A dança como qualquer arte possui a capacidade de contar histórias. No entanto, e apesar de poder recorrer a elementos basilares como personagens e espaços, e poder ainda trabalhar a dimensão do movimento através do tempo, as suas necessidades formais tornam o desenho da narrativa um processo bastante complexo. Porque se a dança parece poder beber directamente de uma das artes mais relevantes no acto de contar histórias, o teatro, ela não deixa nunca de se aproximar do seu núcleo artístico central, que é a música. Vem esta conversa a propósito do espetáculo de dança “A Bela e o Monstro” posto em cena no Teatro Aveirense pela Escola de Bailado de Aveiro, nos passados dias 14, 15 e 16 de Fevereiro 2015.
Quem acompanha este blog sabe bem o quão me debato com a problemática da narrativa nos videojogos, nomeadamente as insuficiências expressivas no campo da interactividade para contar histórias. Por isso me interessou particularmente analisar neste espetáculo de dança os meios e os modos utilizados para contar a sua história. O espetáculo foi organizado por uma escola de bailado, sediada na cidade de Aveiro, mais focada no ensino da arte do que na produção de espetáculos. Desse modo, não esperava presenciar algo ao nível de um Royal Ballet, mas a verdade é que me surpreendeu, e bastante. Estamos a falar de um conjunto de bailarinas formado por alunas de ballet e dança contemporânea, dos 3 aos 18 anos, falta-lhes ainda muitos anos de experiência, o que só evidencia ainda mais toda a excelência do trabalho da produtora (Maria João Lopes dos Santos) e de produção e coreografia (Ana Capela, Cátia Cascais, Maria João Santos, Maria Jorge Maia, Maria Rui Maia e Mário Ferreira).
A forma como cada quadro da história foi composto, tanto nos cenários como nos personagens, permitiu-me entrar no espetáculo muito rapidamente, compreendendo as acções e empatizando com os bailarinos. O facto da produção recorrer a dança clássica e contemporânea potenciou por meio do contraste um ritmo muito emotivo, com a graciosidade do clássico a suceder-se ao abstracto rápido do contemporâneo. A divisão em três actos foi também muito bem desenhada, com as terminações a fechar em tons pesados, para incitar a ânsia de querer saber o que se iria suceder. Gostei particularmente do primeiro acto, muito movimentado e curto, deixando no espectador uma sensação de plenitude, e desejoso dos restantes actos. Mas o espetáculo como um todo, desenvolveu-se numa boa progressão em crescendo até ao final, sendo capaz de nos surpreender a cada novo quadro, ora pela coreografia, ora pela representação, conduzindo a um fecho de pano capaz de agitar em nós um forte impacto emocional e o desejo de voltar a contemplar interiormente a experiência vivida.
A dança é em essência uma arte do movimento do corpo, como tal, cinge a sua expressividade ao poder comunicativo do corpo e seu movimento. Quando encenada, pode ainda socorrer-se de um palco, o ambiente que pode estender, amplificar e contextualizar o que o corpo quer dizer. Contudo está-lhe de certo modo vedado o acesso à palavra e ao texto, correndo o risco de se converter em teatro ou ópera. Nesse sentido a dança, tal como a música, vive um certo dilema expressivo, porque tem de comunicar através de um meio simbólico não padronizado. Ou seja, os movimentos - gestos e posturas - que se fazem, contêm em si um enorme poder expressivo, contudo, e ao contrário da palavra/texto, não possuem um código partilhado (ex. alfabeto) que todos compreendem da mesma forma. Daí que um passo ou movimento de braços não possa ser descodificado por todos da mesma forma, cingindo-se a experiência da dança mais a uma apreciação estética e menos a uma assimilação de informação.
Aliás no campo dos códigos a dança está ainda mais isolada que a música, já que esta se pode catalogar em unidades, as notas musicais, e compor como um todo, em pautas musicais, sendo facilmente registada e comunicada. A dança tentou algo parecido, nomeadamente com o Labanotation, iniciada por Rudolf Laban nos anos 20 do século passado. Apesar de ser um sistema relevante, e que algumas escolas utilizam, parece ter servido melhor o mundo da robótica e computação do que a arte da dança em si. O problema é que um gesto, por mais perfeito que seja, tem sempre uma tão grande quantidade de variação possível, que se queda muito longe da possibilidade de estabelecimento de padrões, quantificadores unitários, à semelhança daquilo que fazemos na música. O ballet também desenvolveu toda uma terminologia própria, contudo, e apesar do detalhe e perfeccionismo, é algo mais abstracto que não diz referência apenas aos movimentos do corpo, mas ao enquadramento do corpo em cena, tornando a sua composição bastante mais subjectiva.
Apesar de tudo, mesmo que uma qualquer forma de anotação se tornasse o padrão no mundo da dança, tal como no mundo da música, seria sempre um sistema muito distinto de um alfabeto. A razão principal é que essa notação apenas dá conta dos valores sintáticos, ou seja da forma do movimento, não decorre daqui a possibilidade de conotação, associação de ideias, que possa elevar a comunicação de um patamar sintático a um patamar semântico. Ou seja, o sistema de anotação pode ser extremamente útil para a comunicação entre dançarinos e encenadores, mas o que se comunica diz respeito exclusivo à forma do movimento, não lhe atribuindo qualquer objecto, conteúdo ou mensagem.
A título de exemplo, um “plié” dá conta da dobra de joelhos, a denotação sugere-nos a imagem de alguém que se baixa, dobrando os joelhos para fora. Daqui não é possível intuir nada mais além do próprio gesto, apenas analisá-lo e categorizá-lo por comparação a gestos iguais executados por outros. Já a palavra “água” denota em nós de imediato a ideia de líquido transparente, mas não se fica pela informação estrita do que representa, mesmo sem contexto, ela pode gerar dentro de nós conotação, realizando rápidas associações de ideias que nos fazem atribuir àquela palavra ideias como: sede, banho, mar, rio, bem-estar, vida, etc.
