setembro 13, 2015

"Moby Dick" (1851)

Escrito num tempo em que a estética dominante, o romantismo, procurava elevar o maneirismo da forma escrita e enaltecer a profundidade da emoção humana, a sua leitura não poderia deixar de ser laboriosa assim como ambígua. Contudo a aventura por que somos levados a atravessar do Atlântico ao Pacífico, é de tal forma grandiosa, instigadora do instinto humano, que todo o esforço que nos é pedido é por sua vez sobejamente recompensado.



Se tudo isto era já suficiente para conferir grande sumptuosidade à obra, Melville não se ficaria por aqui, tendo optado por criar toda uma estrutura narrativa de imensa complexidade, por via da diversidade de géneros discursivos, elegendo dois como dominantes, o relato científico e a prosa poética. Direi que esta dualidade me causou algum espanto, não esperava encontrar num livro de 1850 tal abordagem, diria mesmo completamente fora da sua época, já que a tentativa de fazer passar um discurso factual por via do poder de envolvimento do discurso ficcional é algo que só recentemente foi entendido como potencialmente benéfico.

Em certa medida esta dualidade foi a grande responsável pelo total falhanço da obra enquanto Melville viveu, e durante mais 50 anos após a sua morte. A crítica convergiria para um ataque a esta dualidade, acusando Melville de ambição desmedida, e de não ter conseguido realizar o que se tinha proposto.
[A]n ill-compounded mixture of romance and matter-of-fact. The idea of a connected and collected story has obviously visited and abandoned its writer again and again in the course of composition.Henry F. Chorley, in London Athenaeum, October 25 1851
Só mais tarde, já em pleno modernismo, será “Moby Dick” redescoberto e analisado a uma luz distinta. A leitura que vai saltitando entre os dois registos, nem sempre é fácil, por isso não admira a admiração dos modernistas. É verdade que a componente científica presente em Moby Dick tem hoje quase nenhuma relevância, além de histórica, e por isso mesmo torna-se por vezes além de entediante, frustrante. Contudo, a sua leitura na época teria um valor completamente distinto, tendo em conta toda a relevância sócio-económica da caça às baleias.

Com isto não quero dizer que ler “Moby Dick” hoje perdeu todo o seu interesse. É verdade que a obra de Melville não é um tratado científico com um lastro que possa ombrear com “A Origem das Espécies” (1859) de Darwin, não por lhe faltar observação e minúcia do foro baleeiro, mas antes porque se limita a descrever, deixando toda a componente crítica para o lado ficcional da narrativa, a operar sobre o humano. Ou seja, temos uma obra em si mesma colossal, por todo o trabalho de investigação necessário ao seu desenvolvimento, a quantidade de detalhe e os modos de conseguir a informação impressionam, ao que se junta um registo poético que não terá sido ditado com menor minúcia, fruto de grande revisão e aperfeiçoamento.

William Faulkner, profundo modernista, perceberia isto muito bem, a distinção de registos discursivos e a tentativa de mescla operada por Melville, e por isso quando lhe perguntaram que livro gostaria ele de ter escrito, em 1929, ele respondeu: “Moby Dick”.

Do lado da aventura, temos uma história sobre a persistência e resiliência humanas, sobre o confronto entre o humano e o meio, a luta por levar o seu desígnio avante, por não se deixar quedar nunca, tudo e todos enfrentando para conseguir afirmar-se, nem que isso custe a sua própria vida. Neste sentido existem imensos paralelos com a obra de Hemingway, “O Velho e o Mar”, mas Melville vai mais longe, pondo os princípios do humanismo de lado para se focar completamente no domínio da espécie humana.

