoa me recorda, repetidas vezes, Descartes, sempre que abandona a abstração metafísica e concretiza, afasta-se deste para assumir o seu traço próprio de artista inquisidor. Era a forma que lhe interessava, não a sua definição.
Até aqui, só tinha encontrado tamanha intensidade literária aos pés de Proust.
“Quem sou eu?” é o motor do texto, ou centenas de textos, que compõe “Livro do Desassossego”, sinto contudo que o autor na sua ânsia por responder à questão, se manifesta como uma espécie de metafísico esteta, alguém com um sentido analítico de investigador, dotado de uma curiosidade científica profunda, capaz de o conduzir por entre os caminhos mais recônditos da sua busca, e por outro lado, alguém com um sentido artístico entranhado, mais interessado na busca, nos caminhos, processos e componentes, e menos nas suas explicações, sem preocupações de formular categorias, definições ou respostas. Se Pessoa me recorda, repetidas vezes, Descartes, sempre que abandona a abstração metafísica e concretiza, afasta-se deste para assumir o seu traço próprio de artista inquisidor. Era a forma que lhe interessava, não a sua definição.
“Triste noção tem da realidade quem a limita ao orgânico, e não põe a ideia de uma alma dentro das estatuetas e dos lavores. Onde há forma há alma.” (416)
“Dominamos outrora o mar físico, criando a civilização universal; dominaremos agora o mar psíquico, a emoção, a mãe temperamento, criando a civilização intelectual.” (438)
“Os classificadores de coisas, que são aqueles homens de ciência cuja ciência é só classificar, ignoram, em geral, que o classificável é infinito e tanto se não pode classificar. Mas o em que vai meu pasmo é que ignorem a existência de classificáveis incógnitos, coisas da alma e da consciência que estão nos interstícios do conhecimento.” (378)Toda a obra se percorre de um tom melancólico, porque é de “desassossego” que se fala, outro tom seria inadequado, contudo contagiado por um sentir maior, que vai além da tristeza e da dor, que apresenta o viver como apesar de angustiante totalmente inebriante porque potenciador do ato contínuo criativo.
“É debruçado ao parapeito, gozando do dia, sobre o volume vário da cidade inteira, só um pensamento me enche a alma — a vontade íntima de morrer, de acabar, de não ver mais luz sobre cidade alguma, de não pensar, de não sentir, de deixar atrás, como um papel de embrulho, o curso do sol e dos dias, de despir, como um traje pesado, à beira do grande leito, o esforço involuntário de ser.” (397)
“Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são.
Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.” (451)
“A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação.Do meu lado, e em jeito de explicação do espanto e admiração, descodifico esta obra em dois elementos-chave: a prosa e o tema. No campo da prosa, Pessoa está acima de qualquer adjetivação, o modo como trabalha a língua portuguesa é absolutamente ímpar, elevando-a a níveis insondáveis, capaz de nos transportar por entre as palavras fazendo-nos sentir a leveza e a impalpabilidade do que nos quer dizer. No tema, o trabalhar metafísico na tentativa de compreender aquilo que somos, Pessoa tem momentos de tanta elevação que quase parece levar-nos a sentir o toque direto sobre a alma, como se ela se pudesse apresentar ali, naquelas letras, palavras, ideias, como se Pessoa fosse Soares, e ambos fossem um, e se fundissem no texto, fossem alma vertida nas folhas, no papel.
O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exatamente o que eu senti. E como este outrem é, por hipótese de arte, não esta ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti.” (260)
setembro 02, 2016
“Assassin's Creed Syndicate” (2015)
É o sexto tomo da série Assassin's Creed (AC), que por razões do flop ocorrido com o seu antecessor, “Assassin's Creed Unity” (2014), vinha obrigado a dar mostras de que a série não seria votada ao esquecimento. Syndicate conseguiu grande apoio da crítica, mas não se pode dizer o mesmo do público que, apesar de reconhecer as melhorias, sente estar apenas a obter mais do mesmo. Do meu lado, e por ter adorado Unity, não tinha qualquer ânsia de jogar Syndicate, contudo ainda bem que o fiz, já que o prazer que foi passear por Paris foi totalmente replicado com o passeio por Londres. Em síntese, Syndicate melhorou a jogabilidade, melhorou a sensação de ambiente vivo, incluiu duas personagens ricas, incluindo uma feminina, mas ficou-se quanto à história, nem mesmo os personagens históricos — Charles Dickens, Charles Darwin, Karl Marx ou Rainha Victória — salvam a fragilidade do guião.
