julho 01, 2015

“Middle-earth: Shadow of Mordor” (2014)

Na leitura de várias críticas ao jogo deu para perceber que existia aqui algo novo, resolvi então jogar para tentar descortinar de que era feita a inovação que tinha convencido a crítica. Digo isto porque à partida não seria um jogo que eu jogasse, desde logo porque, e apesar de gostar, não sou fã da saga “Lord of the Rings”; e depois porque jogos de extrema violência, em que se matam orcs aos milhares, não fazem propriamente parte do meu menu predilecto. Todavia, fui positivamente surpreendido, retirando da experiência uma enorme dose de satisfação, tanto lúdica como académica.





Na sua componente lúdica, “Shadow of Mordor” é extremamente gratificante, desde as primeiras horas, até ao final (cerca de 30 horas, com algumas missões secundárias), o sistema de jogo dá-se totalmente ao jogador, construindo um balanceamento da progressão muito equilibrado, com excelentes momentos de puro “flow”, raramente colocando o jogador num estado de incapacidade de reação, ou facilitando em excesso o desafio. É verdade que sentimos por vezes que o jogo se dá muito facilmente, mas isso depende muito do modo como jogamos, se levamos a estratégia a sério, o sistema torna-se "domesticável", mas também o podemos ignorar e assumir um perfil "selvagem", de força-bruta. Ambas permitem gratificação, por um lado o jogo gratifica a inteligência da estratégia, por outro a resiliência e persistência.

A abordagem pela estratégia é desenhada por meio de um sistema clássico RPG (de pontos - experiência e dinheiro - e runas), que nos permite ir modelando as competências do nosso personagem, que implica escolhas estratégicas sobre o modo de jogo que pretendemos desenvolver. É verdade que senti alguma falta de "looting", dá prazer as recompensas que se conseguem sempre que se chega a um lugar novo ou que se elimina um personagem difícil, e em parte aqui temos as runas dos capitães, mas a gestão racional que podemos fazer de todos os elementos acaba por ser ela própria bastante mais gratificante, interioriza-se o modelo que acaba funcionando como motivador para nos agarrarmos ao nosso personagem.

Interface do sistema Nemesis

No campo académico, temos o ex-libris do jogo, o sistema Nemesis, que acaba por ter uma enorme relevância na componente narrativa. O Nemesis é um sistema de hierarquização da Inteligência Artificial das forças inimigas, como tal afecta directamente a nossa relação com os agentes do jogo. Ou seja, sempre que morro a hierarquia de comando dos orcs é re-organizada pelo sistema, e quando reencontro personagens com os quais me cruzei anteriormente, eles lembram-se perfeitamente de mim, dirigindo-se a mim com humor e arrogância, e mais do que isso, com fortes traços de personalidade que garantem um sentido dramático ao ambiente de jogo. O sistema que não parece à primeira vista punitivo, em termos de morte, acaba sendo-o já que de cada vez que morremos, por motivo de alterações hierárquicas de comando, vários capitães sobem de escalão, o que quer dizer que na vez seguinte que os encontramos, eles estão ainda mais fortes. Isto acaba por gerar tensão e uma quase necessidade de eliminar cada capitão logo na primeira vez que engajamos combate com ele.

O Nemesis não controla apenas o ranking de força da cadeia de comando, controla também o relacionamento entre os diferentes personagens dessa cadeia. Assim os mais graduados são protegidos por aqueles que estão imediatamente abaixo destes, na ânsia por subirem eles também de posto. Deste modo quando lutamos contra alguns deles, podem existir vários outros que nos atacam por estarem a defender o outro. Estes personagens são assim imbuídos pelo sistema de volição para proteger e eliminar, já que conseguindo-o, subirão na cadeia de comando. Mas mais interessante ainda, é que podemos promover a traição interna na cadeia de comando, e virar o sistema contra si mesmo.

Tudo isto funciona muito bem, mas de modo isolado não seria mais do que um “gimmick”, assim o que “Shadow of Mordor” faz muito bem, é pegar no brilhante Nemesis e aplicá-lo diretamente sobre um mundo em espaço aberto, do tipo "Assassin’s Creed" (AC), gerando todo um mundo-história (ambiente e personagens) completamente abertos e dinâmicos. Já não se trata de passearmos pelo jogo à procura de coisas para fazer, lutas ou sidequests para ganhar experiência/pontos, como fazemos em AC ou GTA, mas agora quando o fazemos, os personagens deste mundo reconhecem-nos, e vêm atrás de nós para se vingarem, se for caso disso. Por outro lado, como o sistema estabelece várias interdependências entre os inimigos, podemos dar por nós a assistir a acções e lutas que emergem de modo procedural, a partir do sistema, que está em constante evolução num espaço aberto. Por exemplo, pode acontecer com um inimigo que temos de eliminar, que por estar preocupado em defender um superior seu, acaba por ser eliminado por um monstro do universo do jogo (Graugs ou Caragors), facilitando-nos o trabalho, mas ao mesmo tempo demonstrando toda a capacidade autononómica deste mundo-história.

Estamos perante um claro avanço no modo como as histórias se combinam com o jogo, no sentido em que não temos apenas um espaço aberto, mas também um conjunto de personagens abertos, o que acaba por providenciar ao jogador todo um mundo-história, recheado de escolha e autonomia. Claro que em termos narrativos isto não seria suficiente para manter o nosso foco, o que obriga à coexistência, tal como acontece em AC ou GTA, de uma linha narrativa linear de missões chave, sobre a qual não temos qualquer participação. O que me leva a concluir que à medida que vamos avançando, no desenvolvimento da linguagem dos videojogos, vamos aperfeiçoando o cruzamento da narrativa e jogo, contudo nota-se que por mais que façamos, continuamos a querer manter por um lado, a componente de jogo bem vincada, e por outro uma narrativa coesa - com princípio meio e fim - para dar um sentido a todas as nossas acções. Julgo que "Shadow of Mordor” faz essa mescla muito bem, mantendo tudo bem evidenciado (jogo, narrativa, e jogo-história, ) mas bem coeso, apontando caminhos a seguir para o uso do proceduralismo na narrativa.

junho 25, 2015

"Monsieur Proust" (1973)

Depois de ter lido “Em Busca do Tempo Perdido” fui em busca de algo mais, de saber quem era realmente Proust, o quanto se escondia dele por detrás da figura do seu narrador. Existem dezenas de livros sobre Proust, e de análise da sua obra. Muito se escreveu e continua a escrever, desde análises da pintura em Proust, à literatura, filosofia, amores, autoajuda, etc. De todos, os que me parecem reunir maior consenso são as duas biografias, ambas com mais de mil páginas cada, uma do britânico William Carter, e outra do francês Jean-Yves Tadie. A de Tadie parece ser mesmo a mais recomendada, contudo depois de perceber que Tadie tinha seguido religiosamente um outro pequeno livro chamado “Monsieur Proust”, decidi ler primeiro este. “Monsieur Proust” foi escrito por Céleste Albaret, a senhora que tratou de Proust, e viveu com ele, durante os seus últimos 10 anos de vida.


