dezembro 26, 2014

Análise: “O Meu Irmão” (2014)

Portentoso debute. “O Meu Irmão” é dono de uma escrita sublime e dotado de um enredo matematicamente alinhavado, em nome do contar de uma história capaz de nos arrancar um grito de alma. Peguei nas primeiras páginas na noite, já tarde e sem grande ideia de o começar a ler, contudo a beleza do que comecei a ler num fio encadeado de palavras fluídas, logo me manteve ali preso.


Afonso Reis Cabral é jovem e por isso com muito ainda para dar às letras nacionais, apesar de primeira novela a maturidade apresentada dá conta de tanto e tanto trabalho realizado para chegar aqui, temos por detrás destas páginas alguém que leu centenas se não milhares de obras, temos alguém que escreveu centenas se não milhares de páginas, no que podemos ler ao longo destas 360 páginas fica demonstrado um domínio exímio da nossa língua, assim como uma noção muito concreta do que comporta uma novela.

Não foram poucos os que criticaram o escritor, não a obra porque nem sequer a tinham lido, só foi publicada depois de escolhida pelo júri do Prémio Leya 2014. Ganhar um prémio literário num valor de 100 mil euros é algo que levanta o sobrolho a qualquer um, ganhar com apenas 24 anos faz disparar o espanto, mas dizer que é trineto de Eça de Queirós faz surgir a desconfiança.

Contudo a capacidade de criar um texto destes não se define pela idade e menos ainda pela herança genética. Como nos dizem os vários estudos sobre o talento humano (Colvin, 2008; Coyle, 2009) esta capacidade só surge com muito, imenso, trabalho. Afonso Reis Cabral pode ter apenas 24 anos, mas se começou a escrever, como diz, aos 9 anos, tem 15 anos de labor em cima da arte. Do que nos é dado a ler é fácil ver as influências dos grandes clássicos da literatura, mas também se sente muito do seu mundo vivido, o que nos diz que o autor não só foi buscar muito aos outros que o precederam, como devia, mas também que é extremamente atento à realidade que o circunda.

Para Alain de Botton "a literatura é o maior simulador de realidade", capaz de nos fazer passar por experiências para as quais precisaríamos de várias vidas. O escritor Afonso Reis Cabral, e a sua idade, são a prova viva desse capacidade da literatura. Claro que não basta ler muito para se tornar num grande escritor, é preciso agir e trabalhar sobre aquilo que se lê e se consome, correndo o risco de nos deixarmos consumir. Ou seja, escrever, escrever todos os dias e sempre. Mas para poder evoluir falta ainda a motivação e a orientação, porque por muito solitária que seja a vida de quem escreve, o crescimento só é possível com o feedback de quem nos lê. Nesse sentido, ter tido bons professores no secundário e seguir uma licenciatura e mestrado na área das letras ajudou bastante.

Para quem entretanto o leu, dizer, ou criticar sob o preconceito dos 24 anos, que não se pode ainda escrever com profundidade (não vou nomear), é infantil porque se busca a infantilização do ser humano. Podemos sem dúvida questionar se esta será a sua maior obra, pois espero que não, é apenas o início de um caminho, que deve ser valorizado enquanto tal, não se analisa uma primeira obra como se analisa a obra de uma vida.

