Sancho Pança e D. Quixote, Alcalá de Henares, Madrid, Espanha
1. O significado do meu Dom Quixote
“O Cavaleiro de Triste Figura” é este o título que D. Quixote adota a meio da narrativa, sendo este central na compreensão do personagem, dos seus motivos e desígnio, e que sustentando todo o universo choca com o reconhecido género cómico de que se compõe a obra.
Série de animação “Don Quijote de La Mancha” (1979)
Tive o meu primeiro contacto com a personagem de D. Quixote através da série de animação para televisão, “Don Quijote de La Mancha” (1979) , que passou em Portugal em 1984, nas manhãs de sábado, na RTP 1. A marca foi forte, e desde então nunca mais me abandonou, ficando na memória alguns dos episódios marcantes que agora pude revisitar ao ler o livro. Em essência guardo dessas manhãs mais questões que respostas, o que evidencia desde logo toda a importância do universo criado por Cervantes. D. Quixote não tinha propriamente um desígnio, além da sua Dulcineia, que nunca surge, que não existe, tal como quase tudo apenas existe na sua cabeça. O desenho animado foi aqui crucial por poder mostrar o fantástico e o impossível, permitindo-nos entrar pela mente adentro do personagem, obrigando-nos a questionar a diferença entre o real e o imaginário.
O “cavaleiro-andante” que servia de rótulo ao tipo de cavaleiro dos romances medievais, o senhor seguidor das normas do cavalheirismo, em Cervantes, pela crítica desse modelo, e por via de uma abordagem anti-herói, assume o lugar de todos nós, errantes nesta vida. O cavaleiro não quer seguir apenas as regras e convenções, antes procura respostas, busca um sentido para a vida. D. Quixote é apresentado como alguém extremamente lúcido mas que sofre de uma mania (ser cavaleiro-andante) que o deixa louco a esparsos momentos, mas não teremos todos momentos destes, com manias nossas? Daí que ler "Dom Quixote" exija um esforço da nossa parte, sermos capazes de nos revermos no personagem para o podermos compreender, porque a todo o momento Cervantes nos vai rasteirando, lançando a dúvida sobre se o próprio D. Quixote acredita naquilo que diz.
Para se chegar ao coração de toda esta busca e errância, que define o quixotismo, temos de olhar para história de vida do próprio Cervantes. Nascido de boas famílias, mas sem grandes posses, teve uma vida atribulada (cativo durante anos, em tempo de guerra em Itália, e mais tarde preso por falta de pagamento de dívidas), viveu em Lisboa dois anos, mas foi em Espanha que viveu como verdadeiro nómada, passando por imensas cidades ao longo da sua vida. Os empregos medianos que teve nunca lhe agradaram, e as vezes que procurou outros lugares, foi sempre preterido. No amor passou por amores proibidos pelas famílias, nunca encontrando um amor que lhe permitisse assentar. Apesar do sucesso dos seus livros em vida, nunca pôde viver da escrita.
2. Do nascimento da Prosa Narrativa
Antes de “Dom Quixote” existiram várias formas narrativas, porque é que então consideramos este como a origem do livro de ficção (romance), tal como hoje o conhecemos? Para tal é preciso olhar à história e procurar compreender como contávamos histórias, nomeadamente com livro como meio. Essencialmente tivemos três formas: o Poema, o Drama e a Prosa.
As histórias na forma de Poema, ou seja em que história vai sendo contada por meio de versos estruturados para a produção de efeitos estéticos. Iniciados com os fundacionais épicos “Gilgamesh” (~-2100), “Ilíada” (~-800) e “Odisseia” (~-800) que serviram de modelo a “Eneida” (~-30), “Metamorfose” (~800), “Beowulf” (~900), “Divina Commedia” (~1300) e “Lusíadas” (~1500).
As histórias na forma de Drama, ou seja, em que a história vai sendo contada por meio de diálogos, aqueles que poderão ser colocados em cena por atores. Iniciadas com as tragédias gregas de Ésquilo , Eurípides e Sófocles à volta de -450, e que atingiriam o pináculo da sua forma com Shakespeare, no tempo de D. Quixote, em ~1600. Aliás Shakespeare morreu 10 dias depois de Cervantes, dois génios das letras, viveram na exata mesma época a poucos quilómetros entre si, mas nunca chegaram a conhecer-se.