Li o livro em francês, já que não está editado em Portugal, mas senti alguma resistência inicialmente, porque não tinha lido a "Busca" em francês, o que me deixava uma certa amargura. Contudo, não se pode comparar. Este é um livro com uma escrita muito simples, escrito pela própria Céleste, e organizado por Georges Belmont. Ler a "Busca" em francês seria talvez aconselhável, e talvez o faça ainda um dia, mas para primeira vez, deve ser lido na língua que melhor se domina, de outra forma abre-se caminho a deixar o livro a meio.

O livro de Céleste é uma verdadeira jóia biográfica, um relato na primeira-pessoa de alguém que viveu todos os dias, dos últimos 10 anos de vida do escritor, junto do mesmo. Céleste foi trabalhar e viver para casa de Proust, pouco depois de ter sido lançado o primeiro livro, “O Lado de Swann”, em 1913, tendo acompanhado Proust durante todo o tempo em que escreveu os restantes 6 livros. Proust não via Céleste como um seu par, ela não tinha muita formação nem muito interesse em literatura, tendo começado por a encarar primeiro como criada, e depois, simultaneamente, como sua mãe e filha. Deste modo a relação que se estabelece entre ambos foi muito forte, o que naturalmente acaba por criar algum viés na análise dos factos. Céleste é incapaz de dizer algo de mal sobre Proust, tudo o que ele fazia era quase sagrado, e  percebemos várias vezes como ela embeleza o real das suas recordações. Assim esta abordagem, carregada de respeito e sentimento, acaba contribuindo ainda mais, para elevação da imagem do autor semi-divino, que muitas vezes sentimos ao ler a obra de Proust.

Devo dizer que ler “Monsieur Proust” é uma experiência sui generis, porque se entrelaça profundamente com a leitura da “Busca”, do mundo experienciado no romance, e que é aqui suportado por relatos de uma alegada verdade. Este livro serve quase como testamento ao romance, no sentido em que nos dá algumas provas da verdade que Proust afirmava estar à procura no seu livro. Céleste vai descrevendo o que sentia, e relata muitos diálogos tidos com Proust, que nos fazem viajar no tempo, e por vezes quase nos levam a sentir que estamos ali, no apartamento de Proust na Paris de 1920, a vê-lo e a ouvi-lo. O carinho de Celeste para com Proust é aqui fundamental para que o relato surta todo este efeito, a forma como ela nos apresenta Proust, acaba aproximando-se do modo como Proust nos vai apresentando o seu narrador no romance. No final, depois de terminar ambas as leituras, e apesar de aceitar que o mundo do romance é imaginário, ele tem tanto de Proust, que só podemos aceitar que o que Proust almejava para a sua arte, foi inteiramente conseguido.

Fecho com algumas das citações que mais me marcaram na leitura do livro, embora não cite nada da fase final do livro, dos últimos dias e horas de vida do escritor, porque foram uma leitura extremamente intensa, além de acreditar só fazer sentido ser lida, por quem já leu a “Busca”.

Cartas e postais de Proust para Céleste (na foto à direita).



As memórias, sempre as memórias.
Celeste: “Peut-être que, s’il a lutté ainsi contre le temps pour terminer au plus vite, c’était qu’il pressentait la fin de tant de choses qu’il avait aimées et qui n’étaient déjà plus que des ombres de souvenir, alors que, lui-même, il était pressé par la mort.”

Celeste:"Et je pense que, plutôt que faute d’avoir faim, c’était surtout, non seulement qu’il craignait, mais qu’il était sûr d’être déçu. Il aimait mieux le manger en souvenir."

Proust: “Les fleurs représentent l’amitié et l’amour qu’on porte aux vivants ; les morts n’en ont que faire. Fleurir les tombes, c’est un usage et je l’observe ; mais croyez-moi, chère Céleste, je n’ai pas la dévotion des cimetières. Ce n’est pas là que je trouve mes chers disparus. Ma dévotion est dans le souvenir.”

Proust: “Parce que, Céleste, les paradis perdus, il n’y a qu’en soi qu’on les retrouve.”
As influências assumidas por si
Celeste: “C’était en 1900 ou 1901, durant les deux ou trois années pendant lesquelles, me disait-il, il avait fait trois des découvertes qui avaient le plus marqué son esprit : l’écrivain anglais Ruskin, les cathédrales — surtout celle d’Amiens avec son ange — et Venise et sa peinture.”
A origem do método de trabalho
Proust: “Mais, Céleste, ce n’est pas un don. C’est d’abord une tournure d’esprit qui se cultive et qui devient une habitude à la longue. Comme il y avait beaucoup d’activités qui m’étaient interdites, je restais plus souvent immobile que les autres, au milieu de la vie et, ne fût-ce que pour me distraire, je les regardais s’agiter, souvent avec envie, ce qui faisait que je les regardais encore mieux. J’ai commencé tout enfant. Du jour où j’ai eu mon asthme, aussi bien aux Champs-Elysées qu’au pré Catelan d’Illiers, dans la maison de mon oncle Amiot, je ne courais pas, je me promenais. A Illiers, je pouvais rester des heures à regarder couler les eaux du Loir, puis à lire ou à écrire dans le petit pavillon avec toute la nature sous les yeux. Quand j’accompagnais mon oncle dans son tilbury, c’était la même chose ; je voyais le paysage se déployer et bouger, les clochers des villages tourner dans la plaine. La vie, les gens, c’est aussi une nature qui se déploie et qui passe ; mais, à force de regarder, d’observer, on finit par s’intéresser aux rapports et, comme les savants, des rapports, avec la réflexion, on en vient à découvrir des lois.”
O espelho emocional
Celeste: “A l’époque, je ne me rendais même pas compte de sa provocation ; je « marchais », comme on dit. C’est après sa mort seulement que j’ai compris. Et je ne m’avancerais pas jusqu’à ce genre je suis persuadée aujourd’hui que ce n’était pas tant mon jugement qu’il voulait. Plutôt ma réaction, je le répète. J’avais le tournant de l’esprit assez moqueur ; spontanément, je lui livrais le fond de mon âme et de mon cœur... pan ! — c’était cela qu’il voulait.”
O reconhecimento do privilégio que providenciou a sua obra
Proust: “Ils [os pais] m’ont gâté jusqu’au bout en me laissant une fortune, avec toute la liberté d’en jouir comme il me plaisait, sans plus avoir à demander rien à personne. Mais même cette liberté n’a jamais pu les remplacer pour moi. Et pourtant elle existe, Céleste, elle existe... Sans elle, je n’aurais jamais pu faire ce que je fais. Et Dieu sait cependant comme Maman pouvait s’ingénier de son vivant pour me la donner déjà !"
Apenas a obra importava, nada mais
“C’étaient toujours des petites montres tout à fait ordinaires — je les payais cinq francs d’alors, je m’en souviens. Il n’en voulait pas d’autres. — Comme cela, disait-il, si je les casse, elles sont bonnes à jeter sans remords. Une montre, pour la faire réparer, il en coûte plus cher que d’en acheter une neuve. (..) Cela faisait partie de sa conception pratique des choses, qui était très personnelle, il faut le reconnaître (..) - Et prenez-moi un modèle tout ce qu’il y a de plus ordinaire... cerclé d’acier, simplement.”
A percepção da qualidade do seu trabalho
Proust: “Voyez-vous, Céleste, je veux que, dans la littérature, mon œuvre représente une cathédrale. Voilà pourquoi ce n’est jamais fini. Même bâtie, il faut toujours l’orner d’une chose ou d’une autre, un vitrail, un chapiteau, une petite chapelle qu’on ouvre, avec sa petite statue dans un coin.”