Falei acima do sentimento matemático que percorre o texto, que é no fundo um sentir profundamente académico que vibra ao longo de todo o livro e que de forma inteligente é atribuído pelo autor ao personagem principal, na sua profissão de investigador e professor  universitário. O enredo entre cada uma das pequenas histórias cozidas num todo, segue um processo de harmonização em busca de uma perfeição, com cada lugar, personagem e evento a trabalharem para um sentido muito concreto e altamente coerente. Por outro lado, existe uma fuga, que me parece consciente, a essa racionalização ou perfeccionismo que acaba por emergir numa espécie de mancha naturalista. Ou seja, existem diálogos com expressões duras, a roçar o mau gosto, incomodativas, chegando a tornar-se perturbadoras se pensarmos que este autor pode sequer ter pensado o que está ali escrito, mas que não estão ali por acaso, antes objectivam o tal naturalismo, um dar a sentir o que se diz e pensa em determinados momentos das nossas vidas, mesmo que isso não represente a forma polida de o escrever. Aliás este naturalismo é também em certa medida fruto do traço estilístico escolhido para a narração que se faz a duas vozes, ainda que da mesma pessoa, como se o narrador fosse dotado de um homúnculo que vai corrigindo e aprofundando a ‘verdade’ do que se vai narrando. Ou seja, nota-se aqui uma certa vontade de imprimir honestidade ao que é dito, e para que essa funcione, limpar e polir os diálogos poderia facilmente desacreditar essa frontalidade.

Ao longo do livro fui sentindo uma certa influência de cinema francês (ex. Eric Rohmer ou Alain Resnais), na forma como as relações humanas são descritas e moldadas, a suavidade e delicadeza da sua exposição. Parece nunca haver pressa para dar conta de um personagem, das suas relações ou daquilo que o afecta, como se a vida corresse a seu tempo ignorando as nossas angústias e a velocidade a que nos fomos acostumando que tudo gire. Para isto contribui imenso o lugar no interior do país, o constante apego ao passado, e claro o ritmo alternativo da vida de alguém que sofre de síndrome de Down. Ao longo de todo o livro o síndrome é tratado como algo perfeitamente normal, encaixável nos ritmos dos dias de hoje, muito pelo suporte das associações que tomam conta da maior parte destes indivíduos durante o dia, aliviando imenso o peso sobre as famílias. Não que se mascare o problema, ele é bem evidenciado, por vezes de forma diria mesmo perfurante, assim como nunca se usa o ‘problema’ para desenhar o sentimentalismo ou a melancolia fácil.

Mais para o final o modo calmo e suave, ainda que sempre fluidamente ritmado, sofre uma ligeira alteração assumindo um tom mais policial que inicialmente me afastou, pois soou-me a necessidade de cumprir as regras do storytelling, mas pouco depois altera-se de novo quando tudo se resume e encaixa no fechamento do todo, fazendo antes com que este episódio assuma o brilho da genialidade do autor, comportando em si mesmo tudo aquilo que na verdade este pretendia expressar, tudo aquilo que provavelmente o terá levado a escrever este livro.

Deixo apenas três frases que dão conta da escrita de Afonso Reis Cabral, do modo como este consegue simplificar o discurso, metaforizando sentires com imagens do quotidiano, tornando o mundo descrito extremamente acessível, mas demonstrando toda a sua capacidade para elaborar textualmente universos. Mais transcreveria se tivesse o livro em digital:
“Torna-se complicado quando ao cuspir também se quer projectar o ódio acumulado nas paredes do estômago.”

“...o tempo deixa-se escorregar como uma faca bem afiada: quando damos por isso, o corte está feito”

“Estalou os dedos e gaguejou, tropeçou nos gestos e nas palavras enquanto tentava ordenar o relato”

Nota quantitativa no GoodReads.

dezembro 23, 2014

Interagindo com o tempo

Five Minutes” (2014) é um filme interactivo, inicialmente desenvolvido como protótipo por Maximilian Niemann e Felix Faißt, enquanto estudantes de Cinema na Filmakademie Baden-Württemberg, tendo apenas sido transformado no produto final depois de apresentado à Casio e obtido o financiamento para a sua produção completa. Ou seja, é branded content, mas funciona de modo quase independente desse aspecto, nomeadamente se não conhecermos o objecto da marca quase nem damos conta da componente publicitária.




Enquanto objecto fílmico está muito conseguido, com excelente storytelling, muito bons planos e desenho de sequências, os actores não são de topo, mas funcionam bastante bem. Temos uma curta de cinco minutos que nos mantém agarrados e com vontade de saber o que vai acontecer a seguir até ao último segundo.