Sobre as traduções para português

Quero deixar aqui um apontamento sobre as traduções. Desta vez optei pela edição brasileira da Cosac Naify, que lançou em 2008 uma tradução realizada por uma académica que se tem dedicado ao estudo da obra de Melville, Irene Hirsch, suportada na componente náutica por Alexandre Barbosa de Souza. Se optei por esta edição não foi por a Cosac a ter rotulado de definitiva, mas antes por ter realizado um trabalho comparativo com mais duas outras edições nacionais (Público e Relógio D'Água), confrontado-as com o original, e ter concluído, que se queria ler em português, esta era a única tradução que me permitia estar próximo de Melville.

A tradução lançada na colecção Geração do Público parece uma amálgama de palavras, com o texto de Melville a perder toda a musicalidade original, que achei desde logo estranha dado ter lido previamente sobre o tom poético de "Moby Dick". Mas a minha estranheza aconteceu quando embati numa frase, logo no primeiro parágrafo, que me pareceu totalmente fora de contexto, nem queria acreditar que o autor a pudesse ter escrito. Por isso peguei na edição da Relógio d'Água, que diga-se não passa de uma revisão de uma tradução antiga da Editorial Estúdios Cor, mas na qual notei logo um trabalho linguístico bastante distinto, mas a tal a frase, o substantivo, permanecia, tal e qual. Por isso fui ler o original, e nem quis acreditar que Melville, tal como eu pressentia, não tinha escrito aquilo. Deixo a frase à vossa consideração,
“(..) nessa altura, dou-me conta que está na hora de me fazer ao mar, quanto antes. É o meu estratagema para evitar o suicídio.”
Lúcia do Carmo Cabrita Harris, Colecção Geração Público, 2004

“(..) percebo então que chegou a altura de voltar para o mar, tão cedo quanto possível. É uma forma de fugir ao suicídio.”
Alfredo Margarido e Daniel Gonçalves, E.E. Cor / Relógio d’Água, 1962 / 2005

“(..) então percebo que é hora de ir o mais rápido possível para o mar. Esse é o meu substituto para a arma e para as balas.”
Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza, Cosac Naify, 2008

”(..) then, I account it high time to get to sea as soon as I can. This is my substitute for pistol and ball.”
Original de Herman Melville, 1851

A arte para além dos filtros dos media

Desta vez o Nerdwriter execedeu-se, através da sua web série, Understanding Art, e por meio da desconstrução do filme "Children of Men" (2006), realizou todo um trabalho de análise e crítica ao momento atual que se vive de crise humanitária, com migrantes e refugiados em fuga das guerras do Médio Oriente para a Europa. São 7 minutos de puro rasgo e brilho interpretativo do cinema, na demonstração da importância e alcance da arte.





Evan "Nerdwriter" Puschak começa por desmontar "Children of Men" na sua construção de quadros, com fundos plenos de significado, que Cuáron construiu de suporte ao mote narrativo do filme. À superfície seguimos Clive Owen na sua tentativa de salvar a última mulher que pode ter filhos, mas por detrás deste, deste nosso herói/narrador, muito vai acontecendo, vamos sendo expostos não apenas ao que aparentemente está acontecer, a destruição e decadência, mas vamos sendo chamados a interpretar tudo isto em função de um passado já antes exposto pela arte. De certo modo Cuáron está à procura da redundância, acreditando que já não basta mostrar o declínio humano, é preciso reforçar a interpretação da sua relevância, para que nós, cidadãos cada vez mais insensíveis às imagens que os media vão filtrando, possamos ser retirados do conforto dos nossos sofás, e ponhamos o nosso pensamento a funcionar.

