março 10, 2014

Damásio fala da Criatividade e do Social

António Damásio esteve em Porto Alegre no Brasil a participar na conferência Fronteiras do Pensamento 2013, organizada pelo Instituto CPFL Cultura. Mário Mazzilli aproveitou a sua passagem pelo Brasil para lhe realizar uma interessante entrevista que foi entretanto vertida para um pequeno documento audiovisual e colocada online.


Ao longo dos 30 minutos que dura a entrevista, Damásio, de um modo muito calmo, vai discorrendo sobre vários temas que para muitos deveriam ser tratados separadamente mas que são impossíveis de dissociar quando queremos tratar as questões do cérebro e consciência. Falo do facto de Damásio ter um discurso fortemente contaminado pelas Artes e Ciências Sociais em conjunto com as Neurociências e a Biologia. Num tom académico e humilde Damásio consegue permear todas estas áreas, sem as sobrepor, num contínuo de coexistência e codependência, porque no fundo é como Damásio diz, quando falamos de cérebro, falamos de Vida.

Logo a abrir a entrevista, uma afirmação rápida deixou-me a reflectir, Damásio refere-se ao Teatro e ao Cinema como "artes complexas", em face das clássicas Pintura, Escultura e Música. Em parte isto deve-se ao facto de o Teatro e o Cinema serem artes de síntese das artes ditas clássicas, e por isso em termos de produção requererem conhecimento não apenas da arte em si, mas também das anteriores. Mas é interessante como continuamos ainda assim a assistir a algum desdém por parte do meio das artes clássicas face a estas. Julgo que pode estar relacionado com algum purismo face aos discursos, a singularidade de cada uma destas, e isso pode explicar também em certa medida a relutância em aceitar os videojogos como arte. Por isso escrevi aqui há algum tempo o texto “A singularidade da linguagem dos videojogos" e ainda por estes dias escrevi a propósito da multiplicidade de especialistas requeridos para se criar um jogo como "The Last of Us".

Ao longo da entrevista Damásio vai tocando o tema da criatividade, já que ele é director do Brain and Creativity Institute da USC. Gosto da abordagem que faz quando coloca a Criatividade a par da Memória e da Imaginação, defendendo que não existe criatividade sem memória, porque a criatividade emerge através de um processo de colagem, de "montagem cinematográfica", das memórias que preexistem em nós. Isto vem de encontro ao que ando a defender há muito, a propósito da ideia de que a criatividade se encontra no remix. E é por isso que quando leio algumas tiradas levianas como as de Umberto Eco, defendendo que não é importante as crianças saberem história porque o Google lhes diz quem fez o quê e quando e que o que é importante é saber filtrar a credibilidade de páginas web, me arrepio.
“a memória é absolutamente indispensável para que exista criatividade… é do facto de poder relembrar e manipular imagens que nasce a nossa fonte criativa… as memória são imagens, não visuais, são representações mentais…” Damásio na entrevista
Damásio defende a uma certa altura uma visão humanista da ciência. Uma ciência que se preocupa com a cultura humana, que para perceber o que temos hoje, investiga o que tivemos no passado, uma ciência que se preocupa com os problemas de forma longitudinal e em profundidade. Porque não quer uma ciência que apenas está preocupada em resolver problemas, em realizar avanços tecnológicos por realizar, porque como ele diz, nem toda a ciência é boa e “é possível fazer ciência que é horrível”.

Isto vem de encontro ao que Morozov tem defendido e vem apelando, que não se embarque na ideia do progresso inevitável da tecnologia, da obrigatoriedade de nos adaptarmos aos efeitos da tecnologia. Pode ler-se sobre isto no seu último livro, "To Save Everything, Click Here: The Folly of Technological Solutionism" (2013) (farei a análise do mesmo aqui em breve). Nesta sintonia entre Damásio e Morozov, que pode parecer complexa e paradoxal, defendermos que a ciência tem limites, ajuda-nos a relembrar que o mais importante é aquilo que defendemos enquanto seres humanos, e não ideias no abstracto por mais lógicas que nos possam parecer.