Em termos de conteúdo, é mais uma historieta de zombies, nada de novo, apenas os sintomas são distintos e daí refrescantes, sendo o principal a perda de memória e o tempo até que isto suceda que acaba por ser aproveitado de forma brilhante pelo guião, e nomeadamente pela camada interativa. Inevitável pensar na influência estética de “The Last of Us” (2013) que muito me satisfaz, dando conta do impacto cultural dos videojogos.

A componente interactiva, que era aquela que mais me interessava, fica-se por uma simples camada de ações gráficas no ecrã, claramente desenhadas para interacção em tablet, que pouco acrescenta à história, contribuindo apenas para trabalhar a questão do tempo, o que não deixa de ser interessante tendo em conta que o objecto da acção de branded content é um relógio. Sentimo-nos a seguir o filme, surgindo a interacção num modo algo intrusivo, acabando nós por percepcionar a interacção como um dilatar do tempo que contribui para a elevação da tensão da experiência. Ou seja, a interatividade aqui destina-se a construir uma percepção mais acentuada da pressão do tempo, aproximando-nos dos sentires dos nossos protagonista, em sintonia com os objectivos dos criadores, como nos diz Maximilian Niemann
“The core idea was to add another emotional dimension to the medium of film by putting the viewer in the main character’s perspective and exposing him to the same time pressure. In our opinion it is ultimately important to immerse the viewer in the story completely, thus he should feel that his interaction makes all the difference. We wanted to create an experience, where it’s not about collecting some abstract points, but a game in which you have to succeed to see the end of the film.” [ShortoftheWeek]
Podemos dizer que cumpriram plenamente com o que pretendiam, essencialmente a camada interactiva acaba por enfatizar o tempo, e pressionar-nos tal como o protagonista se sente pressionado. Contudo e apesar de bem excetuado, sabe a pouco, acabando por gerar alguma frustração uma vez que de todas as vezes que não conseguimos cumprir, simplesmente morremos sendo levados a repetir a mesma acção, nunca existindo alternativa. Tirando o final, com a escolha das cores, tudo o resto acaba por não ir além do mero artifício interactivo, acabando por não surgir o esperado “diálogo” entre o espectador e a obra.

Para ver seguir para Five Minutes.

dezembro 22, 2014

o Belo

Rino Stefano Tagliafierro criou "Beauty" (2014), aquilo que parecia ser mais um trabalho no campo da animação de obras de arte, algo que se foi tornando cliché com o advento das tecnologias de edição audiovisual (ver Movimento de: Gogh, Munch e Picasso ou Recriação de grande quadro em 3D). Por isso demorei tanto tempo a ver o trabalho, que já está online há quase um ano, e agora deixou de estar online por andar a percorrer os festivais de cinema. A verdade é que encontrei o filme completo e pude finalmente dar-me ao deleite de o saborear, e compreender porque não era apenas mais um filme do género.




"Beauty" socorre-se de um conjunto extenso de obras para construir uma espécie de mini-narrativa que é fortemente suportada pelos períodos Renascentista, Barroco e Romantismo, reconhecidos pelo enaltecimento da beleza do corpo, do drama e da tragédia. Deste modo Tagliafierro desenvolve um conjunto de temas que se repetem em várias obras desses períodos, criando uma certa causalidade coadjuvada por uma banda sonora que força o sentimento de progressão narrativa, conseguindo assim criar algo de verdadeiramente único, pode-se mesmo dizer, belo. O filme consegue assim transpor o sentimento que percorre cada tela para um objecto temporal e sonoro, criando uma experiência nova, rica, e altamente sensorial.