Ora contar uma história depende exactamente disto, de apresentar estímulos que sejam capazes de levar as mentes dos receptores a construir associativamente sobre ideias próprias. A história é algo que alguém conta, mas que só existe verdadeiramente no momento em que se efabula na mente de quem a recebe. Ou seja, quando o ouvinte/espectador reconstrói no âmbito das suas experiências vividas, dos seus quadros mentais do mundo, os espaços, as personagens e as suas ações e lhes atribui uma forma narrativa, o sentido. A compreensão de uma história pressupõe assim que o espectador seja capaz de compreender o que lhe está a ser dito, mas mais do que isso, que seja capaz de integrar o que lhe é dito naquilo que já sabe sobre o que é dito. E é aqui que a dança tem dificuldades, porque não tendo unidades concretas de estimulação de conotação, fica limitada à expressão do movimento pelo movimento, e os seus espectadores ficam limitados à apreciação do belo desse movimento, dos seus aspectos estilísticos e das competências.
Assim, torna-se relevante para mim identificar os modos como a dança faz frente a este problema. E não é que tenha identificado algo de novo no formato utilizado para encenar “A Bela e o Monstro”, eu é que me encontrei e compreendi. Dei-me conta que o modo como a dança enfrenta o problema é muito peculiar, embora de um ponto de vista psicológico não difira tanto dos outros meios. Assim o contar de histórias na dança funciona primordialmente a partir do uso de universos narrativos preexistentes, de preferência consagrados junto do público. Ou seja, em termos psicológicos, opera-se pelo lado da familiaridade com a história, utilizando o conhecimento previamente acumulado pelo espectador sobre a mesma, para que por meio da encenação de diversos “quadros” se possa ir relembrando a história na mente dos espectadores. Assim o espectador de “A Bela e o Monstro” não se dedica apenas a apreciar o movimento dos corpos, mas ainda a comparar cada quadro com cada imagem mental que guarda da história. Essa imagem mental pode ter sido gerada antes por lendas e mitos, um livro, um filme ou uma animação.
Mas eu dizia que não era diferente em termos psicológicos, porque é aquilo que o cinema mais faz nos dias de hoje com os seriados e as sagas. Para um espectador é muito mais fácil entrar num filme, para o qual já tem quadros mentais estruturados, sabe quem são os bons e os maus, onde moram e como se comportam. No entanto, enquanto o cinema, os jogos, livros ou séries TV, procuram uma constante progressão, ou regressão (prequels), da história, tentando por aí surpreender o espectador, a dança não o faz, porque não pode, mas também porque não necessita, a surpresa e o diferente aqui advêm do modo como cada encenador coloca em cena a história que já conhecemos. Neste sentido para um apreciador de dança não existe limite para o número de vezes que se vai ver “Lago dos Cisnes”, “Quebra Nozes”, “Romeu e Julieta”, “Sonho de uma Noite de Verão”, “A Bela Adormecida” ou “Cinderela”, o interesse acaba por jogar-se todo na coreografia que acompanha cada quadro.
E assim foi com "A Bela e o Monstro", reconhecendo os quadros, que podem ver nas várias fotografias deste texto, fui percorrendo a história que conhecia, comparando e integrando, enquanto me deliciava com a beleza dos movimentos e coreografias, apreciando a composição do todo, fruindo uma experiência estética completa.
Imagens seleccionadas a partir das fotografias captadas por Graça Bilelo.
Isaac Asimov (1920-1992) ficou conhecido pelo seu trabalho na ficção-científica, mas ele fez muito mais do que isso enquanto por cá andou. Depois do seu doutoramento em Química, escreveu mais de 500 livros, e ganhou dezenas de reconhecimentos pelos mesmos, dizendo a determinada altura: "Writing is my only interest. Even speaking is an interruption.” O seu desejo de conhecer o mais possível o universo em que vivia era suficiente para consumir todo o seu tempo. Numa entrevista em 1988, a propósito do futuro da computação, dissertou sobre o propósito da vida na terra, deixando como memória palavras que foram agora convertidas para banda desenhada pelo Zen Pencils.
Como diz Asimov, para muitos a aprendizagem acaba quando termina a escola, mas na verdade a aprendizagem é a única coisa que motiva a nossa vida. Enquanto seres homo sapiens estamos constantemente em busca de mais, de ver o nunca visto, de sentir o nunca sentido, de ouvir o nunca ouvido, de compreender o nunca compreendido. Claro que gostamos do conforto da comodidade do conhecido, mas em pouco tempo nos saturamos, para ir de novo em busca do desconhecido. Hoje o potencial para chegar até esse desconhecido é gigantesco, não que seja só de agora, os livros foram a primeira grande ponte, depois veio o cinema e a televisão, mas hoje, com a internet, só nos falta libertar as amarras dessa vontade, e deixar clicar para seguir absorvendo.
“Spectators” (2013) de Ross Hogg, estudante da Glasgow School of Art, é uma curta de animação digna de ombrear com o melhor que se faz em literatura, no que toca ao tratamento dado à descrição do ser humano e sua interacção social. A animação serve aqui, tal como o texto serve por vezes, a descrição da expressão humana num detalhe impressionante. Hogg dá-nos a experienciar uma partida de futebol apenas do ponto de vista dos seus espectadores, fazendo-o com um sentido de observação extremamente refinado.
Tudo isto não seria possível sem noções muito concretas de desenho, animação, som e especialmente câmara. O desenho serve a expressão por meio da abstracção, não se focando no detalhe da aparência dos sujeitos, para assim enfatizar os seus comportamentos, que por sua vez são alavancados pela animação dos seus corpos, posturas e gestos. O som envolve o desenho abstracto e dá-lhe vida, concentrando o nosso olhar apenas sobre o que se pretende mostrar, sem esquecer aquilo que não se mostra, e que somos obrigados a imaginar. Por fim a câmara segue todas estas facetas enquadrando-as e dando a ver, apenas quando se deve dar a ver, gerindo assim a nossa atenção, destilando e focando as nossas emoções.