Em termos da assinatura da série, a reconstituição virtual histórica da cidade, temos do melhor que esta última geração de consolas nos pode dar. A cidade de Londres está uma delícia, com todo controlo atmosférico — sol, chuva, nuvens — a funcionar em pleno, criando momentos de puro êxtase visual ao longo de todo o jogo. Poder fazer um leap-of-faith a partir do pináculo do Big Ben é verdadeiramente impactante, tal como poder aceder a áreas que no mundo real podemos apenas ver à distância, ou detrás de grades.
Esta componente foi ainda mais engrandecida graças à introdução de duas mecânicas — a condução de carruagens e o gancho de corda — que nos permitem passear por toda Londres de forma muito mais rápida, quase sem necessidade de recorrer aos portais fast travel, o que por outro lado garante um maior envolvimento da nossa parte com o ambiente, tornando o mundo de jogo mais orgânico, já que vamos encontrando as missões, e as side quests, à medida que vamos atravessando a cidade.
Na jogabilidade existe um incremento nos sistemas de colecta que permitem aumentar as recompensas pelo progresso no jogo. O mais relevante surge pela divisão dos bairros de Londres em áreas dominadas por templários que temos de ir eliminando para podermos garantir a segurança dos bairros. Apesar de se perceber o seu sentido quantitativo, acaba funcionando em termos qualitativos uma vez que se justifica totalmente no que toca à vida da cidade. Ou seja, é gratificante eliminar os templários totalmente de um bairro, e depois passar lá a seguir a perceber que as pessoas que lá estão, estão do nosso lado, e não contra nós, está longe de ser um mero colecionar de pontos ou jóias.
O menos da jogabilidade já não é novo, e assenta nas lutas. Percebendo a necessidade de ir evoluindo e ganhando experiência, na maior parte do tempo damos conosco em lutas em que não sabemos o que realmente estamos a fazer, não fosse o stealth, os puzzles e as coletas, e estaríamos nas missões apenas à espera dos pontos seguintes da história. Desta vez nem a evolução e compra de armas mais pesadas me fez sentir confortável nas lutas. Temos um jogo imensamente fluído, com personagens que literalmente voam verticalmente, que nos permitem atravessar quilómetros por meio de estruturas imensamente complexas, sem qualquer problema, mas quando deparamos com um inimigo, ou o matamos logo sem pré-aviso, ou entramos na luta e esperamos que termine após carregar estupidamente em botões ao acaso.
No campo da história é onde a Ubisoft nos perde totalmente, algo que é também já recorrente. No tomo anterior tivemos a Revolução Francesa, agora a Revolução Industrial, e nada disto é suficiente para criar verdadeiro drama, para nos agarrar e prender aos desejos dos personagens?! Diga-se que Evie e Jacob são fantásticos em termos de caracterização, mas em tudo o resto são meras marionetas da história, que é totalmente oca. Uma pena, muita pena, e só desejo que um dia os responsáveis da Ubisoft acordem e contratem alguém que realmente saiba escrever para os seus quadros. É inaceitável que com todo o talento aqui presente não se tenha investido a sério em escritores, sendo nós obrigados a assistir a uma história que se arrasta até ao final menos climático que alguma vez joguei, tornando tudo ainda mais ridículo ao evocar Charles Dickens.
No geral, é uma boa experiência, principalmente por nos permitir reviver uma das cidades mais emblemáticas do globo, que apesar de se apresentar como era há 150 anos tem ainda muita semelhança com os dias de hoje. Um mundo de jogo repleto de ação e possibilidades que garantem mais do que uma experiência narrativa, uma experiência imensamente lúdica.
Em termos da assinatura da série, a reconstituição virtual histórica da cidade, temos do melhor que esta última geração de consolas nos pode dar. A cidade de Londres está uma delícia, com todo controlo atmosférico — sol, chuva, nuvens — a funcionar em pleno, criando momentos de puro êxtase visual ao longo de todo o jogo. Poder fazer um leap-of-faith a partir do pináculo do Big Ben é verdadeiramente impactante, tal como poder aceder a áreas que no mundo real podemos apenas ver à distância, ou detrás de grades.
Esta componente foi ainda mais engrandecida graças à introdução de duas mecânicas — a condução de carruagens e o gancho de corda — que nos permitem passear por toda Londres de forma muito mais rápida, quase sem necessidade de recorrer aos portais fast travel, o que por outro lado garante um maior envolvimento da nossa parte com o ambiente, tornando o mundo de jogo mais orgânico, já que vamos encontrando as missões, e as side quests, à medida que vamos atravessando a cidade.