 
"Beauty" (2014) de Rino Stefano Tagliafierro

dezembro 14, 2014

Narrativas que Bifurcam a nossa Percepção

"Neblina" (2014) é um belíssimo trabalho de experimentação com a linguagem audiovisual ao nível da participação do receptor, uma busca pela criação de acessos à plástica da matéria audiovisual, um redesenhar da experiência do espectador que o obriga a participar na construção do sentido. "Neblina" é uma obra audiovisual interactiva enquadrada no âmbito do projecto "Os Caminhos que se Bifurcam" do colega Bruno Mendes da Silva, professor da Universidade do Algarve.




Do ponto de vista plástico temos, para começar, vários elementos de enorme qualidade que são combinados para engendrar toda uma atmosfera capaz de nos conduzir à suspensão da descrença, desde logo começando pela neblina que paira ao longo de quase todo o filme e cria um universo próprio, muito ficcional mas ao mesmo tempo cinematograficamente crível. Aliás todo o trabalho respira influências profundamente cinematográficas, desde logo com a banda sonora que começa num registo Nymaniano, muito atmosférico capaz de nos colar aos personagens que vão surgindo no ecrã, para a seguir nos levar para um registo clássico e Hitchcockiano que nos questiona - quem são, porque estão ali, o que fazem, para onde vão - num suspense que emerge e adensa o sentido, acalentando o nosso interesse pelo que estamos a experienciar. Tudo isto é envolvido por uma fotografia a preto e branco de grande qualidade do Rui António, com contrastes marcados, servindo a luz como pincel da expressividade de cada momento que se vive na tela.

Ainda no campo audiovisual tenho de ressaltar o uso da narração ao longo de todo o filme, porque se por um lado a podemos encarar como uma estratégia menor no dar a ver, porque colando sentidos aonde a imagem não consegue chegar, neste caso concreto acaba servindo um papel estruturante, questionando-me mais uma vez, porque obcecamos nós tanto com a especificidade de cada linguagem? Porque é que o cinema tem de ser capaz de mostrar tudo e nada deve dizer, ou porque é que o videojogo tem de ser totalmente interactivo e não pode por vezes também parar, e simplesmente dar a ver? Não será a linguagem audiovisual a linguagem de síntese, aquela que se forma do todo, que tanto pode dar a ver, como dar a ouvir, como logo a seguir dar a participar?

Desconstruindo agora a componente de interacção, em "Neblina" temos 3 fluxos de imagem em movimento e 1 fluxo único sonoro. A interface permite-nos saltar entre os 3 por meio de dois botões, à esquerda e direita da projecção central, sem que a componente sonora se altere. Do ponto de vista do design da interacção diria que a abordagem do Bruno se aproxima bastante da abordagem escolhida por Miquel Dewever-Plana e Isabelle Fougère no seu documentário “Alma, a Tale of Violence” (2012), que tinha já sido muito feliz, e aqui volta a demonstrar todo o seu interesse. Ou seja, a manutenção de um fluxo contínuo sonoro facilita a vida aos criadores, que podem assim desenhar a experiência num tempo fixo, mas para o espectador torna também a obra mais acessível. Ou seja, o facto de existir uma faixa sonora contínua mantém-me dentro da atmosfera da obra, porque me oferece a  garantia de que continuo no caminho certo, isto é, esperado pela obra, e assim relaxa-me para que aproveite e desfrute da interacção com a componente visual, sem o receio de me perder, ou de perder algo que possa comprometer a obtenção de significado.

Chegando agora ao desenho dos acessos participativos na narrativa, tenho a dizer que funcionam de forma soberba muito por força da narração. Mesmo apontando a crítica que já apontei acima, do facilitismo que é usar o texto em vez da imagem para contar, a verdade é que não consigo deixar de pensar em duas grandes obras do espectro audiovisual, provenientes de extremos opostos e que se socorrem da mesma técnica - o filme “Europa” (1991) de Lars Von Trier e o videojogo “Bastion” (2011) da Supergiant Games. A narração em “Europa” tem um efeito profundamente hipnótico, pela atmosfera que vai construindo, ao passo que em “Bastion” tem como missão conduzir o jogador ao longo do espaço-história. Ora em “Neblina” acontecem ambas as coisas, já que a voz começa por nos introduzir ao universo, seduzindo-nos e enlaçando-nos, para depois nos conduzir e atribuir sentido à nossa participação. A voz é a nossa companheira de viagem, se por um lado me faz sentir dentro do universo ficcional pelo seu tom misterioso, faz-me também sentir seguro o suficiente para experimentar com a navegação do sistema, para saltitar entre fluxos, e à medida que o vou fazendo vou ganhando um conhecimento mais profundo do sistema, e por conseguinte dos significados daquilo que estou a experienciar.