É um filme carregado de pequenos detalhes, alguns verdadeiramente soberbos. Não resisto a referenciar um em particular do uso da câmara quando é marcado o único golo em que a câmara trabalha literalmente para sincronizar-nos emocionalmente com os espectadores. Em travelling rápido, a câmara estaca de frente ao espectador que aguarda pelo golo, a câmara enquadra-o num plano médio, permitindo que a sua cara saia de plano, não a seguindo, mantendo enquadrado a parte de baixo do sujeito, uma área sem vida nem expressão, como que prendendo ali o nosso olhar, enquanto o som continua a acção, elevando a nossa ansiedade para descobrir a cara, e nela descobrir se será golo. Muito bom.
Para quem quer desenhar videojogos, “Legend of Zelda: Skyward Sword” (2011) é uma masterclass completa na arte do design de videojogos. Nunca encontrei jogo mais completo neste domínio, não ficou praticamente nada de fora, em termos de códigos expressivos da linguagem dos videojogos, está lá tudo, algumas coisas trabalhadas de modo extremamente inspirado, outras menos, mas é sem dúvida uma obra que põe em evidência toda a experiência acumulada por esta equipa, ao longo de 25 anos. O maior problema acaba sendo a estrutura narrativa que claramente perde em detrimento do videojogo, e será sobre isso que me irei debruçar.
Pela primeira vez cheguei ao final de um jogo da série, apesar de apenas ter jogado outros dois jogos antes: o primeiro, "Legend of Zelda" (1986) num emulador PC, e depois “Legend of Zelda: Ocarina Of Time” (1998) na N64. Interessante que estes três jogos representem o melhor que já se fez na série para o produtor Aonuma. Nunca terminei Ocarina of Time porque a consola em que jogava não era minha, por isso o contacto que tive com o jogo foi de algum modo limitado. De qualquer modo, reconheço em Skyward Sword imenso do que joguei em Ocarina of Time, assim como um amadurecimento e alargamento das possibilidades.
O elemento crucial de “Legend of Zelda: Skyward Sword” está na fantasia escapista. Assim que carregamos o nosso jogo e se abre o ecrã já dentro do mundo, a fantasia começa, sentimos as amarras da realidade desprenderem-se, somos totalmente transportados para o universo, e por ali nos podemos quedar bastante tempo, sem grande necessidade de voltar à realidade. Na verdade, passei ali mais de 70 horas, nunca antes dediquei tantas horas, de jogo efectivo, a qualquer outro videojogo. Sim, por várias vezes tive de recorrer à persistência, paciência, e vontade determinada para chegar ao final, mas fora esses momentos, voltar a Skyloft foi sempre um desejo carregado de agrado.
Para esta fantasia contribuem fortemente o design, a arte visual e musical, assim como uma programação completamente limpa de erros. A arte encarrega-se de criar as fronteiras do nosso imaginário material, enquanto o design se encarrega de nos motivar a agir e participar, funcionando arte e design em total sintonia, gerando a crença no universo e a vontade de aí investir o nosso tempo.
Os puzzles espaciais, gráficos e sonoros assim como de ação socorrem-se imenso das convenções da linguagem do meio, conseguindo ainda assim surpreender, por vezes pelo experimentalismo, outras vezes pela tecnicidade, outras ainda pelo detalhe e requinte do desenho. E é tudo isto que torna “Legend of Zelda: Skyward Sword” tão magnífico, não precisando de inventar, de inovar a todo o passo para nos tocar, nos deslumbrar. Sente-se que todo o design foi concebido com enorme atenção, optando por grande elevação nos parâmetros qualitativos, mas sente-se mais do que isso, que é tudo feito com enorme paixão pela arte, já que não se trata apenas de fazer muito bem, mas fazer bem seguindo as lógicas partilhadas pelo meio, mantendo vivo o que é bom, e procurando melhorar o que ainda pode ser melhorado.
Com tudo isto que disse até aqui, que se poderia pedir mais? Na verdade, em termos de design de jogo, nada mais gostaria de pedir, os problemas surgem quando se pensa a experiência como um todo, nomeadamente quando percebemos que existia uma história muito interessante por detrás de "Legend of Zelda: Skyward Sword", mas que acaba por ser totalmente sufocada pelas necessidades do design de jogo. O design tem tanta qualidade que quase poderia passar sem a narrativa, contudo se o fizesse, estaríamos a falar de um género de jogo completamente diferente, algo mais como "Super Mario" ou "Rayman", mas na verdade não é a esse género que "Legend of Zelda: Skyward Sword" aspira. Vejamos porquê.
As mecânicas de "Legend of Zelda: Skyward Sword", por fugirem à relação com a história, vão-se enfatizando, tomando conta de toda a experiência, e dessa forma acabam emergindo os seus aspectos menos relevantes, nomeadamente quando falamos de experiências estéticas. Ou seja, começamos a sentir o lado lógico e matemático do design, a afastar-nos da componente orgânica e analógica própria dos universos habitados por vida. Um destes elementos mais problemáticos está no uso dos múltiplos de 3: existem 3 grandes áreas no jogo; 3 pedras preciosas; 3 trials; 3 chamas; 3 músicas, e mais uma que está dividida em 3 partes; 3 forças; cada boss surge 3 vezes ao longo de todo o jogo, com ligeiras modificações, e de cada vez temos de os derrotar em 3 vagas.
Para estigmatizar ainda mais esta dissociação, entre o lógico do design e o orgânico narrativo, a estrutura do jogo foi estendida muito para além do que a narrativa em questão poderia suportar, criando-se aquela sensação frustrante, de que nos estão a enganar, a manter presos, sem razão aparente. De cada vez que solucionamos um conjunto de 3 componentes percebemos que não era o fim, mas apenas um meio para a iniciar nova busca de mais 3 componentes: pedras -> chamas -> trials -> músicas -> forças -> bosses. Em termos de design de jogo, isto não apresenta qualquer problema, antes pelo contrário, todas estas lógicas são delineadas de um modo, que diria perfeito.