"Children of Men: Don't Ignore The Background" (2015) de Nerdwriter


Por fim, dizer que esta é a segunda vez que trago aqui "Children of Men" pelo seu valor estético, quando na primeira vez que o vi falhei completamente na sua apreciação. Anteriormente foi graças ao Fernando Martins que lhe reconheci a inovação cinematográfica. Desta vez, tenho de o agradecer a Nerdwriter. Tudo isto apenas reforça a minha ideia de que devemos humildade, na hora de julgar obras e criadores.

setembro 11, 2015

“V8ORS – Flying Rat” (2015)

Os últimos dois anos têm sido muito felizes para a produção independente de videojogos nacionais, são imensos os trabalhos que têm surgido, não sendo já fácil acompanhar tudo e todos. Hoje trago aqui este novo jogo nacional, porque tive o prazer de acompanhar partes do seu desenvolvimento, o que de certo modo fez com que acabasse por lhe ganhar um carinho extra. "V80RS", ou aviadores, foi criado por uma pequena equipa de Aveiro, liderada por Deivis Tavares, mentor da ideia e responsável pela arte, uma das áreas em que jogo mais se destaca. Em poucos segundos, "V80RS" consegue despertar memórias nostálgicas de múltiplos jogos de arcada dos anos 1980 e garantir a nossa ânsia pela sensação de progressão.




Da oportunidade que tive de acompanhar o desenvolvimento fui agradavelmente surpreendido com a liderança e gestão do projecto realizada pelo Deivis que optou, desde o início, por uma abordagem bastante simples do shoot 'em up, e que apesar de ter uma arte bastante enriquecida que facilmente se prestaria a jogabilidades mais ricas e complexas, soube manter o controlo da ambição e o foco no projecto final. Deste modo “V8ORS” pode até parecer oferecer pouco para os dias que correm, mas se o faz não é por acaso, fruto de uma estratégia que assenta numa primeira fase free-to-play, que pode vir a ser ampliada dependendo da aceitação do público.

Na jogabilidade temos os elementos mais comuns do shoot 'em up muito bem balanceados, com a dificuldade que enfrentamos a progredir a bom ritmo, com a evolução em agressividade das naves a darem o mote do incremente de dificuldade, assim como os upgrades que a nossa nave pode ir ganhando a garantirem a possibilidade de nos mantermos em jogo. O jogo torna-se rapidamente viciante e aos poucos vamos percebendo que existe mais para oferecer além da superfície da jogabilidade, como as manobras que a nossa nave pode executar garantindo evasões mais eficazes. Por outro lado, a componente publicitária foi implementada de forma muito inteligente na manutenção da progressão, já que só tendo uma vida estamos sempre a recomeçar do zero a não ser que aceitemos ver um spot publicitário.





Voltando à arte, é ela que faz deste pequeno jogo algo distinto, uma espécie de pequena jóia que dá vontade de tocar e jogar, contribuindo fortemente para o sentimento que emana de toda experiência de jogo. A opção por tudo ser desenhado em 3d low-poly, mas dotado de excelentes contrastes de cor, fornece um tom peculiar ao ambiente de jogo, gerando um ambiente fresco, solto e leve, muito em contra-corrente com muito do que se vai vendo. Ainda dentro da arte, a componente de animação está muito bem conseguida, com a nave a sofrer latência na movimentação garantindo todo um realismo extra à nossa ação, assim como toda uma gratificação visual por via das manobras de evasão que podemos executar.

Vídeo do gameplay de "V80RS"

O pior, só mesmo estarmos limitados a jogar em Android, ficamos à espera da versão iOS. Podem seguir o jogo no Facebook, ou obter mais informações na sua página oficial.

setembro 10, 2015

Criatividade em remix no “Hell’s Club”

Antonio Maria Da Silva, provável lusodescente, residente em Paris, criou um trabalho brilhante de montagem e composição vídeo a partir de dezenas de sequências de diferentes filmes chave de Hollywood. O filme conta com quase 10 minutos, nos quais somos convidados a viajar até ao “Hell’s Club”, um clube ficcional criado por Antonio Maria Da Silva, por meio de uma edição e correcção de cor tão perfeitas que tudo parece ter sido verdadeiramente filmado para este filme.