Proust: “Et quand je serai mort, vous verrez ce que je vous dis : on me lira, oui, le monde entier me lira. Vous assisterez à l’évolution de mon œuvre aux yeux et dans l’esprit du public.”

Proust: “si, comme il est dit dans cet article, Stendhal a mis cent ans pour être connu, Marcel Proust, lui, mettra à peine cinquante ans.”

junho 21, 2015

Quando o cinema analisa várias camadas da realidade

Nightcrawler” (2014) surpreendeu-me porque foi bastante além do que estava à espera, operando uma ideia muito mais abrangente do que aquela que tem sido passada a propósito da mensagem do filme. Concordo inteiramente com o brilho da performance de Gyllenhaal, mas claramente que a sua força brota da audácia e complexidade do argumento original de Dan Gilroy.



Nightcrawler” tem sido comumente apresentado como crítica social, nomeadamente do estado atual dos media, do jornalismo infestado por “tabloidismo”, que em desespero pela sobrevivência se vê obrigado a abandonar a factualidade e imparcialidade em troca do populismo. Não interessa mais saber se o que se apresenta imana da paisagem real, se representa uma alteração do todo, que deva servir o cidadão na adopção de novos comportamentos. Interessa apenas garantir a força da emoção na primeira impressão, já que é pela emoção que se ganha a atenção, e é pela emoção que se garantem memórias, mantendo a audiência leal à marca noticiosa. A directora do canal noticioso em “Nightcrawler” chega a dar a sua definição de jornalismo:
“The best and clearest way that I can phrase it to you, Lou, to capture the spirit of what we air, is think of our newscast as a screaming woman running down the street with her throat cut.” Rene Russo, como Nina Romina, em “Nightcrawler” (2014)
Ora se é verdade que este é foco do filme, e que não é novo, já antes o vimos em “Network” (1976), e em termos de crítica dos efeitos vimos melhor ainda em “Natural Born Killers” (1994), ele é apenas o caso de estudo escolhido por Gilroy. Como tal as ideias sobre os media - discutidas, analisadas e criticadas - servem apenas de pano fundo para algo mais lato. Houve quem na crítica tocasse já algumas dessas possibilidades, a obsessão e loucura, imanentes das pressões que sofre a sociedade, desfazendo o trabalho por comparação a “Taxi Driver” (1976) de Scorcese. E se concordo com a comparação, não concordo com a inferioridade, bastando desde logo colocar lado a lado, Lou e Travis, e ver como Gyllenhaal não fica atrás em nada, a De Niro.

Mas é a crítica política que mais interessa, porque é poderosa, porque se “Taxi Driver” só faz sentido quando analisado à luz do pós-guerra do Vietname,  “Nightcrawler” só faz sentido quando discutido à luz do pós-crise 2007. Vivemos um momento político estranho e mesmo paradoxal, porque tendo sido o neoliberalismo o movimento político responsável pelo estouro do imobiliário internacional, criador de uma das maiores recessões da história recente, é à filosofia e valores deste movimento, que os políticos em 2015 acorrem para tratar dos problemas por este criados, como se pode ver na Europa atual.


Neste sentido, para o guião de Gilroy é menos relevante a crítica do jornalismo, embora este também surja no quadro geral das transformações produzidas pela crise, e muito mais a criação e motivações do seu personagem principal, Lou. Porque aquilo que move Lou, não é a fama, nem o culto da imagem televisionada, como seria de esperar na obsessão mediática. O que em essência move Lou é a vontade de fazer a diferença, enquanto indivíduo, e ser respeitado por essa diferença. Um evidente fruto das visões neoliberais do mundo, que não acreditam na educação formal, menos ainda se for pública, vendendo sonhos de um empreendedorismo autodidata, que a internet tão bem tem servido para promover por via dos chamados milagres do ensino a distância e MOOCs. Quadros de aprendizagem em que se promove o conhecimento a metro, esquecendo a formação e o crescimento enquanto indivíduos parte de um todo, a sociedade. Para Lou tudo é medível, tudo tem uma função, tudo tem um fim, tudo tem uma etiqueta com o seu valor marcado. Lou, como indivíduo extremamente inteligente, com enorme capacidade de apreensão de informação e conhecimento, mas com baixos níveis de integração social, nomeadamente ausência de empatia, consegue focar, e ser não apenas bom, mas excelente naquilo a que se dedica.

junho 17, 2015

Os recreios do mundo

Depois de há dois anos aqui ter deixado uma série fotográfica, de Gabriele Galimberti, sobre Brinquedos de crianças de várias partes do globo, agora trago uma nova série fotográfica, com um tema próximo, os Recreios (Playground) em várias partes do globo, por James Mollison. Esta série de Mollison, à semelhança da de Galimberti, é poderosa emocionalmente porque toca de forma muito direta memórias que todos possuímos, e por outro lado ao obrigar a um processo de comparação, instiga-nos a ir ainda ao fundo dessas memórias, para poder comparar em detalhe. Claro que podemos ler aqui componentes políticas e sociais de cada país, mas antes desse nível de significado temos, em essência, as crianças, as suas relações, e as suas vidas em cada um daqueles momentos. Aliás, é o próprio Mollison que o refere como objecto de partida para a série.

Dechen Phodrang, Thimphu, Bhutan

Stonyhurst College Lancashire, Uk

St. Mary of the Assumption Elementary School, Brookline, Massachusetts
"When I conceived this series of pictures, I was thinking about my time at school. I realized that most of my memories were from the playground. It had been a space of excitement, games,bullying, laughing, tears, teasing, fun, and fear. It seemed an interesting place to go back and explore in photographs.I started the project in the UK, revisiting my school and some of the other schools nearby. I became fascinated by the diversity of children’s experiences, depending on their school. The contrasts between British schools made me curious to know what schools were like in other countries.