Mas quanto à experiência de videojogo, quando se desenha um pico de tensão muito intenso espera-se que ele tenha consequências, que ele não seja apenas um aspecto manipulativo de emoções. O jogador até pode aceitar que se faça isso uma vez, em jeito de teste às expectativas, mas quando percebe que uma e outra vez se lhe tira o tapete, se lhe diz que existe sempre e sempre, algo mais a conquistar antes de chegar ao destino prometido, entra-se por um caminho perigoso no desenho da experiência. O jogador começa a sentir-se desrespeitado em termos emocionais, passa a encarar o artefacto como a vontade de um autor, colocando-o no lugar do artefacto, sentindo-se totalmente à mercê das suas vontades, de repente percebe-se a si mesmo como mero rato de labirinto, correndo desalmadamente, ansiando por abrir a porta escapatória, sem fazer a menor ideia do como e quando isso poderá acontecer.
Entrando num plano mais técnico, Zelda apresenta alguns problemas, nomeadamente por fazer uso de algumas convenções totalmente ultrapassadas, no próprio ano de lançamento em 2011. Falo concretamente de dois aspectos: os diálogos - em texto, demasiado lentos, quase sempre redundantes; e a câmara - semi-estática, obrigando a constante ação da nossa parte para posicionar Link e câmara num ângulo de visão jogável. Entristeceu-me particularmente a questão da câmara, porque nos últimos anos realizaram-se grandes avanços na gestão e design de câmaras para terceira-pessoa.
Por outro lado, um ponto técnico extremamente positivo foi o aproveitamento das propriedades da interface Wiimote, que fazem “Legend of Zelda: Skyward Sword” o melhor exemplo do potencial desta interface. Contudo, assim como demonstra o potencial, demonstra muito claramente porque não vingou nos videojogos, porque uma coisa é jogar 20 minutos de Wii Sports, outra completamente diferente é estar 4 horas seguidas a manobrar o Wiimote.
No fim, interessa pouco se salvamos Zelda porque apenas interessa vencer o jogo. O design de jogo de “Legend of Zelda: Skyward Sword” é assim o seu melhor, assim como o seu pior. Provavelmente é a obra com melhor design de jogo que alguma vez joguei. Completo, total, essencial, brilhante. Mas por ser tão bom, enquanto jogo, ofusca totalmente o resto, diminuindo uma experiência que tinha tudo para se tornar uma referência. Interessante como “Legend of Zelda: Skyward Sword” acaba por frisar e enfatizar ainda mais a relevância de “The Last of Us” no meio.
Nada posso dizer de novo sobre “Crime e Castigo” (1866) de Dostoiévski, é um clássico, como tal escrutinado em todas as demais dimensões que possamos imaginar. Contudo aproveitarei estas linhas para dar conta da minha experiência com o livro. Escrito no século XIX nada lhe falta se comparado com o género literário tão em voga neste nosso século, o thriller psicológico. Os personagens e os seus problemas desmontados como quem desmonta um relógio suíço, a constante introdução de novos problemas e as suas reviravoltas, a gestão minuciosa do suspense através do ritmo a que cada nova informação vai sendo revelada. É um livro escrito para nos prender, ainda que mesmo que o não fosse, nos manteria interessados pelo seu personagem e a sua busca existencial. Nesse sentido acaba sendo uma obra intemporal, já que o âmago da discussão se prende àquilo que faz de nós seres-humanos.
“Crime e Castigo” (1866), illustrações de D. Shmarinov, para edição russa de 1970
“Crime e Castigo” é um relato do mundo realizado a partir do interior de uma alma amargurada. Dostoiévski coloca-nos sob a pele de Raskólnikov, e faz-nos sentir o peso do ser, do outro, da sociedade. É um relato imensamente poderoso, que muito deve à experiência pessoal do autor. Em 1849 Dostoiévski foi preso sob suspeita de conspiração contra Nicolau I da Rússia. Com ele foram detidos muitos outros, todos condenados à morte. No dia marcado para a execução, já estavam amarrados aos postes os primeiros quando chegou a ordem do Czar para comutar a pena por trabalhos forçados na Sibéria.
“A mágoa e a inquietude sem saída de todo aquele tempo, sobretudo das últimas horas, tinham-no oprimido a um ponto tal que agora se precipitava, literalmente, para a esperança que lhe abria aquela sensação plena, nova, íntegra. A sensação acometeu-o como um ataque: acendeu-se-lhe na alma como uma faísca e, num sopro, incendiou-o todo. Tudo nele se abrandou de vez, jorraram-lhe as lágrimas. Caiu de joelhos…” Dostoiévski, “Crime e Castigo” (1866)
À medida que vou recuperando a leitura de clássicos, e seguindo obras enaltecidas, dou-me conta do quão relevante é o peso autobiográfico de uma obra. Como a experiência pessoal de sentires, vivências, lugares, pessoas, vidas, medos e alegrias é importante no criar de lastro de sustentação do relato de uma história interessante, crepitante, capaz de se dar a uma total degustação por outro ser humano. A obra imaginada, deslocada do fio de vida de quem a escreve, pode até ser um exercício interessante, mas dificilmente contém o detalhe necessário à reconstrução cristalina de um espaço-tempo capaz de ombrear com a obra que se recria a partir das experiências vividas de um autor.