"Entrevista com António Damásio" (2013) por Fronteiras do Pensamento e Instituto CPFL

Na senda desta abordagem ao mundo e à ciência, Damásio fala dos problemas das "dores morais", ou da depressão, e relaciona-as com "a velocidade a que a informação e a cultura entram no nosso cérebro" nos dias de hoje, para nos relembrar que "não fazemos a mais pequena ideia se isto é bom ou mau", porque teremos de estudar as consequências de tudo isto ao longo dos próximos anos. Uma opinião de enorme sensatez, como seria de esperar, e que vem mais uma vez de encontro a algumas ideias que me venho interrogando muito sobre a questão da velocidade da sociedade de informação e comunicação.

Penso desta mesma forma porque quando me aproximo da ideia de culpar a velocidade atual a propósito do excesso de entropia, percebo que no passado as coisas não foram tão lentas como pensamos, porque não estamos a comparar realidades, mas antes a realidade que vivemos atualmente com representações da realidade que fomos construindo a partir da cultura sobre esse passado. Por outro lado, sabemos também que passámos por imensos estádios de desenvolvimento tecnológico, nomeadamente nos últimos 200 anos, mas que soubemos sempre adaptar-nos.

Agora essa adaptação não quer simplesmente apenas dizer que a tecnologia seguiu o seu rumo, e nós aceitámos, e evoluímos, mas antes que soubemos adaptar o mundo, as tecnologias e nós próprios em função daquilo que seria melhor para a espécie. Ou seja, o tal processo de "homeóstase sociocultural" de que Damásio fala, em que muitos de nós podem contribuir para fazer evoluir e progredir a ciência e tecnologia, enquanto muitos outros contribuem para reflectir, criticar e chamar à razão sobre a mesma. Por isso mesmo é que não podemos apostar tudo apenas na Ciência e Tecnologia, precisamos das Artes e Humanidades para contrabalançar, precisamos de ouvir vozes dissonantes, de ouvir diferentes pontos de vista sobre cada inovação, sobre cada avanço, para podermos evoluir sim, mas de forma equilibrada.

março 09, 2014

Estética do Excepcionalismo Americano, "Bioshock Infinite" (parte I)

Comecei por escrever um texto sobre a experiência de Bioshock Infinite mas em virtude da quantidade de ideias e discussões que este despertou em mim, vi-me obrigado a dividir o texto em duas partes, tanto pela extensão como pelos assuntos a discutir. Assim apresentarei nesta primeira parte, um texto sobre a arte e tema, e numa segunda parte um texto sobre o design de jogo e de narrativa.




"Bioshock Infinite" (2013) de Ken Levine é uma montanha russa de emoções estéticas, principalmente geradas pelo cenário e toda a arte visual que suporta o jogo. A entrada em Bioshock Infinite assemelha-se à entrada num parque temático, perfeitamente construído, extremamente coerente, e fortemente atractivo. Toda a componente visual é levada ao extremo do detalhe, nomeadamente no campo da arquitectura e escultura, e ainda com um controlo de luz impressionante capaz de captar os menores brilhos do cenário.

Se no tempo somos atirados para 1912, no espaço somos introduzidos a um dos elementos mais impressionantes do jogo, a cidade flutuante. Uma cidade impossível que contribui para o desenho do imaginário central de Bioshock Infinite, capaz de realizar à nossa frente algo que conhecemos apenas dos mundos do fantástico. Toda a cidade, banhada por uma luz magnífica capaz de dar a ver os detalhes mais ínfimos, subjuga-nos à contemplação e ao êxtase.

Mas para se compreender completamente Bioshock Infinite é preciso compreender as raízes estéticas que alimentam todo o seu ambiente visual, sonoro e narrativo, e que se podem encontrar de forma concentrada debaixo de um movimento político designado de Excepcionalismo Americano. Não sendo uma corrente estética, orientou uma forma de estar no final do século XIX, fruto de vários eventos decorridos no seio dos EUA com um forte apoio de cultura oriunda de França. À medida que escavamos o tema encontramos mais e mais ligações estéticas, culturais e políticas, e é sobre elas que me irei deter neste texto sobre Bioshock Infinite.