Most of the images from the series are composites of moments that happened during a single break time—a kind of time-lapse photography. I have often chosen to feature details that relate to my own memories of the playground. Although the schools I photographed were very diverse, I was struck by the similarities between children’s behavior and the games they played.
"
James Mollison
Cadet School of the Heroes of Space, Moscow

Kroo Bay Primary, Freetown, Sierra Leone

Utheim Skole, Kårvåg, Averøy, Norway

Holtz High School, Tel Aviv, Israel

Aida Boys School, Bethlehem, West Bank

He Huang Yu Xiang Middle School, Qingyuan, China

Shohei Elementary School, Tokyo

Valley View School, Mathare, Nairobi, Kenya

Inglewood High School, Inglewood, California

Pilgrim’s School, Winchester, UK

Seabright Primary School, London

Affiliated Primary School of South China Normal University, Guangzhou, China

Seishin Joshi Gakuin School, Tokyo

junho 16, 2015

M+, um blues digital

Foi com um enorme agrado que vi, e ouvi, o primeiro teledisco da nova banda, M+, desde logo por reconhecer ambas as caras, de mestrados em que leccionei na Universidade do Minho, cursos que parecem também ter servido para se conhecerem. Do que me lembro de ambos, a Mónica Dias manifestava um gosto enérgico pelo audiovisual, numa faceta clássica e revivalista, de algum modo ligada à sua atração pela cultura musical do Blues, já o Márcio Paranhos era imbuído de um espírito mais experimentalista, com um gosto particular pela abstração e potencial do digital. Dois pontos distantes do espectro artístico, que ao juntar-se num projeto comum, teriam forçosamente de resultar em algo criativo. Claro que se assim é deve-se às suas competências, e não apenas aos seus gostos. Gostei do género musical, que parece designar-se de synthpop, e resolvi fazer-lhes algumas questões para o blog, às quais tiveram a amabilidade de responder.

M+ (Mónica Dias + Márcio Paranhos)

:: Como surgiu a dupla? Como se conheceram, e como surgiu a ideia para avançarem para um projeto musical conjunto? 

Mónica: A dupla surgiu em outubro de 2014, aquando de uma conversa de café onde o Márcio sugeriu criarmos um projeto em conjunto.

Márcio: Nós conhecemo-nos numa disciplina opcional, numa altura em que ambos estávamos a fazer mestrado. Cedo conversámos sobre alguns dos projetos que tínhamos e que andávamos a desenvolver. No meu caso estava ligado essencialmente às artes performativas com uma vertente visual e sonora experimental, por outro lado a Mónica estava ligada a um projeto musical na onda do rock e blues.

Mónica: Estes projetos pessoais acabavam sempre por não me satisfazer, não sendo os registos que gostava de poder explorar verdadeiramente. Numa conversa, o Márcio desafiou-me a misturar os nossos dois mundos e ver o que poderia nascer desta colaboração.

:: Existe aqui uma clara clivagem, com o Márcio numa componente electrónica e a Mónica com guitarra e uma voz R&B, como é que isto tudo se conjuga? 

Mónica: Por incrível que possa parecer, a conjugação foi mais fácil do que inicialmente se previa. O Márcio tem todo um sentido rítmico que aliado à minha experiência musical permitiu uma estrutura inicial bastante sólida na construção das músicas. Sempre me fascinou a possibilidade de misturar a sensualidade do blues a uma componente energética/envolvente que a música electrónica pode proporcionar.

Márcio: Ao contrário das minhas anteriores experiências na vertente musical, que passavam sempre por projetos de teor instrumental, fazia todo o sentido unir a voz da Mónica e sair da minha zona de conforto em prol de uma sonoridade mais musical. Com isto assumido, houve um cuidado em nunca sobrepor as diferentes naturezas que nos influenciam.

Mónica: Era essencial existir uma coesão do todo, no sentido do que queríamos seguir.



:: Qual é a vossa formação musical?

Márcio: A minha formação musical baseia-se essencialmente na intuição. Ouço imensa música desde muito novo, mas nunca tive nenhuma banda nem qualquer formação. No fundo sou um autodidata e um curioso.

Mónica: Eu estou no mundo da música, tendo vindo a incluir projetos musicais, há quase 10 anos. Toco guitarra desde os 13, mas sempre numa vertente autodidata.

:: O que procuram criar com esta abordagem musical, ou seja, existe algo que tinham em mente na hora de criar, ou saiu apenas naturalmente? 

Mónica: Desde o início pensámos que era importante não ter grandes restrições no que toca à criação. Não queríamos soar a nenhuma banda em especial. O nosso único objetivo, era criar e criar até chegarmos a um resultado que demonstrasse a nossa energia, e o gosto com que procuramos fazer música.

Márcio: Como pessoas de mundos tão díspares, fazia todo o sentido quebrar regras e perceber até onde conseguiríamos ir com todo o nosso entusiasmo. Tudo acaba por ser criado num sentido espontâneo e sempre em aberto.

Mónica: O fato de não nos regermos por regras ou algum registo em especial acabou por ser o nosso maior aliado e isso refletiu-se no nosso produto final.

Márcio: No fundo, por não queremos cair em nenhum estereótipo, acabámos por criar algo que soa muito a nós mesmos. Um reflexo de intenções que contém toda uma vontade de ir em frente.



:: O vídeo foi realizado pelos dois? O que procuravam passar com o mesmo? 

Mónica: Sim, o facto de termos um "low budget" acaba por nos desafiar a encontrar formas de comunicar a nossa identidade sem perdermos a essência da música criada.

Márcio: Foi realmente uma tarefa no mínimo peculiar. Duas pessoas a filmarem-se num espaço pequeno, e vazio, e sempre com uma questão em mente: como transpor estes dois mundos que são os nossos, num sentido complementar? É na resposta a esta questão que surgem as duas cores, que nos revelam e complementam.

Mónica: As duas cores representam nada mais que a nossa individualidade em constante comunicação.

Márcio: É dessa comunicação que M+ (Mplus) acontece.

"Freedom" (2015) de M+

:: Só têm esta música, ou têm mais em carteira? Vão lançar algum EP? Quando? E concertos? 

Márcio: Na realidade, já temos um EP pronto a ser lançado já este mês.

Mónica: Esta foi uma das primeiras músicas criadas e o acordo foi mútuo quando decidimos que este seria o nosso primeiro single.

Márcio: Existem ainda uns “truques na manga” que cedo serão desvendados, mas até ao momento há uma enorme vontade de levar as músicas a público e de as apresentar ao vivo.

Mónica: Está previsto para o próximo mês um conjunto de datas que assinalam os nossos primeiros passos nos palcos. Fiquem atentos às novidades, porque cedo anunciaremos datas de espetáculos.



Para mais informações sobre a banda, podem aceder à sua página facebook.

junho 15, 2015

Porque fazemos o que fazemos?