Isto explica, em parte, as razões pelas quais certos autores conseguem por vezes fazer uma obra, de rasgo genial, mas depois nunca mais voltam a atingir picos com a mesma intensidade. Aliás, isto vem de encontro à queixa do júri do prémio Nobel deste ano que referiu o facto de os escritores se acomodarem ao conforto da vida com bolsas, impossibilitando o surgimento de experiências de vida capazes de suportar novas ideias, novas abordagens, novos mundos. Mas isto não é uma queixa apenas deste júri, para quem vive no meio, e o gere enquanto editor, sabe que isso é uma realidade. Atente-se nas palavras de Bruno Vieira Amaral, autor de uma primeira-obra nacional de enorme sucesso junto da crítica em 2013, com vários prémios, e que em entrevista nos diz que não quer dedicar-se apenas à escrita, que irá continuar a dedicar-se a múltiplas outras coisas,
"Não quero viver da escrita, isso é uma armadilha... obriga a uma desmultiplicação... Sei como o meio funciona... obriga a decisões que podem ser más a médio, longo prazo para o trabalho do escritor. Muita produção, com um ritmo que rouba a liberdade de dizer 'vou escrever quando me apetecer'." (Bruno Vieira Amaral, in iOnline, 10.2013)
Isto sente-se bastante quando começamos a ler (ou a ver no caso do cinema) a obra de certos autores, nomeadamente os contemporâneos, que pouco mais fizeram na vida para além de escrever. Ao fim de 3 ou 4 livros ficamos com a ideia que dizem sempre o mesmo, que nada mais dali se pode esperar retirar. Não admira que criativos mais conscientes desta vicissitude da criação artística, pensem em renegar a arte que os consagrou. A título de exemplo veja-se Bela Tarr, retirou-se em 2011 depois de 30 anos e 9 filmes, atente-se às suas palavras:
“Ser cineasta é um belo trabalho burguês. Mas eu realmente não o quero fazer. Eu não sou um verdadeiro cineasta. Eu sempre estive nisto pelas pessoas, e só queria dizer algo sobre as suas vidas. Durante 34 anos de cinema, disse tudo aquilo que queria dizer. Eu posso repetir, posso fazer uma centena de coisas, mas na verdade não quero aborrecer-vos. Não quero copiar os meus filmes. É isto.” (Bela Tarr, in IndieWire, 02.2012)
Num sentido completamente oposto, veja-se como António Lobo Antunes, com 24 romances publicados, se mantém ativo, e como se processa a escrita de cada nova obra sua. Como o processo mecânico e repetitivo toma conta da vontade expressiva, transformando o pessoal em maquinal.
“Cada vez mais escrevo sem plano. Sento-me e fico à espera de começar a ouvir a voz. Tenho de fechar uma parte da cabeça para que a outra funcione. E a mão começa a andar sozinha... Este livro está pronto há muito tempo. Não sei, não me lembro. Só escrevi. Não me lembro de nenhum, mesmo deste que estou a escrever. Leio a última linha e continuo.” (António Lobo Antunes, in Estante, 10.2014)
ACTUALIZAÇÃO: 28 Fevereiro 2015
É interessante analisar como alguns dos autores mais consagrados viveram as suas vidas assentes em empregos que lhes permitiam ter o tempo e dinheiro para escrever nas horas livres. Num quadro publicado pela Laphams Quarterly podemos ver o que faziam autores como Charlotte Bronte, Kafka ou Faulkner. A escrita para estes autores estava longe de ser um emprego, uma obrigação, funcionava antes como escape, e ao mesmo tempo modo de expressão das suas experiências de vida diária.
Casey, uma jovem americana de apenas 17 anos, com recurso ao GarageBand, Final Cut Pro e iMovie, compilou num filme de 14 minutos, os momentos mais relevantes do personagem Severus Snape da série de filmes de "Harry Potter", reconstruindo assim não apenas o apelo do personagem, mas também todo o ponto de vista do universo, que passa aqui por ser dado pelo seu tom, pela sua visão, pelas suas emoções.
Mais uma vez o poder do remix a demonstrar o quão ricas podem ser todas as tecnologias que se têm disponibilizado às pessoas, que requerem tão poucas competências, apenas vontade, motivação e persistência para expressar uma ideia. Casey refere que resolveu criar este filme como homenagem ao personagem, para contrabalançar todo o ódio e incompreensão que ele destilou em muitos dos seguidores da série. JK Rowling apenas revelou verdadeiramente quem era Snape no último livro.
Acabando de ler “Jony Ive: The Genius Behind Apple's Greatest Products” (2013) o que mais se me imprime é a gestão de inovação desenvolvida pela Apple. O livro é mais um texto jornalístico do que uma análise da filosofia de design de Jony Yve, mas por isso mesmo acaba por dar conta de um alargado conjunto de factores que se tornam relevantes conhecer no momento em que encaramos o design, o seu potencial de inovação, mas também o seu custo.
Uma parte considerável da sociedade, nomeadamente aqueles mais ligados à engenharia e produção, olham para o produto, seja Apple ou outra grande marca internacional de sucesso, e acreditam que é assim apenas porque a empresa faz tanto dinheiro que se diverte a “brincar ao design”, basta olhar às prioridades das restantes marcas de informática!
Neste mesmo sentido gostaria de aqui enfatizar os produtos nacionais, nomeadamente os produtos criados no século XX - o nosso calçado, o nosso têxtil, o nosso mobiliário (ex. Moviflor, etc.), as nossas motorizadas (ex. Famel, etc), os nossos carros (ex. UMM). Quando hoje se fala de empreendedorismo como a tábua de salvação nacional, esquece-se que isso é algo que nunca faltou por cá. O nosso problema nunca foi o receio de empreender, não tivéssemos nós partido à descoberta do desconhecido em pequenas naus de madeira. O nosso problema sempre foi outro, mesmo nesses tempos áureos: a capacidade de gerir e comunicar as nossas conquistas.
Ora esta capacidade de gerir e comunicar um produto é no fundo aquilo a que se dedica o design do produto, ao contrário da engenharia que se dedica apenas à sua produção. Ambos, a engenharia e o design, procuram a resolução de problemas, mas enquanto a engenharia pára o processo quando o problema está resolvido, o design continua a laborar para melhorar esse processo muito para além da sua funcionalidade. E é por continuar a evoluir o processo que descobre novos problemas, novos caminhos possíveis de produção, novos usos, novos interesses. Dessa forma o produto não estagna, evolui, melhora e responde à evolução das necessidades dos seus utilizadores de forma interactiva. Temos assim todo um processo de gestão e comunicação de produto que se exerce muito para lá da mera produção do produto. A comunicação, ou seja a relação com quem consome, não pode ser apenas pensada em termos de marketing e relações públicas, o produto tem de continuar a "dialogar" com os seus consumidores.