Esta segurança no visionamento que a voz confere por meio de uma cola sonora, é também fortemente sustentada por uma outra técnica empregue de forma deliciosa pelo Bruno, que é a repetição de planos, assim como o seu uso em câmara lenta. A repetição juntamente com o desaceleramento do tempo da acção, permite-me saltitar entre fluxos sem que se crie aquela sensação de que se perdeu algo. Ou seja, quando salto entre fluxos, e vejo a repetição, ou o resto da repetição dada a sua languidez temporal, sinto-me aliviado porque não perdi o "novo", nada de "novo" surgiu ainda, e por isso posso voltar a saltitar sem medo em busca do "novo" noutro fluxo.

Deste modo, pouco depois de entrarmos na experiência damos por nós a interagir continuamente com a obra, porque à medida que a narrativa vai progredindo sentimos que cada um dos fluxos nos vai oferecendo uma compreensão que alarga os horizontes do fluxo principal. Acabamos por perceber que é na constante mudança entre os 3 fluxos que acaba por se desenhar o todo, e é por isso que “Neblina” acaba sendo uma experiência interactiva tão interessante. Porque a nossa participação, a nossa acção e interacção com a obra se torna um vício, não conseguimos parar de saltitar entre fluxos em busca de sentidos, tentando completar, tentando complementar. O Bruno conseguiu desenhar uma interacção narrativa que divide os sentidos presentes na faixa sonora pelas 3 faixas visuais de um modo que nos impele a interagir, não apenas porque queremos mais, mas também porque sentimos recompensa nessa interacção, sentimos que a obra se vai abrindo a nós, se nos vai oferecendo, e por isso nos mantemos ali, hipnotizados e à mercê da mesma.

Tenho de dizer que fui levado a visionar a obra várias vezes, daí que aquilo que aqui relato possa ser fruto desta minha ligação à experiência que se intensificou com cada uma das repetições da experiência. Sei que este modelo de interacção narrativa não serve todas as narrativas, é apenas um modelo, mas é um modelo que funciona, que pode servir na criação de novos trabalhos e que apresenta espaço para melhorias. E por isso quero agradecer profundamente ao Bruno por esta obra que rasga e trilha um novo caminho na produção audiovisual interactiva nacional. Esperemos que mais pessoas, nomeadamente alunos de mestrado ou doutoramento, vejam neste trabalho um ponto de partida para a criação de novos projectos na área.

Para experienciarem "Neblina" devem aceder à página da obra, clicar primeiro em "Como ver", e depois então entrar no primeiro link "Neblina". Utilizem o Safari para o visionamento, já que no meu caso tanto o Chrome como o Firefox apresentaram alguns problemas técnicos.


Nota: Não raras vezes enviam-me projectos (filmes, videojogos, aplicações, etc.) para analisar/avaliar aqui no blog, acontecendo muitas vezes não dar resposta. Deste modo quero aproveitar este trabalho para explicar porquê. O Bruno, sendo um colega com quem tenho trabalhado nos últimos anos, fez-me chegar este link em Julho de 2014, contudo demorei seis meses a dar conta do mesmo aqui. As razões para tal são variadas, neste caso a complexidade do trabalho exigia que eu dedicasse tempo de qualidade, e para isso precisava de tempo mas também da disposição mental correcta. Por vezes numa análise na diagonal consigo descartar de imediato os projectos que me enviam, sendo maus não falo, mas quando são interessantes procuro dedicar-lhes algum tempo, e isso acaba por os atirar para baixo na lista de coisas a fazer no blog. Isto não desculpa alguns esquecimentos da minha parte, mas espero que ajude a dar a conhecer um pouco melhor o processo.