Na jogabilidade existe um incremento nos sistemas de colecta que permitem aumentar as recompensas pelo progresso no jogo. O mais relevante surge pela divisão dos bairros de Londres em áreas dominadas por templários que temos de ir eliminando para podermos garantir a segurança dos bairros. Apesar de se perceber o seu sentido quantitativo, acaba funcionando em termos qualitativos uma vez que se justifica totalmente no que toca à vida da cidade. Ou seja, é gratificante eliminar os templários totalmente de um bairro, e depois passar lá a seguir a perceber que as pessoas que lá estão, estão do nosso lado, e não contra nós, está longe de ser um mero colecionar de pontos ou jóias.
O menos da jogabilidade já não é novo, e assenta nas lutas. Percebendo a necessidade de ir evoluindo e ganhando experiência, na maior parte do tempo damos conosco em lutas em que não sabemos o que realmente estamos a fazer, não fosse o stealth, os puzzles e as coletas, e estaríamos nas missões apenas à espera dos pontos seguintes da história. Desta vez nem a evolução e compra de armas mais pesadas me fez sentir confortável nas lutas. Temos um jogo imensamente fluído, com personagens que literalmente voam verticalmente, que nos permitem atravessar quilómetros por meio de estruturas imensamente complexas, sem qualquer problema, mas quando deparamos com um inimigo, ou o matamos logo sem pré-aviso, ou entramos na luta e esperamos que termine após carregar estupidamente em botões ao acaso.
No campo da história é onde a Ubisoft nos perde totalmente, algo que é também já recorrente. No tomo anterior tivemos a Revolução Francesa, agora a Revolução Industrial, e nada disto é suficiente para criar verdadeiro drama, para nos agarrar e prender aos desejos dos personagens?! Diga-se que Evie e Jacob são fantásticos em termos de caracterização, mas em tudo o resto são meras marionetas da história, que é totalmente oca. Uma pena, muita pena, e só desejo que um dia os responsáveis da Ubisoft acordem e contratem alguém que realmente saiba escrever para os seus quadros. É inaceitável que com todo o talento aqui presente não se tenha investido a sério em escritores, sendo nós obrigados a assistir a uma história que se arrasta até ao final menos climático que alguma vez joguei, tornando tudo ainda mais ridículo ao evocar Charles Dickens.
No geral, é uma boa experiência, principalmente por nos permitir reviver uma das cidades mais emblemáticas do globo, que apesar de se apresentar como era há 150 anos tem ainda muita semelhança com os dias de hoje. Um mundo de jogo repleto de ação e possibilidades que garantem mais do que uma experiência narrativa, uma experiência imensamente lúdica.
setembro 01, 2016
“Viagens de Gulliver” (1726)
Gulliver pode não ser a maior obra de arte literária, mas é uma das obras literárias de maior impacto narrativo na nossa civilização recente. Não existe meio expressivo — cinema, rádio, banda desenhada, teatro, etc. — que não tenha visto surgir a sua versão de "Viagens de Gulliver", sendo que desde que foi publicado, há quase 300 anos, não deixou de ser reapresentado a cada nova geração. Gulliver é fruto do mais nobre que a imaginação humana nos pode dar, o puro ato de fantasia, em todo o seu esplendor criativo.
Se “Viagens de Gulliver” surge quase como resposta à viagem de “Robinson Crusoe”, publicado na década anterior, é à veia satírica de Jonathan Swift que devemos a capacidade para ir além do mundo conhecido, para especular sobre realidades alternativas, umas mais fantásticas outras mais científicas, e assim congeminar novos mundos, novos personagens/pessoas e novos costumes, lançando a primeira pedra de um género que se mantém até hoje, o da Ficção Científica (FC). Swift precedeu em mais de um século, o chamado pai da FC, Jules Verme, e em dois, George Orwell, que nesta edição prefacia a obra.
Acredito que a inovação desta obra surja arrastada pela sátira, um género que tem necessidade de entrelaçar ficcional e real por forma a garantir os seus efeitos, conduzindo Swift a inovar muito provavelmente sem o desejar, antecipando assim todo o género literário de FC. Gulliver está longe de se apresentar como mero relato fantasioso, ou fantástico, não é de todo um conto de fadas, mágicos ou esotérico, a relação entre o plausível e o potencialmente possível é uma constante, é puro trabalho de especulação ficcional que temos aqui. Desde um mundo de pessoas pequenas (Lilliput) a um de gigantes (Brobdingnag), em que se confrontam as distinções físicas pelas suas propriedades anatómicas e perceptivas, passando por uma ilha voadora, na qual vivem pessoas abstraídas da realidade mundana, encerradas no estudo da matemática e música (Laputa), chegando a um dos raros momentos em que Swift parece resvalar, na visita à ilha de Glubbdubdrib, com Gulliver a ser introduzido num universo de magia e ocultismo, podendo conversar com espíritos célebres defuntos, acaba no entanto a invocar reis e rainhas para descobrir segredos da História, indo mesmo ao ponto de invocar e discutir ideias de algumas das figuras mais relevantes da ciência, de Descartes (1596 a 1650) a Sócrates (-470 a -399).