"Why We Do What We Do: Understanding Self-Motivation" é um bom livro mas não vai além disso. Aquando da sua leitura precisará de se levar em conta dois elementos: o primeiro, que o livro é de 1995; e o segundo que Edward Deci, conjuntamente com Richard Ryan, são duas das maiores autoridades no campo da Motivação. Porque digo isto? Porque aquilo que Deci aqui apresenta é para nós em 2015 algo já assimilado, apesar da sociedade muitas vezes o esquecer, mas se o é hoje aceite deve-se a estes dois investigadores. E sendo de 1995, o que aqui se diz era ainda recente à altura, hoje já não é. Depois, o livro acaba por sofrer de um problema clássico, sendo académico o autor e sabendo que os públicos são distintos, procurou agradar a todos, acabando por fragilizar a obra. Se a primeira parte funciona bastante bem na desconstrução teórica do modelo que suporta a “Self-Determination Theory”, a segunda parte é fraca, com Deci a entrar quase pelo caminho da autoajuda, com ideias simples e simplistas, demasiado senso comum e pouco suporte para afirmações tão largas e complexas. Assim descrevo apenas a parte do livro que realmente vale a pena enfatizar.


A teoria de motivação aqui apresentada, foi criada ao longo de décadas por Deci e Ryan, tendo sido denominada como “Self-Determination Theory” (SDT). Como o próprio nome indica, a teoria parte de uma base que diz que a intensidade da nossa motivação está directamente ligada à nossa determinação para alcançar um objectivo (ex. o ato de deixar de fumar, maioritariamente só resulta no tempo, quando parte de uma vontade do próprio). Deste modo Deci começa por elencar a distinção entre a motivação extrínseca e a intrínseca. No caso da extrínseca, somos motivados por algo exterior ao objectivo em si, ele apenas é um meio (ex. tirar boas notas na escola, para ganhar uma consola). No caso da intrínseca, refere-se a realizar algo, porque se pretende isso mesmo (ex. aprender a tocar piano porque nos dá prazer). Se à partida podemos pensar que a motivação intrínseca é a única relevante, não é o caso. O que a teoria de Deci refere, é a determinação para agir, não se ela é interna ou externa, contudo ao enfatizar a determinação do próprio, ela refere que quando se motiva, quem é motivado tem de estar consciente e determinado a seguir essa motivação.

Por exemplo, ao explicarmos a uma criança que precisa de estudar para ter um futuro melhor, estamos a colocar-lhe o objectivo exterior na frente, mas não o fazemos obrigando, antes dando a escolher, entre um futuro melhor ou pior, cabendo à criança "decidir". Isto dá conta do porque a motivação não se faz pela recompensa ou punição, mas antes pela explicação e chamada à participação dos envolvidos. No mesmo sentido, quando alguém trabalha como lixeiro, em princípio não é por se sentir movido por tal dever, mas pela recompensa financeira que daí advém, sendo que numa sociedade livre, este não é obrigado a tal, podendo sempre procurar e escolher outros trabalhos.

Deste modo, não basta dizer que pretendemos motivar intrínseca ou extrinsecamente alguém, o que temos de fazer é garantir uma motivação autodeterminada, e para o garantir Deci elenca três variáveis necessárias à sua obtenção: "Autonomia", "Competência", e "Relacionamento". Ou seja, para garantir um indivíduo motivado, precisamos de lhe conferir autonomia, oferecer-lhe liberdade de escolher o seu caminho; precisamos de garantir que o objectivo está ao alcance das suas capacidades, não sendo demasiado fácil, nem demasiado difícil; e por fim garantir a existência de uma relação entre o motivado e o motivador, ou o grupo de pessoas que suporta o objectivo da motivação. Quando estas três variáveis se cumprem o nível de motivação atinge o seu ponto mais elevado, deteriorando-se sempre que uma destas variáveis não é cumprida.

Destes três elementos, apenas um é verdadeiramente novo, a autonomia. No caso da competência, é algo que Vygotsky já tinha identificado há bastantes anos e que ficou conhecido por Zona de Desenvolvimento Proximal, e que Bruner descreveria também como processo de Scaffolding (os andaimes de ajuda à aprendizagem, e manutenção do interesse), muito utilizado nos tutoriais multimedia e de videojogos. Por esta via, conseguimos manter o sujeito interessado, desde que saibamos construir as dificuldades numa lógica progressiva. Já no caso do relacionamento, é a condição de sobrevivência da espécie mamífera, fundamental na componente de gregarismo, tendo sido evidenciada nos mais diversos estudos, desde o cérebro Triúnico à Empatia. Sem empatia, a vontade humana não se ilumina.

Assim no caso da autonomia, o que temos é um processo de garantia da participação do motivado na escolha para a motivação. Procura-se desta forma, envolver de algum modo a pessoa a ser motivada na decisão, garantindo a sua determinação para agir. A escolha e decisão pode ser menor, o que interessa é garantir ao indivíduo que este é ouvido, e que de algum modo existe uma consequência da sua vontade. Deci dedica bastante espaço à discussão da autonomia, desde logo começando por a opor ao controlo, assim como a diferenciando da independência. No caso da independência, apesar desta apelar à liberdade do indivíduo tal como a autonomia, só esta faz referência a que esta acção tenha de ser desligada dos demais, daí que Deci referencie que no caso da motivação acontece precisamente o contrário, a liberdade de escolha não pode ser desligada da vontade de estar ligado aos outros. Deci dá o exemplo dos adolescentes que se afirmam pela sua vontade de se afirmarem como diferentes dos pais (autónomos), mas ao mesmo tempo iguais aos amigos dos próprio grupo (relacionamento).

Por fim, quero ainda frisar um tópico que toda esta teorização acaba por  levantar, e que é profundamente político, mas que nos ajuda a compreender melhor o mundo em que nos movemos. Deci dá conta do modelo motivacional americano, ou capitalista, e depois realiza algumas comparações com o modelo comunista, que este encontrou quando serviu de conselheiro na Bulgária, logo após a queda do muro de Berlim. Assim Deci vai mostrar os dois extremos do espectro da motivação, ou a amotivação, de um lado o controlo do capitalismo, do outro, a inconsistência de propósitos do comunismo.

No caso do capitalismo, temos toda uma sociedade montada para exercer controlo e obrigar o indivíduo a realizar acções que grande parte das vezes não deseja. Trabalhar para comprar um carro ou uma casa maiores do que as suas reais necessidades, uma satisfação material, que até se ser pressionado pela publicidade ou opinião dos outros, não se considerava sequer. Por outro lado, no comunismo, por força de se almejar a igualdade entre os indivíduos, não resta espaço à autonomia, o indivíduo queda-se num limbo, incapaz de compreender o que é esperado dele enquanto membro do grupo, perdendo-se e conduzindo à necessidade de impor regimes totalitaristas para fazer vingar os ideais. Assim temos que qualquer destes dois extremos contribuem inevitavelmente para a amotivação, criando não seres humanos, capazes, saudáveis, criativos e determinados, mas antes nada mais do que simples autómatos.