A base do trabalho consiste num apanhado de sequências cinematográficas passadas em discotecas, retiradas de filmes como: “Star Wars", "Saturday Night Fever", "Hellraiser", "Scarface," "Carlito's Way", “The Terminator", "Matrix", “Trainspotting” "Pulp Fiction", "Robocop”, “Collateral Damage” entre outros. Com as sequências em mão o autor terá procurado uma linha condutora de acção e conflito, que acaba por resultar plenamente, ao contrário de muitos outros trabalhos de remix que se ficam pelas simples piadas ou fragmentos narrativos.

Para tornar credível todo o cenário de "Hell’s Club” foi necessário proceder a um enorme trabalho de correcção de cor, já que as luzes da discoteca de "The Matrix" são completamente distintas das de "Saturday Night Fever", e mesmo quando aproximadas, são-no apenas na nossas recordações, já que o clube de Tony Montana sendo filmado nos anos 1970 não tem qualquer afinidade com um clube filmado nos anos 2000, para parecer um futuro distante em "Star Wars Episode II: Attack of the Clones". Sobre tudo isto existe toda uma quantidade de pequenas composições internas nas imagens, com sequências de filmes a surgirem em reflexões de outras sequências, com personagens a surgirem em profundidade de campo, ou ainda no uso de sombras que simulam personagens que passam por outras que nos mantêm ali fixados, seduzidos, e crentes na existência do Hell's Club.



Se a edição de cor é o garante da unidade audiovisual, aquilo que verdadeiramente garante a cola narrativa de todo o filme é o trabalho de enorme minúcia realizado sobre o "gaze" (o olhar de cada personagem no enquadramento). Toda a história é construída com base nos olhares dos personagens de cada filme, com Antonio Maria Da Silva a trabalhar cirurgicamente o cruzamento constante de olhares entre os diferentes actores, indo mesmo além, quando coloca o mesmo actor mas em diferentes filmes, como que a olhar para si próprio, sem dúvida daqueles momentos que marcam qualquer trabalho na mente do espectadores.

"Hell's Club" (2015) de Antonio Maria da Silva

Analisando o canal YouTube de Antonio Maria Da Silva podemos verificar como tudo isto pode ser novo para nós, mas não é algo recente, nos seus trabalhos anteriores podemos notar que há vários anos que ele vem trabalhando a imaginação de conflitos cinematográficos por meio de remontagens e remisturas de filmes tais como Bruce Lee vs. Bruce Lee (2013), ou Terminator vs. Robocop (2010). Aliás, o seu canal Youtube revela-se interessantíssimo para compreendermos o processo evolutivo das suas competências de edição e composição audiovisual. São várias dezenas de vídeos, essencialmente mashups, que podemos aí encontrar, criados ao longo dos últimos sete anos, que funcionam como uma evidência clara de o talento resulta da prática, da persistência, da vontade de continuar a fazer mais, e sempre melhor.

setembro 09, 2015

O robô e a sua criadora

"NO-A" (2015) é o mais recente trabalho de animação e VFX de estudante a chegar a rede e a ganhar admiração unânime. Criado como trabalho de fim de curso, no Savannah College of Art and Design, por uma equipa de 8 alunos liderada por Liam Murphy, arrecadou desde logo, na própria SCAD, o prémio de melhor Animação de 2015.



Existem dois elementos em "NO-A" que o destacam do patamar do trabalho de estudante, a ilustração no tratamento dado às texturas, shaders e iluminação, e o controlo emocional narrativo. Vários planos denotam um perfeccionismo no modo como se compôs o detalhe da composição, em que cada cor parece ter sido alinhada com cada sombra, em que cada movimento parece pronto a surpreender e a deixar-nos a desejar por mais. Por outro lado, a montagem e a música, aliadas ao laço desenhado entre o robô e a menina, são capazes de agarrar as nossas emoções e colar-nos ao ecrã, fazendo-nos acreditar, suspender a descrença, e escapar para aquela irrealidade. Um pequeno filme que tão simples parece mas que está repleto de minúcia e paixão pela arte.