Isto claramente tem custos. Manter equipas continuamente a laborar num produto que se pretendia colocar no mercado e rentabilizar, retira margens de lucro. E acredito que tem sido aqui que tem estado o nosso calcanhar de Aquiles, a nossa incapacidade de ver para além do lucro imediato. Todos os produtos nacionais, de que falei acima, foram criados num momento específico e depois disso os processos foram parados, investindo-se tudo apenas na sua distribuição e exploração. Mais, muitos daqueles produtos não tinham sequer equipas de design, já que esse processo se limitava à cópia do que se fazia lá fora. Nesse sentido, o design foi totalmente menosprezado, a gestão e a comunicação com os consumidores totalmente esquecida.
Voltando à Apple, esta de modo algum criou o iPhone em 2007 e depois se sentou à espera dos lucros, investindo no mero marketing como alguns dos seus detratores julgam. Para se ter uma noção do capital investido em design, entre o iPhone e o iPhone 5, saiba-se que o investimento em equipamento investido na criação do 1º iPhone foi de 408 milhões, mas em 2012 quando o iPhone 5 e o iPad 3 entraram em produção a Apple já tinha investido em equipamento de produção 9.5 Mil milhões! Em termos comparativos, o investimento realizado pela Apple nesta altura, em todo o processo de marketing e lojas era de 865 milhões, 1/10 apenas. Aliás o investimento é de tal ordem que hoje o valor aí investido é maior do que todas as lojas da Apple, terrenos e edifícios juntos. Comparando com a Nokia que em 2011 investiu 1.1 Mil Milhões para fabricar 340 milhões de telemóveis, no mesmo ano a Apple investiu 2.9 Mil Milhões para fabricar apenas 1/3, 118 milhões de iPhones (não tenho informação sobre se o investimento da Apple diz apenas respeito aos iPhones, ou a toda a sua cadeia de produtos).
O investimento em design na Apple ultrapassa tudo o que se possa imaginar, porque este é considerado o verdadeiro núcleo da empresa. É assim porque Jobs sempre viu assim, e é assim porque Jony Yve é ainda mais obcecado com o design e o seu constante aperfeiçoamento. Com o passar dos anos Jobs foi dando mais e mais poder a Yve, ao ponto de este ter total autonomia e controlo, tanto dentro como fora da Apple. Quando Yve procura um determinado material, equipamento ou solução, o seu custo nunca é equacionado. Primeiro importa o produto, e como se pode torná-lo melhor, não apenas diferente, mas melhor, e no final então analisam-se os custos. Uma das frases mais citadas de Yve é exactamente,
“It’s very easy to be Different, but very difficult to be Better.”
E é isto a inovação. A inovação tem enormes custos, e compreende enormes riscos, mas nenhuma marca se mantém no mercado se não investir em inovação. Se não investir em design, se não procurar sempre fazer melhor aquilo que já faz bem. Só assim será capaz de gerir o diálogo constante com os consumidores, e preferencialmente estar à frente das suas necessidades.
Um livro único, uma escrita sublime. A arte do texto levada ao extremo, um trabalho neobarroco, em que por mais descrições e adjetivações que se sucedam, a sua construção é tão sólida, tão coerente, que não só não perturba, como antes nos deixa sôfregos por mais. Nabokov impressiona, não só pela erudição, mas pela capacidade de criar um texto como se fosse um joalheiro, dedicando todo o tempo do mundo a cada detalhe, a cada palavra, frase e parágrafo, a cada ponto e vírgula, a cada verbo e adjetivo, com um cuidado e um carinho incalculáveis.
"Lolita" (1955) de Vladimir Nabokov
Em certa medida sinto ao longo do texto que a obsessão retratada no tema, o amor proibido de um adulto por uma criança, serve a obsessão de Nabokov com a forma e estrutura, um amor também em certa medida carregado de culpa. Sei que estou a entrar pelo reino da interpretação pura, mas na verdade é o que sinto ao imaginar o que pairaria na cabeça de Nabokov enquanto escrevia “Lolita”. Vejo Nabokov no seu labor obsessivo de 5 anos para construir uma obra imaculada, tão perfeita, quase divina, no entanto tratando um tema abjecto. Sendo eu profundamente formalista, percebo o peso na consciência de Nabokov, que sente que à sua volta se dá muito mais valor ao que se conta, do que à forma como se conta. Neste sentido, Nabokov trabalha um tema repulsivo com o objectivo de, apenas e só através da forma, o tornar atrativo. E consegue-o.
Inevitável citar Hitchcock, "Para ser sincero, o conteúdo, eu não quero saber nada disso. Eu não estou minimamente interessado em saber o que trata o filme. Estou apenas interessado em como lidar com o material para criar uma emoção na audiência (..) no filme não é a história, é o que se faz com ela... pois acho que para muitas pessoas, ver um filme, é olhar apenas ao conteúdo, e nunca parecem estudar (falo da capacidade de análise crítica) o que é que o filme tinha para fazer com que a audiência passasse através de todas aquelas emoções". É isto Nabokov, por mais leituras que possamos fazer do tema retratado na sua obra, a sua primeira preocupação é o texto, e depois o texto, e só depois aquilo que o texto diz. Deixo alguns trechos,
"Através da escuridão e do rendilhado das árvores, distinguíamos os arabescos das janelas iluminadas, que, retocadas pelas tintas coloridas da memória sensitiva, me parecem agora cartas de jogar - talvez porque um jogo de bridge mantinha o inimigo ocupado. Ela estremeceu e contorceu-se quando lhe beijei o canto dos lábios entreabertos e o lobo quente da orelha. Um cardume de estrelas brilhava palidamente por cima de nós, entre as silhuetas das folhas finas e compridas, e aquele céu vibrante parecia tão nu como ela estava, sob o vestido leve. Vi o seu rosto reflectido no céu, com uma nitidez extraordinária, como se emitisse uma ténue radiância."
"Para além da planície cultivada, para além dos telhados de brinquedo, havia um lento espraiar de inútil encanto, um Sol baixo numa bruma de platina, com um toque quente, de pêssego descascado, a infiltrar-se na orla superior de uma nuvem bidimensional cinzento-pomba, que se fundia com a sensual névoa distante."
