Design da Narrativa e Jogo
"SOMA" começa por identificar-se com uma das grandes tendências atuais dos jogos narrativos, os walking simulators ("Dear Esther", “Everybody’s Gone to the Rapture”), jogos de pura navegação virtual, evoluindo depois para o environment storytelling (ex. "Gone Home", “The Vanishing of Ethan Carter”), jogos que requerem manipulação, acabando por se aproximar depois do género survival/stealth sem armas, que era uma marca que já vinha dos jogos anteriores da Frictional (ex. "Amnesia: The Dark Descent"). Assim temos um design que trabalha o espaço narrativo por via do ambiente (cenário, luz e som) e pistas (logs, fotos, videos e audios), incluindo a sua manipulação (puzzles), e o tempo narrativo por via do survival (tarefas com janelas temporais) e do stealth (a fuga de inimigos).
Esta mescla de géneros surge da tentativa do diretor Thomas Grip, em fazer avançar o contar de histórias nos videojogos, tendo para tal criado um método de design de narrativa, que intitulou de 4-Layers. Nessa sua definição começa por definir os extremos — “Heavy Rain”, quase ausente de jogabilidade, e “Bioshock” quase só focado nos tiros — apontando a sequência final de “Brothers: A Tale of Two Sons” e a da girafa em “The Last of Us” como exemplos da perfeição do entrosamento entre narrativa e jogo. Grip diz que essas sequências serviram como inspiração para criar todo o método 4-Layers, já usado em “The Vanishing of Ethan Carter” e "SOMA", considerando eu depois de ter jogado ambos, que ele é verdadeiramente eficaz em SOMA". Este método busca desenhar o jogo em camadas, por forma a evitar a focagem na história pela história. Vejamos cada camada, e como elas atuaa em "SOMA".
"Layer 1: Gameplay". No caso de "SOMA", isto é conseguido por via de puzzles espaciais não demasiadamente complexos (encaixar ferramentas e dados entre máquinas, abrir portas), assim como por via da fuga em labirintos, ou os puzzles pressionados pelo tempo e medo. Cada uma destas mecânicas é desenhada em consonância com a história, não se centrando sobre si, mas antes procurando dar resposta a questões narrativas, o que vem de encontro ao segundo layer.
"Layer 2: Narrative Goal". Aqui Grip defende que a narrativa, tal como acontece no cinema, não pode estar apenas cingida ao arco principal que liga o início ao final, mas precisa obrigatoriamente de gerar eventos narrativos que suportem o interesse do recetor ao longo de todo o jogo. A essência deste interesse assenta no dito acima, as questões narrativas, ou seja o mistério e o suspense, capaz de motivar o receptor para a narrativa, impossibilitando assim que este se foque nas tarefas ou ações de modo isolado. Em SOMA a narrativa vai-se desvelando, mas muito devagar, vamos acedendo aos computadores e dados, falando com as pessoas, para ir percebendo o que se passa ali, mas mais importante para perceber o que se espera de nós. Cada área, e cada nível, comporta em si mesmo um trecho narrativo que por si captura o nosso interesse, sem estarmos agarrados ao objetivo final da história. A ideia é focalizar a atenção nesses objetivos narrativos intermédios e assim evitar que o jogador se foque na mecânica das suas ações, focando-se na busca de respostas.
"Layer 3: Narrative Background". Se o “objetivo narrativo” pretendia mudar o modo do jogador de “fazer coisas para avançar na história”, para, “fazer coisas por causa da história”, com o background narrativo procura-se levar o jogador a “fazer coisas para fazer a história aparecer”. Ou seja, o log que leio ou o audio que ouço em "SOMA", não são longos nem obrigatórios, para evitar que se transformem em tarefas, aquilo que tenho de fazer para chegar ao nível seguinte (isto é puro design de narrativa, já que se quisermos ler os textos originais, podemos ir à secção Files no site e ver como são longos, perceber que textos daquela dimensão no interior do jogo deturpariam a jogabilidade). Assim os textos são antes objetos que fazem a história emergir, tais como fotos que vamos encontrando, ou diálogos que decorrem enquanto fazemos outra coisa, tudo isto são momentos entremeados no jogo que vão construindo a história, mas vão acima de tudo dotando a mesma de uma base contextual.