"NO-A" (2015) de Liam Murphy

"The world is a desolate, unforgiving place in this action sci-fi with a surprising amount of heart. We follow NO-A (Noah), as he attempts to rescue Aixa, the young woman that created him. In his desperate attempt to save her, he must face an unknown enemy force and fight to keep them both alive."

setembro 05, 2015

Síria: clima e geografia de um conflito

Trago um trabalho em banda desenhada, "Syria's Climate Conflict" (2014) que procura dar conta da origem dos conflitos na Síria a partir de uma perspectiva completamente distinta. Os conflitos na Síria têm alguns anos, e à primeira vista parecem ter emergido como efeito de contágio da Primavera Árabe, levantamentos populares iniciados na Tunísia e Egipto em 2011 que se alastraram a vários países do Norte de África e Médio Oriente. Outro elemento que surge como potencial motor do conflito, são as redes terroristas e os efeitos do ataque dos EUA ao Iraque e Afeganistão em 2001, que em vez de selar o problema terá contribuído ainda mais para tornar toda aquela região ainda mais instável.



O trabalho realizado pela jornalista Audrey Quinn e pela ilustradora Jackie Roche (do belíssimo "Underemployed") aponta num sentido completamente distinto, indo à causa inicial do despoletar dos problemas na Síria. É verdade que estamos tão cientes das versões explicativas acima enunciadas, que esta que aqui se apresenta à primeira vista mais parece uma desculpa, ou uma tentativa de limpar a imagem de alguma coisa. Talvez porque seja mais fácil ter rostos para culpar, porque procuramos explicações que possamos controlar. Mas aquilo que nos é aqui relatado não só faz muito sentido, como explica muitos dos problemas de toda aquela região.

Os problemas do Médio Oriente e Norte de África não são originados apenas pelas mudanças climáticas, embora também, mas fazem parte da própria região, tornando-a difícil de habitar, mais ainda de criar qualidade de vida que suporte o exponencial aumento populacional do último século. A geografia foi e continua a ser fundamental no suporte da vida humana à face do planeta, não aceitar isso faz parte da nossa incapacidade para nos resignarmos, por outro lado, compreender isso poderia servir para alterarmos todo um estado de coisas, não apenas dos regimes políticos e das populações, mas também da forma como aqueles que vivem em geografias privilegiadas, como é o caso da Europa. Para compreender o impacto da geografia sobre a resiliência da espécie humana, aconselho vivamente a leitura de "Guns, Germs, and Steel: The Fates of Human Societies" (1997) de Jared Diamond.

Seguir para "Syria's Climate Conflict" para ler a banda desenha completa online.

setembro 04, 2015

O que seria do cinema sem a literatura?

Esta semana escrevi para o IGN um texto a propósito do número alucinante de sequelas que se encontram em produção nos estúdios de Hollywood. A moda do seriado deixou de ser um exclusivo da televisão, o cinema rendeu-se totalmente aos seus encantos. Nesse sentido resolvi dissertar um pouco sobre o impacto deste fenómeno na criatividade e originalidade cinematográfica atual. Seria necessário "Blade Runner 2", por outro lado, todos esperam um "Prometheus 2", mas o que seria do cinema sem a literatura?

"Blade Runner" é baseado no livro "Do Androids Dream of Electric Sheep?" de Philip K. Dick

Aqui fica o texto completo, Novas sequelas e a obsessão pela originalidade.

agosto 31, 2015

“O Velho e o Mar” (1952)

Parábola do humano, ou significado do propósito e persistência. “O Velho e o Mar” procura ir à essência daquilo que nos define enquanto espécie, da verticalidade do que faz de nós uma das espécies mais arrojadas e completas deste planeta. Partindo da predação, Hemingway desenha um esboço da elevação das nossas faculdades, do como fomos para além da mera sobrevivência. Um livro curto para tão grande metáfora, ainda assim nada fica de fora, nada mais seria preciso dizer. Quando se toca a última página, o fechamento não está ali, porque o fechamento tem de ser construído pelo leitor, ainda que se requeira dele experiência de vida para o poder fazer.