"Sentia-me orgulhoso comigo mesmo. Furtara o mel de um espasmo sem molestar a moralidade de uma menor."
Isto ganha contornos ainda mais impressionantes, quando percebemos que Vladimir Nabokov era russo, e “Lolita” foi escrito já com 50 anos, sendo a sua primeira obra em inglês depois de várias em russo. Da minha pesquisa, percebi que o facto de ter nascido num berço aristocrata permitiu-lhe conviver desde criança num ambiente trilingue - russo, inglês e francês - e isso explica muito sobre os talentos do autor. Dá ainda conta das suas preocupações com a escolha da língua e da tradução. Parece que ter escrito “Lolita” em inglês lhe causou desgosto, porque diz, teria conseguido mais se o tivesse feito na sua língua mãe, o russo, contudo quando ele próprio realizou a tradução para russo, sentiu enorme desilusão, por não conseguir retirar mais da sua língua do que aquilo que já tinha extraído na versão inglesa. Isto é um claro indicador da obsessão de Nabokov com a forma, o texto, a palavra, um verdadeiro joalheiro, um designer, para quem a forma era tudo.
Voltando ao tema, como já disse, é repulsivo. A história narra as aventuras de um senhor erudito, ironicamente pindérico, Humbert Humbert. Este sofre de um problema de pedofilia, atingindo o auge com uma menina de apenas 12 anos, procurando por todos os meios justificar e justificar-se. O livro foca-se apenas no pedófilo, é ele quem narra, pouco ou nada sabemos sobre quem era no fundo Lolita, já que aquilo que nos é dado a saber, é por meio das elucubrações da mente doente de Humbert. O autor, Nabokov, esforça-se por não agir moralmente, desenhando toda a abordagem ao personagem de modo a obrigar-nos a empatizar com ele. Por mais que nos desgostem as suas ideias e ações, Nabokov trabalha minuciosamente a sua apresentação, de modo a que passemos toda a leitura a debater-nos connosco próprios, pensando: é tudo tão horrível, mas Humbert até nem é mau diabo, e tudo aquilo é amor, amor verdadeiro!?
Mas amor, amor é o belíssimo trabalho formal de Nabokov, texto e estrutura, que nos leva todo o caminho, pela mão, mesmo contra as nossas crenças mais fundamentais, até quase nos conseguir atirar pelo precipício da moral abaixo.
É um livro impressionantemente honesto e extremamente relevante, uma leitura inebriante da primeira à última página. As principais razões para tal: 1) é um dos livros mais importantes já escritos sobre gestão de criatividade, tendo-se já tornado um clássico obrigatório; 2) é um livro construído com base numa premissa fruto de validação científica; 3) é um livro sobre tecnologias CGI e Animação, sobre a Pixar e a Disney; 4) é um livro sobre a realização de um sonho, fruto de grande ambição, visão e muita humildade. Para que se compreenda a relevância deste livro é preciso compreender quem é o autor, e o que fez. O livro foi escrito por Ed Catmull, fundador da Pixar e seu actual presidente, a única empresa na história do Cinema a ter criado mais de uma dezena de filmes (14), sem nunca ter conhecido o falhanço, com todos os filmes a atingirem o 1º lugar do Box Office, metade conseguiu o Oscar de Melhor Animação (7). Não existe nenhuma outra empresa no ramo do cinema, dentro ou fora da animação, que se compare com a Pixar, e é por isso que se torna tão importante compreender o que constitui a estrutura desta empresa.
Catmull começa o livro discutindo a origem da sua paixão, nos anos 1950 quando via os desenhos animados da Disney na televisão percebeu que era aquilo que queria fazer na sua vida. Sinto aqui alguma sintonia, mas no meu caso não foi a Disney, foi a Pixar. Tal como “Snow White” tinha sido a primeira longa de animação em 1937, “Toy Story” tornou-se na primeira longa de animação 3d em 1995. Ambas estas duas conquistas estão ao nível do primeiro passo da humanidade na Lua, por tudo aquilo que exigiram do ser humano em duas frentes: arte e tecnologia.
Para termos “Toy Story” foi preciso juntar três pessoas - Ed Catmull, John Lasseter e Steve Jobs. Como Catmull frisa várias vezes ao longo do livro, não basta talento, muito esforço e dedicação, muito daquilo que fazemos nas nossas vidas é fruto de vários acasos. Neste caso, se Jobs não tivesse sido despedido da Apple, ou se Lasseter não tivesse sido despedido da Disney, nunca teria existido a Pixar, mas estas são apenas duas das imensas bifurcações que possibilitaram que algo que começou como um sonho na cabeça de Catmull se tivesse tornado em algo real.
Uma das dimensões que mais me interessou neste livro foi perceber de que era feito Catmull, e como é que alguém com formação tão tecnológica foi capaz de desenvolver tanta sensibilidade pelos aspectos criativos. A minha conclusão depois da leitura do livro, e é algo que o próprio refere, embora não o afirme, é que o seu modelo de gestão de criatividade é baseado no modelo de peer-reviewing académico. Catmull antes de ser empresário, licenciou-se e doutorou-se em Ciências da Computação na Universidade do Utah, onde teve mais uma vez a sorte de trabalhar num dos momentos, e com uma das equipas, mais importantes da Computação Gráfica e Interacção Humano-Computador, na qual se encontravam Ivan Sutherland e Alan Kay. A sua tese de doutoramento (“A subdivision algorithm for computer display of curved surfaces”, 1974) daria origem a um algoritmo de render. Aliás ainda hoje, para mim, Catmull soa a render porque foi dos primeiros que me recordo de usar na modelação e rendering 3d.