Se “Viagens de Gulliver” surge quase como resposta à viagem de “Robinson Crusoe”, publicado na década anterior, é à veia satírica de Jonathan Swift que devemos a capacidade para ir além do mundo conhecido, para especular sobre realidades alternativas, umas mais fantásticas outras mais científicas, e assim congeminar novos mundos, novos personagens/pessoas e novos costumes, lançando a primeira pedra de um género que se mantém até hoje, o da Ficção Científica (FC). Swift precedeu em mais de um século, o chamado pai da FC, Jules Verme, e em dois, George Orwell, que nesta edição prefacia a obra.
A ilha de Laputa em “As Viagens de Gulliver”
Acredito que a inovação desta obra surja arrastada pela sátira, um género que tem necessidade de entrelaçar ficcional e real por forma a garantir os seus efeitos, conduzindo Swift a inovar muito provavelmente sem o desejar, antecipando assim todo o género literário de FC. Gulliver está longe de se apresentar como mero relato fantasioso, ou fantástico, não é de todo um conto de fadas, mágicos ou esotérico, a relação entre o plausível e o potencialmente possível é uma constante, é puro trabalho de especulação ficcional que temos aqui. Desde um mundo de pessoas pequenas (Lilliput) a um de gigantes (Brobdingnag), em que se confrontam as distinções físicas pelas suas propriedades anatómicas e perceptivas, passando por uma ilha voadora, na qual vivem pessoas abstraídas da realidade mundana, encerradas no estudo da matemática e música (Laputa), chegando a um dos raros momentos em que Swift parece resvalar, na visita à ilha de Glubbdubdrib, com Gulliver a ser introduzido num universo de magia e ocultismo, podendo conversar com espíritos célebres defuntos, acaba no entanto a invocar reis e rainhas para descobrir segredos da História, indo mesmo ao ponto de invocar e discutir ideias de algumas das figuras mais relevantes da ciência, de Descartes (1596 a 1650) a Sócrates (-470 a -399).
“Por vezes pousavam [moscas] em minha comida, e deixavam nela seus asquerosos excrementos ou ovas, que para mim eram perfeitamente visíveis, embora não para os nativos daquele país, cujos olhos grandes não eram tão aguçados quanto os meus quando se tratava de ver objetos pequenos.”Como texto, Gulliver surge com a aparência de mera reunião de contos, a cada viagem, novas ilhas com novas pessoas que nos permitem aceder a novos modos de compreender a realidade, contudo a sucessão de viagens acaba por desenvolver um impacto final no nosso personagem, fruto do cumulativo de experiências, garantindo assim unidade à história, ao personagem, e no fundo a toda a obra. Swift parece um tanto obstinado na sua sede de crítica à sociedade e aos homens que a compõe, por via da sátira, hoje de difícil interpretação sem acesso a enquadramento histórico*, traçando desse modo um quadro de amadurecimento de ideias, no que toca à percepção daquilo que somos enquanto espécie.
“Perguntou-me ele quais eram as causas ou motivos usuais que levavam um país a ir à guerra contra o outro. Respondi que eram inumeráveis, porém mencionaria apenas umas poucas entre as mais importantes. Por vezes a ambição dos príncipes, que jamais julgam ter terra ou Gente suficiente para governar: por vezes a corrupção dos ministros, que induzem seu senhor a fazer guerra a fim de sufocar ou desviar o clamor dos súditos contra sua má governança. As diferenças de opiniões têm custado muitos milhões de vidas: por exemplo, se a carne é pão, ou o pão é carne; se osSuco de uma certa fruta é sangue ou vinho; se assobiar é um vício ou uma virtude; se é melhor beijar uma tábua ou jogá-la no fogo; qual a melhor cor para uma túnica, preto, branco, vermelho ou cinza; se ela devia ser longa ou curta, estreita ou larga, suja ou limpa, e muitas outras coisas. E não há guerras tão furiosas e sangrentas, nem tão duradouras, quanto as que são ocasionadas por diferenças de opinião, especialmente quando se trata de coisas sem importância.”
Assim, e apesar de apontado como livro de histórias para crianças, sendo-o mais pelo texto simples e muito acessível assim como pelo apelo à imaginação e fantasia das duas primeiras viagens, por sinal as mais conhecidas, é contudo uma obra com várias camadas de significado, que se vão abrindo a cada um em função do que se traz para leitura do mesmo.
* Esta edição da Penguin vem com muito boas notas do prof. Robert DeMaria Jr., a tradução de Paulo Henriques Britto, para a Companhia das Letras, está também muito boa.
Subscrever:
Mensagens (Atom)