As histórias na forma de prosa começaram antes dos Poemas e Drama, mas no início serviram apenas a não-ficção. Costumamos reportar na nossa noção histórica ocidental à Grécia antiga, nomeadamente ao seu legado filosófico, com a tríade Sócrates, Platão e Aristóteles. Esta nunca desapareceu e continua até aos dias de hoje, nas várias disciplinas académicas. Aqui usa-se a prosa, mas o objetivo não é elaborar uma história, antes reportar um problema real, preocupando-se apenas com o fundamento do problema, esquecendo a forma, assumindo-a o mais próximo possível da oralidade e do suposto pensamento. Assim na Grécia antiga era fácil distinguir o real do ficcional olhando apenas à forma dos escritos.
A prosa como ficção surge muito mais tarde, no final da Idade Média (~1300). Os primeiros escritos surgem como registos de lendas, em que o ficcional se mistura com o real. Das lendas não se sabia o que era verdade, e o que era inventado, daí que os registos que vão acontecendo sofram dessa ambivalência na própria forma. Estas lendas escritas iniciam um novo género que se intitularia de “Romances de Cavalaria”, sendo estes a base daquilo que viria ficar conhecido como simplesmente Romance. O pioneiro, ou o mais recordado, dos registos destas lendas, é marcado por Rei Artur, responsável por vários romances em França e Inglaterra (~1300), e o final por “Dom Quixote” (1605 e 1615), pelo meio muitos houveram, tais como o imensamente citado em "Dom Quixote", “Amadis de Gaula” (1496), que ainda hoje se discute se terá sido escrito por espanhol ou português.
3. A importância de “Dom Quixote”
“Dom Quixote” (1605 e 1615) de Cervantes, à semelhança de “The Birth of a Nation” de D.W. Griffith no cinema, não inventa propriamente nada, antes consolida, solidificando conhecimentos previamente distribuídos em várias obras. Os processos criativos não emergem no vazio, mas antes da complexidade e imensidade de caminhos de cada movimentação artística. Obras como “Dom Quixote” ou “The Birth of a Nation", surgem como marcos de viragem porque dão sentido ao caos de possibilidades criativas, criando uma base sólida a partir da qual todos os que lhe sucedem, ali se ancoram.
Na verdade o século XVII é considerado como o século de ouro espanhol por tudo aquilo que o país deu à humanidade em termos artísticos e científicos. Não foi apenas um efeito tardio da Renascença, embora também, mas foi um um claro efeito da imensa riqueza extraída das colónias da América Latina. O mais visível destes efeitos surgiu na forma arquitectónica das suas catedrais, assim como na pintura de Velázquez, El Greco, Murillo, Alonso Berruguete ou Luis de Morales, mas tudo em redor beneficiou desta erupção intelectual, sendo "Dom Quixote" um dos melhores exemplares desse período.
4. Da escrita e tradução
A escrita em "Dom Quixote" apresenta dois problemas que a tornam ligeiramente difícil, a erudição e os arcaísmos. Os livros são do século XVII, como tal o espanhol escrito é bastante distante do que hoje se escreve, não apenas alguns dos termos, como expressões e artifícios gramaticais que foram caindo em desuso. Por outro lado Cervantes apresenta um enorme background literário que lhe permite não apenas chamar ao seu texto citações de muitos clássicos e seus contemporâneos, e ao mesmo tempo apresentar uma linguagem bem elaborada, entrosada e trabalhada. Tudo isto dificulta a leitura, mas antes disso dificulta o trabalho de tradução.
Em português existem várias traduções, uma das mais conhecidas é a do escritor Aquilino Ribeiro, que de tanto ter trabalhado a tradução acabou por criar uma nova versão, em vez de uma tradução. Li apenas os primeiros capítulos nesta versão, e pareceu-me demasiada arcaica, existe uma clara tentativa de traduzir do espanhol antigo para o português antigo, o que dificulta imenso a leitura. No Brasil existem várias traduções recentes, li vários capítulos da nova da Penguin Brasil, realizada por Ernani Ssó, no qual este procura realizar o inverso, trazendo a obra para um português contemporâneo. O texto fica muito mais acessível, assumo mesmo que as partes cómicas ficam com mais graça, mas o texto perde em erudição, e acaba criando-se uma nova versão da obra, já que muitas vezes Ssó transforma completamente aquilo que o autor escreveu. A versão na qual acabei por ler praticamente todo o texto foi a de Miguel Serras Pereira, premiada em 2006 pelo PEN, e agora re-editada numa edição especial para a comemoração dos 50 anos da editora D. Quixote. Comparando alguns trechos com a versão espanhola, mais recente da Real Academia Española, o texto segue quase totalmente o original, obrigando-nos muitas vezes a recorrer ao dicionário pelo uso de vocábulos já fora de uso, ou provenientes do castelhano. De qualquer modo a leitura, apesar de menos escorreita que a versão de Ssó, é ainda assim bastante fluída, com a vantagem de podermos sentir por vezes a proximidade temporal por via do texto.