Uma das melhores sínteses sobre o Excepcionalismo Americano pode ser encontrada, ainda antes do termo ter sido cunhado, em “Democracy in America” de 1840 por Alexis de Tocqueville,
“The position of the Americans is therefore quite exceptional, and it may be believed that no democratic people will ever be placed in a similar one. Their strictly Puritanical origin, their exclusively commercial habits, even the country they inhabit, which seems to divert their minds from the pursuit of science, literature, and the arts, the proximity of Europe, which allows them to neglect these pursuits without relapsing into barbarism, a thousand special causes, of which I have only been able to point out the most important, have singularly concurred to fix the mind of the American upon purely practical objects. His passions, his wants, his education, and everything about him seem to unite in drawing the native of the United States earthward; his religion alone bids him turn, from time to time, a transient and distracted glance to heaven. Let us cease, then, to view all democratic nations under the example of the American people.”
Neste texto podemos perceber o optimismo e o enfoque dos interesses da cultura subjacente a este período da história americana, e que serve quase de sinopse ao mundo ficcional que podemos visitar em Bioshock Infinite. Mas Bioshock Infinite eleva a sua abordagem ao extremismo político apresentando uma visão do mundo fortemente influenciada pelo chamado Manifesto do Destino do século XIX, defendido por uma facção política mais extremista, que assentava a sua visão em três pilares:
  • A Virtude do povo Americano e das suas Instituições
  • A Missão, espalhar a palavra e refazer o mundo à imagem dos EUA
  • O Destino traçado sob o desígnio de Deus
Esta visão mais extremista foi desencadeada por vários factores, nomeadamente a conquista do Oeste americano, que significou a chegada da civilização por meio da modernização - telégrafo, comboio e cultura - assim como pela própria independência dos EUA que passou a ser personificada pela figura de “Columbia”, nome criado a partir do nome do descobridor da América, Cristovão Colombo (Columbus) e da finalização “ia” do Latim para região, como Lusitania ou Britania. Assim Columbia passaria a significar os EUA, sendo uma figura que se pode ver espalhada por muita arte do final do século XIX e início do XX, tal como podemos ver aqui abaixo, e que é em Bioshock Infinite o nome escolhido para atribuir à cidadela aérea.

"American Progress" (1872) de John Gast. Neste quadro podemos ver a personificação de Columbia que carrega para o chamado Oeste Selvagem a civilização com as linhas de telégrafo, o comboio e a cultura dos livros.

Cartaz americano de apelo ao patriotismo durante a Primeira Grande Guerra. Columbia assume as cores da bandeira americana e apresenta os traços visuais que iriam imbuir toda esta estética. 

Mas Columbia não é apenas a personificação dos EUA, ao surgir neste período da história dos EUA, ligada ao descobridor das américas e à colonização do Oeste, acabaria por se transformar no símbolo máximo do Excepcionalismo Americano, com a ideia de avanço civilizacional permitido pelo desenvolvimento tecnológico da engenharia. Temos aqui assim o renascer de um confronto de movimentos surgidos no século XVIII com a transição do Iluminismo para o Romantismo, assumindo o lado da razão impulsionado pela ciência com o lado místico suportado pela emocionalidade.

Muito interessante perceber como uma parte forte deste choque se suporta na divisão entre as culturas Inglesa e Francesa que estarão também presentes no nascimento de Columbia. É em Inglaterra que o Iluminismo tem a sua maior expressão com Isaac Newton, Francis Bacon e John Locke, embora de França também venha Voltaire, entre outros, mas é em França com a emergência da Revolução Francesa em 1792 que se recupera o humanismo e daí o enfoque no sujeito e emoção, deixando de lado a frieza da lógica da ciência. Por outro lado a circularidade da história não deixa de ser surpreendente, já que a própria grande Revolução Francesa acabaria por surgir como um reflexo do povo francês ao levantamento do povo americano contra a monarquia Britânica. Tudo isto é bastante mais complexo que esta síntese que aqui faço, mas é um resumo que dá conta do que me interessa para definir o mundo ficional de Bioshock Infinite.

Assim no final do século XIX vamos ter um conjunto de obras francesas fruto destes movimentos do final do século XVIII que acabarão por traçar o fundamento daquilo que podemos hoje definir como Estética do Excepcionalismo Americano. Entre estas obras estão,