dezembro 13, 2014

A inovação em “Dishonored”

Harvey Smith conseguiu mais uma vez apresentar inovação no âmbito da fusão história/jogo. Depois de ter desenhado, com a direcção de Warren Spector, o revolucionário “Deus Ex” (2000), chegou agora a sua vez de dirigir e escrever, contribuindo com mais um passo em frente na resolução dos problemas da narrativa nos videojogos. “Dishonored” (2012) apresenta um sistema aberto com múltiplas possibilidades de acção colocando o jogador no centro e oferecendo-lhe um grau de liberdade quase ilimitado, criando assim uma experiência de realização poderosa a partir da ideia de que as escolhas, acções e caminhos são uma criação puramente pessoal. Estamos a falar de jogabilidade emergente com narrativa interactiva, estamos a falar de storytelling emergente. E o que é afinal isto?




A jogabilidade emergente produz-se quando um jogador podendo realizar uma tarefa de múltiplas formas distintas, pode fazê-lo misturando diferentes formas inventivamente. O mais comum nos videojogos é existir apenas uma forma de atingir um objectivo, e quando nos são oferecidas alternativas, essas funcionam de modo independente, pré-concebidas como meras hipóteses de alcançar o sucesso. No caso emergente, o jogador pode construir o seu caminho para alcançar o sucesso - escolher e fundir poderes, ferramentas, caminhos, tempos, etc. - e assim desenhar o modo como vai lá chegar, levando a que emerjam modos que não foram previamente pensados pelos designers, daí emergentes. Como nos diz Harvey Smith,
“Dishonored is a linear series of hand-crafted missions, where each mission takes place in a mini-open world that is full of nonlinear options. There are bottlenecks here and there, and between missions, for sure. And we iterate around all this to achieve the end results. One of our relevant values here is to reward the player for accomplishing a goal (i.e. getting inside the room somehow), rather than rewarding for how he accomplished the goal (i.e. picking the lock). Our core values always lead us to push for general purpose interactions in the name of allowing the player to improvise, or to choose from a wider-than-average range of actions and approaches. When you play Dishonored, it feels like you’re being crafty or strategically creative.” Harvey Smith
No caso da narrativa interactiva em Dishonored, ela surge por via da ramificação, sendo determinada pelas acções que o jogador vai produzindo no decorrer do jogo, construindo uma multilinearidade muito concreta. No entanto como as escolhas narrativas se processam a partir de acções directas em jogo e não por questões colocadas ao jogador (ler constatação do guionista Austin Grossman), este nem sempre se apercebe dessa multilinearidade, ou ausência de linearidade, sentindo a progressão como um processo linear mas consequente.
“One thing I came to accept early on is that language written and spoken is not the central tool in games… It is not as central as it is in film. Language is just not the main show. The main show is that connection you have with the controller in your hand and motion on the screen and the image on the screen. It's not about the words so much. That was kind of the basic thing to accept when you're the writer working in games. I think it's one of the many confusions that can attack as we try to integrate writers and their craft into games, which has been done historically very poorly." Austin Grossman 
Da junção de uma estrutura de opções narrativas multilineares com uma jogabilidade emergente, acaba por surgir uma experiência completa de narrativa emergente, bastante mais rica do que aquelas que a série GTA nos tem proporcionado. A razão desta inovação prende-se com o facto da emergência não estar desenhada apenas no mundo aberto, como faz GTA, mas ser o núcleo das próprias missões. Isto pode parecer uma alteração simples, mas de todo, implica um design absolutamente insano de opções, obrigando a um nível de produção exponencial, assim como profundamente matemático, no sentido de garantir um nível lógico de opções que permita fechar, ou impedir, opções que possam destruir por completo a experiência. Como diz Tom Bissel na sua análise,
“The designers of this game spent a ridiculous amount of time building systems and levels that they had to know only a tiny portion of the audience would ever see. Most game-makers would regard such a gesture as an utter waste of time and resources. But I suspect that the men and women behind Dishonored regard such a gesture as the entire point of making a video game.” Tom Bissel
O mais interessante de tudo isto é que acaba por definir o modo como as histórias deveriam ser encapsuladas nos videojogos, por via da emergência, da liberdade criativa de acção e experimentação. Jogar é experimentar, testar, explorar, se existe apenas um modo de fazer, e se se faz sempre da mesma forma, então não vale a pena rejogar, questiono mesmo se vale sequer a pena jogar, se não valeria mais ver um filme ou ler um livro? Smith resume isto na perfeição,
“We have some conversations and in-game first-person scenes, but no real cinematics. We try to stay in the world. When we talk about story we describe embedded, designer-proscribed narrative (“you’re the bodyguard of the Empress, falsely accused of her murder”) and emergent, player-driven narrative (“I bumped a bottle and the guard heard it, coming over to investigate, but at the last second I possessed a rat and slipped past him…”). We feel the former is a good wrapper/intro to the game, but the latter is the goal and is the thing unique to our medium.” Harvey Smith