Para fechar, apenas concluir que a motivação está no cerne daquilo que faz de nós seres humanos, é o garante da nossa volição, da nossa liberdade, e assim do pulsar da própria vida.

junho 14, 2015

A vontade de ser (e recriar o) humano

Ex Machina é a nova jóia da coroa da ficção científica cinematográfica, apesar de trabalhar um tema — a Inteligência Artificial — já tão intensamente discutido e aprofundado sob os mais diversos ângulos: a consciência ("2001: A Space Odyssey” (1968); “Blade Runner” (1982)); as emoções ("A.I. Artificial Intelligence" (2001); "I, Robot" (2004)); a igualdade ("Metropolis" (1927); "Bicentennial Man" (1999)); o controlo ("The Matrix" (1999); "The Terminator" (1984)); a companhia ("Her" (2013); "Wall-E" (2008)); a inteligência (“Colossus: The Forbin Project” (1970); “Star Trek: Generations” (1999), etc.. Assim, apesar de não parecer, “Ex Machina” traz algo bastante novo, apresenta uma proposta para definir o momento em que a máquina se torna verdadeiramente humana (a singularidade), por um meio que vai muito para além do “Teste de Turing”, ou seja, em que esta se torna capaz de dar resposta aos três fundamentos base da vontade humana: autonomia, competência e conectividade.



Não posso entrar no detalhe da explicação das três variáveis sem desvendar o enredo, e por isso mesmo não o farei aqui, direi apenas que este método se poderia designar por “Labirinto da Vida”. Julgo que é um filme obrigatório ver, porque é um filme que não se cola ao deslumbramento tecnológico, concentrando-se antes na essência daquilo que nos torna humanos. Aliás, somos confrontados com um ser (Ava), servido de qualidades da fisionomia homínidea, mas incompleto à superfície, demonstrando a sua natureza maquínica, com o objectivo claro de nos obrigar a ver, e a sentir, além da tecnologia. Claro que esta incompletude na forma é cirurgicamente desenhada, com a cara, centro nevrálgico da comunicação humana, a permanecer intacta.

Diga-se que o trabalho preconizado por Alicia Vikander é grandemente responsável pela eficácia do filme. Vikander consegue desenvolver toda uma linguagem corporal e facial, que se encaixa claramente entre o Uncanny Valley e o Humano. Claro que ajuda o facto de ela não se apresentar vestida como nós, mas o modo pausado e rítmico como ela se move e interage é tão específico, longe do comum robô, mas também diferente do comum humano. Ao longo do filme, podemos nem ter consciência do facto, mas sentimos ali algo distinto. Não tinha conseguido perceber como tinham conseguido esta nuance, até que numa entrevista Alex Garland explica que Vikander tinha estudado Ballet enquanto jovem, conseguindo assim exercer um controlo perfeccionista dos movimentos do corpo, que ela acabaria por usar aqui para estabelecer a linguagem corporal de Ava.

Teaser de “Ex Machina” (2015)

Como um todo, temos uma obra imensamente coesa no modo como vai gerindo a informação, acompanhada por uma estética profundamente racionalizada, tudo coordenado por Alex Garland, que é  autor da ideia, do guião e da realização. De alguma forma acredito que é diferente quando um realizador parte para filmar uma ideia que é sua, desde que tenha competências para a levar a bom termo. Garland tinha visto várias das suas ideias chegarem ao cinema com “The Beach” (2000), “28 Days Later…” (2002) e “Sunshine” (2007) sempre pelas mão de Danny Boyle. Depois dedicou vários anos a adaptar ideias de terceiros, “Never Let Me Go” (2010) e “Dredd” (2012) para o cinema, e o videojogo “Enslaved: Odyssey to the West” (2010). “Ex Machina” surge assim como uma espécie de súmula de todo este trabalho, da escrita original à visualização de ideias, emergindo um projecto profundamente autoral pela clara vontade de expressar uma visão.

junho 07, 2015

"Pac-man" + "Pong" = PACAPONG

Já vem com algum atraso, mas só agora consegui jogar "Pacapong", o videojogo criado por Dick Poelen (31), durante a Mini Ludum Dare 58 (Março 2015). Esta "game jam" tinha como tema de partida, o jogo "Pong" (1972). Poelen resolveu assim criar uma fusão de vários jogos partindo de uma base em "Pong", à qual juntou "Pac-Man" (1980), "Space Invaders" (1978) e "Donkey Kong" (1981).



Em essência a fusão constrói-se apenas a partir de "Pong" e "Pac-man", já que tanto "Space Invaders" como "Donkey Kong" funcionam quase como meros adereços, daí também que o título do jogo faça referência apenas aos dois primeiros. De qualquer modo não deixa de ser um interessante trabalho de apropriação e mescla de ideias, capaz de gerar novas experiências, mantendo vivos os valores de cada um dos elementos originais. Isto é algo a que nos habituámos nas últimas décadas no domínio da música, e mais recentemente com a democratização digital, no vídeo, mas os jogos têm estado algo afastados destas experiências, muito por causa das competências exigidas que começam apenas agora a baixar, com as novas ferramentas de desenvolvimento de videojogos.

Assim para além da nostalgia, "Pacapong" consegue transformar por completo "Pong", diria mesmo modernizar, em termos de complexidade e caos, ao mesmo tempo que converte "Pac-man" num jogo multiplayer competitivo. O ritmo da jogabilidade teria a ganhar com "testing", algo que é difícil de fazer durante uma game jam, porque o atravessamento de pac-man e cada partida, parecem-me ser demasiado rápidos. Funcionam muito bem para garantir o interesse nas primeiras vezes que se joga, mas à medida que vamos jogando com outra pessoa, e vamos interiorizando o potencial das regras do jogo, mais tempo poderia ser benéfico para intensificar a emocionalidade entre os dois jogadores.

Video demonstrativo da jogabilidade de "Pacapong" (2015)

O jogo está disponível gratuitamente para Windows, Linux e Mac.

junho 06, 2015

Em Busca do Tempo Perdido - Volume VII (Fim)

Murakami e Bechdel estavam errados. Murakami considerou que para ler “Em Busca do Tempo Perdido” era necessário que alguma vez nos encontrássemos presos ou fugidos durante bastante tempo (no 3º tomo de "1Q84"). Já para Bechdel, as pessoas atingiriam a meia-idade quando se dessem conta que nunca iriam ler “Em Busca do Tempo Perdido” (em “Fun Home: A Family Tragicomic”). Não sei se foi para demonstrar que não tinham razão, apenas sei que era um título que me acompanhava há décadas, e a curiosidade de saber o que nele se encerrava era tremenda. Por outro lado, como disse na resenha do primeiro volume, há 10 anos que andava a tentar ler o primeiro volume, sem sucesso. Então porque li agora os 7 volumes, as 3200 páginas, em 2 meses? Não tenho explicação, mas arrisco a dizer que talvez tenha necessitado de chegar à meia-idade para ter a calma e tranquilidade necessárias à exigência da sua leitura.