  • Voyages Extraordinaires, conjunto de histórias de Jules Verne de 1863 a 1905
  • Estátua da Liberdade, 1886, de Auguste Bartholdi, oferecida pela França aos EUA
  • Torre Eiffel, de Gustave Eiffel, construída em França em 1889
  • Estátua da República, 1893, de Daniel Chester French, na Chicago Columbian Exposition
  • Ferris Wheel, 1893, de George Ferris, na Chicago Columbian Exposition
Estas obras acabariam por convergir todas no evento que se pode considerar o lugar de nascimento do Excepcionalismo Americano, a Expo 1893 em Chicago, EUA, que receberia o nome The Chicago Columbian Exposition, a partir da ideia de comemoração dos 400 anos da chegada de Cristóvão Colombo à América. Em resposta à grande exposição de Paris, e a sua Torre Eiffel, Chicago verá surgir a primeira Roda-Gigante, a Ferris Wheel, que acabaria por ser depois imitada e seguida por quase todos os parques temáticos até aos dias de hoje. Assim o que temos nesta altura é por um lado o desenvolvimento tecnológico capaz de apresentar as suas maiores conquistas, quase como resposta aos anseios imaginários revelados por Jules Verne, e por outro lado a emergência estética de um classicismo, que ficaria conhecido como Neoclassicismo. Este movimento fundava-se no iluminismo, na razão e busca académica, e ao mesmo tempo primava pela busca da perfeição lógica e visual nos clássicos gregos da filosofia e escultura, conseguindo unir o mundo da lógica e emoção, numa visão de um mundo optimista, limpo, saudável, uno e coerente.

Claro que se tudo isto servia para criar um mundo melhor, à semelhança do melhor que a ciência conseguia revelar sobre os avanços realizados pelos nossos antepassados, falharia na capacidade de corrigir erros do passado, nomeadamente na criação de elites, de classes dominantes e classes subservientes. Ainda hoje continuamos a socorrer-nos dos escritos de pensadores como Sócrates, Platão e Aristóteles, mas hoje temos consciência do mundo em que viveram, e das suas limitações sociais. Sabemos que a sociedade que objectivavam era diferente daquilo que acreditamos ser hoje uma sociedade ideal. E o mundo ocidental evoluiu, não conquistámos todo o imaginário de Verne, mas andamos lá perto, contudo e apesar de tudo isso em 2014 continuamos a sofrer dos mesmos problemas que seccionavam a sociedade, que a dividiam entre os que tudo podem e os que apenas se podem submeter.

Hoje já não temos uma guerra entre a Monarquia e o Povo, hoje temos uma guerra entre os CEO das grandes empresas e bancos, cotados em bolsa, e o Povo. Os vários movimentos Occupy que surgiram nos EUA nos últimos anos e se vêm espalhando um pouco por todo o mundo, dão conta desta divisão, nomeadamente do 1% que ganha tanto como os restantes 99% juntos. E é por isso que se vem falando que se sente no ar o aproximar de uma Nova Revolução Francesa, que pode não acontecer nos próximos anos, mas acabará por acontecer cedo ou tarde, se nada for feito para alterar o rumo do desenvolvimento.

Cartaz do movimento internacional Occupy

E é exactamente nesse plano que Bioshock Infinite se coloca, colocando-nos no centro de um mundo ficcional avançado tecnologicamente, recorrendo a uma estética de projectar o futuro do final do século XIX, recuperando uma cruzada política de então, que continua a manter-se. Ken Levine consegue assim tocar na especificidade de uma realidade americana, que é também internacional, criticando o chamado movimento Tea Party, e ao mesmo tempo a candidatura de um chefe da igreja mórmon e empresário detentor de uma enorme fortuna, ganha na especulação financeira, Mitt Romney, a presidente dos EUA.

Cartaz de propaganda política de promoção das políticas xenófobas dos fundadores de Columbia em Bioshock Infinite. O cartaz acabou sendo utilizado pelo Tea Party na sua página do Facebook.

Bioshock Infinite critica de forma assaz inteligente o estado da sociedade, em que uma Vox Populi luta pela liberdade da tirania, opressão e de expressão, apresentando um mundo que de tão belo choca brutalmente com a ausência de direitos das pessoas que o habitam. Um mundo capaz dos maiores avanços tecnológicos, mas incapaz de viver em paz e harmonia, impondo a lei pela força, de forma ditatorial e aberrantemente teocrática. Elevando o coeficiente de interpretação, poderíamos dizer que o aspecto teocrático de Bioshock Infinite serve de crítica àquele que é na sociedade atual o governador de todas as acções, o dinheiro. A detenção de mais e mais dinheiro parece prometer o paraíso, a Columbia, e para isso tudo deve ser feito, nem que seja à custa de passar por cima dos outros ou privando-os de direitos.