"Layer 4: Mental Modeling". Nesta camada Grip entra adentro do cerne da relação entre narrativa e interação, a partir do conceito base do design de qualquer interação, o modelo mental. Ou seja, falamos de construir um objeto de interação que vá de encontro ao modo como o jogador vê o mundo, porque o jogador não se baseia exclusivamente no que vê ou ouve no jogo, mas antes se socorre de modos de ver o mundo que já detém, ou seja modos que determinam a sua intuição para compreender o que lhe está a ser mostrado. Claro que o jogador usa o feedback do jogo para se orientar, mas não está todo o tempo a processar tudo o que aparece no ecrã, antes carrega todo o modelo de jogo na sua mente e age por intuição, recorrendo à racionalização apenas quando o jogo não opera como esperado. Deste modo o jogador está continuamente a jogar cognitivamente, a imaginar e a lançar hipóteses sobre o que vai acontecer a seguir, tentando antecipar as necessidades, o que não é muito diferente do que acontece no cinema ou literatura. Isto é extremamente importante na navegação (ex. seguir o caminho debaixo de água em "SOMA"), assim como na manipulação (ex. o modo como abrimos portas, ou gavetas, ou usamos as ferramentas), assim como claro na participação na narrativa, em que assumimos diferentes modelos mentais, que geram expectativas consoante o género narrativo (ex. terror, comédia, aventura, etc.).
Quero aproveitar este 4-Layers e o caso do "SOMA", para trazer de novo a questão que me coloquei quando acabei “Witcher 3”, por comparação a “The Last of Us”. Será que poder escolher o desenlace de uma história, impacta de forma diferente a minha experiência narrativa? Se à medida que avanço em "SOMA", vou criando o mundo história, compreendendo as suas razões e fazendo destas os meus objetivos e motivações, quer dizer que passo a incluir-me nesse! Assim apesar de não poder alterar as ações da história, sinto que elas têm valor, porque se encaixam e incrementam o significado daquilo que já sei sobre aquele mundo. Não estou simplesmente a abrir e a fechar portas, a descobrir chaves e puzzles, mas estou a dar sentido à história, a procurar compreender o que está por detrás daquela porta, como se encaixa o que está ali com aquilo que já sei. Como diz Grip,
"The mental model and the narrative lie on the same level, they are the accumulation of all the lower level stuff. And if we can get them to work together, then what we have is the purest form of playable story where all your gameplay choices are made inside the narrative space." [source]Repare-se que apesar de "SOMA" ser linear, não permitir alterar a história, ele oferece decisões ao jogador, algumas limite, como deixar viver ou morrer. E nesse caso mesmo sabendo que isso não alterará em nada o trajeto do jogo, o modo como está encapsulado, o modo como nos é feito acreditar o que vale ou não vale essa "vida", faz com que a nossa tomada de decisão seja difícil. Isto demonstra que o valor das decisões não se prende com as consequências no jogo, mas antes com o valor que atribuímos às mesmas. De certo modo é isto que se passa no final de “The Last of Us”, mesmo não nos sendo permitido tomar a decisão de agir ou não agir na sala hospitalar, a perplexidade com que agimos dá conta da importância dessa ação, e mesmo quando somos obrigados a fazer o que o jogo requer para simplesmente avançar na história, não deixamos de continuar a questionar-nos sobre esse momento e o modo como nos marca.
Voltando ao 4-Layers, Grip cataloga a tomada de decisões por parte do jogador sobre a narrativa, como uma variante do “objetivo narrativo”. Ou seja, aqueles momentos em que o jogo, a nossa ação, está umbilicalmente conectada à história, em que jogamos motivados por razões narrativas, e não de jogo. No fundo, o que Grip está aqui a dizer é que mais do que colocar decisões na mão do jogador, é preciso fazer o jogador acreditar que as suas ações fazem parte da narrativa, e não são apenas um adereço para fazer funcionar o jogo. Mais uma vez recordando “The Last of Us”, o crafting de armas não surge como jogo de construção de armas, mas antes como necessidade de fazer frente aos mortos-vivos que vivem naquele mundo-história, ou seja, ajo motivado pela história, e não apenas porque quero avançar.
Fica a faltar ainda a discussão sobre o sistema de stealth que não inclui armas, o qual se torna responsável pela gestão do desafio e medo ao longo de todo o jogo, no fundo uma das grandes motivações para corrermos de um lado para o outro, por vezes sem tempo para pensar, apenas agir visceralmente. Mas voltarei a esse tema num texto próprio, já que levanta todo um conjunto de questões sobre os jogos exploratórios e os walking simulators.