Ao iniciar a leitura deste último volume ganhava uma consciência mais clara das motivações de Proust no encetar desta colossal obra, mas ao chegar a meio do livro as minhas explicações eram não apenas confirmadas, mas aprofundadas pelo próprio Proust que resolve dedicar 20 páginas a explicar o sentido da própria obra. Surpreendeu-me, porque não deixa espaço à interpretação, é muito claro e honesto. Proust arranja uma forma muito directa de explicar o sentido do texto, o sentido da arte, e o sentido de toda a sua vida. É um momento magistral, de reconhecimento do todo, em que as páginas se convertem num espaço-tempo de realidade, deixam de ser mero papel, deixam de ser mera história contada, e passam a fazer parte da nossa vida, enquanto realidade verdadeiramente vivida, porque num tempo resgatado por três mil páginas. É o pináculo de “Em Busca do Tempo Perdido”, em que percebemos o que é o "Tempo Perdido", e com o qual nos "Reencontramos". Muito sinceramente não pensei sequer que pudesse ser explicado, que houvesse mesmo essa necessidade, ou vontade por parte de Proust, mas ali de frente àquelas palavras, tudo ganha uma dimensão nova, uma conexão de enorme pureza com o autor, e que imbuído do facto de já não se encontrar entre nós, gera uma carga de enorme melancolia.

Escrevia então eu, antes de chegar àquele momento de rasgo elucidativo, que Proust vai amiúde deixando as suas notas sobre o valor da arte, nomeadamente a pintura, mas cada vez mais a literatura, da sua relevância enquanto registo e ênfase da realidade vivida de todos os dias. Nesse sentido percebe-se que Proust almejava com esta sua obra criar uma espécie de diário literário do seu mundo, para assim se poder dedicar a “pintar” imagens do mundo em que vivia, legando-as a quem viesse depois. Mas não é um registo de autobiografia que se procura aqui, até porque se vamos sabendo muito sobre a psicologia do autor, nada se diz sobre os seus conhecimentos em concreto, o que sabemos dessa parte está apenas implícito no texto, não sendo atribuído ao narrador/personagem principal, Marcel, mas que sabemos pertencer a quem escreve, ou seja Proust.

Neste sentido quando se procura analisar a obra de Proust, em busca de chaves descodificadoras ou pólos de ênfase, podemos dizer que o principal será mesmo a relação do sujeito, do "Eu", com o mundo que o rodeia, a "Sociedade". Daí que o título da obra busque isso mesmo, a análise do tempo dessas relações, já que elas apenas existem no tempo. As memórias são assim relevantes, mas mais do que elas são o seu registo. Proust tinha receio de morrer sem terminar a obra, porque provavelmente sentiria uma necessidade de passar a registo aquilo que lhe ia no fluxo da consciência e memória, sabendo que depois de morrer, tudo se esvairia, e que a escrita era a única que poderia permitir que aquelas ideas, aquele tempo, continuassem vivos, além da própria vida.

Quando chego então ao miolo do livro, e Proust começa a dissertar sobre o que diferencia as memórias voluntárias das involuntárias, quando ele assume uma franqueza desmedida e se abre sobre o fundamento de todos aqueles tomos escritos, caio a seus pés, a minha sintonia era plena, e Proust propiciava-me ali um dos momentos mais belos de reconhecimento do devir. Acreditando ser aqui que desemboca toda a leitura, o sentido da "Busca", marco os excertos e explicações, que se seguem como potencial spoiler, a ler por quem já leu, ou tem muitas dúvidas que algum dia lerá, ou procura uma motivação para empreender a "tarefa".

------ Potencial spoiler ---------------------------
“A felicidade que acabava de experimentar era efectivamente a mesma que sentira ao comer a madalena, mas então adiara a procura das causas profundas dessa alegria. A diferença puramente material estava nas imagens evocadas; um azul profundo inebriava-me os olhos, impressões de frescura, de luz deslumbrante, giravam junto de mim e, no meu desejo de as agarrar, sem me atrever a mover-me como quando sentia o sabor da madalena tentando fazer com que viesse até mim o que ela me recordava…” p.187
Este parágrafo marca o início do climax, seguindo depois para a distinção entre a memória voluntária e involuntária,
Voluntária: “contemplara [..] do pátio ensolarado da nossa casa em Paris, ora a Praça da Igreja de Combray, ora a praia de Balbec, como se ilustrasse a luz daquele dia folheando um caderno de aguarelas que representavam os diversos lugares onde estivera [..] a minha memória afirmava sem dúvida a diferença das sensações, mas não fazia mais do que combinar entre si elementos homogéneos” (p.193)
Involuntária: “Não se passara a mesma coisa com as três recordações que acabava de ter e em que, em lugar de exprimir uma ideia lisonjeira do meu 'eu', pelo contrário, quase tinha duvidado da realidade actual desse 'eu'." (p.193)
basta um ruído ou um cheiro, já ouvido ou aspirado em tempos [‘sabor da madalena molhada’, ‘ruído metálico de colher a bater no copo’ ‘sensação debaixo do pé provocada por pedras desiguais’, ‘tinir de copos’], o sejam de novo, simultaneamente no presente [o lugar em que acontece a memória] e no passado [‘quarto da minha tia Octave’, ‘carruagem de comboio’, ‘baptistério de São Marcos’], reais mas não actuais, ideais mas não abstractos, e logo se liberta a essência permanente e habitualmente oculta das coisas, e o nosso verdadeiro “eu” (que, às vezes desde muito tempo antes, parecia morto, mas que não o estava por completo) desperta, anima-se ao receber o celestial alimento que lhe é trazido.” (p.193)
Isto de que nos fala Proust, são no fundo as suas mais belas metáforas, mas que este acaba por admitir nesta passagem que só podem acontecer por recurso à memória, ou seja à experiência de vida. Não podem ser criadas, ou mesmo recriadas, acontecem de forma involuntária, surgem-nos à consciência pela sua intensidade e essência. Sãos os momentos vividos e únicos de cada um de nós, aquilo que nos torna subjectivos, auto-motivados, e dotados de consciência.