Voltando à estética e apenas para fechar esta primeira parte da análise de Bioshock Infinite deixo uma dica para quem quiser experienciar este universo visual, façam uma visita à Disneyland Paris, e visitem toda a área da Discoveryland, e depois passem pelas Discovery Arcade e Liberty Arcade, duas ruas cobertas paralelas à Main Street, poderão assim mergulhar no mundo visual de Bioshock Infinite.

Discoveryland, Disneyland Paris, área do parque dedicada à ficção científica

Um dos vários cartazes que se podem encontrar na Discovery Arcade, Disneyland Paris

 Mural na Liberty Arcade, Disneyland Paris, apresenta a história da Estátua da Liberdade


Parte 2 da análise a Bioshock Infinite

março 04, 2014

Filmes de Fevereiro 2014

Mês de fevereiro com alguns clássicos, nomeadamente com o revisitar de Buñuel e Hitchcock. A primeira vez que vi Los Olvidados foi há mais de 20 anos, a impressão foi forte, mas depois de o rever este mês percebi que nessa altura atingi apenas uma parte da mensagem da obra de Buñuel. Los Olvidados é um filme denso, carregado de subtextos, requer abertura e enquadramento. Los Olvidados demonstra todo o poder do Cinema como arte, colocando-o de pleno direito ao lado da Literatura. Por outro lado Notorious, como Hitchcock sempre afirmou, não tem propriamente vontade de apresentar uma mensagem forte, capaz de nos questionar, mas todo o seu aspecto estético formal é capaz de elevar a linguagem do Cinema a limites nunca antes explorados. Se Buñuel nos toca com o que tem para nos dizer, Hitchcock toca-nos com a forma como nos diz. Se Hitchcock tem pouco para dizer, Buñuel limita-se a um uso simplista da linguagem do cinema. São duas abordagens distintas a uma mesma arte, cada uma importante à sua maneira. Podemos pensar que o ideal estará na fusão de ambas, mas não é propriamente fácil a um realizador criar uma marca da sua pessoalidade numa arte, sem se dedicar de corpo e alma à especialização numa das múltiplas áreas que o cinema aborda.

E é por isso que considerei aqui ontem que Gravity foi o vencedor dos óscares, porque é irrelevante se a sua história não consegue tocar o nosso ser como 12 Years a Slave, o que é relevante é o que cada obra faz no seu domínio específico. Esperar que cada obra seja a melhor em tudo, é não saber apreciar uma arte em toda a sua multidimensionalidade.

xxxxx Los Olvidados 1950 Luis Buñuel Mexico

xxxxx Notorious 1946 Alfred Hitchcock USA


xxxx Nebraska 2013 Alexander Payne USA

xxxx Circles 2013 Srdan Golubovic Serbia

xxxx Short Term 12 2013 Destin Cretton USA

xxxx The Armstrong Lie 2013 Alex Gibney USA

xxxx Barefoot Gen 1983 Mori Masaki Japan


xxx Los amantes pasajeros 2013 Pedro Almodovar Spain
xxx The Fifth Estate 2013 Bill Condon USA
xxx The Book Thief 2013 Brian Percival USA/Germany
xxx The Way Way Back 2013 Nat Faxon, Jim Rash USA
xxx The Garden of Words 2013 Makoto Shinkai Japan
xxx Le fils de l'autre 2012 Lorraine Lévy France
xxx Tout un hiver sans feu 2004 Greg Zglinski Switzerland
xxx Tigerland 2000 Joel Schumacher USA

xx Filth 2013 Jon S. Baird UK
xx Ender's Game 2013 Gavin Hood USA

março 03, 2014

a noite de Gravity

A lista dos Óscares 2014 poderia ter sido apenas mais do mesmo, mas não foi, com a excepção de melhor filme para o ultraclássico “12 Years a Slave”, a surpresa da noite foi mesmo "Gravity" que conseguiu arrecadar Melhor Realizador, e acumular um total de 7 óscares.


"Gravity" leva 7 óscares: Best Director, Film Editing, Cinematography, Original Score, Visual Effects, Sound Editing, e Sound Mixing.

"Gravity"que aqui analisei, mereceu plenamente os 7 óscares, não sendo o típico clássico acabará por se encaixar, daqui a muitos anos, nos chamados filmes de culto. Não há dúvidas que o trabalho estético feito em torno da montagem, cinematografia, e efeitos visuais e sonoros superou tudo o que até aqui conhecíamos, e por isso Gravity é um justo vencedor.