“Não mataste o peixe só para viver e vendê-lo para ser comido. Mataste-o por amor-próprio e porque és um pescador. Amáva-lo quando estava vivo, e ama-lo depois de morto. Se o amas, não é pecado matá-lo. Ou será mais?”
Ler “O Velho e o Mar” é uma experiência particular, de profunda imersão num universo de isolação, perfeitamente tornado visual pelo virtuosismo da simplicidade da prosa de Hemingway. É-nos impossível escapar à solidão do alto mar, da acalmia e som das ondas, das aves que voam e os peixes que saltitam, é-nos impossível escapar a viver duas horas naquele barco com Santiago, sentir o cheiro a maresia, e ouvir a espuma das ondas bater no seu casco. Leia-se o pequeno excerto,
“Acordou com o sacão do seu punho direito contra a cara e a linha a arder-lhe a mão. Não sentia a mão esquerda mas travou quanto pôde com a direita, e a linha corria. Por fim, a mão esquerda encontrou a linha, e ele fez força com o corpo para trás, e agora queimava-lhe as costas e a mão esquerda, e esta suportava o esforço todo, que violentamente a cortava. Olhou para trás para os tambores de linha, que se desenrolavam com ligeireza. Nesse momento o peixe saltou, espadanando o oceano, e caiu pesadamente. Saltou mais uma e outra vez, e o barco deslizava rápido, apesar de a linha continuar a correr, e o velho ia elevando a tensão até à rotura, e elevando novamente e uma vez mais. Havia sido atirado contra a proa, tinha a cara no filete de ‘dorado’ e não podia mexer-se.” Da belíssima tradução de Jorge de Sena
Esta capacidade para tornar visual tem muito que ver com o detalhe, e esse só pode ser sorvido pela experiência, algo que Hemingway teve e de onde retirou muito daquilo que aqui podemos ler, enquanto dirigiu o seu barco, Pilar, pelas águas de Cuba. Assim, não fosse Hemingway tão visual e possivelmente não existiriam tantas adaptações desta história ao cinema, tanto na forma de longas como curtas de animação.

Dessas, a obra de Alexandr Petrov é sem dúvida alguma a de mais alto valor, atrevendo-me eu aqui a colocá-la ao nível da obra de Hemingway. Pode parecer heresia para alguns, mas graças à rede posso dar-vos a degustar aquilo de que vos falo no vídeo abaixo. São 19 minutos, escolham um tempo calmo e dediquem-lhe a vossa atenção, no final me dirão se me engano.

"The Old Man and the Sea" (1999) de Aleksandr Petrov

Se a obra de Hemingway recebeu o Pulitzer em 1953, e ele próprio foi galardoado com o Nobel em 1954, Petrov arrecadou quase todos os grandes prémios de cinema de animação entre 1999 e 2001, incluindo o nosso Cinanima, onde o vi pela primeira vez em 1999, e o Oscar de Melhor Curta de Animação em 2000. Petrov investiu dois anos e meio, juntamente com o seu filho, para criar os mais de 29 mil quadros, em óleo sobre vidro, que compõe os 19 minutos deste filme, fazendo do processo de criação deste filme, um hino ao significado da parábola da obra de Hemingway, com que abri este pequeno comentário ao livro.

agosto 26, 2015

A narrativa em “Mrs. Dalloway”

Virginia Woolf como muitos outros modernistas foi uma profunda estudiosa de arte, em particular da narrativa, não se limitando a estudar a mesma, publicando numerosos ensaios, mas procurando inovar aplicando o conhecimento granjeado. É deste modo que “Mrs. Dalloway” acabará por emergir como a sua primeira grande criação, em termos de inovação, marcando para sempre o mundo das letras. Woolf não inventou o “fluxo de consciência”, mas o modo como o trabalha permitiu-lhe criar o seu próprio estilo, e mais do que isso, fazer deste um quase-substituto da forma narrativa.