dezembro 08, 2014

A Hora do Código

Começa hoje a Computer Science Education Week 2014 que tem como principal objectivo fomentar a aprendizagem da programação de computadores junto de todos os estratos etários, sociais e económicos. A actividade principal da Semana assenta na "Hora do Código" que passa por convencer pessoas que nunca programaram, a investirem uma hora das suas vidas a programar. O objectivo é simples, lançar as pessoas sobre os carris da programação e assim criar o "bichinho".


Em Portugal a "Hora do Código" está a ser coordenada pela ANPRI (Associação Nacional de Professores de Informática) que disponibiliza um conjunto de ferramentas na sua página e na página no Facebook. Para a promoção da "Hora do Código" a ANPRI convidou várias pessoas nacionais ligadas ao mundo das tecnologias e educação para participar de um conjunto de flyers online com frases de incentivo à programação. Deixo aqui a frase que enviei à ANPRI,

A criatividade é a competência chave dos próximos anos, mas esta não se resume a ter ideias, precisa de se realizar num concreto, algo que a programação pode potenciar pelo modo como estabelece a ligação entre o pensar e o fazer.
Nelson Zagalo
A linguagem de eleição para a Hora do Código é o Blockly, uma linguagem visual desenvolvida pela Google, decalcada do Scratch do MIT, mas muito mais poderosa, pela simples razão de poder traduzir toda a programação em Blockly automaticamente para Javascript ou Python. Deste modo o Blockly serve não apenas os iniciantes na programação, mas pode acompanhar-nos mesmo depois de dominarmos os básicos, através da flexibilidade do Javascript ou Python.

Tutorial de Blockly com Angry Birds

Para este ano, um grupo de engenheiros da Google, Microsoft, Facebook e Twitter com o apoio da Rovio e da EA, desenvolveram um tutorial de Blockly absolutamente fantástico. Fazendo uso dos personagens de Angry Birds, Plants vs. Zombies e ainda o esquilo Scrat do filme Ice Age criaram um tutorial linear em 20 passos que permite a qualquer pessoa, sem qualquer noção de programação, dar os primeiros passos na arte de forma extremamente divertida. Aconselho vivamente a realização deste tutorial, e se houver crianças por perto incentivem-nas, apesar de estar em inglês. Se ainda faltar motivação vejam o vídeo novo da "Hora do Código", abaixo!

dezembro 01, 2014

viajantes do espaço

O artista digital Erik Wernquist criou um belíssimo filme que mais parece um documento audiovisual enviado do futuro no qual dá conta das nossas hipotéticas viagens através do sistema solar - passando por Jupiter, Saturno Marte, etc - para aproveitar a estonteante beleza natural deste magnífico universo. Para intensificar a viagem escolheu excertos da leitura de "Pale Blue Dot" (1994) por Carl Sagan para acompanhar a viagem em "Wanderers" (2014).