"Her" vence Original Screenplay

A juntar a Gravity fiquei muito contente também com o óscar de Melhor Argumento Original entregue a Spike Jonze pelo belíssimo argumento que apresentou com Her, do qual também já aqui falei.

De resto fiquei desiludido com o óscar de melhor animação, Frozen não merecia este prémio, assim como fiquei triste por Daniel Sousa não ter conseguido o óscar para o seu "Feral", de que aqui também falei.

fevereiro 27, 2014

universo interior animado

"Cyclope" (2013) é uma belíssima curta de animação de Marine Duchet, produzida pelo Octopus Collective. Como primeiro projecto do colectivo, foi realizado com apoio financeiro do CRRAV Nord-Pas-de-Calais e do CLAP of Armentières, duas entidades francesas que dão suporte ao audiovisual em França.




O seu aspecto visual oferece-nos um acentuado cintilar de cores, próprio do ruído criado pelas variações entre os desenhos criados à mão, que contribui ainda mais para enfatizar a componente onírica da jornada que nos é apresentada. Apesar do lado manual, Cyclope recorre a todo um conjunto de media que garantem a criação de universos visuais originais e muito particulares, como se pode ver num dos making ofs criado pela equipa de produção.


No campo narrativo, o meio da animação serve o ideal de poder dar a ver algo que existe apenas no seio do imaginário humano, garantindo-lhe uma forma plástica que permite a partilha com o mundo de visões interiores.

"Cyclope" (2013) de Marine Duchet

fevereiro 26, 2014

FX e a impressão 3D

Uma das indústrias mais avançadas, a dos Efeitos Especiais, apresenta-nos novamente o futuro. Depois de em 1993 nos ter aberto as portas a uma realidade em que dinossauros totalmente feitos a partir de imagem de síntese eram mais credíveis do que feitos em animatrónicos, em 2014 continua ainda, e cada vez mais, a trabalhar a realidade física. A indústria dos materiais, dos novos compostos e tintas em conjunto com a impressão 3d rápida, capaz de imprimir objectos em relevo como se de uma simples fotocópia se tratasse, está novamente a revolucionar tudo, e a fazer o caminho de volta do Virtual para o Real.






É um novo mundo do qual o computador não deixa de fazer parte, antes pelo contrário tornou-se no centro de tudo, mas as possibilidades criativas deixaram de estar limitadas a um conjunto de píxeis num ecrã. Se com o CGI dissemos que o limite para visualizar algo era a nossa imaginação, esse limite agora passou a ser a realidade do espaço que nos circunda. Vejam abaixo o pequeno documentário da Legacy Effects para perceber como tudo isto está a mudar.

fevereiro 24, 2014

O som por "detrás" das imagens

"Silent" (2014) é a nova curta da Moonbot criada para os Laboratórios Dolby, com o objectivo de evidenciar a relevância do som junto da imagem. Foi apresentada em Fevereiro deste ano na cerimónia dos Science’s Scientific and Technical Awards da Academy of Motion Picture Arts (EUA). A personagem Morris Lessmore, do filme da Moonbot, The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore (2011), ganha autonomia e assume-se como uma personagem do mundo do cinema. O mais interessante é que a forma como aqui é tratada encarna na perfeição dois dos personagens que talvez tenham estado na sua génese, Charlie Chaplin e Buster Keaton.





Uma das maiores forças do storytelling está na fusão que se realiza entre imagem e som, na capacidade que ambos ganham quando se misturam, para recriar um universo à nossa volta, capaz de nos envolver cognitivamente, conduzindo à imersão durante todo o tempo que dura a experiência. Apesar do cinema, a mais poderosa máquina de emoções criada pelo ser humano até hoje, ser feito essencialmente de imagem e som, continuamos ainda a menosprezar a importância do som. Mais sobre a história da construção desta fusão pode ser visto no episódio 4, "Once Upon a Time", da série documental da BBC, "How Art Made the World" (2005).
“Sound is one of the things now that really binds you into that world, envelops you completely… I mean it takes [a movie] from just being the flat plane in front of you to literally surrounding you. And there’s nothing else like that.” William Joyce in Making Of
Silent (2014) de Brandon Oldenburg

fevereiro 20, 2014

O universo visual de "The Last of Us"