A História
Não é possível falar da história sem desvelar detalhes da mesma (spoilers), já que como explico acima, o modo como a narrativa foi desenhada obriga a que não se conheça nada da história, essencialmente porque é o querer conhecer o que se passa e do que nos falam, que nos vai motivando a jogar, ao mesmo tempo que mantém todo o mundo de jogo crível. Por isso se ainda não jogaram, não leiam o resto deste texto.
---------- SPOILERS ----------------------
De forma genérica, temos uma história que roda à volta de questões existenciais, nomeadamente a identidade, que nos leva numa viagem filosófica de 10 horas em busca do propósito da vida, tendo por base a dualidade mente/corpo de Descartes. Em concreto, o planeta tornou-se inabitável e como solução propôs-se uma forma de digitalizar as consciências humanas, colocá-las dentro de uma arca e enviá-la para o espaço, uma espécie de Arca de Descartes. A linha de história é nova, embora a premissa tenha sido já muito discutida, nomeadamente nos trabalhos de Philip K. Dick. O que torna a história no jogo interessante é o fato de nos colocar de frente ao processo, e seus efeitos, de nos fazer passar por decisões sobre esse processo.
Ora, diferentemente do tempo em que Descartes escreveu os seus trabalhos, hoje sabemos que a consciência não é algo autónomo, sabemos que ela é apenas aquilo que o corpo permite que seja, nomeadamente a configuração física das ligações neuronais, mas também a configuração dos marcadores somáticos em todo o nosso corpo (desde os sentidos às vísceras). Sabendo isto, poderíamos atirar borda fora toda a história, contudo isso não é tão simples, já que aquilo que alimentou a teorização de Descartes continua presente, a ideia de que no interior de nós mesmos existe algo, existe um “Eu”, e esse "Eu" é tão profundamente obsessivo no que toca à sua emancipação, que por mais que "lhe" digamos que não existe individualmente "ele" continua a querer fazer-nos acreditar que existe. Diria quase, e aqui seguindo à letra Descartes, que o "génio maligno" existe, é o nosso próprio "Eu", sempre insatisfeito, sempre produzindo a volição que nos mantém insaciáveis, vivos. Por isso todo o tema de "SOMA" continua tão atrativo, em termos de teorização e discussão filosófica, mesmo se do meu lado a paciência para Freud, Lacan ou Jung se tenha esgotado há muito!
Tirando esta problemática, uma outra surgiu-me com mais força durante o jogo, e que cheguei a colocar como o grande problema de todo o mundo história, o Wau, a personagem que se desenvolveu a partir da IA e tomou conta de todas as instalações submarinas. O Wau surge desde o início como uma espécie de praga, que toma conta de todas as máquinas, robôs, inclusive criando monstros. Isto colocou-me o problema da credibilidade, porque parecia ser apenas um motivo para criar as dinâmicas de survival que os autores precisavam para o tipo de jogo idealizado, não tendo qualquer base científica. Contudo, isto viria a desvelar-se no final do jogo, de um modo perfeitamente científico e filosófico (os monstros são os corpos abandonados/suicidados, mantidos vivos por Wau, na sua tentativa por manter vivos os humanos a qualquer custo), com a discussão a evoluir para a relação entre máquinas e humanos, entre a moral que regula as suas relações, e a capacidade de uma máquina poder entender a imperfeição de que são feitos os humanos.
Para terminar, que este texto já vai longo, embora pudesse continuar a falar sobre o mesmo, tal a riqueza especulativa despoletada pelo jogo, quero ainda deixar uma lista dos momentos altos da minha experiência no jogo, que em certa medida dão conta da intensidade e diversidade da mesmas:
Momentos marcantes da minha experiência de "SOMA"
- Catherine, a sua escrita e contexto de jogo, enquanto companheira única num território árido de vida, é capaz de fazer sentir o desejo de buscar ansiosamente a conexão da Omnitool apenas para poder conversar com ela.
- A opressão das sequências debaixo de água.
- As passagens para dentro e para fora de água, o realismo da espera da compressão e descompressão, e o stress envolvido, de não querer sair, e por vezes ter medo de entrar.
- Toda a envolvência audiovisual, nomeadamente sonora.
- Quando me vejo ao espelho pela primeira vez, e percebo que já não sou humano.
- Quando mudo de corpo e sou chamado a decidir desligar o meu “outro”.
- Quando encontro o último ser humano vivo.
- Quando lanço a arca e fico para trás.
- Quando acordo dentro da arca, já depois do genérico.