Proust segue depois para o questionar do como fazer para fixar estas memórias, impressões, que só se podem sentir desta forma, involuntária. Proust afirma que reviver as experiências de novo, aqueles lugares - Combray, Veneza, Balbec - não lhe traziam aquele sentir, porque na sua presença não era capaz de as sentir por completo. A presença, o momento em que se experimenta, não se sente verdadeiramente, e Proust compara com o que sentia o narrador com Albertine, que quando a tinha em seu poder, perto de si, nada sentia, apenas a sentindo completamente, quando ela estava fora do seu alcance. Deste modo Proust avança então com a explicação cabal da razão de ser do título, mas também da razão de ser todo este livro:
“A única maneira de saborear melhor era tratar de conhecê-las [as memórias involuntárias] mais completamente, onde se achassem, isto é, em mim mesmo, torná-las claras até nas suas profundezas.” (p.197) “tentando fazer sair da penumbra o que sentira, convertê-lo num equivalente espiritual [..] Ora este meio, que me parecera o único, que outra coisa seria senão fazer uma obra de arte? [..] “a sua característica primacial era a de que eu não era livre para as escolher [as memórias], de que elas me eram dadas tais quais eram. E sentia que isso devia ser a marca da sua autenticidade. Não fora eu a procurar no pátio as duas pedras da calçada irregulares em que tropeçara. Mas, justamente, a forma fortuita, inevitável, como a sensação fora reencontrada atestava a verdade do passado que ressuscitava, das imagens que desencadeava, visto que sentimos o seu esforço para subir até à luz, visto que sentimos a alegria do real reencontrado” (p.199)
Ou seja, escrever sobre. Proust tinha dito lá atrás, noutro volume, que a arte era a única forma de recortar a experiência, já que o momento de cada experiência era demasiado abrangente e pouco profundo, e assim inexpressivo. Temos aqui a defesa da arte, mas a defesa de uma arte de essência, ou seja, uma arte que preserva, regista ou fixa em si as experiências mais pessoais que um ser humano pode sentir.
“Assim, chegara já à conclusão de que de modo algum somos livres diante da obra de arte, de que não a fazemos à nossa vontade, antes, sendo, como é, preexistente a nós, devemos descobri-la, simultaneamente por ser necessária e oculta, e como se se tratasse de uma lei da natureza [..] a nossa verdadeira vida, a realidade tal qual já a sentimos.” p.201
Assim, temos que o “sentido artístico” é “a submissão à realidade interior” p.203, que se realizava “quando estava sozinho” quando assim “mergulhava a maiores profundidades” p.204. Nestas profundidades do seu ser, Proust, fala em reencontrar os seus outros Eus, Eus de então, como por exemplo "o menino" a quem a mãe lia "François Le Champi", um romance de George Sands (esta passagem, na página 205, que não transcrevo, é magistral de sentimento). Para logo a seguir reconhecer o seu medo de perder o cristalino desses Eus, memórias que pelo revisitar das mesmas, se recalcam e transformam, perdendo-se no interior de nós mesmos p.209.
“Um determinado nome lido em tempos num livro contém entre as suas sílabas o vento rápido e o sol brilhante que fazia quando estávamos a lê-lo (..) um livro que lemos não fica apenas ligado para sempre ao que havia à nossa volta; fica ligado com a mesma fidelidade ao que nós éramos então, já não pode tornar a ser experimentado senão pela sensibilidade, pela pessoa que nós éramos então.” p.206

---- FIM SPOILER ---------------------------

Este volume final dá conta do quão obcecado Proust se tornaria com a construção da sua obra, de como ela se tornaria no fundamento completo de toda a sua "raison d'être". Trabalhando apenas à noite, quando Paris dormia, para que não fosse incomodado, e num quarto com paredes isoladas por cortiça que impediam os ruído exteriores, para assim se imiscuir totalmente em introspecção, na pesquisa das memórias de si.
Só pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que outra pessoa vê deste universo que não é o mesmo que o nosso”. p.217
Era a arte que Proust almejava, não um mero registo das suas memórias, voluntárias ou involuntárias. E assim se explica que a primeira página da "Busca" (de que transcrevo o primeiro parágrafo abaixo), tenha sido encontrada pelo biógrafo Jean-Yves Tadié, reescrita 12 vezes. Tadié diria que teria ficado imensamente contente apenas com a primeira versão.
“Longtemps, je me suis couché de bonne heure. Parfois, à peine ma bougie éteinte, mes yeux se fermaient si vite que je n’avais pas le temps de me dire : « Je m’endors. » Et, une demi-heure après, la pensée qu’il était temps de chercher le sommeil m’éveillait ; je voulais poser le volume que je croyais avoir dans les mains et souffler ma lumière ; je n’avais pas cessé en dormant de faire des réflexions sur ce que je venais de lire, mais ces réflexions avaient pris un tour un peu particulier ; il me semblait que j’étais moi-même ce dont parlait l’ouvrage…” Primeira página do Volume 1, no original, 1913
Durante muito tempo fui para a cama cedo. Por vezes, mal apagava a vela, os olhos fechavam-se tão depressa que não tinha tempo de pensar: “Vou adormecer.” E, meia hora depois, era acordado pela ideia de que era tempo de conciliar o sono; queria poisar o volume que julgava ter nas mãos e soprar a chama de luz; dormira, e não parara de reflectir sobre o que acabara de ler, mas tais reflexões haviam tomado um aspecto um tanto especial; parecia-me que era de mim mesmo que a obra falava…” Tradução de Pedro Tamen, 2003

Tudo isto faz deste livro um artefacto único, continuando a ser um romance, senão “o romance”. Porque não se confunda o fundamento desta obra, tão pouco a sua forma, com a sua extensão, comparando-se com obras seriadas de aventuras, como os, também, 7 volumes de “Harry Potter” de JK Rowland, ou os vários volumes de “As Crónicas de Gelo e Fogo” de George R. R. Martin.

Em Busca do Tempo Perdido” não é um livro difícil em termos de enredo, e é verdade que assusta pela sua extensão, mas torna-se verdadeiramente difícil pela escrita imensamente delineada e trabalhada, mais particularmente na forma como Proust constrói parágrafos longos, fazendo uso de todas as formas possíveis de orações subordinadas, que obrigam a memória de curto prazo do leitor a trabalhar arduamente. Mas a sua leitura, a experiência que se constrói em nós e nos transforma, supera facilmente muitas daquelas viagens que sonhámos fazer ou fizemos. A "catedral" que Proust sonhou um dia construir, emerge agora dentro de mim, com campanários que cintilam na lembrança de cada um dos seus personagens - Swann, Odette, Marcel, Gilberte, Oriane, Albertine, a Avó e a Mãe, a Sra. de Villeparisis, Vinteuil, Elstir, Berma, Bergotte, os Guermantes, os Verdurin, Charlus, Cottard, Morel, Rachel, Saint-Loup, Françoise ou Jupien.


[Marcel Proust, (1927), “Em Busca do Tempo Perdido - Volume VII - O Tempo Reencontrado”, Relógio D'Água, ISBN 9727088244, trad. Pedro Tamen, 2005, p. 384]


Ler também
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume I
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume II
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume III
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume IV
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume V
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VI
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VII

Actualização 21/06/2015
Entretanto encontrei um pequeno vídeo, "Literature - Marcel Proust" (2015) de Alain de Botton, que tinha já escrito um livro de autoajuda sobre Proust, e que apresenta aqui, de forma sintética, uma possível chave para a compreensão da obra completa.

Actualização 25/06/2015
Abro este ponto apenas para deixar o link para resenha que realizei do livro "Monsieur Proust", um belíssimo memorial da sua governanta, a pessoa que mais tempo e mais próxima de Proust esteve durante os seus últimos 10 anos de vida, os mesmos que levou a escrever toda a obra.