A experiência académica de Catmull revelou-se crucial no modo como este iria passar a lidar com o conhecimento e com os seus colegas de trabalho. O conhecimento é fruto da partilha, da humildade, do reconhecimento dos demais, de ouvir e construir sempre com os outros, sempre pela via da experimentação e validação junto dos pares. O mundo académico é um ambiente descentralizado, em que cada investigador tem grande autonomia, o que tem o seu lado bom, mas obriga a que este tenha de ser proativo, capaz de se orientar, de encontrar o seu caminho, ainda que o seu trabalho só possa evoluir com o reconhecimento dos seus pares. Foi exactamente este tipo de cultura que Catmull implementou na Pixar, é este o fundamento do "BrainTrust", a equipa, rotativa, que na Pixar analisa e discute regularmente as produções em curso (mais detalhe nos pontos 5 e 6 da análise de "Imagine").
Catmull professa assim uma gestão baseada na frontalidade e abertura, na descentralização e desierarquização, na autonomia e responsabilização de cada ser individual, tudo fundamentado em dois elementos centrais, a honestidade e a humildade. Se dúvidas houvesse quanto a estes dois elementos, basta pensar, quem seria o presidente de duas multinacionais envolvidas em milhões, que faria um livro abrindo e revelando todos os detalhes da sua forma de trabalho, dos seus sucessos, mas também dos seus falhanços? Mas este livro não é apenas uma confissão, ou diário, é muito mais do que isso e Catmull vai frisá-lo a meio do livro. A razão principal porque escreveu este livro foi porque teve hipótese de validar o método de gestão criado na Pixar. Em 2006, depois de se tornar presidente da Disney, implementou aí o mesmo método de gestão de cultura criativa, seguindo uma abordagem experimental científica, procurando evitar contaminar variáveis, e o método emergiu, com nuances mas com os resultados que hoje conhecemos (veja-se nomeadamente os filmes "Wreck-It Ralph" (2012) e "Big Hero 6" (2014)). A Disney mudou radicalmente o seu modelo de gestão ao bom estilo Fordiano, e tem hoje o seu próprio BrainTrust, batizado "StoryTrust".
Diga-se que o método não emerge apenas de Catmull, ele é fruto de um projecto a três cabeças - Catmull, Lasseter e Jobs. Catmull o especialista em computação gráfica, Lasseter o especialista em storytelling e Jobs o especialista em inovação pela arte e criatividade. Foi a obsessão deste trio por cada um dos seus domínios que permitiu o surgimento de uma Pixar. À gestão criativa em modo de peer-reviewing de Catmull, juntou-se o brilhantismo do storytelling em animação de Lasseter (vejam ou revejam “Luxo Jr” (1986), já perdi a conta ao número de vezes que mostrei este filme em aulas), a estes juntou-se a obsessão de Jobs pela fusão entre arte e tecnologia, e pela qualidade, sendo capaz de preferir perder milhões cancelando um produto ou filme, a ter um fracasso comercial.
Da esq. para a dir.: Ed Catmull, Steve Jobs e John Lasseter
Existe muito mais que gostaria de dizer sobre este livro, sobre a Pixar, sobre os “três mosqueteiros”, mas isso também estragaria o interesse da leitura para quem ainda não leu. É verdade que me deixei inebriar com o livro, dado o meu amor pela Disney e Pixar e claro todo o reconhecimento que tenho pelo legado tecnológico de várias pessoas que são aqui centrais, o Steve Jobs e a Apple, mas também Ivan Sutherland e Alan Kay, e claro Catmull, que além de se ter tornado num gestor de topo, é antes de tudo um cientista da computação. E talvez mais importante ainda, nada disto existiria sem o fruto principal, o legado artístico de Walt Disney, Ollie Johnston e Frank Thomas, e do que ficará de criadores como John Lasseter, Andrew Stanton e Brad Bird.
Deixo aqui no final apenas algumas indicações do modelo de Catmull, mas são apenas isso, indicações. Leiam o livro, absorvam-no e tentem aplicar os seus ideais pelas empresas por onde passarem.
As pessoas e os seus talentos, são mais importantes que as ideias.
Contratem pessoas pelo seu potencial, não pelo seu passado.
Contratem pessoas que sejam mais inteligentes que vocês.
Todos devem sentir-se livres para contribuir com ideias. Todos.
Eliminem o medo.
Não escondam os problemas, é o primeiro passo para o falhanço
As primeiras conclusões, estão quase sempre erradas.
Para que estes princípios possam ser aplicados, é necessário seguir algumas lógicas de acção no seio da empresa:
Honestidade e Candura. Centrais, sem honestidade a candura não emerge, e sem ela a crítica construtiva não surge.
Medo e Falhanço. Preciso falhar para avançar, sendo que o medo de falhar é central, é preciso atacá-lo desde a raíz.
A Mudança. Um ponto, que julgo muito relevante nestes tempos conturbados de crise, sobre a mudança, a sua necessidade, e formas de o fazer sem criar demasiados atritos, desconfiança e medo.
:: Why change? “Many of the rules that people find onerous and bureaucratic were put in place to deal with real abuses, problems, or inconsistencies or as a way of managing complex environments. But while each rule may have been instituted for good reason, after a while a thicket of rules develops that may not make sense in the aggregate. The danger is that your company becomes overwhelmed by well-intended rules that only accomplish one thing: draining the creative impulse.”
:: How to approach change? “Pete has a few methods he uses to help manage people through the fears brought on by pre-production chaos. “Sometimes in meetings, I sense people seizing up, not wanting to even talk about changes,” he says. “So I try to trick them. I’ll say, ‘This would be a big change if we were really going to do it, but just as a thought exercise, what if …’ Or, ‘I’m not actually suggesting this, but go with me for a minute …’ If people anticipate the production pressures, they’ll close the door to new ideas—so you have to pretend you’re not actually going to do anything, we’re just talking, just playing around. Then if you hit upon some new idea that clearly works, people are excited about it and are happier to act on the change.”
Por fim, fecho com o aspecto central de toda esta leitura, uma reiteração que vai surgindo ao longo do livro por Catmull:
“To reiterate, it is the focus on people—their work habits, their talents, their values—that is absolutely central to any creative venture.”
Actualização 2.2.2015:
Descobri que o livro foi entretanto traduzido para português e lançado por estes dias, tendo mantido a mesma capa, mas com o título simplificado, "Criatividade" apenas.