Sei que pode parecer sobranceria da minha parte dizer que assim que vi as primeiras imagens em 2011 de “The Last of Us” (2013) fiquei apaixonado pelo jogo, agora que o jogo é aceite por todos como um dos melhores legados da última geração de consolas. Por outro lado, o Facebook acaba tendo destas coisas interessantes, consegui repescar o que escrevi na altura em que saiu o primeiro trailer, e a forma com o defendi. Dizia eu,

Pripyat,  Ucrânia
“é todo um Universo muito pouco explorado até agora tanto no cinema como nos jogos, a mistura de um cenário apocalíptico com o imenso verde da natureza. Algo que nos diz que a natureza continua o seu caminho, mesmo depois de nós. Ou seja, esteticamente, está mais próximo de "Children of Men" (2006) do que de "The Road" (2009).” (in Facebook 12.12.2011)
"Hotel Polissia" em Pripyat, Ucrânia. Fotografia de Quintin Lake

Na verdade quase tudo se resumiu ao meu encantamento por uma espécie de apocalipse verde. E é sobre este que faço este post, sobre a raiz que suportou toda a estética do jogo. Nate Wells, o lead artist de The Last of Us deu uma entrevista para o blog I.Eat.Games em Julho de 2013, na qual refere que a inspiração visual para o videojogo veio do livro “Zones of Exclusion: Pripyat and Chernobyl” (2008) do fotógrafo Robert Polidori, e acho que isso diz tudo sobre aquilo que encontramos no jogo.
“There’s a book that came out a few years back by a photographer name Robert Polidori called Zones of Exclusion. He went in about 20 years ago to the day into the Chernobyl site and photographed the town of Pripyat and Chernobyl. It was an inspiration during Bioshock 1, and when I came over to Naughty Dog there were 3 copies! Don’t try to get it because it’s like $400 because it’s out of print. This photographer also did Detroit and a smattering of other abandoned urban spaces. There’re also a bunch of great photographers on line too.
Those are all huge resources for us with The Last of Us, especially for lighting and the degree of decay and overgrowth. All those things. When you play the game you’ll notice those themes keep coming up.
The environment really becomes a mirror to humanity. Humanity has decayed and become infected, so has their world. It’s decayed and it’s now being overrun and reclaimed by nature in the same way their bodies are. It makes a great analog, but it also makes these incredibility beautiful moments that you’re not likely to see. To go into a beautiful hotel and see the ceiling caved in and now vines are reaching through the skylight, or to be in a space where the ceilings collapsed, seeds have fallen through and a tree has had 20 years to grow all inside a store. Those are the sort of things and the sorts of moments you want, and it’s the juxtaposition that’s so fun.” (Nate Wells, Julho 2013)


Fotografias de Robert Polidori do livro “Zones of Exclusion: Pripyat and Chernobyl” (2008)

Vendo as fotografias de Robert Polidori, entre muitas outras que se podem encontrar online, tiradas nas cidades de Pripyat e Chernobyl ao longo da última década, 20 anos após o seu total abandono, podemos encontrar zonas que o jogo praticamente decalcou, desde ginásios e corredores a praças, fachadas e varandas.



Fotografias de Pripyat e Chernobyl encontradas online

fevereiro 18, 2014

O tempo da animação digital

Em Janeiro tive o prazer de participar na arguição do projecto de mestrado do José Pedro Sousa Teixeira no âmbito do mestrado em Animação Digital da Escola Superior Artística do Porto - Guimarães. O projecto consistiu na criação da curta de animação digital, Agnes (2013), orientada pelos colegas Pedro Mota Teixeira e Pedro Bastos.



O que tínhamos para avaliar era uma curta de animação 3d de quatro minutos, inteiramente concebida por uma pessoa apenas, exceptuando a música e sonorização, ao longo de 11 meses, no software open source Blender. Nesse sentido a avaliação realizou-se em função dessas condições, sabendo que para além do filme tínhamos ainda um relatório bem fundamentado sobre a história da animação 3d, aspectos estéticos, e as metodologias de trabalho desenvolvidas.

Agnes (2013) é assim uma curta com algumas limitações estéticas, porque realizada por uma pessoa apenas, e em menos de um ano. Ainda assim, é um trabalho de excelência, nomeadamente no design de personagens, e criação do mundo tridimensional. A componente de animação e cinematografia apresenta também enorme qualidade. Sendo que a parte que eu gostaria de ter visto mais desenvolvida seria a das texturas e iluminação, mas sabemos bem que aí entramos no território do detalhe visual que requer bastante tempo por parte do criador. No plano temático o criador optou por brincar com motivos dos videojogos cruzando-os com tendências da animé, o que ajudou a desenvolver um universo muito próprio, com uma identidade clara, que se espelha um pouco por todo o filme, desde o movimento dos personagens à atmosfera que se gera.