O mais interessante deste impressionante trabalho é que tudo foi feito com base em material verdadeiramente recolhido do nosso sistema solar. Wernquist recorreu à NASA para aceder a documentação e imagens e assim conseguir recriar, do modo mais próximo possível, os vários ambientes que podemos ver no filme. Claro que o fez acrescentando, a camada que torna o trabalho verdadeiramente impressivo, a presença do ser humano. Mais informação sobre cada uma das montagens, pode ser acedida na Galeria de Imagens, clicando em cada uma.

"Wanderers" (2014) de Erik Wernquist 
"For all its material advantages, the sedentary life has left us edgy, unfulfilled. Even after 400 generations in villages and cities, we haven't forgotten. The open road still softly calls, like a nearly forgotten song of childhood. We invest far-off places with a certain romance. This appeal, I suspect, has been meticulously crafted by natural selection as an essential element in our survival. Long summers, mild winters, rich harvests, plentiful game—none of them lasts forever. It is beyond our powers to predict the future. Catastrophic events have a way of sneaking up on us, of catching us unaware. Your own life, or your band's, or even your species' might be owed to a restless few—drawn, by a craving they can hardly articulate or understand, to undiscovered lands and new worlds.

Herman Melville, in Moby Dick, spoke for wanderers in all epochs and meridians: "I am tormented with an everlasting itch for things remote. I love to sail forbidden seas..."

Maybe it's a little early. Maybe the time is not quite yet. But those other worlds— promising untold opportunities—beckon.

Silently, they orbit the Sun, waiting."
Excerto de 'Pale Blue Dot: A Vision of the Human Future in Space' (1994) lido por Carl Sagan

novembro 29, 2014

Voando sobre Pripyat e Chernobyl

Depois de aqui ter dado conta, por meio da fotografia assombrosa de Robert Polidori, do estado atual das cidades de Pripyat e Chernobyl, agora trago esse mesmo espaço visto por meio de vídeo, com sliders e drones, num trabalho espantoso de Danny Choke, que teve a oportunidade de aí se deslocar no âmbito da reportagem "Chernobyl: The catastrophe that never ended" (2014) para o "60 Minutes" (CBS).




Nas notas ao filme "Postcards from Pripyat, Chernobyl", Danny Choke dá conta da sua experiência pessoal vivida em 1986, quando com um ano apenas e vivendo em Itália, a sua mãe se viu obrigada a acorrer à compra de leite enlatado para o poder continuar a alimentar, isto porque as autoridades davam conta de uma nuvem radioativa que se aproximava do território italiano, a partir do acidente nuclear ocorrido em Chernobyl.

"Postcards from Pripyat, Chernobyl" (2014) de Danny Choke

O filme criado por Choke mostra pela primeira vez imagens aereas do espaço e com movimento, contribuindo para um renovar do nosso espanto com o lugar. Se as primeiras imagens a chegar do local, dando conta de todo aquele verde e abandono humano, já eram impactantes o suficiente, estas novas imagens, com a introdução do movimento e pontos de vista aéreos, servem no incremento do nosso imaginário, deslumbrando pela qualidade e novidade. A banda sonora utilizada, "Promise land" de Hannah Miller, funciona muitíssimo bem na ampliação do etéreo da atmosfera.

IGN: "UnLove the Gate"

Novo texto no IGN Portugal, no qual procuro dar conta do meu silêncio a propósito da controvérsia GamerGate. Faço-o a partir de um estímulo despoletado pelo novo videojogo, "UnLove", lançado por estes dias por alunos da Universidade de Aveiro.


O texto "UnLove the Gate" pode ser lido na íntegra online.