Woolf não se socorre do fluxo de consciência como estilística narrativa, ou seja, para ir dando conta dos objectos da história que nos conta, ela descarta por completo a forma regular de contar histórias, e em seu lugar usa exclusivamente o fluxo. Isto pode ser notado desde logo pelo facto de o livro não apresentar capítulos, sendo apresentado como um bloco único de texto, como se de um único jorro de ideias se tratasse, apresentado aos nossos olhos, como pensamento plasmado em estado bruto, sem tratamento ou filtragem, simplesmente o que é.

Em termos retóricos Woolf não procura narrar, nem sequer descrever, expor ou argumentar (as chamadas quatro formas básicas de comunicação), ela está claramente à procura de uma forma de transpor estas formas convencionadas de comunicação, como se ela na verdade não pretendesse expressar-se, mas antes e apenas, dar acesso ao seu pensamento interior. Em suma, o fluxo de Woolf mais parece emanado do não-consciente do que do consciente, não no sentido descritivo de sonho (conceito usado no passado), mas antes num sentido cognitivo, enquanto bloco de fiapos de ideias, ligadas por pequenos nós de familiaridade e proximidade, sem linearidade nem noção de todo, à qual a consciência (aqui o leitor) acede por meio da força de processos mentais de estruturação e associação que originam ligações entre mais nós, fazendo emergir um todo, e assim sentido.

Daí que uma análise exclusiva da obra, sem tomar em conta o trabalho do leitor, acuse um texto não-narrativo, sem eventos, nem sucessão dos mesmos, não originando qualquer arco dramático, no texto não se encontra fechamento nem mesmo propósito. Por outro lado, o modo como Woolf trabalha esta ausência de marcas narrativas, não é inocente, antes pelo contrário, imensas “pistas” vão sendo espalhadas no texto, de modo a contribuir para os processos associativos que o leitor precisa de desenvolver para assim reproduzir em si mesmo, o conjunto narrativo, o todo e o sentido.

Uma dessas estratégias assenta na polifonia de vozes de personagens, que parecem por vezes emanar diferentes perspectivas sobre um mesmo tema, que acabam gerando redundâncias, repetições e por sua vez familiaridade no leitor. Ou seja, mesmo que possamos ler todos aqueles personagens como existentes apenas no interior da mente de Woolf, como pensamentos seus nas vozes de personagens por si imaginadas, elas acabam por funcionar como âncoras do que se vai dizendo, fazendo de si mesmos os eventos, gerando sucessão e coerência, por forma a garantir ao leitor um acesso narrativo ao texto.

Tudo isto não seria o que é, não fosse o virtuosismo e lirismo da prosa de Woolf que nos garante todo um universo impressivo de sons e imagens, facilitando-nos, no meio do caos, a reconstrução dos seus mundos. O modo como escreve aproxima-nos, pede-nos para que toquemos as suas palavras, as sorvamos, e é isso que nos permite seguir atrás de si, apesar de toda a desconexão superficial do seu texto.

Em termos da obra de Woolf, considero que “Mrs. Dalloway” (1925) foi o seu primeiro grande experimento, e que como tal sofre de alguma imaturidade, excessiva desconexão, talvez em parte por ser uma obra reconstruída a partir da fusão de dois contos seus, mas essencialmente porque quando comparada com “Rumo ao Farol” (1927), a obra seguinte, podemos notar um amadurecimento de toda a técnica acima descrita. Em ambos os livros usa - o caminhar para algo - (a festa e o farol) para nos facilitar a linearização de ideias, com o desenvolvimento a cargo do - desenrolar de expectativas e antecipação. Mas o segundo caso resulta melhor, talvez por apresentar um número mais limitado de personagens, permitindo mais marcas de redundância, e também por termos um propósito refletido num espaço geográfico, o que em conjunto facilita a nossa apreensão do trabalho de Woolf.