Gostaria ainda de trazer aqui um outro ponto, que é muitas vezes esquecido quando falamos deste tipo de trabalhos, seja nas arguições, seja noutras situações, que é o tempo envolvido no desenvolvimento deste tipo de projectos. Já disse que foram 11 meses, mas isso fala de um modo muito genérico. Nesse sentido o José Teixeira teve a ideia de apontar todos os tempos que investiu no filme numa folha de excel, o que foi excelente, e depois teve a enorme amabilidade de me fazer chegar essas folhas de excel.

Captura da folha de excel de tempos de José Teixeira

E porque digo que isto é relevante? Porque quando ensinamos, ou falamos com alguém sobre esta área, é difícil as pessoas compreenderem o que está verdadeiramente em questão por detrás do trabalho realizado. Nesse sentido, olhando para estes dados em maior detalhe, será possível dar a conhecer com muito maior concretude o que se passa por detrás de um filme de apenas 4 minutos de animação 3d.

Assim temos que o projecto foi desenvolvido efectivamente em duas fases separadas, a primeira entre Novembro 2011 e Março 2012, e a segunda entre Janeiro e Junho de 2013. Ou seja, temos 11 meses efectivos, ao longo de dois anos. Durante esses 11 meses o José Teixeira trabalhou efectivamente na curta um total de 1570 horas, o que dá um total de cerca de 200 dias a 8 horas de trabalho. Ou seja, poderíamos dizer que foram precisos em média 50 dias para criar cada minuto de animação. Aprofundando o detalhe por áreas específicas, temos então

  1. Modelação de Personagens: 336 horas
  2. Modelação de Cenários: 480 horas
  3. Rig de Personagens: 144 horas
  4. Texturização: 144 horas
  5. Iluminação: 64 horas
  6. Animação Personagens/cenários: 1200 horas
  7. Animação Câmaras: 48 horas
  8. Render: 84 horas
  9. Montagem (Video+Som): 144 horas


Agnes (2013) de José Teixeira

Daqui podemos extrair algo que quem trabalha na área já sabe, mas fica aqui evidenciado quantitativamente, e que é o facto de que aquilo que é mais complexo, moroso, e trabalhoso  num trabalho de cinema de animação 3d, é a animação de personagens. Esta duplica o trabalho investido na modelação de personagens e cenários juntos, que é já de si um trabalho imensamente moroso dada a minúcia necessária ao trabalho de esculpir cada um dos elementos.

Podemos ainda através apenas desta discriminação perceber porque falava eu de alguns problemas na texturização e iluminação, pois ambas juntas tiveram menos investimento do que a modelação dos personagens apenas. Por outro lado é muito interessante constatar que apesar do investimento na animação das câmaras ser reduzido, a qualidade é muito boa. Ou seja, existem questões que vão para além dos dados quantitativos aqui apresentados e que se prendem com os talentos de cada um. Ou seja, um trabalho como estes requer sensibilidades muito distintas, o que torna muito complicado de conciliar tudo numa única pessoa apenas.

Modelar, Texturizar, Iluminar, Animar e Cinematografar não são a mesma coisa. Por isso quando exigimos a alguém que faça uma curta 3d, não podemos esperar que faça um trabalho com a qualidade dos efeitos de Hollywood. E já não falamos de meios tecnológicos, que deixaram quase de ser relevantes, mas porque um trabalho destes requer equipas de pessoas altamente especializadas em cada uma destas áreas. Claramente que o José Teixeira trabalha bastante bem no campo da modelação, animação e cinematografia, mas ainda assim estamos a exigir demais de uma pessoa apenas. As sensibilidades, os interesses, as experiências que temos de ter vivido, a cultura que temos de ter consumido, a prática que temos de ter treinado são bastante diferentes.

E é por isso que quando vemos um trabalho como Agnes, não podemos deixar de nos sentir felizes. Não sendo um "Rosa" (2011), é um trabalho de excepcional qualidade, é a obra-prima de José Teixeira apresentada no final no seu caminho de aprendizagem, como se fazia na idade média no âmbito das guildas de excelência.